O Teatro do Oprimido Enquanto Instrumento Contra Hegemônico

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O TEATRO DO OPRIMIDO ENQUANTO INSTRUMENTO CONTRA HEGEMÔNICO The Theatre of the oppressed as a toll not hegemonic

Flavio Sanctum1

Resumo:

O Teatro do Oprimido, elaborado por Augusto Boal, propõe que as classes populares oprimidas utilizem a arte para representar sua realidade e, por conseguinte, transformar as situações de opressão em que se encontram. A partir do conceito de Hegemonia de Antônio Gramsci e Mito de Roland Barthes o artigo problematiza até que ponto as práticas do Teatro do Oprimido podem ser consideradas instrumentos que desconstruam alguns mitos hegemônicos na sociedade capitalista.

Teatro do Oprimido, Augusto Boal, Mito, Hegemonia

The Poetics of the Oppressed, developed by Augusto Boal, proposes that the oppressed working classes use art to represent their reality and therefore transform situations of oppression in which they find themselves. From the concept of Hegemony by Antonio Gramsci and Roland Barthes Myth of the paper discusses the extent to which the practices of the theater of the oppressed can be regarded as instruments deconstruct some myths hegemonic in capitalist society.

Theatre of the Oppressed, Augusto Boal, Myth, Hegemony

1

Flavio Sanctum é Curinga do Centro de Teatro do Oprimido, pedagogo e doutor em Artes Cênicas.

Introdução:

Quando o teatrólogo brasileiro Augusto Boal iniciou as pesquisas de uma poética para o oprimido, se alicerçou no pensamento de Karl Marx para, através de encenações teatrais, representar a luta de classes, cujo conflito antagônico acontecia entre figuras como patrão/empregado, latifundiário/camponês, etc. Mesmo que Boal (1980) negue que as práticas do seu Teatro do Oprimido fossem para um tipo de classe social, na prática as peças tinham características de um teatro proletariado, provavelmente herança do Teatro Político dos anos 60 e 70. Porém, isso não desmerece seu empenho na transformação social e política da realidade. Em toda sua vasta obra Boal defende um teatro em prol dos oprimidos, com objetivo de transformar a sociedade capitalista, propondo uma nova sociedade. Atualmente as práticas inspiradas na poética de Boal seguem um conceito mais amplo de oprimido, não atentando somente à luta de classes, independente desta ser a base para a maioria dos problemas apresentados pelos oprimidos. Ultimamente, os conflitos apresentados nas peças dos grupos de Teatro do Oprimido se desdobraram para temas sociais gerais como racismo, homofobia, machismo, o que talvez a discussão somente no prisma da luta de classes não dê conta.

O Teatro do Oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o teatro proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe em sua totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da classe proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. Pode acontecer que essas opressões sejam o resultado da universalização dos valores da classe dominante (―As ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante‖ – Marx). Seja como for, é evidente que na classe operária podem existir (e existem) opressões de homens contra mulheres, de adultos contra jovens, etc. O teatro do oprimido será o teatro também desses oprimidos em particular, e não apenas dos proletários em geral. (Boal, 1980, p.25)

Mesmo sem explicitar concretamente que essa sociedade ideal seria a Comunista, Boal se baseia na teoria de Marx, Engels e herdeiros como Brecht para a construção de um método artístico, hoje praticado em mais de setenta países em todos os continentes. Para analisar a teoria estética de Boal em toda sua complexidade, levando em consideração sua ampliação e aprimoramento desde a criação do método até a morte de Boal em Maio de 2009, será necessário refletir sobre o pensamento marxista

e levar em consideração o que filósofos como Roland Barthes e Antônio Gramsci defenderam. A sociedade recente sofre um processo de degeneração e dominação cultural em vários aspectos, o que foi detectado por esses pensadores e apontado também por Boal (2009), de forma diferente, em sua última obra – A Estética do Oprimido. Nesse ensaio vou analisar onde a teoria de Boal se complementa com as reflexões sobre sociedade e cultura feita por Roland Barthes e Antônio Gramsci através dos conceitos de Mito e Hegemonia. A Poética do Oprimido pode auxiliar na desconstrução dos mitos criados pela sociedade do capital, questionando a cultura industrial vigente e globalizada? Para esta análise selecionei duas vertentes do Teatro do Oprimido: o Teatro Jornal e o Teatro-Fórum. Até que ponto tais práticas podem corroborar a luta por uma sociedade mais justa pelo viés cultura?

1. Teatro do Oprimido e Resistência Mítica

Desenvolvido a partir dos anos 60-70, o método do Teatro do Oprimido (TO) surgiu durante a ditadura militar brasileira e sul americana. Dentre as práticas do grupo teatral Arena de São Paulo, onde Boal era um dos diretores, eram experimentados métodos artísticos que proporcionassem um debate com a plateia sobre os problemas ocorridos na época. Boal teve parceria com grandes artistas da cena brasileira como Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Plínio Marcos, Zé Renato, Amir Haddad, Chico Buarque, Nara Leão, entre outros. 1.1 – Teatro-Jornal: desmistificando as notícias

A experimentação do método no Brasil se inspirou em práticas realizadas por Bertolt Brecht em seu teatro épico. Boal teve acesso a livros que dificilmente chegavam ao Brasil, o que proporcionou uma troca de experiência com os artistas do Arena e as novas práticas teatrais para uma discussão política. O Teatro Jornal são encenações de notícias jornalísticas que mostram as “entrelinhas” das reportagens. No período da ditadura brasileira, a maioria dos meios de comunicação eram dominados por empresários e políticos simpáticos ao regime militar. Assim, a manipulação de

informações para o consenso popular era uma regra nesse tipo de imprensa. Gramsci já detectava em sua época que os jornais desempenhavam um papel de repressão e construção hegemônica. A criação de slogans enaltecendo o Brasil como “terra boa de se viver”, a ocultação dos crimes realizados pela ditadura, eram acordados entre a imprensa e o governo brasileiro para amansar a população e criar um ambiente confortável para a classe dominante. Óbvio que essa prática não é privilégio brasileiro, já que desde o holocausto ou na segunda guerra mundial as notícias eram manipuladas a partir do olhar dos vencedores ou dominantes.

Crêemos que vemos tudo, mas na verdade muitas coisas se passam invisíveis. Algumas por eleição nossa, mas muitas pela censura das imagens. Um exemplo, permanecendo nesse ―rico‖ campo da guerra/violência, lembrar de como o governo dos Estados Unidos quis censurar a imagem de dezenas de caixões de soldados estadunidense cobertos com sua bandeira. (Britto, 2013, p. 155)

Para uma reflexão e denúncia das atrocidades ocorridas na ditadura, o Teatro de Arena estudava as reportagens impressas pelos grandes jornais e buscava perceber quais manipulações eram feitas na construção da notícia veiculada. Como uma forma de resistência e denúncia, o grupo organizava clandestinamente apresentações teatrais com uma nova versão da notícia. Revelavam a opressão e a coerção ocultada pela mídia burguesa que refletem o pensamento de seus donos e tomam partido nos embates políticos.

Como meio privilegiado de que a burguesia dispõe para expressar sua vontade, defender seus interesses econômicos e preservar seu poder político, os jornais desempenham, segundo Gramsci, a função de ―partidos‖, ―frações de partidos‖ ou ―funções de determinados partidos‖. (Coutinho, 2009, p.51)

Nesse processo de criação e encenação estavam artistas brasileiros como Celso Frateschi, Dulce Muniz, Hélio Muniz, Elísio Brandão, Denise Fallotico, Edson Santana e vários outros que contribuíram nessa construção. O teatro tornava-se uma arma contra a ditadura subliminar utilizada pelos meios de comunicação da época.

A forma de "teatro-jornal" tem vários objetivos. Primeiro, procura desmistificar a pretensa "objetividade" do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada em um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma notícia e o seu próprio caráter dependem de sua relação com o resto do jornal. Se na manchete surge a tragédia da jovem que foi miraculosamente

salva depois de atear fogo às vestes, desenganada no seu amor—esta tragédia de primeira página reduz à simples condição de jaits divers os sangrentos choques entre os guerrilheiros palestinos e os mercenários do Rei Hussein. Pergunta-se qual é mais importante: a conquista do tricampeonato ou a seca do Nordeste? O Cidadão Kane, de Welles, já respondeu: "Nenhuma notícia é importante bastante para valer uma manchete; ponha-se qualquer notícia sem importância na manchete e ela se transformará em notícia importante!" Assim se manipula a opinião pública—o processo é simples, indolor. (Boal, Revista Spring, 1971)

Em seu livro Técnicas Latino Americanas de um Teatro Popular (1982) Boal apresenta dez técnicas que propõem uma resistência mítica frente às informações jornalísticas. Elas vão da mais simples a mais complexa em sua execução teatral. Na Leitura com Ritmo, por exemplo, os atores buscam descobrir qual ritmo pode se aproximar do conteúdo de determinada notícia. Esse ritmo deve revelar o fundo ideológico da notícia, facilitando seu entendimento político. O processo inverso também pode ser experimentado, como utilizar um ritmo completamente diferente para a leitura de determinada notícia. Como ficaria se a notícia sobre o aumento dos juros fosse lida em ritmo de samba ou a vitória de um time de futebol em canto gregoriano? O importante é os atores revelarem os conteúdos obscuros da notícia. Outra técnica, mais elaborada, que exemplifica a potência do Teatro do Oprimido é o Histórico. Depois que o grupo escolhe qual notícia será trabalhada, pesquisa-se fatos ocorridos no entorno daquela notícia, que a originou. Por exemplo, um estudante é assassinado a caminho da escola. Pode-se examinar e mostrar a violência que acontece com muitos jovens de comunidades pobres, a diferença social, o racismo, a educação precária, etc. Isso será encenado ao mesmo tempo em que a notícia é lida. Quando manipuladas e utilizadas para criar uma atmosfera de consenso popular, as manchetes jornalísticas não nos dão a dimensão histórica e política dos fatos ocorridos. O grupo, após a pesquisa, encena esses fatos, revelando o aspecto sócio-político que o jornal ideologicamente escondeu. Assim o Teatro do Oprimido, através do Teatro Jornal, pode ser um potente instrumento de desmitificação, de resistência aos mitos criados pela sociedade do capital, pois oportuniza aos participantes historiar politicamente o que foi esvaziado de conteúdo social. E de acordo com Barthes e Gramsci a manipulação da sociedade através da comunicação também se dá com o esvaziamento político dos acontecimentos. Para Barthes (2001) o mito é a ressignificação de uma ideologia popular ou da classe subalterna, esvaziada de seu conteúdo político. Seria uma “fala” que representa

os oprimidos, transposto aos interesses da classe dominante, que é devolvido às classes populares como algo novo. Tais elementos, acontecimentos, manifestações culturais são dissociados dos fatos históricos que o acompanham e que referendam sua importância política para determinada classe social.

Essa fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser formadas por escritas ou por representações: o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica. (Barthes, 2001, p. 132).

Desta forma, sem a dimensão histórica e política, o conteúdo crítico de tal manifestação é enfraquecido. Por exemplo, nos anos 80-90 a música funk das comunidades pobres do Rio de Janeiro tinha um aspecto de denúncia, de manifestação social, de reivindicação por direitos. Quando a grande mídia se apodera do ritmo das favelas e “transforma” esse movimento em produto, mercadoria para as massas, suprime a questão política, a denúncia, a resistência social. Essa música é enlatada, massificada, mitificada pela indústria cultural, do entretenimento, que não tem nenhum comprometimento com a transformação social. Aquela “fala” da favela é absorvida pela ideologia da classe dominante, reorganizada como mercadoria e volta esvaziada de conteúdo crítico para a mesma população. Transforma-se em Mito, de acordo com Barthes. Outro exemplo de como esse processo de mitificação se dá é através das novelas brasileiras onde os pobres, favelados ou suburbanos são representados de maneira jocosa, distorcida. Esses personagens representam o ponto de vista de seu autor, que contribui com a ideologia da emissora de televisão, reforçando as imagens deturpadas dessa população, que muitas vezes se identifica e absorve esse comportamento, começando a agir da mesma maneira. E essas atitudes são tomadas como algo natural do povo. O Teatro Jornal e todas as práticas do Teatro do Oprimido propõe uma resistência aos mitos construídos pela grande mídia, pela indústria cultural. O oprimido precisa criar suas imagens, palavras e sons, representar sua realidade a partir de seu ponto de vista, desconstruindo uma leitura preconceituosa que possam criar para sua representação.

1.2 – O Teatro-Fórum e a ressignificação do real

A metodologia do TO se desenvolveu ainda pela Argentina, Peru, Chile até chegar a países europeus como França, Alemanha, Áustria. Boal, perseguido por suas ideias anticapitalistas, passou a década de 70 migrando por diferentes lugares do mundo, experimentando e divulgando sua autenticidade teatral. Durante esse período surgiram diferentes vertentes ou práticas do método do Teatro do Oprimido, como o Teatro Invisível, Teatro Imagem e especificamente o Teatro-Fórum, que é a mais praticada no mundo e, no meu ponto de vista, a mais potente. A partir de histórias reais de opressão compartilhadas coletivamente, um grupo encena a situação que considera a mais urgente de ser denunciada. Para a construção cênica são realizados diferentes procedimentos teatrais como jogos corporais, de interpretação, de criação de cenários, figurinos e músicas. Nessas atividades o grupo se expressa artisticamente, colocando impressões pessoais sobre a situação ocorrida. Cores, imagens, formas, tudo que é incorporado à encenação precisa ter um significado, objetivo ou não, que fortaleça a história contada. O coletivo interpreta a cena com elementos criados, imaginados e discutidos em conjunto. A peça deverá representar os sentimentos e a ideologia daquele grupo social. O objetivo é que a encenação seja a “fala” de determinado grupo social e uma contestação da realidade mitificada, de acordo com Barthes (2001). Portanto, nesse processo de criação de um espetáculo de TeatroFórum, o grupo deve se apoderar dos elementos artísticos para reler a realidade mitificada e apresentar à sociedade seu ponto de vista desta mesma realidade. Assim, essa ressignificação ou representação do real não será indicada pela classe dominante, mas sim pelos oprimidos, que a partir de sua realidade podem representar suas opressões através do teatro. Os oprimidos resistem e assumem sua própria fala, antes roubada e mitificada pelos opressores, e através do Teatro do Oprimido criam todos os elementos do espetáculo. O primeiro passo seria a ressignificação dos elementos de cena. Por exemplo, um celular, que está intrinsecamente ligado ao significado de tecnologia, deve ser repensado a partir do que ele representa para aquele grupo de oprimidos, naquela situação de opressão. Por exemplo, o personagem opressor pode ter um celular amarelo para representar a riqueza, ou com pedras coloridas, ou exageradamente grande como símbolo do poder. Os móveis da casa do oprimido podem ter vários braços que o segura e não o deixa sair, ou garras de monstro ou cores do nazismo para representar a

opressão e o medo. Deve-se incentivar um significado não realista, não determinado e instaurar a dúvida sobre cada elemento cênico. O que esse elemento representa para vocês? Como esse objeto pode ampliar a opressão que queremos apresentar na peça? Assim, todo elemento deve ser modificado de acordo com a ideologia e os sentimentos daquele grupo de oprimidos: o tamanho, a cor, o formato, lhe deve atribuir um novo conceito, com novas inspirações emocionais e políticas. Deve-se criar um novo signo, que se afaste do significado real, mitificado, imposto pela sociedade consumista que vivemos. É o ser humano que atribui valor aos objetos através de convenções sociais. Aliás, as ideologias serão a ―verdadeira‖ filosofia, já que elas serão as ―vulgarizações‖ filosóficas que levam as massas a ação concreta, a transformação da realidade. Isto é, elas serão o aspecto de massa de toda concepção filosófica, que adquire no ―filósofo‖ características de universalidade abstrata, fora do tempo e do espaço, características peculiares, de origem literária e anti-histórica. (Gramsci, 1999, p.312)

E todo o processo de criação cênica passará pelo processo de reflexão dos elementos reais com objetivo da desmistificação. Tanto os objetos como o texto, as músicas, os movimentos dos personagens em cena, o cenário, deve representar essa fala dos oprimidos, que encontram no teatro uma forma de expressar seus sonhos e anseios por uma realidade mais digna e justa. “Nosso objetivo estético é mostrar essas ideologias camufladas de opiniões e revelá-las para que possam ser destruídas, quando for o caso. (Boal, 2009, p.211). Desta forma, baseando-se na teoria de Roland Barthes, o Teatro do Oprimido pode ser um dos instrumentos que facilite a desmistificação cultural do oprimido a partir da sensibilidade, da criatividade. Ao criar seu espetáculo, suas imagens, palavras e sons, os oprimidos podem elaborar simbólica e sensivelmente sua realidade, refletindo sobre o que não os contenta e quais os caminhos de transformação dessa realidade opressora e desigual. “A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível”. (Barthes, 2001, p. 163).

2 – Arte Hegemônica e Contra Hegemônica

Importante pensarmos que não é o simples fato de fazer arte com a classe popular oprimida que o processo de reelaboração semiótica ocorra e seja a prioridade. Muitos grupos teatrais inseridos em comunidades pobres são utilizados como instrumento de hegemonia cultural, a partir de uma leitura gramsciana. Preparar atores para atuarem nas grandes emissoras televisivas, se padronizando as necessidades do mercado, adaptando a autoimagem ao que a TV almeja só fortalece a exclusão e a segmentação da sociedade, mantendo o ciclo de dominação através do capital e da propriedade privada. São instituições comunitárias que não despertam no oprimido sua vontade de lutar contra a exploração e desigualdade de todos os dias. Tais instituições reforçam a competição, a pasteurização de uma imagem pré-concebida, criando a ilusão de que há espaço para todos no mercado de trabalho e que basta só lutar para alcançar seu lugar ao sol. E não precisamos nos deter a grupos teatrais, já que muitas instituições ligadas às artes e à comunicação, como as rádios comunitárias, grupos musicais ou de dança, não fazem nada mais do que reproduzir uma cultura de massa, hegemônica e mitificada. Por isso não basta estar numa comunidade, numa escola ou sindicato, trabalhando com oprimidos para que a arte produzida sirva como arma de libertação da classe subalterna. Essa arte precisa ter objetivos contra hegemônicos, que dê oportunidade ao oprimido mostrar o seu ponto de vista da realidade para, a partir daí, transformá-la.

Uma Estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte. [...] Devemos pensar a arte do ponto de vista de quem a produz e pratica, não a partir de uma perspectiva contrária à nossa. (Boal, 2009, p. 167)

Nesse ponto, o professor e pesquisador de cultura brasileira e comunicação Eduardo Granja Coutinho (2009) faz uma análise de artistas ligados ao samba do Rio de Janeiro e aponta como a música é utilizada por determinados artistas como Paulinho da Viola e Bezerra da Silva como uma fala popular. Esses cantores e compositores

representam uma classe e através de seus sambas mostram as vivências e opressões dessa classe. Ainda na música brasileira temos exemplos como Geraldo Vandré ou bandas de rock dos anos 80 como Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii, Ultraje a Rigor que criticavam a sociedade no ponto de vista de uma juventude com ânsia por tempos melhores. Nas artes cênicas temos grupos de teatro popular como Tá Na Rua (Rio de Janeiro), Ói Nóis Aqui Traveiz (Rio Grande do Sul), Cia Étnica de Dança (Rio de Janeiro), Carroça de Mamulengos (Ceará). E temos atualmente diversos exemplos de manifestações populares que foram assimiladas pela grande mídia e transformadas em mercadoria. Muitos desses produtos criados tornam-se tão distantes do povo, pela dificuldade no acesso, que a própria população passa a não fazer mais parte dessa festividade. Temos o carnaval carioca como um exemplo, onde a partir da manifestação do povo, nas ruas através dos ranchos e blocos, a alta sociedade em consonância com os governos liberais influenciaram a organização da festa restringindo e encarecendo seu acesso. Atualmente os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro é um dos mais caros espetáculos do mundo. As festividades de Junho, com as quadrilhas em homenagem a São João, estão indo pelo mesmo caminho, ficando cada vez mais elitizadas, menos autênticas e tradicionais. Os grupos precisam desembolsar centenas de reais para montarem suas danças e participarem de concursos que as televisões incentivam. A estilizada camisa quadriculada, com chapéu de palha e gravata com caixa de palito de fósforos se tornou uma heresia para essas quadrilhas industrializadas. No estado do Amazonas, a partir de um projeto do SESC Manaus, um grupo de artistas desenvolvia uma atividade com comunidades indígenas para descobrirem qual era o verdadeiro ritmo amazonense. Como o Estado sofreu com a migração de muitos nordestinos e sulistas na era da borracha, as culturas misturaram-se. A partir das pesquisas e trabalhos musicais com os artistas locais, surgiu o projeto Carrapicho. O grupo, ainda regional, divulgava o ritmo amazonense como a toada, forró e o Boi Bumbá. Era uma referência por apresentar os ritmos e músicas dos grupos de Boi Garantido e Caprichoso. A partir de um convite do diretor francês Patrik Bruel o grupo fez turnê na Europa e somente após o sucesso internacional foi conhecido em todo o Brasil. De acordo com Zezinho Correia, cantor e idealizador do grupo, a influência do sucesso meteórico fez com que a produção artística do grupo se modificasse. Novos instrumentos foram adicionados e um aspecto mainstream era necessário para a

continuidade do sucesso. Um ponto negativo que Zezinho aponta é que os próprios grupos de Boi do Amazonas modificaram sua forma de apresentar e tocar a partir da influência do grupo Carrapicho, onde a tradição e originalidade popular foi substituída pelo desejo de se enquadrar nos ritmos aceitos pela grande mídia. O ritmo amazonense, descoberto pelo projeto Carrapicho, se perdia na engrenagem capitalista da indústria cultural do entretenimento. Em visita à cidade de Macapá, também na região Norte do Brasil, visitei uma comunidade remanescente de quilombos chamada Curiaú, dentro de uma área de proteção ambiental. Nesta comunidade há um grupo cultural chamado Rei do Bolão que toca ritmos tradicionais da cultura amapaense como o Marabaixo e o Batuque. Uma influência dos ritmos dos escravos africanos. Fui recebido por Dona Chiquinha, matriarca do quilombo com noventa e três anos, que me apresentou seus filhos Januário e Pedro Bolão. A família é responsável em perpetuar a cultura do Marabaixo e Batuque, onde artesanalmente constroem os instrumentos utilizados nas festas populares como a Alfaia e a Caixa. O que Pedro do Bolão me contou foi que, a partir da criação de editais governamentais de financiamento, foram surgindo diferentes grupos de Marabaixo e Batuque que não necessariamente fazem a brincadeira tradicional. Seriam grupos criados especialmente para os editais do governo e que não tem o comprometimento com a disseminação da cultura amapaense. Muitos desses grupos modificaram as vestimentas dos brincantes, dificultando o acesso de qualquer pessoa na brincadeira. Para Pedro do Bolão essas modificações espantam a população que não se sente confortável em entrar na roda e brincar junto com os grupos. Sua família resiste às influências vindas de fora da comunidade, mas é cada vez mais difícil lutar contra essa máquina hegemônica. No Teatro do Oprimido podemos perceber uma resistência hegemônica nos Grupos Comunitários de Teatro do Oprimido (GTO). São diferentes grupos de oprimidos que se reúnem para, através da encenação de suas mazelas, abrirem espaço para um diálogo entre palco e plateia para transformarem a realidade opressiva em que vivem. Um exemplo de GTO é o Marias do Brasil, formado por empregadas domésticas vindas do nordeste para o Rio de Janeiro. Esse grupo está reunido há mais de dez anos e utilizam o Teatro do Oprimido para discutirem questões como direitos trabalhistas, assédio sexual e exploração. Essas empregadas/artistas já se apresentaram em diversos lugares do Brasil, em teatros e até em Brasília numa manifestação pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Enquanto esse grupo levantava politicamente questões

pertinentes para todo o coletivo de empregadas domésticas a maior emissora de televisão do Brasil, Rede Globo, colocou no ar a novela Cheias de Charme, que teoricamente iria mostrar a “vida” das empregadas, seus problemas, suas carências e desejos. Como vimos anteriormente, o conceito de mito em Barthes complementa a ideia de hegemonia proposta por Gramsci. No mundo atual a população é coagida não mais pela força armada, mas por diferentes instrumentos de convencimento e controle social, para a manutenção do Estado e do poder econômico da classe dominante. Um desses instrumentos é a comunicação, a Cultura. (...) os grandes intelectuais exercem a hegemonia, que pressupões uma certa colaboração, ou seja, um consenso ativo e voluntário (livre), ou seja, um regime liberal-democrático. (Gramsci, 1999, p. 436)

Num primeiro momento o GTO Marias do Brasil foi convidado pela Rede Globo para servirem de laboratório para a novela, onde iriam criar um paralelo entre as autênticas empregadas e as personagens da telenovela. Toda a matéria filmada foi editada dando a entender que as Marias do Brasil não tinham nenhum compromisso político, mesmo fazendo Teatro do Oprimido há 16 anos. As falam que reivindicavam direitos foram subtraídas pelas mais esvaziadas, que não representavam “perigo” ou polêmica. Em protesto o grupo solicitou uma matéria especial, sobre o tema dos direitos trabalhistas das empregas domésticas, no Jornal O Dia (29/04/2012) dizendo que os conflitos da novela global não condiziam com a realidade das tantas empregadas brasileiras. E mais uma vez as ações dos oprimidos foram distorcidas pela ideologia da classe dominante. A mídia não tem o interesse de ser para o povo um instrumento de reflexão, de reconhecimento de sua imagem, mas reforça as ideias capitalistas de consumo, onde tudo se transforma em mercadoria. Claro que mesmo dentro dos grupos de Teatro do Oprimido a conscientização política se dá de forma lenta, já que somos bombardeados todos os dias com as ideias capitalistas. Nessa mesma entrevista duas das atrizes do grupo confessaram que sonham em fazer novelas na TV Globo. O processo de transformação popular para a reflexão política precisa ser um trabalho árduo, contínuo, de formiguinha. O GTO Cor do Brasil discute as relações racistas no país, o que provoca o aumento de assassinatos de jovens negros e exclui as pessoas de seus empregos pela cor de sua pele ou aparência de seus cabelos. Enquanto o espetáculo do grupo era

apresentado no Festival de Artes Negras no Senegal, na TV estreava um programa chamado Sexo e as Negas, reforçando mais uma vez o estereótipo de que a mulher negra é um objeto sexual. A luta pela desconstrução mitológica do oprimido é constante. Outra desvirtuação do Teatro do Oprimido que acontece é ao utilizar a metodologia dentro de empresas para que os empregados se tornem mais produtivos. Nesse caso eu diria que nem seria o método criado por Boal, pois de acordo com o mesmo, para ser TO precisa estar de acordo com os fundamentos filosóficos do método. Não é porque se reproduz jogos ou exercícios criados ou sistematizados por Boal que tal prática pode ser denominada como Teatro do Oprimido. De acordo com o autor, precisa ter base na Ética e na Solidariedade, tento em vista a transformação da realidade através do ponto de vista do oprimido. Nesses aspectos os teatros em empresas ou em situações onde o oprimido não seja o protagonista dessa ação, não pode ser considerado Teatro do Oprimido. E de acordo com Boal:

O TO é um método teatral que se manifesta através da Estética do Oprimido, sistema com a mesma base filosófica, social e política, que engloba todas as artes que integram o teatro. [...] O TO é uma Árvore Estética: tem raízes, tronco, galhos e copas. Suas raízes estão cravadas na fértil terra da Ética e da Solidariedade, que são sua seiva e fator primeiro para a invenção de sociedades não opressivas. [...] TO é ensaio para a realidade – intervenção concreta no real. Não se trata apenas de conhecer a realidade, mas de transformá-la em outra melhor – obra dos próprios oprimidos conscientes, ou conscientizáveis, com os quais somos solidários. Nossa política é apoiar os grupos de oprimidos cujas políticas nós apoiamos. (Boal, 2009, p.185-6)

E nessa concepção artística fica difícil englobar o TO em práticas que se diferenciam das que objetivam a liberação dos oprimidos.

Conclusão:

Num contexto geral observamos como a metodologia do Teatro do Oprimido pode ser um instrumento que fortaleça a reflexão das classes populares, criando espaços para a criatividade e reelaboração subjetiva dos indivíduos. Quando temos a oportunidade de reinventarmos uma realidade através das artes cênicas, podemos nos afastar dela e a possibilidade de reflexão se amplia. Como toda obra de arte é uma representação do real, o artista imprime nessa obra seus sentimentos, ideias e consequentemente sua ideologia. Eu concordo com Boal quando ele afirma que todo teatro é político, que fazer arte é, em si, um ato político. Optar não dizer nada com a arte, fazer arte pela arte, já é uma escolha política. Por isso, presumo que nós artistas/políticos precisamos utilizar nossa arte como instrumento de transformação social. Não abrir mão da estética como arma de desmitificação da cultura e de desestruturação da sociedade do capital. Como estamos numa guerra dos sentidos, da cultura, da informação e da comunicação, precisamos utilizar as armas que a classe dominante usa contra nós. A arte é uma dessas armas, potente, que pode combater a sociedade opressora e dominadora.

Existe portanto uma linguagem que não é mítica, é a linguagem do homem produtor: sempre que o homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo em imagem, sempre que ele associa a sua linguagem à produção das coisas, a metalinguagem é reenviada a uma linguagemobjeto, e o mito torna-se impossível. (Barthes, 2001, p. 166)

Referências Bibliográficas:

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. _____________. STOP: C’est Maguique. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. _____________. Teatro Jornal Primeira Edição. In: Latin American Theatre Review Vol 04, Nº 02, Spring - Kansas, U.S.A: The Center of Latin American Studies - The University of Kansas, 1971. ____________. Técnicas Latino Americanas de um Teatro Popular. São Paulo: HUCITEC, 1979.

BRITTO, Geo. Brecht e Boal. Imagens tomando posição. In: O Percevejo on line. Periódico do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas PPGAC/UNIRIO. Número 2, 2013. COUTINHO, Eduardo Granja. Gramsci: a comunicação como política. In: COUTINHO, Eduardo Granja; FILHO, João Freire e Paiva, Raquel (orgs.). Mídia e Poder: Ideologia, Discurso e Subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad, 2009. _________________________. Velhas Histórias, Memórias Futuras. Sentido da Tradição em Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. V.1.

Sites:

www.cto.org.br http://odia.ig.com.br/portal/diversaoetv/grupo-teatral-de-dom%C3%A9sticasmostra-dramas-da-categoria-1.435558

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