O telescópio transmetodológico e o caleidoscópio do Sul - 2016.docx

June 1, 2017 | Autor: Fabio Pinto | Categoria: Communication, Latinoamerica, América Do Sul, Transmetodologia
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Utilizamos aqui o conceito de pós-história no sentido que lhe atribui Flusser (2011): o momento em que o programa da cultura ocidental desemboca na eficácia de um aparelho chamado Auschwitz: "O que nos resta é analisarmos o evento Auschwitz em todos os detalhes, para descobrirmos o projeto fundamental que lá se realizou pela primeira vez, para podermos nutrir a esperança de nos projetarmos fora do projeto. Fora da história do Ocidente. Tal o clima "pós-histórico" no qual somos condenados a viver doravante." (FLUSSER, 2011, p.27)
De acordo com a mais recente Classificação Internacional de Doenças (CID – 10), de 2008, a psicopatia, também conhecida como Transtorno de Personalidade Antissocial, caracteriza-se por, dentre outros sintomas, "(a) indiferença insensível pelos sentimentos alheios; (b) atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais; (c) incapacidade de manter relacionamentos, embora não haja dificuldade em estabelecê-los; (d) muito baixa tolerância à frustração e um baixo limiar para descarga de agressão, incluindo violência; (e) incapacidade de experimentar culpa ou de aprender com a experiência, particularmente punição; (f) propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para o comportamento que levou o paciente a conflito com a sociedade".
Em 1990, o economista inglês John Williamson cunhou a expressão 'consenso de Washington' como referência a uma reunião, acontecida em 1989, de funcionários do governo norte americano, acadêmicos e representantes dos organismos financeiros internacionais – Banco Mundial, FMI e BID – com o objetivo de avaliar as reformas econômicas neoliberais na América Latina. Tais reformas já vinham sendo implementadas desde o começo da era Reagan. Longe de discutirem novas propostas de políticas econômicas, o intuito desse encontro foi avaliar o sucesso auferido pelo novo liberalismo na América Latina, isto é, quais países ratificaram e adotaram tais políticas econômicas.

"A teoria econômica padrão pressupõe que o consumidor é racional: seus gostos são estáveis e ele é capaz de ordenar suas escolhas e de levar em conta as restrições de renda a que está sujeito. Parte-se da hipótese de que a utilidade, isto é, a satisfação que obtém com seu consumo, decresce proporcionalmente ao aumento desse consumo: ele consome uma unidade adicional de um bem enquanto a utilidade marginal desse bem for superior a seu custo marginal. No melhor dos casos, a utilidade marginal é igual ao preço." (BENHAMOU, 2007, p. 29)

"A ideia de diminuir o tempo de uso de produtos apareceu pela primeira vez em 1925, quando o cartel Phoebus, formado pelos principais fabricantes de lâmpadas da Europa e dos Estados Unidos, decidiu reduzir o tempo de duração de suas lâmpadas de 2.500 para 1.000 horas, a fim de aumentar o lucro das indústrias filiadas. No entanto, o conceito de "obsolescência programada" só viria a ser criado mais tarde pelo norte-americano Bernard London, um investidor imobiliário, que sugeria a obrigatoriedade de uma vida útil mais reduzida para os produtos, como forma de impulsionar a economia, que passava pela crise de 1929." (BRAGA, 2012)
Sobre a relação entre lucro e cuidado com os seres humanos, tomemos como exemplo o caso de três das maiores transnacionais voltadas ao mercado de tecnologia – Apple, Samsung e Sony – que foram, recentemente, acusadas de exploração do trabalho infantil na mineração de produtos como o cobalto, vital para o funcionamento das baterias de íon-lítio dos dispositivos digitais comercializados por essas empresas. A acusação provém de um relatório da Anistia Internacional sobre a atividade de exploração do minério na República Democrática do Congo. As corporações envolvidas negam com veemência a acusação, mas não deixam clara a origem da matéria-prima. Apenas afirmam que não toleram trabalho escravo e infantil, realizando auditorias regulares nos países fornecedores com os quais mantém contrato. Afirmações genéricas, que jamais entram em detalhes sobre as formas de fiscalização e controle.




O telescópio transmetodológico e o caleidoscópio do Sul
El telescopio transmetodológico y el caleidoscopio del Sur
The transmethodological telescope and the South caleidoscope

Fabio Bortolazzo Pinto
Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS)
[email protected]


Resumo

Tomando como referência a complexidade dos campos econômico, social e cultural, bem como o processo desigual de midiatização na América Latina, a proposta deste artigo é analisar o papel do capitalismo na instauração de lógicas pragmáticas que asseguram o lucro das grandes corporações e destroem as possibilidades de desenvolvimento humano e sustentável. Para tal análise, parece-nos necessário repensar ferramentas conceituais e metodológicas, levando em conta a transdisciplinaridade e a percepção do alcance do olhar da ciência para os problemas do continente latino-americano na contemporaneidade. O que se propoe aqui é a transmetodologia, o cruzamento de métodos e teorias de diversos campos e conhecimentos de diversas naturezas como caminho para a compreensão do intrincado caleidoscópio que se tornou nosso continente, o Sul global.

Palavras-chave

América Latina; capitalismo; metodologia, transdisciplinaridade; transmetodologia

Resumen

En función de la complejidad de los campos económicos, sociales y culturales, así como de el proceso desigual de mediatización en América Latina, el propósito de este artículo es analizar el papel del capitalismo en el establecimiento de lógicas pragmáticas para asegurar los beneficios de las grandes corporaciones y destruir las posibilidades el desarrollo humano y sostenible. Para este análisis, parece necesario reconsiderar las herramientas conceptuales y metodológicas, teniendo en cuenta la transdisciplinaridad y la percepción del alcance de la mirada de la ciencia a los problemas del continente latinoamericano hoy en día. Lo que se propone aquí es la transmetodologia, el cruzamiento de métodos y teorías de diversos campos y conocimientos de diversas fuentes como un camino para comprender el intrincado caleidoscópio en que se convirtió nuestro continente, el Sur global.

Palavras-clave
Latinoamérica; capitalismo; metodología; transdisciplinaridad; transmetodologia

Abstract
By reference to the complexity of the economic, social and cultural fields as well as the uneven process of media coverage in Latin America , the purpose of this article is to analyze the role of capitalism in the establishment of pragmatic logics that ensure the profits of large corporations and destroy the possibilities of human and sustainable development. For this analysis, it seems necessary to rethink conceptual and methodological tools, taking into account the transdisciplinarity and the perception of the reach of the look of science to the problems of the Latin American continent in the contemporaneity. What is proposed here is the trans methodology, the crossing of methods and theories from various fields and knowledge of various kinds as a path to understanding the intricate kaleidoscope that has become our continent, the global South.

Keywords
Latin America; capitalism; methodology , transdisciplinarity ; trans methodology.






Introdução

No contexto da pós-história, destino, causalidade e transcendência parecem ter cedido lugar à programática, ou seja, à lógica do aparelho. O funcionamento mecânico das relações da sociedade com as instituições, com seus ritos e tentativas de evasão esvaziados de sentido, ocupou o espaço deixado pela religião depois da perda da fé no homem – imagem e semelhança da divindade –, e pela ciência dogmática, aparentemente incapaz de apreender a complexidade dos fenômenos pela via da razão. A lógica do aparelho é a lógica pragmática do capital, do mercado, assim como a do funcionamento imposto às redes de comunicação.
As tecnologias da informação, enquanto estiverem submetidas à lógica do aparelho, não serão capazes de colocar em circulação uma percepção humanitária e verdadeiramente democrática das variadas necessidades dos seres humanos. Pois o aparelho e a lógica pela qual ele opera não são humanos.
Percebe-se tal problema na enésima potência se observamos o consumo de informação e o uso das tecnologias nos países do 'Sul global' de que nos fala Boaventura de Sousa Santos (2007). Diante da incapacidade de formular discursivamente suas demandas mais básicas, como esperar que tais consumidores e usuários tenham condições de utilizar produtivamente as tecnologias da informação? É como esperar que alguém vá do balbucio à sistematização filosófica da existência sem escalas. Ou muda-se a lógica ou desacelera-se o ritmo imposto à implantação do processo de midiatização nesses países. Do contrário, estaremos, a curto prazo, vivendo em um mundo de drones e tacapes, em passo acelerado rumo ao extermínio dos mais frágeis, dos mais humildes, e dos recursos naturais.
Enquanto a relação comunicacional entre centros econômicos e periferias – esses últimos, verdadeiros lixões onde se depositam os dejetos materiais da mundialização – for predominantemente discursiva e não dialógica como propõem, em geral, os movimentos sociais, não haverá modo de circulação de valores culturais que fuja à lógica do aparelho, à lógica do consumo, à lógica do mercado, às lógicas que atribuem à subjetividade humana um lugar secundário ou terciário no sistema, lógicas contra as quais se insurge, por instinto, a intersubjetividade humana. A interação, seja de caráter afetivo, simbólico, físico, ético ou moral entre os seres humanos, as construções culturais próprias a cada grupo humano, ameaçam o bom funcionamento do programa. É preciso, portanto, frear o programa, desprogramá-lo, se possível.
O tamanho de nossas capacidades cognitivas, o alcance de nosso saber científico e a nossa habilidade de cruzar conhecimentos – pressupostos da transmetodologia – é proporcional ao nosso compromisso de desligar a bomba-relógio econômica e amoral programada para nos objetivar, para nos reificar.

Panorama geral

Vivemos em uma era em que a cultura é pautada pela "informação/conhecimento e experimentação" (MALDONADO, 2013, p. 31), uma era em que talvez a melhor forma de transitar pelo saber científico, produzindo e assimilando conhecimentos, seja a que nos propõe a transmetodologia.
Já que o grande desafio a ser encarado é a percepção do contexto multidimensional, complexo, em que se destaca, particularmente no campo da ciência da comunicação, "uma realidade (expandida) de sistemas, configurações e conjuntos culturais de geração múltipla de produtos culturais que estruturam novas possibilidades simbólicas" (Idem, p.31), acompanhar as transformações tecnológicas que a digitalização potencializa e concretiza, em velocidade cada vez mais acelerada, torna-se prioridade abrir espaço para técnicas e metodologias de análise interdisciplinares. Ou seja, diante da complexidade do real, do concreto, a eficácia do fazer científico depende da abertura e da assimilação de práticas de áreas de conhecimento diversas, a fim de expandir ao máximo as possibilidades de nosso olhar sobre os objetos da realidade e de construir um espaço de 'mestiçagem' teórica e prática, onde seja legítimo e estimulado o intercambio de métodos de acordo com a necessidade analítica, sem qualquer restrição que não seja "situar o ser humano, a espécie, a vida, as outras espécies e o mundo como elementos centrais de respeito, atenção e consideração" (Idem, p.40).

Caleidoscópio e diversidade

O caleidoscópio é um utensílio composto por um cilindro com duas extremidades. Em uma delas, há uma lente, na outra, um bojo com várias divisórias internas com paredes espelhadas e, no espaço delimitado de cada divisória, pequenos pedaços de vidro ou plástico. Quando aproximamos o olho da lente e giramos o cilindro, os pequenos pedaços coloridos se deslocam aleatoriamente e ocupam diferentes espaços dentro do bojo, formando um mosaico. A cada giro, para a esquerda, para a direita, em 90 ou em 360 graus, forma-se um novo mosaico. O Sul global e, particularmente, a América do Sul, é como um mosaico: na diversidade étnica, na variedade dos relevos, da fauna e da flora, temos uma expressiva paleta de cores. Cada movimento – político, social, corporativo, cultural –, seja para a esquerda, seja para a direita, reconfigura o mosaico, altera a rota dos diversos elementos, de um lado para outro do território. Por suas dimensões, o mosaico geográfico do Sul só pode ser visto, em sua totalidade, à distância. Quando distanciamos o olhar, vemos mais, mas também menos: vão sumindo os detalhes, diminuindo as nuances e os tons. No detalhe está a diferença. E para que se enxergue o detalhe em meio ao todo, é necessário um instrumento capaz de aproximar o que está distante, através do qual possamos observar o que nos interessa, os traços que distinguem tal objeto e sua interação com os demais.

Telescópio e alcance

A transmetodologia, por sua multiplicidade e por sua abertura epistemológica, pode dar conta da complexidade característica do contexto sociocultural dos países do Sul. Complexidade na qual estão inseridos e que é composta por nossos objetos de análise, que dão cores ao mosaico. A metáfora do caleidoscópio parece-nos adequada como representação dessa complexidade, assim como a do telescópio traduz o alcance do olhar transmetodológico. Um alcance que proporciona "ações estratégicas orientadas para o bem comum" (Idem, p.40), um olhar que se propõe transformador, que percebe as possibilidades de mudança através da prática investigativa compromissada com a humanidade (em todos os sentidos).

Burocracia e psicopatia no laboratório neoliberal

O caleidoscópio do Sul não é resultado somente da diversidade cultural, étnica e natural que aqui se desenvolve: é também produto do esfacelamento das perspectivas de avanço, das perspectivas de melhora das condições de sobrevivência e de uma distribuição e multiplicação de valores (econômicos, éticos etc.) nos países submetidos à lógica de funcionamento do mercado transnacional. O Sul é subjugado, nesses termos, por corporações europeias e estadunidenses que se apresentam ao mesmo tempo como representantes e resultado do bom funcionamento de um sistema democrático, mas cujas ações são pautadas por políticas internas de caráter impessoal que poderiam tranquilamente ser diagnosticadas como 'psicopatas'. Corporações psicopatas burocratizadas, insensíveis às demandas de quem necessita imediatamente de amparo, como é o caso da maior parte da população dos países do Sul.

(...) o formalismo democrático não se organiza de modo que "os pobres tenham seu amparo e os ricos um freio". No caso brasileiro, organizou-se como simulação da democracia, resultando daí nossas contradições básicas, sentidas e vividas em cada leitura de jornal, na sucessão de governantes, nas relações entre pessoas, grupos e instituições. Deste modo, entende-se melhor a análise dos críticos que criaram conexões entre cultura, economia e política (...). Em seus vários textos e falas, eles mostraram, fartamente, que nossas elites dirigentes de processos de decisão foram competentes para produzir modernizações de meios de produção, visões diagnósticas amplas do caminho histórico do Brasil e propostas de inserção nos quadros internacionais, mas não criaram o desejo mínimo de colocar o país no caminho que vai, lembrando o Grande Sertão: Veredas, até o rabo da palavra (da democracia), cujo modo vivo de ser traz em si os princípios do conhecimento, da crítica e da avaliação, ensejando a constituição de políticas sociais de desenvolvimento com justiça. (ALVES, 2014, p. 106-107 )

Parece-nos viável aplicar tal diagnóstico também a outros países do Sul, laboratórios de experimentação do neoliberalismo econômico desde, pelo menos, o Consenso de Washington. Pensemos, então, na possibilidade das elites dirigentes – no Brasil como em outros países do Sul – não estarem, desde o início do processo de colonização, interessadas em construir um processo sólido de "constituição de políticas sociais de desenvolvimento com justiça", mas em fazer com que a "modernização de meios de produção" e as "propostas de inserção nos quadros internacionais" sirvam tão somente para promover a expansão e a manutenção do domínio das grandes corporações transnacionais sobre a economia dos países do chamado terceiro (e quarto) mundo. Se é assim, parece-nos que "criar conexões entre cultura, economia e política" é algo indesejável para essas mesmas elites. Não só indesejável como arriscado: promover o desenvolvimento da cultura e da economia nos países dominados, de modo a permitir um desenvolvimento autônomo desses dois elementos, é potencializar a perda do domínio sobre eles.
Sendo o capital financeiro amoral, e o mercado financeiro atrelado aos interesses das corporações transnacionais, às quais, por seu turno, só interessa a acumulação e a circulação restrita de capital financeiro, explica-se o total desinteresse dos 'donos do mercado' com relação às condições precárias de subsistência das populações dos países colonizados. Tais condições seriam 'externalidades' com as quais as corporações não se comprometem. O procedimento é fazer com a que a 'lei da utilidade marginal' se degenere em obsolescência programada, a fim de 'aquecer o mercado', nem que para isso seja necessário provocar outra 'externalidade': o consumo irrestrito de recursos naturais e de recursos humanos no território dos países que um dia foram chamados de 'em desenvolvimento'.
O desenvolvimento econômico dos países do Sul passa, necessariamente, pela criação e implementação de outro modelo de desenvolvimento produtivista, que leve em conta e que seja resultado do estabelecimento das necessidades fundamentais, que, por sua vez, definem o uso sustentável de recursos naturais e os modelos de consumo.

Hoy en día, la cuestión de los modelos de consumo es de plena actualidad. Desafortunadamente, en los últimos decenios, muchos antropólogos han marginado esta cuestión de los contextos estructurales, para consagrar-se solamente a la etnografía de las prácticas de consumo activo, a las que a veces les colocan la etiqueta de resistencia, si bien éstas no son sino formas de acomodamiento o de mera adaptación al modelo de desarollo existente, sobre el cual se abstienen de cuestionarlo. (MATTELART, 2014, p.162)

Piketty (2014), afirma que a distribuição da riqueza, à qual, como tentamos perceber, estão submetidas a conexão entre cultura, economia e política "é importante demais para ser deixada apenas para economistas, sociólogos, historiadores e filósofos" (PIKETTY, 2014, p.49), o que possivelmente aponta para a necessária transição entre teoria e prática. Sabemos que é essencial redimensionar integralmente a distribuição de riquezas no planeta, também sabemos que poucos conseguem equacionar teoricamente a complexidade que isso envolve. Mas isso não nos impede de exigir desses poucos um olhar um menos abstrato e um compromisso efetivo com o interesse unânime que o tema desperta. A percepção, enfim, de que se trata de um conhecimento a ser universalmente compartilhado.

Camponês ou nobre, operário ou dono de fábrica, servente ou banqueiro: cada um, a partir do seu ponto de vista peculiar e único, vê aspectos importantes sobre as condições de vida de uns e de outros, sobre as relações de poder e de dominação entre grupos sociais, e elabora sua própria concepção do que é justo e do que não é. (...) A democracia jamais será suplantada pela república dos especialistas – o que é muito positivo. (PIKETTY, 2014, p. 50)

O que cabe a nós, pesquisadores, cientistas sociais, em tal contexto, além de tornar acessível o conhecimento? Parece-nos que o compromisso deve ser o de legitimar, dar voz e organizar os pontos de vista 'peculiares e únicos' do 'camponês', do 'operário' e do 'servente', já que a voz e os pontos de vista do 'nobre', do 'dono de fábrica' e do 'banqueiro' já estão por demais legitimadas e organizadas, nos discursos e nas práticas da mundialização econômica, politíca e cultural hegemônicas. De acordo com Corcuff (2015), "A partir de aquí se libraría um espacio para una crítica sociológica comprehensiva (tomando em cuenta el sentido que los actores confieren a sus acciones em un marco intersubjetivo) y pragmática (tomando en serio las capacidades de los actores)" (CORCUFF, 2015, p. 71), pois, se ao contrário do mercado, somos movidos por compromissos morais, humanitários, éticos, por que, afinal, nossos procedimentos teóricos e metodológicos também não deveriam ser ao mesmo tempo compreensivos e pragmáticos, no sentido que Corcuff atribui à 'crítica sociológica'?
Por suas premissas, a transmetodologia nos permite seguir um caminho, reestabelecer e não perder de vista os compromissos com a sociedade que nos movem (ou deveriam mover) em nosso fazer científico.

Inclusão e programa

Ao contrário do que preconizavam, já nos anos 1980, os arautos da nova era tecnológica, o mundo não se tornou um espaço democrático e sem hierarquias, onde todos têm acesso à tecnologia e dela usufruem para estabelecer contato em diálogo com os demais seres humanos que habitam o planeta.

Son obras [A terceira onda e O desafio mundial, de Alvin Toffler e Jean-Jacques Servan Schreiber, respectivamente] que hacían pensar que el ordenador, con los "pies desnudos" (en referencia a su uso posible por los campesinos), permitiría resolver el problema del subdesarrollo. (...) Mientras que este discurso encantado, convocación global, estaba en pleno éxito, nosotros mostrábamos las disparidades de acceso a las nuevas tecnologías, así como el uso que hacían de la informática las dictaduras militares, en aras de la doctrina de la seguridad nacional, para rastrear y detener a los opositores. Mostrábamos también la importancia de tener en cuenta las especificidades nacionales a la hora de analizarlos modelos de implantación de estas tecnologías y la importancia de evitar las aproximaciones ahistóricas, para así estudiar cómo lo nuevo se articula con lo antiguo. (MATTELART, 2014, p.163)

Afirmar que os computadores poderiam ser, em si, ferramentas capazes de resolver o problema do subdesenvolvimento parece-nos tão delirante quanto acreditar em uma 'neutralidade' das corporações que desenvolvem softwares, "Ou será que as forças equilibradoras do crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes nas fases avançadas do desenvolvimento (...)?" (PIKETTY, 2014, p. 44). Se cada país tem dinâmicas específicas de desenvolvimento, em qualquer área, como esperar que a implantação das 'novas tecnologias' proporcione um acesso igualitário à produção, assimilação e difusão de saberes? Seria o mesmo que esperar das corporações transnacionais atitudes filantrópicas que não envolvessem, em nenhum nível, o lucro financeiro.
De qualquer forma, parece-nos lícito afirmar que hoje o funcionamento econômico, político, cultural e social do planeta está alicerçado nas tecnologias da informação. Desdobra-se diante de nós, diariamente, o cenário fascinante e assustador da interação constante entre seres humanos e aparelhos que carregam softwares (essencialmente, sistemas de processamento de dados que funcionam a partir de um programa).

En las sociedades contemporáneas, donde todos los intersticios de la vida se encuentran atravesados por las tecnologías de la información, ya no puede hablarse del "gran impacto" de las tecnologías sobre la subjetividad, sino que es necesario considerar que tecnologías y subjetividades se enlazaron hasta el punto en que ya no es posible discernirlas. (ORTIZ e WINIK, 2012, p.199)

É preciso fugir do programa ao qual o software obedece, subverte-lo, para que o entrelaçamento de nossas subjetividades com a tecnologia não nos leve a seguir o mesmo programa. Em outras palavras: o 'grande impacto' não pode ser o da tecnologia sobre nossas subjetividades, mas o contrário. Através do uso devemos impactar e desviar o programa de seu discurso, a fim de que se torne diálogo. Nossas "maneiras de sentir, atuar e pensar" (Idem, 2012, p.200) exigem um processo dialógico de produção e assimilação de informações. Uma das formas produtivas de enfraquecimento do poder do programa sobre a subjetividade humana pode ser alcançado através de iniciativas como a do Software Livre, pois

El movimiento Software Libre recoge y complejiza una tradición portadora de un planteo libertario según el cual la libertad se vincula más con las prácticas de transformación "aquí y ahora" que con la inexistencia "futura" de asimetrías en las relaciones de poder, o dicho de otra manera, se trata más de la producción de espacios de libertad concretos que de libertades normativas. (...) la tradición de la que forma parte el Software Libre se aleja de "los fines" para concentrarse en "los medios" y a partir de esta visibilización del "cómo" de las relaciones sociales, abre un campo heterogéneo para la intervención a la vez que redefine la política. (Idem, p. 200)


Conclusões

Na contemporaneidade, o pesquisador interessado e proveniente do Sul deve ser, antes de tudo, um estrategista. Sua ação no mundo do conhecimento é mediada pelos métodos, pelos conceitos, pelo instrumental analítico que escolhe para dar conta dos fenômenos que lhe interessa explorar. Um pesquisador compromissado e sensível a sua posição no tempo e no espaço precisa ao menos tentar enfraquecer os alicerces que mantém no universo acadêmico de nossos países uma estrutura hierárquica de caráter dogmático e excludente. Em suma, à medida que o pesquisador conquista espaços no campo da ciência, tal conquista deve ser acompanhada pela busca, pela percepção das 'brechas' através das quais seja possível colocar abaixo o edifício dos paradigmas pré-estabelecidos. É preciso resgatar a dúvida da ciência acerca de si mesma, afastar a 'fé' nos procedimentos científicos cristalizados historicamente, percebê-los como um tatear no escuro, não como uma luz que irradia conhecimentos indubitáveis, certezas indiscutíveis. A estratégia, como ficou dito, começa a tornar-se ação, efetivamente, através do método. Nesse mapa de defesa da liberdade de pensar e de questionar a compreensão dos fenômenos cabe, por certo, a proposta transmetodológica. O cruzamento de saberes que não se limita ao teórico, ao empírico e ao conceptual, que também reconhece na arte e na chamada 'cultura popular' um estímulo à "imaginação sociológica". Em suma, trata-se de evitar, na atividade científica, ao mesmo tempo a especialização e as generalizações excessivas. Uma hermenêutica plural para interpretar objetos pluridimensionais.

Se trata más bien de alimentar la "imaginación sociológica" —tan importante para el sociólogo americano Wrigth Mills (2006)— en relación con los riesgos de rutinización, de burocratización y/o de una especialización excesiva de la actividad científica. Y a la inversa, los creadores (de canciones, de cine…) y los militantes podrían sacar de estos cruces transfronterizos recursos nuevos para sus respectivas prácticas. En cuanto a los filósofos, podrían controlar mejor su propensión a las generalizaciones desbordadas en la confrontación con los saberes empíricamente regulados e históricamente contextualizados de los sociólogos. (CORCUFF, 2015, p. 68)


Nossos métodos de pesquisa são nossas estratégias para selecionar concepções, procedimentos, teorias, recursos e técnicas para a ação científica. Correspondem ao conjunto de atividades sistemáticas, racionais, que se valem também de métodos intuitivos, que, com maior segurança e economia – de recursos, de energia intelectual –, nos permite alcançar o objetivo geral de nossa práxis: produzir conhecimentos válidos e verdadeiros, traçar caminhos, detectar erros – e transformá-los em acertos, se for o caso – e auxiliar em nossas decisões. Os métodos são o telescópio disponível para observar o mosaico que se desdobra à nossa frente quando olhamos para o Sul, são a nossa via de aproximação do caleidoscópio. Cada olhar estabelece com o que vê um compromisso, e o tamanho de nosso compromisso depende da generosidade através da qual nossos olhares se (trans)formam em compreensão, em diálogo, em ação e em compartilhamento.

Bibliografia
ALVES, Luiz Roberto (2014). "Comunicação, cultura e bem-público: convergências metodológicas sob desafios". In.:MALDONADO, A.E. Panorâmica da investigação em comunicação no Brasil: Processos receptivos, cidadania e dimensão digital. Salamanca: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones.
BENHAMOU, Françoise (2007). A Economia da Cultura. São Paulo: Ateliê Editorial.
BRAGA, Júlia (2012). "Obsolescência programada: o consumo exacerbado e o esgotamento de fontes naturais". In.: Humboldt: Revista de cultura sobre a Alemanha, o Brasil e a América do Sul. Dezembro de 2012. Disponível em http://www.goethe.de/ins/br/lp/kul/dub/umw/pt10282568.htm (acesso em 08/12/2015)
CORCUFF, Philippe (2015). "¿Qué ha pasado con la teoría crítica? Problemas, intereses en juego y pistas". Revista Cultura y representacionessociales, vol.9, n.18.
FLUSSER, Vilém (2011). Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Annablume.
MALDONADO, Alberto Efendy (2013). "A perspectiva transmetodológica na conjuntura de mudança civilizadora em inícios do século XXI". In.: MALDONADO, A.E.; BONIN, J.A.; ROSÁRIO, N. Perspectivas metodológicas em comunicação: Novos desafios na prática investigativa. Salamanca: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones.
MATTELART, Armand (2014). Por una mirada-mundo: conversaciones con Michel Sénécal. Barcelona: Gedisa.
ORTIZ, Natalia; WINIK, Marilina (2012). "Política de losafectos. La cultura crítica entre licencias,férias y librosindependientes". In.:LAGO, Silvia (compiladora). Ciberespacio y resistencias: exploraciónenla cultura digital. Buenos Aires: HekhtLibros.
PIKETTY, Thomas (2014). O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca.
Sobre o relatório da Anistia Internacional citado em nota de rodapé, ver http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160119_trabalhoinfantil_anistia_rp (acesso em 23 de abril de 2016)

Biografia
Fabio Bortolazzo Pinto é natural de Santa Maria, interior do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. É estudante do curso de doutorado em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e licenciado em Letras por essa mesma instituição. Colabora com o Grupo de Pesquisa Processos comunicacionais: epistemologia, midiatização, mediações e recepção – PROCESSOCOM, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS, com artigos semanais a respeito das historietas argentinas. Seu objeto principal de pesquisa são as ressignificações e apropriações midiáticas da série em quadrinhos El Eternauta, de Héctor Germán Oesterheld.
Email: [email protected]



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