O teatro dos ouvidos: escrita e oralidade no discurso da Academia Brasílica dos Esquecidos sobre os indígenas brasileiros (2009)

July 24, 2017 | Autor: Pedro Silveira | Categoria: Portuguese Studies, Portuguese History, Orality-Literacy Studies, Eighteenth Century History
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

O TEATRO DOS OUVIDOS: escrita e oralidade no discurso da Academia Brasílica dos Esquecidos sobre os indígenas brasileiros Pedro Telles da Silveira1 Formada em março de 1724 por iniciativa do Vice-Rei e governador-geral da Bahia, Vasco Fernandes César de Meneses, e desarticulada em fevereiro do ano seguinte, a Academia Brasílica dos Esquecidos foi a primeira agremiação histórico-literária na imensa possessão portuguesa. Constituída na cidade de Salvador, ela tinha por objetivo primário a escrita da história do Brasil e a elucidação de seus pontos obscuros. Entre estes pontos, vários eram relativos aos indígenas, tais como sua origem, a passagem de São Tomé pela América, se os indígenas tinham ou não política, entre outros. Para discutir essas questões, os acadêmicos dividiram a história em quatro matérias – política, natural, eclesiástica e militar – cabendo, respectivamente, a Luís Siqueira da Gama, Caetano de Brito e Figueiredo e Gonçalo Soares da Franca a escrita de dissertações onde esses problemas seriam tratados.2 O objetivo do presente trabalho é refletir sobre o complicado relacionamento tecido entre escrita e oralidade no mundo ibérico católico da Contra Reforma. Para isso, escolhemos estudar o local que a palavra indígena ocupa nos textos dissertativos da Academia dos Esquecidos e o possível confronto que se pode estabelecer entre esta palavra e a palavra portuguesa, a qual é dotada de autoridade. Segundo Iris Kantor, diante da falta de arquivos documentais, os acadêmicos esquecidos se colocavam a questão de “como incorporar as tradições orais, raramente fixadas em manuscritos antigos?” (KANTOR, 2004: 210, grifo nosso). A hipótese pela qual se guia este trabalho é a de que muito mais do que incorporadas, as “fontes orais” eram circunscritas, ganhando sua significação apenas a partir dessa circunscrição, isto é, de sua redução às categorias interpretativas portuguesas e inscrição nas 1

Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, este trabalho integra os estudos do projeto de pesquisa “A temporalidade na operação historiográfica luso-brasileira do século XVIII”, sob orientação da Profª Dra. Mara Cristina de Matos Rodrigues e que conta com apoio do programa de bolsas BIC/UFRGS. 2 A Academia possuía um núcleo principal de sete membros, eram eles: o reverendo Gonçalo Soares da Franca, o desembargador Caetano de Brito e Figueiredo, o ouvidor Luís de Siqueira da Gama, o juiz de fora Inácio Barbosa Machado, o coronel Sebastião da Rocha Pita, o capitão João de Brito e Lima e o doutor José da Cunha Cardoso. Cada um desses membros assumia um pseudônimo acadêmico, respectivamente, obsequioso, nubiloso, ocupado, laborioso, vago, infeliz e venturoso. Os pseudônimos eram uma prática que parece copiada da Academia dos Anônimos, também do início do século XVIII. Estes não são todos os que participaram das reuniões pois, por exemplo, o presidente de cada sessão era escolhido fora a esse núcleo de acadêmicos, com exceção da segunda conferência, cujo presidente foi Rocha Pita. Para mais informações sobre os membros da Academia, é interessante consultar o capítulo referente à Academia dos Esquecidos na História da Literatura Baiana, de Pedro Calmon.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

práticas de escrita da época. Trata-se, portanto, por um lado, do esclarecimento das operações intelectuais do século XVIII luso-brasileiro e, por outro lado, dos condicionamentos colocados ao aparecimento dos indígenas nos textos aqui estudados. Além disso, entre as iniciativas jesuíticas mais eminentes no Estado do Maranhão no século XVII e o Diretório pombalino na segunda metade do XVIII, pode vir à luz uma etapa importante do trajeto do indígena nas letras brasileiras. Antes de passarmos ao estudo, uma palavra, contudo, sobre as dissertações. A dissertação servia para “se exprimir clara e especialmente a sentença melhor, em qualquer questão” (GAMA, 1971: 13). Ela é, portanto, um procedimento investigativo. Segundo Luís Siqueira da Gama, “tem por matéria a dissertação, toda a que foi ou possa ser disputável, por objeto, tem a opinião melhor, por fim, a averiguação da verdade” (GAMA, 1971: 24). Os próprios acadêmicos reconheciam a especificidade da dissertação frente à história, embora histórias e dissertações históricas compartilhassem da narração.3 Em termos de procedimentos intelectuais, guardadas todas as proporções, é como se a dissertação fosse uma espécie de préescrita da historiografia. Oralidade e escrita Segundo Michel de Certeau, “A descoberta do Novo Mundo, o fracionamento da cristandade, as clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma política e de uma razão novas engendram um outro funcionamento da escrita e da palavra” (CERTEAU, 2006: 213). A escrita ganha, assim, proeminência epistemológica. Essa escrita renovada relaciona-se, por um lado, ao selvagem, por outro, à tradição religiosa; ela “serve para classificar os problemas que o sol nascente do ‘Novo Mundo’ e o crepúsculo da cristandade ‘medieval’ abrem à intelligentsia” (idem). Como resposta a algumas dessas mudanças, no mesmo século XVI a Igreja Católica, através do Concílio de Trento (1545-1563) reafirmou o valor da tradição e da transmissão oral do catolicismo contra a tese luterana da sola fide et sola scriptura (“só com a fé e só com a Escritura”). 3

Gonçalo Soares da Franca diz que já tinha sua pena “senão voado (que as asas dos pobres não voam) (...) discorrido largo espaço pelo campo do papel, senão quando na conferência passada me instrui em que mais havemos de descrever umas dissertações históricas, que uma história já disputada (porque dos propriamente historiadores é só obrigação narrar, e apenas refletir, sem a pensão de questionar)” (FRANCA, 1971: 224). A narração, contudo, é afirmada por Caetano de Brito e Figueiredo, para quem as dissertações “se animam com o caráter da História, donde só com o expressivo da narração, e não com o rigor da disputa deve declarar-se o duvidoso, e concluir-se o verdadeiro ou o verossímil” (FIGUEIREDO, 1971: 159).

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Na visão renovada da Reforma católica, a voz humana, a despeito de sua fragilidade e contingência, não somente permite à tradição oral da Igreja, privilegiada pelo Concílio de Trento, ser transmitida pela boca de seus padres e bispos – segundo o dito de Paulo, ex auditu, da boca ao ouvido – mas também de reaproximar o homem do Verbo, esse pneuma ou sopro divino (...) presente em cada criatura (SALAZAR, 1999: 788).

Essa revalorização fez com que não houvesse religião que não fosse pública, dotando a oralidade de um aspecto ao mesmo tempo político e sagrado. Os ecos dessa reafirmação se fizeram sentir no século XVIII, nas seguintes passagens dos textos acadêmicos. A primeira, em que Luís Siqueira da Gama discute a pertinência de se atribuir ou não uma política aos indígenas brasileiros; a segunda, em que Gonçalo Soares da Franca discorre sobre a pregação de São Tomé entre os índios. (...) a experiência o mostra, que só para os homens se criou a política; pois vemos que os brutos não têm república; e se a têm as abelhas são hieroglíficos do Reino (...) por isso também foram chamadas as Aves das Musas, e são hieroglífico da eloqüência (GAMA, 1971: 32). (...) não há Nação, que não há gente, que não publique os louvores de Deus, se não é que os índios, não articulem vozes (...) e somente se explicam como os do Cabo da Boa Esperança, de quem contam os Autores que falam por estalos” (p. 265).

A posição tridentina implicou numa continuidade entre escrita e oralidade sob o signo da autoridade. Num momento em que o próprio conceito de “oralidade” inexistia4, as relações entre oral e escrito iam mais além da simples aceitação ou rejeição, e não há motivo para acreditar que uma tradição fosse invalidada porque fosse oral, e sim porque não correspondia às maneiras de ser acreditada na época, fossem procedimentos críticos, concepções políticas, intelectuais, etc. É neste sentido que se pode compreender outra passagem da mesma dissertação de Franca, em que após conjeturar ser verdadeiro que São Tomé ensinou – como dizem os índios – aos brasileiros a produção da farinha, visto serem bons nisso, ele diz Nem se julgue menos acreditada a verdade das tradições quando concorrem as circunstâncias necessárias, e conducentes para ela. De outra sorte deixaríamos de crer tudo o que não está escrito só porque não está escrito, ou seria falso tudo o que só escutamos dos acontecimentos humanos; e se nem a Igreja se pode reger sem tradições, como duvidaremos absolutamente do que ouvimos, só porque o não lemos: também nas memórias se imprimem os sucessos, donde nem todos se transferem as estampas, e muito menos poderiam passar da reminiscência ao papel casos, que sucederem entre Nações, que totalmente ignoravam os primeiros princípios de ler e escrever (FRANCA, 1971: 261). 4

Ao menos na língua portuguesa à época da Academia ele era inexistente. O dicionário de Bluteau registra apenas “oral”, seguindo depois para o verbete “Oranges”. Além de referir-se a boca, “oral”, para Bluteau, referese também à lei mosaica, Ley de boca, Ley oral.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

Aliás, a leitura dos sinais feita por Franca, que lembra os entimemas seguros de Aristóteles, torna difícil pensar que faltassem modos de crítica próprios a uma concepção retórica de escrita histórica frente à erudição nascente.5 Entretanto não era qualquer oralidade que se tornara aceitável. Segundo João Adolfo Hansen, “A escolha da via oral para transmitir a verdade canônica confirmada no Concílio de Trento resultou em uma extraordinária reativação da Retórica antiga”, a qual “teve por conseqüência dotar o ideal do Orator ciceroniano de uma autoridade, de uma substância e de um campo de ação sem medida comum com o prestígio que lhe havia sido conferido pelo humanismo ciceroniano anterior” (HANSEN, 2000: 25-26).6 Essa valorização e o papel político que lhe foi dado significaram uma dupla codificação, por um lado, das noções que entrariam ou não nos discursos, como diz Caetano de Brito e Figueiredo, a respeito da história natural brasileira, Tão discorde heterogênea, como querer introduzir no Sistema Retórico os nomes próprios de tão novas regiões, e gentes em tudo bárbaros, e que tanto diferem dos termos e cláusulas da eloqüência (FIGUEIREDO, 1971: 146).

Por outro lado, uma codificação das posições do discurso, em que quem fala/escreve e quem escuta/lê são mais posições criadas pelo texto ou oração do que sujeitos empíricos. Pode-se pensar, então, que não apenas o “eu” e o “tu” do discurso, mas também o “ele”, seu assunto, é que sofriam uma pré-figuração. De acordo com Michel de Certeau, toda escrita é perambulação em torno de um centro; todavia a retórica autorizada e sacralizada da Contra Reforma concedeu à eloqüência um poder civilizatório. Como afirma Fernando Bouza, para contexto ligeiramente diferente, mas também aplicável aqui, “o pertencimento à comunidade é entendido como construído 5

Embora diga que as academias históricas eram, no começo do século XVIII, uma inovação e que a erudição crítica apenas se formava, torna-se difícil concordar com a contraposição entre retórica e erudição afirmada por Iris Kantor. Diz ela que “os acadêmicos tinham preocupação de adaptar as prescrições da retórica barroca à prosa historiográfica, embora ela já não constituísse exigência da erudição crítica prática nas academias européias” (KANTOR, 2004: 199, nota 28). As prescrições da retórica não iam contra a crítica, pois o próprio Aristóteles a empregara, por exemplo na distinção entre indícios seguros – os que prevêem uma relação necessária – e os não-seguros, os que prevêem uma relação possível. Outros modos de crítica era a partir das autoridades, de fato, como diz Luís Siqueira da Gama, “Nada nos persuade mais, dizem os retóricos, do que são os exemplos, e as autoridades” (GAMA, 1971: 27). 6 Caso se pense em termos de oralidade, trata-se, obviamente, de uma oralidade secundária, como a define Walter Ong, ou seja, de uma oralidade cuja dívida à escrita é muito presente. O próprio Ong vê a retórica como um dos mecanismos dessa situação, já que vê a retórica na raiz da arte de falar em público e que constituiu o núcleo da educação ocidental (ONG, 1998: 126). Outro conceito que poderia ser utilizado é o de “vocalidade”, como pensado por Paul Zumthor, para definir a presença de uma voz na composição dos textos; creio, contudo, que a utilização de tal conceito necessitaria de um conhecimento maior da dinâmica das reuniões acadêmicas, algo que ainda não conhecemos profundamente (ZUMTHOR, 1993).

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

sobre a essencial sociabilidade da palavra falada, signo de uma comunhão entre os homens (...), em suma, a convivência era entendida como uma forma de conversação” 7 (BOUZA, 2004: 26-27). Logo se pode pensar que também a palavra falada, a eloqüência, poderia ocupar o entorno de um centro, definindo-o. Esse papel da eloqüência se reflete numa citação anterior, pela qual se vê que os indígenas tinham língua e, por extensão, religião pública. Ele também aparece na questão da humanidade do indígena, condição necessária ao seu conhecimento e a sua aproximação, e que mostra uma das formas de pré-figuração pelo pensamento português católico do americano, o “ele” em questão. Segundo Gonçalo Soares da Franca, os índios “nenhuma outra Lei professavam (...), nem ainda a natural”, guiando-se apenas pelas “apetências da vontade” (p. 272). Todavia se os indígenas pouco se distinguem das feras, não se pode negar que sejam humanos (GAMA, 1971: 32), de modo que, por exemplo, na questão de sua redução a aldeamentos, os quais são virtualmente cativeiros, dado que ninguém, possa com razão negar que os Índios do Brasil são homens livres por sua condição, negamos contudo que seja privá-los das prerrogativas liberdade obrigarem-nos a que vivessem em Aldeias com república; porque o mesmo Cícero (...), no mesmo lugar em que disse que a liberdade era um poder de obrar, e viver cada um como e onde quisesse, aí também acrescentou, que só vivia como queria todo aquele que obrava como era justo (GAMA, 1971: 47).

A construção do indígena, por mais negativa que seja, não descaracteriza o índio como pessoa, mas apenas enquanto pessoa, ou seja, ele não se torna humano ou não-humano, mas bom ou mau humano, o que reflete uma compreensão falha dos caracteres da humanidade – como a eloqüência, signo da razão, necessária à boa liberdade – mas não sua completa falta. “Brutesco(s) rascunhos da humana Natureza”, segundo Caetano de Brito e Figueiredo (FIGUEIREDO, 1971: 154), mas ainda natureza humana.8 O conhecimento português sobre o indígena se baseia sobre a humanidade do mesmo, numa noção derivada da Graça Inata reafirmada pelo Concílio de Trento, a qual era a salvaguarda da pregação da Contra-Reforma contra a pregação protestante (HANSEN, 2000: 21). Seus desdobramentos intelectuais influíam sobre a visão do indígena no século XVIII. Se 7

“la pertenencia a la comunidad se entiende construida sobre la esencial sociabilidad de la palabra hablada, signo de una comunión de los hombres (…), en suma, la convivencia era entendida como una forma de conversación” (BOUZA, 2004: 26-27). 8 É interessante a radical oposição de Caetano de Brito e Figueiredo a Gama, que chega a duvidar que a notícia de os indígenas do Peru ou do México serem civilizados é verdadeira e não “que os Escritores daqueles descobrimentos e conquistas quiserem afetas hipérboles para as engrandecerem” (FIGUEIREDO, 1971: 154). É justamente Figueiredo quem afirma de, sendo uma Academia, exporem opiniões conjuntas, sem contradição (p. 169). O chamado ao consenso, é claro, busca esconder o dissenso.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

essas noções tinham em seu centro a idéia da eloqüência – ou das letras, ainda que acompanhadas das armas, mas superiores a elas – como esteio da humanidade e da possibilidade de conversão e de entendimento, quais os problema suscitados pela palavra indígena, quase que naturalmente inconstante? A inconstância e a eloqüência O objetivo desta seção, vista já a oralidade católica, é indagar a oralidade indígena nos textos acadêmicos: como é caracterizada a palavra indígena? Esta é a pergunta-guia. A partir da perspectiva da história indígena podemos percebê-la não apenas como construção discursiva do (des)encontro entre portugueses e índios, mas também indagá-la como positividade e, enquanto tal, erigi-la em objeto que nos faça problematizar as relações entre escrita e oralidade. Creio que esta é uma perspectiva mais próxima à de Eduardo Viveiros de Castro quando diz que a inconstância “de fato corresponde a algo que se pode experimentar na convivência com muitas sociedades ameríndias” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 191) do que à precaução de Andrea Daher de que “não se pode tornar a inconstância autônoma em relação ao discurso cristão” (DAHER, 2004: 37), sendo ela um efeito desse discurso e não um elemento da “filosofia política tupi”. Trata-se, em termos metodológicos, guardadas todas as diferenças entre o historiador e o antropólogo, de objetificar uma ficção teórica para fazer frente à predominância da escrita no pensamento, caso contrário subordinado às “regras do sistema que produz, preserva, cultiva ‘verdades’ não-perecíveis, articula-se num rumor de palavras diluídas tão logo enunciadas, e, portanto, perdidas para sempre” (CERTEAU, 2006: 214). Num primeiro momento, vejamos a palavra indígena segundo os acadêmicos para depois mapearmos os contrários, procurando encontrar o lugar da discórdia entre as oralidades e a escrita. Em longa passagem, na qual resume os resultados de suas quatro dissertações anteriores, Gonçalo Soares da Franca diz que (...) nem vir pregar a esta São Tomé é prova concludente de que criam os Índios na fé, que lhes pregou, quando pelo contrário sabemos de suas próprias informações que lhe não quiseram escutar o que lhes pregava. Dizer-se que tem confuso conhecimento de uma excelência superior, a quem chama Tupã, e por conseguinte que temem excessivamente os trovões, por serem efeitos dessa superior excelência é inverossímel (sic), porque concedido que se apavorem, e receiem, como receiam, o estampido dos trovões, é a sua apreensão tão sopita, que jamais passa o discurso para deduzirem que daquela estrondosa conseqüência é premissa infalível a primeira causa. Os vestígios, que conservam da outra vida (...) é tão temporal, ou tão ridículo, que mais propriamente podemos dizer que não crêem que há outra vida, mas que passam a viver 6

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em outra parte, pois para esta quando morrem conduzem até os instrumentos fabris, e ainda o alimento de que cá usavam quando viviam. Também o levantarem as mãos juntas para Céu quando na guerra os aprisionavam, como apelando da sentença da morte para tribunal mais supremo, não é indício bastante de que criam em Deus, ou que havia Deus, pois era aquela postura uma ação natural para mover a compaixão, e piedade, assim como trazer o homem a cabeça levantada, e erguer os olhos ao Céu, é mais invento da natureza, que doutrina da arte, como bem cantou o poeta Sulmonense; finalmente a credulidade dos espíritos malignos, a que davam vários nomes, segundo os diversos efeitos que lhes atribuíam, sendo comumente sugestões do demônio, que os traziam enganados, podiam também ser aparições suas para que mais o acreditassem, e ou fossem umas, ou fossem outras, tão longe estavam ambas de os conduzir para a profissão da nossa fé, que antes é sem dúvida os apartavam mais dela; pois sem claro conhecimento de Deus, e ao menos fé implícita dos mistérios da Lei evangélica, é certo que não pode haver verdadeira religião católica (FRANCA, 1971: 271-272).

Ao contrário dos problemas encontrados pelos primeiros jesuítas, que eram, das três potências humanas, a memória e a vontade que falhavam (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 188), Franca aponta um problema de entendimento entre os indígenas: apesar de poderem ter todos os sinais externos da religião, falta-lhes a ligação entre ato e sentido. Para os acadêmicos, fundados numa crítica dos indícios, faltaria aos indígenas o próprio nexo entre sinal e sentido. A potência mimética dos índios, justamente numa época que entendia a mimese como imitação, passava desapercebida como desacerto. Esse “desacerto” está na origem do corte entre escrita e fabulação. Lamenta Franca “quantas histórias não se têm retardado, quantas composições se não têm omitido por falta de notícias” (FRANCA, 1971: 227), pois se “costumavam os antigos, pela incerteza das tradições, encomendar à posteridade na segurança dos escritos as ações mais dignas de memória” (p. 231), os portugueses, não obstante, esqueceram de escrever, tão ocupados estavam com as armas. Estranha inversão esta, ela mostra que “a escrita faz a história” (CERTEAU, 2006: 217), porque conserva o arquivo, porém não esconde que, apesar de ambas serem incertas, as tradições dos índios e portugueses são muito diferentes. É aqui que encontra lugar a paradoxal passagem do mesmo Franca na qual, debatendo a origem dos indígenas, afirma “ouçamos porém, antes que aos Autores, aos mesmos Índios, que como partes tão interessadas nesta antiguidade, ainda que em causa própria é certo que cada um sabe mais de si que os outros dele” (p. 249), ao que se segue uma enumeração de lendas indígenas citadas por José da Acosta, Antonio Herrera, Simão de Vascocelos e Afonso d’Ovale, para desembocar em (...) Mas tudo isso são patranhas, porque contra todas estas fábulas está a verdade infalível do texto sagrado, que nos ensina que do dilúvio só escapou Noé com oito 7

Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

pessoas da sua família, porisso opinam os Autores alegados que o dilúvio, de que falam os referidos Índios, não foi o universal, mas algum particular como o de Deucalião, ou outro semelhante, desculpando-os contudo de fabulizarem tanto, porque nem tem tomos, nem conservam arquivos em que depositem memórias, e as verdades duram menos nas tradições, que nas estampas (FRANCA, 1971: 250).

A escrita faz a história porque contém em si a certeza. Frente às tradições indígenas, a Escritura é uma régua pela qual se mede o grau de fabulação dos outros, até chegar ao inteiramente negativo que Caetano de Brito e Figueiredo, tratando da mesma questão, vê: “E nem mesmo refiro as erradas tradições dos mesmos índios (...) porque não merecem memória” (pp. 160-161). Dois outros aspectos do trabalho dos acadêmicos sobre a palavra indígena também são interessantes. Primeiro, as tradições são sempre múltiplas, enquanto a escrita ou é ou quer ser una. A própria dissertação é um meio de criação de certezas, pois do arrazoado do escrito – ele também múltiplo, embora não o pareça – deve-se “promulgar a sentença mais verdadeira”. Os indígenas, por seu turno, pela ausência de inscrições, estão condenados a vagar pela correnteza da falta de memória. Segundo, o índio acadêmico é um índio escrito não apenas porque pré-figurado mas porque nunca contatado. Aqui, a historiografia se choca com a etnologia e a ausência de um trabalho de campo é correlata à falta de uma mudança de perspectiva frente ao índio. Quando os índios aparecem ativamente, eles estão dentro da escrita, por exemplo, “segundo conta o Padre Simão de Vasconcelos (...) notei (diz ele)” (FRANCA, 1971: 258) ou, em citação de Afonso d’Ovale, Viu o Padre que um Índio velho contava ao som de um tamboril, e que o escutavam com toda a tenção os Índios moços; perguntou-lhe o que aquilo significava, e então lhe responderam que aquele Índio entre os casos memoráveis, que em todos os dias Santos repetia ao povo para que os não esquecesse o vulgo, renovava também as memórias da vida [vinda?] de São Tomé a Quito (FRANCA, 1971: 262).

Desqualificada, a palavra indígena é construída a partir de uma série de ausências. Falta-lhe certeza, sendo fabulação ou erro; falta-lhe transcendência, porque seu discurso não articula o efeito à causa primeira nem percebem a diferença qualitativa entre o espaço dos vivos e o dos mortos. A palavra indígena, portanto, só se torna “fonte” quando passa pelo crivo da operação que cria a certeza entre as letras portuguesas. Todavia para além de uma tópica do discurso português sobre o indígena, pode-se indagar o que esses elementos trazem sobre elementos próprios à cultura do indígena em contato com os portugueses. 8

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A religião tupi-guarani, como argumenta Hélène Clastres, fundava-se na idéia de que a separação entre o humano e o divino não era uma barreira ontológica infinita, mas algo a ser superado: homens e deuses eram consubstancias e comensuráveis; a humanidade era uma condição, não uma natureza. Semelhante teologia, alheia à transcendência, era igualmente avessa à má consciência, e imune à humildade (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 205-206).

Pode-se responder aos caracteres esboçados por Gonçalo Soares da Franca no início da seção com considerações sobre os indígenas. Desse modo, a certeza de seu discurso sobre a falta intrínseca à palavra indígena – uma falta de autoridade – torna-se um problema de compreensão epistemológica e política com a qual os acadêmicos tinham de se relacionar. “Aqui está: os selvagens não crêem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 216). Portugueses e índios se assemelham, no fim, porque não escrevem, ou ao menos os primeiros não escreviam até a formação da Academia. Felipe Camarão, por outro lado, era versado até mesmo no latim. Não se trata de perceber o que estava, material e simbolicamente, por trás das fontes com as quais lidavam os acadêmicos, todavia podem-se imaginar esses mesmos dados como compreensões diferentes da história que os acadêmicos, pelo que se tentou mostrar aqui, ou ignoravam ou não tinham como compreender. Desse modo, toda a narrativa de São Tomé, afirmada e reafirmada, mesmo com sua complicada história, baseia-se toda ela em tradições, as quais – segundo os textos – são compartilhadas por portugueses e índios. Que compreensão da história não está por trás da rejeição pelos indígenas de São Tomé? Talvez não apenas uma de justificação portuguesa, mas também indígena. (...) na Lage da praia da Vila de São Vicente se vêem tão distintamente retratadas, que mais parecem naturais que imitadas, contam os Índios que foi Autor o mesmo Santo, e porisso, como coisa Sagrada, são veneradas não só dos Nacionais, mas dos Portugueses, que ali habitam, e que por ali passam: acompanham estas evidências, ou Sinais as mutilações (se assim se podem chamar) do penedo do Itajuru na Cidade do Cabo Frio, as quais constantemente quer a tradição dos índios daquela parte fossem efeitos do impulso do báculo de São Tomé, porque como muitas vezes os olhos percebem mais que os ouvidos, numa ocasião (contem eles) em que resistia a impenetrabilidade de seus corações as persuasões do Santo, parece que ferindo a pedra com o bordão lhes quis mostrar que eram mais duros que as mesmas pedras, pois se rendiam estas aos golpes daquele, a cujas vozes não obedeciam os homens (FRANCA, 1971: 258).

Esta passagem lembra a referida por John Monteiro a partir da obra de Abbeville. Éramos uma só nação, nós e vós; mas Deus, tempos após o dilúvio, enviou seus profetas de barbas para instrui-nos na lei de Deus. Apresentaram esses profetas ao 9

Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6

nosso pai, do qual descendemos, duas espadas, uma de madeira e outra de ferro e lhe permitiram escolher. Ele achou que a espada de ferro era pesada demais e preferiu a de pau. Diante disso o pai de quem descendestes, mais arguto, tomou a de ferro. Desde então fomos miseráveis, pois os profetas vendo que os de nossa nação não queriam acreditar neles, subiram para o céu, deixando as marcas de seus pés cravadas com cruzes no rochedo próximo de Potiú (Abbevile apud MONTEIRO, 2001: 74-75).

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