O tempo de Caymmi

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Reflexão e prática 82

encarte do professor

Homenagem ao centenário

Uma reflexão filosófica acerca do sincretismo musical de Dorival Caymmi

O Romantismo ambíguo

Os sentidos de “romantismo” delineados nas “canções urbanas” e “marítimas” do músico e compositor Dorival Caymmi

Com curadoria de Carolina Desoti Fernandes Carolina Desoti Fernandes é graduada em Filosofia pela PUC-Campinas e pesquisa o feminismo vinculado às manifestações tradicionais brasileiras. É professora, editora, redatora e produtora cultural.

O tempo de Caymmi

N

ascido no dia 30 de abril de 1914 na rua do Bângala (que depois foi chamada de rua Luis da Gama) em Salvador, Dorival Caymmi viveu uma infância como muitos outros garotos baianos de sua época, com direito a aventuras pela cidade e pelo mar. Porém, aos 16 anos interrompeu o curso secundário para trabalhar no jornal O Imparcial. Começou com os trabalhos de rotina de escritório e depois passou a revisar os textos dos jornalistas. Caymmi gostava do trabalho, mas seu pai, sr. Durval Henrique ­Caymmi, o matriculou num curso de Matemática, Português e Inglês a fim de prepará-lo para prestar concurso público para escrivão de coletoria. ­Caymmi estudou e passou em 2º lugar. Contudo, talvez por acaso – ou não? –, como nunca foi chamado, acabou por “servir” ao Brasil de outros modos.

Aos 17 anos começou a aprender sozinho a tocar violão, apesar da implicância do pai com o seu jeito próprio de manejar o instrumento. Até aquele momento, quem poderia saber que essa seria – posteriormente – sua “marca registrada”, sua “assinatura”? Quem saberia que essa seria uma das principais razões de seu sucesso como compositor e intérprete? Ainda durante a juventude, formou um grupo chamado Três e Meio, que tocava músicas que chegavam do Rio de Janeiro pela Rádio Nacional. Mas, aos poucos, o grupo passou a incorporar em seu repertório as músicas que o próprio Caymmi compunha, misturando às músicas dos grandes cantores de rádio com o tempero da cantiga de roda baiana e das toadas que formariam o modo único que ­Dorival Caymmi viria a empregar em sua música.

Robson Gabioneta, bacharel e mestre em filosofia (Unicamp), secretário do Centro do Pensamento Antigo (CPA), Professor da rede pública do Estado Thiago Fernandes Franco, bacharel em relações internacionais (Facamp) e em Sociologia e Política (Unicamp). Mestre e doutorando em História Econômica (Unicamp)

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Por Robson Gabioneta e Thiago Fernandes Franco

Etapa I: Peguei um Ita no Norte, pr a vim pro Rio mor ar ATIVIDADE I:

O “lento” Caymmi conseguiu perceber o r ápido movimento do Rio de Janeiro

Dorival nascera em uma família de imigrantes europeus católicos miscigenados com “índios” e “negros” – como se dizia antigamente – de “remediados” – algo como o que hoje chamaríamos de “classe média”. Mas aquele jovem Dorival, não exatamente um ambicioso, ansiava por mais. Esse traço de sua personalidade não costuma ser bem compreendido. Tido por preguiçoso, trabalhou desde jovem e conseguiu realizar um número muito consistente de obras-primas tanto como cantor quanto como compositor. Além disso, Dorival Caymmi também possuía enorme talento para pintar quadros, chegando a ter suas telas organizadas em mais de uma exposição. Com seu modo sereno, não era, contudo acomodado, e sabia que tinha coisas a realizar. Assim, na busca por satisfação pessoal, no dia 1º de abril de 1938, pouco menos de um mês antes de completar 24 anos, Caymmi – como muitos outros “retirantes” nortistas e nordestinos – “pegou um Ita” – a terceira classe do navio Itapé – e embarcou para “conquistar o Rio de Janeiro”. No Rio, foi recebido por um amigo da sua família, José ­ Brito Pitanga, e se hospedou em uma pensão. Logo que chegou, Pitanga levou-o para a revista O Cruzeiro, na qual Caymmi não conseguiu se empregar. Ainda assim, com a calma persistente dos lentos – e com uma possível força do “acaso” –, C ­ aymmi conseguiu se ajeitar. Um companheiro de pensão, Edgard Carvalho,

arrumou para ele um emprego numa agência de anúncios de jornais. Naquela época, o “preguiçoso” Caymmi, depois de trabalhar durante o dia, “dobrava o expediente” cantando, depois do jantar, suas músicas para os companheiros de pensão. Seu sucesso na hospedaria era tão grande que um de seus companheiros, conhecido de Lamartine Babo, o indicou para um radialista, que o convidou para um programa noturno na Rádio Nacional. Foi por meio de Lamartine e pela Rádio Nacional que Caymmi foi ouvido pela primeira vez em sua terra natal e tornou-se a cada dia mais conhecido no concorrido mundo musical do Rio de Janeiro – então a capital política e cultural do país. Logo em seguida, foi convidado para um teste na Rádio Tupi, no qual foi aprovado e contratado, por um cachê superior, para tocar duas vezes por semana. Pouco tempo depois, assinou um contrato ainda mais vantajoso com a Rádio Nacional, que lhe daria

Além de cantor e compositor, Caymmi também pintava quadros, que eram admirados por colegas do calibre de Cândido Portinari e Carybé, que viriam a se tornar seus grandes amigos

maior projeção e oportunidades. Parecia que, finalmente, os caminhos de Caymmi se abriam... Em abril de 1940, quando já era um artista de relativo sucesso, casou-se com Stella Maris, sua companheira por toda a vida e mãe de seus três filhos, Nana, Dori e Danilo – que hoje são músicos com carreiras consolidadas. Stella Maris era o nome artístico de Adelaide Tostes – que nunca foi utilizado por ela – e significa “estrela do mar”. Dorival, amante declarado do mar, e já encantado com sua voz e sua graça, ficou ainda mais apaixonado. Nesse ínterim, Stella, introduzida pela irmã Linda – então companheira do carismático Moreira da Silva –, tornara-se integrante do importante elenco musical da Rádio Mayrink Veiga, formado por artistas do quilate de Pixinguinha, Garoto, Aracy de Almeida – que gostava muito de Stella –, Sylvio Caldas, Antenógenes Silva – que descobriu a cantora e era considerado um dos melhores acordeonistas do mundo –, Haroldo Barbosa e Carlos Galhardo, dentre muitos outros. Conta a história que Stella teria estreado em um horário bastante desvalorizado, não fosse o fato de o “acaso” – sempre ele – ter colocado em seu caminho a mesma Carmem Miranda que havia alavancado a carreira de Dorival. Ao passar pelo ensaio da garota, Carmem se encantou com seu talento e concedeu-lhe a honra de cantar no horário principal, tornando-se assim, de algum modo, sua “madrinha”. Dorival rapidamente se tornara fã da cantora, pela qual se apaixonara, e todo o intervalo entre conhecê-la e a efetivação do casamento não durou mais de um ano. Após o casamento, todos – inclusive Dorival – foram surpreendidos pelo desejo de Stella de desistir de sua promissora carrei-

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Carmem Miranda foi a mais famosa intérprete da canção O que é que a baiana tem?, um dos maiores sucessos de Dorival Caymmi

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CAYMMI, 2001, p. 177-178

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Idem, p. 182

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ra de intérprete para se dedicar exclusivamente ao casamento e à família. Segundo declarações posteriores anotadas na biografia de Caymmi, que indicamos a leitura, Stella desistiu da carreira porque, sendo mulher, para vencer no competitivo cenário musical do Rio de Janeiro, “era preciso se submeter a coisas sórdidas”. Entretanto, Dorival – que era contra essa decisão – acabaria sendo acusado injustamente pelo suposto machismo de ter obrigado a esposa a abandonar a carreira.1 Sobre Stella, Jorge Amado, grandessíssimo amigo e padrinho de casamento dos dois, declarou certa vez que Dorival “não teria feito nem um terço do que fez, se não tivesse tido ao lado dele Stella Maris, que o sustentou, que lhe deu os pés na terra. Porque ele é um sonhador, está no ar, ele é um ser muito especial, muito extraordinário, preguiçoso, vive da amizade, da ternura. E ela é que amarrou Caymmi”.2 O caráter namorador de Dorival, acentuado pelas inúmeras viagens que a carreira exigia, seria responsável por muitas desavenças entre o casal, mas, apesar de todas elas, os dois viveram juntos até o ano de 2008, quando ele tinha 94 anos e ela 86. Stella – que já vinha doente – entrou em um estado de coma muito grave e Dorival – que também já estava com sua saúde muito debilitada – não resistiu, vindo a falecer cerca de dez dias depois. Logo em seguida – onze dias depois de sua morte – foi a vez de Stella. Com Jorge Amado, Dorival travou uma amizade que durou a vida toda. Além de tê-lo como padrinho de casamento, Dorival protagonizou o encontro de Jorge com a também escritora Zélia Gattai. Por algumas vezes, Dorival Caymmi e Jorge Amado foram parceiros musicais, sempre com Caymmi realizando as melodias e vez ou outra entrando de parceria nas letras, como é o caso do grande sucesso É doce morrer no mar,

EXERCÍCIO I – Dorival Caymmi e João Cabr al de Mello Neto

Dorival Caymmi, assim como muitos de seus contemporâneos nordestinos, praticamente abandonou sua cidade natal e partiu em direção ao Rio de Janeiro, então capital do país, para “ganhar a vida”, conforme ilustrado de maneira primorosa no conto Morte e vida severina, de João Cabral de Mello Neto. Quais são as razões pelas quais Dorival Caymmi conseguiu um destino diferente daquele “Severino”? Além do talento e da obstinação pessoal, sabemos que, diferentemente de muitos “severinos”, Caymmi vinha de uma família que lhe ofereceu condições de estudar e aprimorar seus talentos artísticos (literários, musicais, plásticos). Em que medida o sucesso midiático de pessoas como Dorival Caymmi serviu para alimentar a crença de que era possível “ganhar a vida” na capital?

composto – em meio a vários intelectuais de renome, como Érico Veríssimo – na casa do pai de Jorge Amado. Essa música surgiu de uma aposta entre aqueles ali presentes sob a inspiração do romance Mar morto, de autoria de Jorge, sobre os pescadores da Bahia, tema por excelência do compositor. Com o romancista, Caymmi nutria também uma ligação espiritual. Ambos, mais o artista plástico Carybé, profundo pesquisador da cultura africana no Brasil, eram “irmãos de esteira” na famosa casa de santo do Gantois, dirigida pela respeitada ialorixá Mãe Menini-

nha, para quem Dorival compôs um lindo cântico com o nome de Oração de Mãe Menininha. A ligação de D ­ orival com o candomblé não era fortuita. Tanto ele quanto sua esposa Stella, quando se mudaram para a Bahia, mergulharam nas tradições dessa religião, na qual cumpriam obrigações com a ­ f requência devida. Depois da conversão ao candomblé, Dorival se mostrou muito respeitoso com suas obrigações para com os orixás e com a sua casa de santo, sendo constantemente aconselhado pelos jogos de búzios das suas ialorixás. Além disso, tornou-se amigo do

Se estivesse vivo, Dorival Caymmi completaria 100 anos no dia 30 de abril de 2014

famoso antropólogo francês Pierre Verger (1902-1996), que viria a ser seu conselheiro após também ter se convertido ao candomblé e se tornado babalorixá. Tanto é impactante a (re)descoberta do candomblé na vida do casal Caymmi que o ma-

chado de duas lâminas, insígnia de Xangô, serviu de inspiração para o logotipo – desenhado por ele mesmo – da editora musical fundada por Caymmi. 3 Desse modo, Xangô, assim como diversos outros orixás, foi por muitas vezes tema de suas composições – tanto as musicais quanto as pinturas –, na qual também aparece com muito destaque a 3 Xangô, o Orixá Rei da Justiça, simbolizado pelas forças naturais das tempestades, dos raios e dos trovões, era o orixá de cabeça de Caymmi, o guiando junto com Oxalá, Oxum e Iemanjá

figura de Iemanjá, Rainha do Mar, orixá de devoção dos pescadores que Caymmi teve por tema.4 Apesar disso, por conta do sucesso da Oração de Mãe Menininha, popularizada por Bethânia e Gal Costa, Dorival Caymmi foi acusado – inclusive por muitos filhos de santo – de querer se promover utilizando o candomblé, fato que muito o entristeceu. Ainda mais porque o compositor não gostou da gravação das cantoras, que,

segundo ele, erraram tanto na escolha do andamento quanto, principalmente, na saudação à orixá Oxum,5 o que, para os filhos de santo, denota um profundo desrespeito a ela. Entretanto, se Caymmi por um lado tinha esse forte traço perfeccionista, por outro nunca foi de demonstrar descontentamento com os outros e tinha uma natureza geralmente conciliadora, que fez com que não entrasse em contenda com as cantoras. Orixá do Amor, da Beleza e da Vaidade; simbolizada pelas águas doces dos rios e cachoeiras 5

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Orixá Rainha do Mar, grande mãe dos outros orixás

Etapa II: Mito e Filosofia ATIVIDADE II:

A Filosofia, juntamente com a História e as manifestações culturais, é uma das mais antigas formas de saber de que temos, para não mencionarmos as formas de religiosidade sempre dificilmente discerníveis das demais. As fronteiras entre elas, que hoje nos parecem delimitadas de forma nítida, nem sempre foram fáceis de se perceber. Constantemente, essas formas do saber que convivem desde suas origens se referem umas às outras, e suas relações se apresentam das mais variadas maneiras, por vezes se complementando, por vezes umas favorecendo às outras e por vezes entrando em conflitos aparentemente insolúveis, quando então são novamente forçadas separações e desfeitas as simbioses. Mesmo porque, cada uma dessas formas tem a sua própria dinâmica e suas regras e pressupostos estão em constantes mudanças. Dessa maneira, parece caber aos filósofos, artistas, historiadores, cientistas, sacerdotes e a cada uma das pessoas dessa sociedade, na relação com as outras, reinterpretar e atuali40 •

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Dorival Caymmi atuou como cupido do casal Jorge Amado e Zelia Gattai, fazendo as vezes de menestrel ao violão enquanto Jorge dedicava a Zelia os versos de Acontece que eu sou baiano

Dorival conhecera Stella quando ainda era cantora de rádio, num concurso de calouros que ela venceu interpretando Último desejo, obraprima de Noel Rosa

zar tudo aquilo tido por verdade para dar conta das situações e dos conflitos específicos de seu próprio contexto, se valendo daquilo que lhe convier. Pierre Vernant (1914-2007), estudioso da Antiguidade Clássica, por exemplo, em Mito e pensamento entre os gregos, defende que a Filosofia grega seria impossível sem o respaldo da mitologia, que, com efeito, constitui seu desenvolvimento. Assim, Vernant

argumenta que a Filosofia jônica – considerada a primeira Filosofia – e toda a filosofia posterior possuem uma íntima relação com o pensamento mitológico – portanto “religioso”; o que mudaria somente com a Filosofia de Aristóteles. Ainda para ele, um conjunto significativo de características da Poesia – principalmente a de Homero e de Hesíodo – seriam retomadas pela Filosofia, dentre as quais destacam: 1)

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A mitologia africana na poética de Caymmi

a tese segundo a qual no começo havia o caos, que teria sido organizado pelo divino; 2) dessa organização surgiram pares de opostos (quente/frio e seco/úmido) que se diferenciam por sua vez a partir dos quatro elementos (fogo/quente; ar/frio; terra/seco; água/ úmido); 3) esses opostos lutam indefinidamente, segundo um ciclo interminável e 4) a verdade é manipulada pelos deuses e transmitida aos poetas a partir de suas vontades. Assim, de acordo com essa linha de raciocínio, ainda que entre a Filosofia e a mitologia (e a História e a Ciência) existam diferenças que conferem a cada uma delas suas particularidades – quais seriam elas? – não existe separação radical. Cada uma delas tem por característica apresentar-se como forma de saber que procura dar conta de entender as coisas entre o “homem” e a “natureza”, atuando como forma de “memória coletiva” cujo objetivo menos ou mais consciente são a regulação e a reprodução das relações sociais de determinada coletividade. Dessa maneira, algumas das principais funções dessas formas de saber consistem em explicar de alguma forma como as coisas funcionam com vistas à repetição de determinadas atividades necessárias à sobrevivência material e social dessa coletividade. E como, portanto, as formas de saber necessariamente surgem de acordo com o contexto na qual estão inseridas. As sociedades caçadoras possuem “mitos” sobre caça; as sociedades agrícolas possuem “mitos” sobre a terra, a chuva e o vento; as sociedades do progresso aparentemente ilimitado possuem “mitos” sobre a eficiência, a tecnologia e o dinheiro e as sociedades guerreiras possuem “mitos” sobre a guerra. Por meio desses “mitos” – sobretudo nas

Grande devoto do candomblé, Dorival chegou a assumir o cargo de “obá de Xangô” do Axé Ôpô Afonjá, comandado por Mãe Ondina

sociedades que não se valem da escrita – o conhecimento é transmitido aos demais – principalmente às novas gerações – de modo a garantir que determinadas características do grupo permaneçam. Além disso, como essas formas de saber buscam “intermediar” as relações entre “homem” e “natureza”, nas relações de harmonia e conflito entre os homens e as coisas da natureza surgiram historicamente explicações segundo as quais existem coisas que não são explicáveis senão por causas “misteriosas”, associadas a “deuses”, “espíritos”, “forças”, “entidades” ou diversas outras maneiras de representar as coisas que parecem acontecer, mas não são “visíveis”. E como o pensamento não poderia se dar senão a partir de coisas co-

exercício II: No balanço do mar

Um dos principais temas de Dorival Caymmi certamente é o mar. Tanto que diversos de seus críticos apontam Canções Praieiras como o seu principal disco. Procure escutá-lo de modo a identificar como os lugares impactam no modo de pensar e sentir das personagens. Em quais palavras é possível identificar essas relações?

É doce morrer no mar

É doce morrer no mar É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar A noite que ele não veio foi Foi de tristeza prá mim Saveiro voltou sozinho Triste noite foi prá mim É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar Saveiro partiu de noite foi Madrugada não voltou O marinheiro bonito Sereia do mar levou É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar Nas ondas verdes do mar meu bem Ele se foi afogar Fez sua cama de noivo No colo de Iemanjá É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar É doce morrer no mar Nas ondas verdes do mar

nhecidas por aqueles que o formulam, essas explicações frequentemente associam essas coisas “misteriosas” a elementos da natureza (sol, trovão, mar, animais... ou formas humanas: Zeus, Jesus etc.). E é por isso que os “deuses” frequentemente assumem as formas das coisas da natureza e formas humanas. E é pelas características que assumem das formas humanas que nós acabamos nos relacionando com eles por meio de “barganhas” e “trocas”, mediadas por preces, orações, penitências e oferendas. É por meio dessas relações que os 42 •

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Iemanjá afoga seus amantes no mar

Iemanjá é dona de rara beleza e, como tal, mulher caprichosa e de apetites extravagantes. Certa vez saiu de sua morada nas profundezas do mar e veio à terra em busca do prazer da carne. Encontrou um pescador jovem e bonito e o levou para seu líquido leito de amor. Seus corpos conheceram todas as delícias do encontro, mas o pescador era apenas um humano e morreu afogado nos braços da amante. Quando amanheceu, Iemanjá devolveu o corpo à praia. E assim acontece sempre, toda noite, quando Iemanjá Conlá se encontra com os pescadores que saem em seus barcos e jangadas para trabalhar. Ela leva o escolhido para o fundo do mar e se deixa possuir e depois o traz de novo, sem vida, para a areia. As noivas e as esposas correm cedo para a praia esperando pela volta de seus homens que foram para o mar, implorando a Iemanjá que os deixe voltar vivos. Eles levam para o mar muitos presentes, f lores, espelhos e perfumes, que Iemanjá mande sempre muitos peixes e deixe viver os pescadores.

homens procuram modificar o humor e os desejos dos “deuses” tentando, com isso, influenciar as vontades deles para receber favores e apaziguar seus ânimos, tidos como fundamentais para as coisas da vida humana. O fato de que as explicações foram se tornando a cada dia mais “racionais” ou – nas palavras de um importante pensador da Modernidade – se “desencantando” não nos parece razão suficiente para considerarmos que elas são mais “verdadeiras”. A questão da verdade continua sendo um problema

filosófico da mais alta importância e, como todos os demais problemas filosóficos, não elimina as questões das outras formas de saber. Do contrário. Com elas se relaciona ora harmoniosamente, ora de maneira conflitiva. Para os fins deste pequeno texto, que não pretende dar conta de tal problema, senão de falar sobre outras coisas que a ele se referem, e no qual este parágrafo não é senão uma advertência, nos basta enunciarmos algumas semelhanças, principalmente temáticas, entre problemas da mitologia que aparecem na música do Caymmi. Na poética de Caymmi, podemos encontrar diversas possibilidades de desdobramentos de entradas para temas que tocam as outras formas do saber a que nos referimos como fazendo parte de uma certa “memória coletiva”. É evidente que, como toda aproximação, precisamos ter cautela e procurar não reduzir as coisas às características que queremos destacar, mas nos parece profícuo propor atividades de aproximação. Em Vatapá e em Acarajé, podemos ver como Caymmi transforma receitas de comida em música; em Saudades de Itapõa, Noite em Copacabana; 365 igrejas e A lenda do Abaeté procura, como na pintura, fazer conhecidas as suas paisagens; à maneira de grandes escritores de outrora, procura em Marina, A vizinha do lado, Eu cheguei lá e Saudades da Bahia fazer crítica de costumes; em Maracangalha (que já foi comparada por críticos com o poema Vou-me embora para Pasárgada de ­Manuel Bandeira), apresenta uma distopia; em O samba da minha terra estabelece uma relação de identidade entre aqueles que gostam da sua música, no caso, o samba. Ao que nos parece, cada uma dessas possibilidades poderia render muitas prosas sobre as formas de saber, a Música, a Religião, as Artes e a Filosofia. Mas é importante destacar uma outra possibilidade de aproximação – que parece em alguma medida sintetizar os argumentos supracitados: as possíveis relações entre Religião e Filosofia por meio dos mitos mitos. Pois que se falávamos que uma sociedade de guerreiros traz mitos da guerra, e sociedades caçadoras trazem

mitos da caça, as sociedades pescadoras trazem seus mitos sobre o mar. Podemos observar na poética de Caymmi uma sucessão de ensinamentos que trazem as sabedorias dos homens do mar. Para ficarmos em poucos exemplos, em Pescaria podemos ver tanto as tarefas mais básicas (“Cerca o peixe/bate o remo/puxa corda/colhe a rede/ô canoeiro/puxa rede do mar”) quanto o agradecimento a Deus pelos “presentes” para Chiquinha (o próprio peixe). Já em Milagre, a relação religiosa aparece em toda a sua grandeza, como se a pescaria bem-sucedida tivesse relação com a “quarta-feira santa/dia de pescar/e de pescador”, assim como as diversas tarefas que cada um dos pescadores deve

cumprir para que a pescaria seja bem-sucedida: “Maurino que é de guentar guentou/Dadá que é de labutar labutou/ Zeca esse nem falou [provavelmente a ele cabia puxar a rede”. Em Dia dois de fevereiro, dia de Iemanjá, aparece a relação de barganha de maneira direta (“Escrevi um bilhete pra ela/pedindo pra ela me ajudar/ela então me respondeu/que eu tivesse paciência de esperar/o presente que eu mandei a ela de cravos e rosas vingou”). Voltando aos paralelos possíveis entre a Filosofia e a mitologia grega, podemos lembrar Vernant quando afirma que Tales se tornou o primeiro filósofo ao dizer que a água é a origem de todas as coisas. Homero, por seu turno, imortalizou-se ao narrar as

aventuras do marinheiro Odisseu, que aprendeu a utilizar de sua astúcia para negociar com os deuses, conhecimento este que transmitiu para Sócrates, que viria a ser mestre de Platão, novamente segundo Vernant, o último dos filósofos cuja Filosofia se fundava nos mitos, dando contornos a essa forma do saber que atravessaria séculos da vida humana. Do mesmo modo, Caymmi nos traz em suas canções, resgatando os mitos do candomblé, diversas possibilidades de narrativas que transmitem conhecimentos que podem vir a nos ajudar em nossas relações com as coisas da vida, procurando separar, no canto das sereias, o que é belo do que é enganoso.

Etapa III: Dorival Caymmi e o Cinema posteriormente grande sucesso de Ary. Downey não aceitou. Durante a correria que se formou para achar uma música que substituísse a de Ary, Almirante lembrou-se de ter ouvido Caymmi cantando canções sobre a Bahia. Assim, às pressas, Caymmi foi apresentado para Carmem Miranda, que adorou tanto ele quanto suas músicas. Entre elas, escolheu O que é que a baiana tem? como música-tema do filme. O que eles então não poderiam saber é que esse episódio viria a mudar a história tanto de

­ armem quanto de Dorival. Ela, apreC sentou-se no Cassino da Urca e logo em seguida foi contratada pela Broadway. Ele, conheceu seu primeiro sucesso e ganhou uma grande quantia pela inclusão da música no filme.

referências

Em 1938, um cineasta americano, Wallace Downey, estava finalizando o filme Banana da terra, estrelado pelo maior “cartaz” da época, a atriz e cantora Carmem Miranda. As filmagens se aproximavam do final quando os responsáveis receberam a notícia de que a música principal pela qual esperavam estava excedendo o orçamento. Ary Barroso, o compositor com o qual contavam, exigia uma quantia considerada exorbitante para a inclusão de suas músicas – entre elas, Na Baixa do Sapateiro,

Prandi, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001. Caymmi, D. Dorival Caymmi (música). Editorado por Almir Chediak. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994. Caymmi, S. Dorival Caymmi: O mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001.

Exercício III: O que é ser br asileiro?

Com direção de Ruy Castro, o filme Banana da terra (1939) é uma a comédia musical que se passa na fictícia ilha Bananolândia

A segunda metade do século XX pode ser caracterizada como a expansão de um modo de vida capitalista baseado no consumo a cada dia mais global de bens materiais e culturais naquilo que se convencionou denominar american way of life. Nesse sentido, as grandes gravadoras de capital internacional, bem como as grandes produtoras cinematográficas, tiveram um papel preponderante. Dorival Caymmi, por sua vez, participou disso enquanto cantor, ator e compositor, encarnando o “malandro miscigenado” que funcionava como mecanismo de caracterização de um ideal de “brasilidade” que vendia muito bem nos Estados Unidos em sua “política de boa vizinhança”. O que seria essa “brasilidade”? Ela corresponde à sua imagem do Brasil? www.portalcienciaevida.com.br •

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