O tempo como horizonte: a fotografia como patrimônio

May 29, 2017 | Autor: Sinara Sandri | Categoria: Patrimonio Cultural, Fotografia
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Série Memória e Patrimônio 4 2012, Unilasalle, ISBN – 978-85-89177-07-8

O tempo como horizonte: a fotográfica como patrimônio1

Sinara Sandri Mestre em História pela UFRGS, doutoranda em Comunicação Social pela UFRGS. [email protected]

A fotografia é uma prática relativamente recente no contexto ocidental e desde seu surgimento foi marcada por polêmicas que, felizmente, parecem estar encontrando alternativas de síntese. Este artigo pretende contribuir na compreensão dos desafios postos à fruição da fotografia como patrimônio artístico e cultural, resultante da ação criativa humana. Neste âmbito, vale assinalar a crescente aceitação da porosidade da fronteira entre fotografia documental e fotografia de expressão, paralela ao aumento da presença da fotografia em espaços identificados com o desenvolvimento e difusão da prática artística. Para compreensão do tema proposto, também será útil assinalar a natureza da prática fotográfica e sua estreita relação com a experiência humana do tempo.

A fotografia nasce marcada pelo signo da modernidade e pela sensação da aceleração do tempo, vigente no século XIX. É legítimo inclusive supor que, em vez de ter sido consequência, possa ter contribuído de forma decisiva para inaugurar uma nova experiência temporal. Os dilemas frente ao tempo

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Artigo publicado em SANTOS, Nádia; BERND, Zilá. Patrimônio artístico: caminhos, memória

e preservação. Canoas, RS, Unilasalle, 2012. Série Memória e Patrimônio, 4.

acompanham a humanidade e, especialmente, os pensadores desde muito tempo. Um bom ponto de partida para a aproximação do problema da vivência do tempo é o conceito de regime de historicidade, de François Hartog. Ao contrário da noção de época que trabalharia com um determinado intervalo de um tempo linear, Hartog define regime de historicidade como a “expressão de uma experiência temporal”, capaz de organizar o passado em uma sequência de estruturas e de circunscrever espaços para vivência. Para o autor, o conceito estaria ligado à capacidade de elaboração humana e teria como base a experiência do tempo, servindo para modelar as formas de dizer e as formas de viver. “Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele ritma a escritura do tempo, representa uma ‘ordem’ do tempo, à qual se pode subscrever ou ao contrário (e mais frequentemente) querer escapar, procurando elaborar uma outra”. (Hartog, 1997)

Dessa forma, o tempo não seria um elemento externo e, além de incorporado à dimensão cotidiana da vida, seria um indicativo sobre o possível e o provável não apenas da ação humana, mas das expectativas e características presentes na elaboração intelectual destas ações. Segundo Hartog, para estudar a relação do ser humano com o tempo, seria útil analisar os momentos em que os regimes de historicidade foram questionados e que poderiam ser caracterizados como momentos de crise no tempo. Resumidamente, o velho regime de historicidade teria persistido até a segunda metade do século XVIII e seria caracterizado pela preponderância do passado que, ao sobrepujar o presente em importância, serviria como orientação para o futuro. Já no moderno regime de historicidade, a ênfase estaria no futuro, não mais no passado. Este modelo teria tido vigência até 1989 e, a partir de então, estaríamos vivendo uma hipertrofia do presente. Destas relações estabelecidas entre as três dimensões temporais - presente, passado e futuro - surgiriam uma série de consequências que incidiriam, inclusive, na forma e na função da escrita da história entre as sociedades. A partir da formulação de Hartog, poderíamos identificar a tensão relacionada à ruptura entre o antigo e o moderno regime de historicidade como contemporânea à gênese da fotografia.

Em uma revisão sobre a construção temporal da modernidade, a pesquisadora Cláudia Linhares Sanz2 recorre a Gumbrecht para assinalar que há uma mudança epistemológica significativa no século XIX que arranha a confiança cega no conhecimento produzido pela observação e deixa emergir um observador que interpreta e se observa enquanto o observa o mundo. Entraria em jogo o ponto de vista e o aparato cognitivo do observador e cada fenômeno particular poderia produzir uma infinidade de percepções. Para organizar esta miríade de representações, o tempo seria vetorializado em uma linha progressiva e evolutiva em direção a um futuro melhor. O tempo passaria a ser um agente absoluto de mudança com representações envolvidas por uma reta evolutiva compulsória de mudança e inovação, opondo o passado (espaço da experiência) ao futuro (horizonte de expectativa). O conceito de horizonte de expectativa, formulado por Reinhardt Koselleck, estabelece que a relação entre passado e futuro seria modificada no decorrer das gerações históricas, pois com o passar do tempo biológico, haveria uma mudança na relação entre experiência e expectativa. A ajuda para revelar as experiências e elaborações sobre o tempo viria de testemunhos linguísticos, já que a semântica proporcionaria indícios concretos que permitiriam seguir as transformações da história e as modificações dos tempos históricos. Já a definição sobre tempo histórico remeteria a uma discussão teórica frente à impossibilidade de transferir imediatamente a universalidade de um tempo mensurável da natureza a um conceito histórico de tempo. Segundo o autor, o tempo histórico estaria vinculado a unidades políticas e sociais de ação e a uma dimensão concreta do ser humano, em suas ações e sofrimentos. O fato de que cada objeto conteria, no processo de mudança, a medida do tempo, tornaria duvidosa a fixação de uma singularidade de um único tempo histórico. Seria mais adequado admitir a superposição de muitos tempos históricos como faz Koselleck ao citar Johann Gottfried Herder : “no universo existem (se pode dizer com propriedade e atrevimento) em um momento, muitos e inumeráveis tempos”. Para analisar o problema dos tempos históricos, seria necessário considerar variáveis como a duração da vida, os pontos nodais de 2

SANZ, Cláudia Linhares. Modernidade Epistemológica e Aceleração do Tempo. Trabalho apresentado ao grupo Teorias da Comunicação, no IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Disponível em: www.galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/17268/1/R1932-1.pdf

acontecimentos e a velocidade dos meios de comunicação. A interpretação destes contextos extrapolaria a determinação natural do tempo, elaborada física ou astronomicamente. Pela proposta do autor, o uso de textos em que a relação entre passado e futuro é tematizada, de forma implícita ou explícita, ajudaria a entender o problema. “Todos os testemunhos se responsabilizam de como se elaboram experiências do passado em uma situação concreta e como expectativas, esperanças ou prognósticos se discutem no futuro. Em todos os casos se pergunta como em cada momento presente, as dimensões temporais do passado e do futuro remetem umas às outras. A hipótese é que na determinação da diferença entre o passado e o futuro ou, dito antropologicamente, entre experiência e expectativa se pode conceber algo como o ‘tempo histórico’”. (Koselleck, 1993).

Mesmo sem referências diretas à incorporação de imagens no rol de textos capazes de testemunhar as transformações do tempo, é importante lembrar que a elaboração do autor poderia ser aplicada à fotografia com grande proveito já que, como ficou demonstrado, trata-se de um artefato resultante do manuseio de diferentes dimensões temporais. Por ser produzida no presente, mas ter sua essência marcada pela preocupação de apreender e perpetuar um momento único e sem reprise possível, é possível considerar a fotografia como uma prática que leva os operadores a transitar no limiar dessa referência cruzada de temporalidades. A questão torna-se ainda mais importante para o esforço humano de decifração do mundo se aceitarmos a observação de Koselleck de que todo ato de compreender está vinculado por princípio ao tempo. Neste ponto, chegamos aos nexos estabelecidos entre os acontecimentos e suas representações e à busca das condições de possibilidades de histórias, ou seja, a compreensão das circunstâncias do acontecer das histórias e as motivações para narrá-las e estudá-las. Para chegar a estes nexos entre acontecimentos e representações, pode ser útil buscar os valores atribuídos ao mundo, construídos mentalmente a partir da experiência. Para isso, Dilthey (1988)3 ajuda a pensar as categorias como conceitos que designariam as formas de apreensão dos objetos e teriam correspondência

com

relações

específicas.

Na

sua

formulação,

a

temporalidade poderia ser tomada como uma categoria característica da vida, 3

- DILTHEY, Wilhelm. The hermeneutics of the human sciences. In : KURT Mueller- Vollmer (org). Hermeneutics readers. New York, Continuum, 1988.

capaz de servir como base para todas as outras, pois a experiência do tempo determinaria o conteúdo da nossa vida. A preponderância do tempo na experiência humana traria como consequência o fato da vida ligar-se a esta progressão interminável que confunde presente, passado e futuro. Enquanto a ligação com a realidade existe de forma constante, o conteúdo da experiência muda como um fluxo temporal em que cada estágio altera-se antes de estar claramente objetivado porque o momento subsequente é construído no anterior. Assim, o que experimentamos como presente, sempre conteria a memória do que passou. Em outros casos, o passado afetaria diretamente o presente e daria às memórias a característica peculiar de estar incluída no presente. Dilthey alerta para o fato de que as outras temporalidades só podem ser pensadas a partir do presente, pois qualquer dimensão de tempo só existe para os que estão vivos. Entretanto, independente do conteúdo e mesmo partindo sempre do presente, há uma característica diferente ao olhamos para o futuro ou para o passado. Para o autor, ao olhar para trás, obteríamos uma série de imagens de memória que seriam graduadas a partir do valor atribuído por nossa consciência ou sentimentos e diminuiriam até sumir no horizonte. Ao olhar

para

o

passado,

assumiríamos

uma

atitude

passiva



que

convencionamos que ele não pode ser alterado. Na atitude em relação ao futuro, seríamos ativos e livres e a ligação com o presente e futuro seria feita através da idéia de possibilidade por acreditarmos que, frente ao futuro, teríamos infinitas alternativas. A compreensão do autor precisaria ser ajustada à ideia de que a fotografia

poderia

funcionar

como

evidência

de

um

cruzamento

de

temporalidades. Dessa forma, a imagem tomada no presente - a partir de um olhar informado por referências adquiridas anteriormente - seria convertida imediatamente em resquício de algo que passou. O congelamento de uma opção a ser projetada ao futuro, entre tantas outras possibilidades neste processo de fabricação de memória. Na verdade, o exercício da fotografia como prática de ligação entre temporalidades poderia ser entendido como um elemento perturbador do entendimento que coloca o passado como algo estanque e o futuro como dimensão cheia de possibilidades.

Desde sua entrada no cenário da chamada revolução documental e sua crescente importância como fonte histórica, a fotografia vem sendo objeto de interesse de historiadores e pesquisadores. Alguns conceitos desenvolvidos no campo da história podem ajudar na análise da fotografia. O primeiro deles é a clássica noção de Marc Bloch de que o “homem” é mais parecido com o tempo que com seus pais, orientação simples que ajuda a evitar anacronismos e orienta na compreensão do significado do contemporâneo experimentado por outros tempos. Outro procedimento particularmente útil é a aplicação do conceito de documento/monumento de Le Goff à fotografia, ferramenta que ajuda a chamada História Cultura a compreender a fotografia como uma (re)apresentação do mundo, sendo não apenas fonte para informações factuais, mas suporte para expressão de manifestações culturais. No século XX, Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores da revista “Annales d.histoire économique et sociale”(1929), iniciaram uma crítica ao conceito de documento e o próprio Le Goff desenvolveu a noção de documento/monumento. O conceito tem como base o princípio que o dado que sobrevive do passado não é o conjunto do que existiu, mas o resultado da escolha feita pelas forças que agiram no seu desenvolvimento ou pelos próprios historiadores. Dessa forma, não existiria documento objetivo, inócuo ou primário. Segundo o autor: “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo relações de forças que aí detinham o poder”. (Le Goff, 1985).

Com esta crítica, o autor faz uma correspondência entre a noção de documento - relacionada às escolhas do historiador - e monumento, entendido como herança do passado, ligado ao poder de perpetuação voluntário ou involuntário das sociedades. O monumento também remeteria a testemunhos que extrapolam os materiais escritos. Para o autor, um documento é monumento por resultar do esforço das sociedades para perpetuar uma imagem de si próprias. “No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo....Qualquer documento é ao mesmo tempo verdadeiro . incluindo, e talvez sobretudo, os falsos . e falso porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta

construção e analisar as condições de produção dos documentos/monumentos”. (Le Goff, 1985)

Essa noção é útil, pois ao considerar o documento como monumento é possível encontrar, por meio da crítica interna, as condições de produção histórica e sua intencionalidade. Dessa perspectiva, o problema da história deixa de ser o documento e passa a ser o ato de questionar o documento. O historiador precisa isolar informações de um elenco de elementos, reagrupar e colocar em relação para constituir um novo conjunto. Nesta perspectiva, uma nova unidade de informação foi incorporada. Em lugar do fato que leva ao acontecimento e a uma história linear, privilegia-se o dado que leva à série e a uma história descontínua. Nesta abordagem, a idéia de série abarcaria as relações e o valor relativo que o objeto assume, em vez de apenas uma conexão com um substrato real. Essa mudança de perspectiva ocorreu na década de 60, ficou conhecida como Revolução Documental e está relacionada aos avanços tecnológicos e à incorporação do computador como ferramenta de trabalho. Além de apresentar uma mudança qualitativa dando destaque a fontes como registros paroquiais de nascimentos, mortes e casamentos, trabalha com conjuntos mais volumosos de documentos. Segundo Le Goff, “marca a entrada das ‘massas dormentes’ e inaugura a era da ‘documentação de massa’”. Paralelo a este repensar da prática do historiador, é possível supor que as consequências do desenvolvimento da fotografia poderiam ter contribuído para esta mudança do referencial na pesquisa histórica à medida que apresentou um novo tipo de relação entre a aparente exatidão de uma técnica e a “magia” de

suas

criações.

A

contradição

evidente

entre

ser

um

registro

equivocadamente tomado como fiel a uma realidade e a intensa interferência do autor, presente desde as primeiras tomadas, coloca a fotografia como um exemplo importante da materialização deste conceito de documento / monumento. Com a ampliação do acesso à fotografia, a sociedade ficou diante de uma nova possibilidade de popularizar a fixação de imagens e perenizar seus valores. Frente a este novo artefato, os historiadores precisaram estabelecer as diferenças entre o texto escrito e a imagem como suporte de representações,

além de analisar os processos de percepção próprios da imagem, além de mergulhar nas peculiaridades do “fazer” fotográfico. Entretanto, ao longo destas décadas em que a pesquisa histórica acentuou seu interesse pela fotografia, houve dificuldade em superar alguns problemas teóricos que poderiam ser considerados iniciais. Particularmente, uma das sínteses recentes mais interessantes parece ser a feita por Maurício Lissovsky (2008). Ele localiza a distinção feita entre fotografia documental / fotografia de arte como atualização de uma polêmica inaugural que surge durante aparecimento da fotografia: a possibilidade de obter uma imagem de forma acidental através do manuseio de um artefato teria secundarizado o papel do sujeito e, portanto, seu valor como arte. A ênfase da subjetividade do “artista-fotógrafo” no pictorialismo teria sido uma reação contra a objetividade dos simples retratistas. O autor classifica como “verdadeiramente espantosa” a persistência de certos “problemas” e pontua o que considera seriam falsas questões: a fotografia ser ou não arte, a distinção entre fotografia pura e fotografia construída ou manipulada. Lissovsky lembra que os tribunais franceses teriam reconhecido já em 1862 a fotografia como ‘arte’, sendo justificada a proteção do seu copyright e cita Fatorelli4 para observar que a insistência na separação entre fotografia experimental e fotografia documental, ou entre realismo e abstração inibe a visualidade das questões que a produção fotográfica apresenta. “Delas (as questões), no modo como foram então formuladas, só me interessa aquilo que possa iluminar, o que, na experiência fotográfica, se faz pensamento diante da técnica”. (Lissovsky, 2008,13)

A partir deste problema de investigação, o autor “flertaria” com teorias de Bérgson, Simondon, Husserl, Wittgenstein, Heideger, Benjamin e Deleuze, não para sustentar uma “filosofia da fotografia”, mas por entender que desafiados a pensar diante da técnica, estes pensadores “serviriam como referência para investigar de que modo a própria fotografia, no seio da técnica – como diria Heidegger – faz-se aí também pensamento”. Para Lissovsky, o desafio seria estudar a fotografia não em função de sua história interna, mas como um campo de jogo organizado a partir de um critério

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FATORELLI, Antonio Pacca. Fotografia e viagem; entre a natureza e o artifício. Teses de Doutorado em Comunicação e Cultura. Rio de Janeiro:ECO/UFRJ, 2000, p.26.

cronotópico – que as agrupa a partir de sua relação com o tempo e não segundo o período ao qual pertencem cronologicamente. No seu percurso analítico, o autor parte de uma investigação sobre o destino do tempo – elemento que pertence à essência do fazer fotográfico – depois que a fotografia tornou-se hegemonicamente instantânea. Aplica o conceito de duração e chega, a partir de um estudo sobre a fotografia de paisagem (Lissovsky, 2011), a identificar a agenda do invisível como pauta para a fotografia do século XIX. Naquele momento, a fotografia não seria apenas uma representação do visível, seria uma forma de tornar visível, como parte do esforço contemporâneo de desvelamento do mundo e da luta contra o obscurantismo. Esta agenda do invisível só seria rompida com o surgimento do modernismo e da fotografia do século XX, momento em que a superação do choque pelo novo e o entediamento da sociedade moderna teria o instantâneo – fetiche da interrupção - como instrumento de uma nova percepção da realidade. Assentados estes conceitos, teríamos a possibilidade de eliminar a subestimação da fotografia como expressão de pensamento ou de um processo criativo, enterrando definitivamente a ideia de que resultaria apenas da apropriação de uma técnica capaz de reter um acaso. Dessa forma, seria uma simplificação preconizar que a fotografia dialogaria com a arte contemporânea apenas quando estivesse relacionada a estratégias e performances criadas especificamente para a câmera. Em um dos exemplos deste pensamento, Charlotte Cotton (2010) considera que a fotografia ganhou relevância no cenário da arte contemporânea ao distanciar-se das noções tradicionais de criação no trabalho fotográfico. Na sua opinião, mesmo mantida a observação, o ato artístico central desta fotografia de arte consistiria no direcionamento de um evento especialmente para câmera. Além disso, a arte contemporânea teria minimizado a importância da autoria e da capacidade técnica, valorizando um visual “não artístico”, “inexperiente” e “anônimo”. Esta fotografia derivaria do documental dos anos 60 e 70, mas com uma diferença – poderiam parecer registros acidentais de atos artísticos temporários, mas seriam destinadas a constituir o desfecho destes eventos. Se ao contrário, tomarmos a fotografia pela sua natureza evidentemente representacional, teríamos a chance de borrar a fronteira entre informação e experimentação e aceitá-la como a própria representação do ato de abstrair,

relacionando-se com as outras formas de expressão artística a partir de suas próprias características e questionamentos. Independente dos desdobramentos e da vigência desta polêmica reatualizada, tanto sob aspecto de suporte de informação factual quanto como registro de criação humana, a fotografia merece importância crescente como patrimônio coletivo, cujo estímulo, guarda e proteção são necessários para garantir acesso às futuras gerações. No campo da fotografia, o grande modelo de investimento e preservação é a política estatal francesa, resultado de uma presença estatal efetiva em diferentes campos da sociedade, quadro que infelizmente parece estar em franca alteração. A pesquisadora Sabrina Araújo (2011) analisou as políticas de incentivo à fotografia na França a partir do governo Mitterrand, cuja política cultural teria herdado as reivindicações de Maio de 68 e rompido com a ideia de alta cultura. Sob o comando de Jack Lang, o ministério da Cultura trabalharia com a perspectiva de democratizar a produção, incentivar o acesso, o diálogo cultural e o reconhecimento das ditas artes menores. “Desde a prática do mecenato real durante o Antigo Regime (séculos XIV-XVIII), a criação da Comédie-Française e das Academies, passando pela instituição do Ministère des Affaires Cultuelles, por André Malraux, em 1959, até o atual ministério da cultura, o Estado continua sendo o principal financiador e gestor das iniciativas culturais na França”. (Araújo, 2011)

Segundo a autora, a noção de políticas culturais teria nascido junto com a criação do Ministério e estaria de acordo com a compreensão de que a cultura é uma questão de interesse público, uma particularidade do Estado francês. Dessa forma, a proteção ao patrimônio e a manutenção de instituições tradicionais, estaria relacionada à necessidade de incentivar e difundir determinadas práticas. No campo da fotografia, esta legitimação teria passado pela criação do Centro e da École Nationale de Photographie, em paralelo a manifestações culturais importantes como o festival Lês Recontres d´Arles, a Fondation Nationale de La Photographie e o Mois de La Photografie, em Paris. Nesta estratégia, também é importante destacar a criação da Coleção Photo Poche (1982)5 e a reprodução da experiência do projeto do Farm Security com

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Concebida em 1982, pelo editor Roberto Delpire, foi publicada incialmente pelo Centre National de La Photographie (órgão criado pelo Ministério da Cultura para incentivar a criação e difusão da “fotografia de Expressão”). Com uma tiragem inicial de 5 mil exemplares, formato de livro de bolso, com 64 páginas, sendo 44 páginas de imagem mais um texto introdutório. Já publicou mais de 150 volumes. A editora Cosac Naif publicará a partir de 2012 uma edição da coleção no Brasil.

uma encomenda feita pelo departamento responsável pelas políticas de desenvolvimento regional (Datar) a 13 fotógrafos (Josef Koudelka entre eles) para uma representação autoral e inovadora da paisagem francesa. “Associando a documentação do território ao reconhecimento artístico da fotografia, a Datar pode responder à ambição do Ministério da Cultura de incentivar a produção de imagens que tivessem duplo estatuto de obra e documento”. (Araujo, 2011, 134)

Além do cumprimento de uma agenda dialogada com intelectuais, no modelo francês, nota-se a presença complementar de uma rotina de conservação e uma política de fomento à produção contemporânea com prêmios, editais e encomendas estatais, seguindo a tradição de um país que foi pioneiro na associação da fotografia a grandes projetos de documentação patrimonial logo em seu surgimento. Atualmente, no Brasil, é imprescindível diferenciar a utilização e consequente associação da fotografia como ferramenta de documentação e preservação de patrimônio da sua própria caracterização como patrimônio coletivo. A ressalva se faz necessária para consolidar a importância da fotografia como obra em si, portadora de significado e suporte para expressão criativa humana e, portanto, merecedora de programas sistemáticos e contínuos de incentivo à produção e preservação. Além da necessidade urgente de vencer um passivo de abandono ou inexistência de políticas públicas, a compreensão da fotografia como patrimônio impõe o desafio de desenvolver modelos que orientem a formação e gestão de acervos. As instituições do futuro não podem ser confundidas como depósitos de memória, é preciso que sejam capazes de dialogar entre si e criar interfaces colaborativas, potencializando as atuais heroicas iniciativas individuais dos pesquisadores. São necessárias linhas curatoriais que instiguem e problematizem a produção, explorem os dilemas das distintas atualidades, enfrentem o desafio de encontrar os dilemas de outras épocas para que deste diálogo possamos conhecer melhor uma prática que teve padrões globalizados e instituiu referências visuais que ultrapassaram fronteiras. Talvez reconhecer o original, vencendo as distâncias e se acercando dos silêncios e das dúvidas dos autores de um outro contemporâneo.

- ARAUJO, Sabrina Moura de. A edição da coleção Photo Poche e as políticas em favor da fotografia na França (1980). In Discursos Fotográficos. Universidade Estadual de Londrina. Curso de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico. Mestrado em Comunicação. Londrina, PR, v.7, n.10, 2011 - COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. São Paulo, Martins Fontes, 2010. - HARTOG, François. O tempo desorientado. Tempo e História. “Como escrever a história da França?”. Anos 90. Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, n.7, julho 1997. - KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado. Para una semântica de lós tiempos historicos. Barcelona. Paidós, 1993. - LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In : Memória-História, Enciclopédia Einaudi, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985. - LISSOVSKY, Mauricio. A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro, Mauad, 2008. - LISSOVSKY, Maurício. Rastros na paisagem: a fotografia e a proveniência dos Lugares. Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética. XX Encontro da Compós, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

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