O tempo, o vento e o negro: consolidação literária do mito da democracia pastoril: o cativo, em O Continente, de Érico Veríssimo.

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REVISTA ESPAÇO DA SOPHIA - Nº 30 – SETEMBRO/2009 – MENSAL – ANO II

O tempo, o vento e o negro: consolidação literária do mito da democracia pastoril: o cativo, em O Continente, de Érico Veríssimo.1 Mário Maestri. 2

“Buenas   e   me   espalho,   nos   pequenos   dou   de   prancha,   nos   grandes   dou   de   talho”.     Capitão Rodrigo Cambará

I. História e Literatura: o geral e o específico No início dos tempos, História e Literatura nasceram como ser único e indistinto. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de consciência do homem de sua existência social, as duas disciplinas diferenciaram-se, singularizaram-se e especializaram-se. Em torno das fogueiras, mitos eram contados, explicando e figurando a origem do homem, da sociedade e da natureza. Na alta Antiguidade, a epopéia cantada pelo rapsodo fundia, semimagicamente, o real e o imaginário, o humano e o divino, a sociedade e o indivíduo. Nascida em “um   tempo   anterior"   à   "consciência   individual”,   ela   registrava   sobretudo   o   “destino   da   coletividade”. 3 Espécies de gêmeos idênticos, Literatura e História lutaram para separarem-se e andar independentemente. Refletindo sobre essa diferenciação, Aristóteles propunha que a "Poesia”   fosse  “mais  filosófica  e  mais  elevada  do  que  a  História”  pois  contaria  “de  preferência o geral" e, a última, o " particular". 4 O processo de autonomização entre a História e a Literatura aprofundou-se na Idade Média. Então, a narrativa dramática e o romance — de cavalaria, pastoril, picaresco, etc. — referiam-se aos acontecimentos humanos, animando personagens, sem compromissos com o relato do passado e conscientes do caráter figurativo da arte. Na época, a História também definiu objetivos e métodos, compreendendo-se sobretudo como crônica do passado, já que congelada pelas visões providencialistas cristãs como explicação essencial dos fenômenos. Na Baixa Idade Média, Santo Agostinho [354-430] criou monumental interpretação providencialista que abraçava "os princípios, o método e os resultados da ciência e da filosofia" da época. 5 No século 17, o bispo J. B. Bossuet [1627-1704] concedeu que deus forjara o "encadeamento do universo" e deixara que a história decorresse segundo "suas causas" naturais. 6 As vitórias do Iluminismo sobre o misticismo e o irracionalismo refletiam a capacidade crescente da burguesia de organizar a sociedade em forma progressista e do espírito humano de descrever teoricamente os nexos causais objetivos do mundo material e social.

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. Este artigo recebeu o apoio da bolsista Daniela Cardoso PIBIC/CNPq 2000. . Mário Maestri é doutor em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: [email protected] 3 . SOARES, Angélica. Gêneros literários. 5a. ed. São Paulo: Ática, 1999. P. 42. 4 . Poética, 1451 b. apud SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 2a ed. revista e ampliada. Coimbra: Almedia, 1969. p. 90. 5 . LUKÁCS, G. La distruzione della ragione. 2a. ed. Torino: Einaudi, 1980. I. p. 106. [Traduzimos as citações em italiano e francês]. 6 . PLEKHANOV. A concepção materialista da história. 5a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 14. 2

No século 17, confiante, René Descartes escrevia: "[...] todas as coisas [...] sucedem-se da mesma maneira e, desde que se evite tomar como verdadeira alguma [coisa] que não o seja [...] não podem existir tão longínquas [coisas] que não se alcancem, nem tão ocultas que não se descubram." 7 Na centúria seguinte, Voltaire propunha que o homem deixasse "respeitosamente o que é divino àqueles que são seus depositários" e se ocupasse das coisas terrenas. 8 De acontecimento ininteligível e explicável apenas pela vontade divina, a História evoluiu à fenômeno humano compreensível e demonstrável. Porém, os mais lúcidos iluministas acreditavam em uma natureza humana inalterável e viam a evolução da civilização como avanço da opinião, ou seja, das verdades e enganos de uma nação. 9 Para a Ilustração, o homem era bom e propendia à razão, por natureza. A racionalização dos costumes e das instituições levaria, inevitavelmente, à felicidade geral. Tratava-se de concepção revolucionária da História. Questionáveis e reformáveis, as instituições deviam adaptar-se ao bem comum. Do pessimismo e quietismo cristãos o mundo é vale de lágrimas; a vida começa após a morte evoluía-se a um otimismo e ativismo filosóficos e sociais que explodiriam em 1789. O sistema hegeliano materializou filosoficamente os avanços da Revolução Francesa. Por primeira vez, sob forma categorial-sistemática, descrevia-se a essência dialética da história e a necessidade da revolução. Porém, para Hegel, como para os iluministas, a razão governava a História, ainda que, para ele, a razão fosse as leis gerais e imanentes à História (Espírito Universal). 10 Nos limites idealistas da filosofia hegeliana, estendia-se o grau de cognoscibilidade da História. Em 1799, Saint-Simon analisou a Revolução Francesa como luta entre nobres, burgueses e plebeus, como fizera, anteriormente, Gracchus Babeuf [1760-1797]. Na mesma trilha, Augustin Thierry [1795-1856], Auguste Mignet [1796-1884], Jules Michelet [1798-1874] etc. apresentaram 1789 e a História como o resultado do choque de classes antagônicas. 11 O Império e a Restauração prenderam, baniram e executaram pensadores e militantes sociais, mas sob forma de historiografia, a Revolução Francesa prosseguiu desvelando sua essência. No século 18, a narrativa ficcional em prosa conheceu poderoso impulso, também registrando o surgimento da burguesia na arena social. Assim como o racionalismo emancipou a História do Providencialismo, as tramas e os personagens do romance moderno expressaram a emancipação e autonomia do indivíduo da organização estamental feudal. No século 19, a Literatura e a História aproximaram-se para, a seguir, negarem-se. A diferenciação entre Literatura e História avançou qualitativamente após 1789. A Revolução fortaleceu a consciência que era possível aprender racionalmente o devir histórico – "experiência vivida pelas massas" –, gerando a historiografia científica e o romance histórico. 12 Nesses anos, Literatura e História propunham-se a explicar essencialmente o passado. G. Lukacs lembrava que a luta pela construção de uma explicação historiográfica científica de 1789 favoreceu a ausência de um grande romance histórico sobre aqueles acontecimentos, ao passo que a revolução burguesa na Inglaterra foi amplamente retratada pela ficção. 13 Na segunda metade do século 19, a ordem capitalista consolidada assumiu essência anti-revolucionária. No mundo das idéias, esse tournant conservador expressou-se nas

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. DESCARTES, René. Discurso sobre o método. 6a. ed. São Paulo: Atena, 1954. p.27. . Apud: PLEKHANOV. A concepção materialista da história. 5a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 15. 9 . LUKÁCS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 28. 10 . Cf. HEGEL. La phénomenologie de l'esprit. Trad. J.Hyppolite. Paris: Aubier, sd. I e II. 11 . Cf. GODECHOT, Jacques. Un jury pour la Révolution. Paris: Robert Laffont, 1974. 12 . Cf. LUKACS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 21 et seq. 13 . Cf. LUKACS, G. Le roman historique. Ob.cit. P. 81. 2 8

concepções empiristas e positivistas do mundo, que reafirmavam o aparente e negavam o essencial. Ao mesmo tempo, o positivismo defendeu a autonomia plena da História e da Literatura e a diluição de uma na outra. Auguste Conte propunha que o estado teológico e o metafísico das ciências tinham em comum a predominância da imaginação sobre a observação. Para elevarem-se ao estágio positivo das ciências exatas, as ciências humanas deveriam abandonar a promiscuidade com o aleatório, com o subjetivo, com o imaginário. 14 Para idéia de que a "realidade se resumia àquilo que era perceptível pelos sentidos", a certidão de cientificidade da História era sua imersão no dado documental.15 Em oposição à visão aristotélica, a historiografia positivista via a ficção como produto do arbítrio errático da imaginação do escritor. Porém, o positivismo invadiu também a Literatura. Para a narrativa naturalista, também a ficção devia construir-se a partir de rigorosa investigação documental. A elaboração do dado empírico pelos conhecimentos científicos da época permitiria que o romance se transforma em "demonstração prática das teorias científicas". 16 Para escrever Le ventre de Paris e Nana, Emile Zola percorreu os bairros populares de capital francesa, entrevistando peixeiros, comerciantes, prostitutas, gigolôs e marafonas, em uma verdadeira investigação sociológica. A narrativa naturalista via-se como enquête científica e sonhava superar a própria cientificidade da História. O positivismo propunha à História e à Literatura a descrição da "realidade objetiva" a partir da minuciosa reprodução da aparência fenomênica. Ao desconhecer a necessidade da expressão do não imediatamente perceptível, negava àquelas disciplinas suas funções primordiais de expressarem a essencialidade dos fenômenos, através de suas linguagens específicas,. O historiador e crítico literário Werneck Sodré lembrava que o naturalismo esquecia que "os sinais exteriores são apenas uma parte da realidade, não podendo a literatura", através da mera descrição do aparente, registrar determinações essenciais do objeto estudado. Sob a aparência de rigorismo científico, os positivismos literário e historiográfico atinham-se às aparências e descuravam a essência dos fatos, desconhecendo as contradições sociais. 17 Na segunda metade do século 20, a historiografia neo-positivista, travestida de História Quantitativa, pretendeu salto de qualidade no divórcio com a Literatura, ao romper com o subjetivismo da narrativa em prosa. Por alguns anos, sob a árida ditadura das tabelas, dos quadros e das séries, ela sonhou em fundar na história a exatidão da matemática. Na contramão, mas no mesmo sentido, a prosa ficcional contemporânea propôs radical rompimento com a realidade. O narrador, profundamente autônomo, recriaria, quando não criaria, seu mundo, livre das amarras da verdade dos fatos, tendo como único compromisso, quanto muito, a verossimilhança. Já na Antiguidade, Aristóteles lembrava que a Literatura produzia um passado possível e não real, já que "o poeta, diferentemente do historiador, não representa fatos ou situações particulares" mas apenas "cria um mundo coerente em que os acontecimentos são representados nas sua universalidade, segundo a lei da probabilidade ou da necessidade". 18 Querendo superar a má consciência de ser reflexo artístico do real, a Literatura dispôsse a romper com a realidade através do monólogo interior; das descrições psicológicas; do nonsense; do fim do tempo e do espaço como fatores unificadores do relato; do abandono da milenar idéia da verossimilhança; da fusão do consciente e do inconsciente; do real e o mágico, das experiências vividas e oníricas; etc. 14

. CONTE, Auguste. Opúsculos de filosofia social. 1819-1828. Porto Alegre: Globo; EDUSPS, 1972. p. 86. . SODRÉ, Nélson Werneck. O naturalismo no Brasil. 2a. ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992. 47. 16 FREITAS, Maria Teresa. Literatura e história. São Paulo: Atual, 1986. p.2. 17 . LUKACS, G. Estética : la peculariaridad de lo estetico. Barecelona: Grijalbo, 1965. II. p. 22-3; SODRÉ, Nélson Werneck. O naturalismo no Brasil. 2a. ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992. p. 66. 18 . SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 2a ed. revista e ampliada. Coimbra: Almedia, 1969. p. 90. 3 15

Na defesa de independência radical da Literatura, lembrou-se que ela objetiva-se na construção de uma totalidade artística, tendo como único paradigma o belo, e que a História, ao contrário, impõe-se através da confrontação do explicado [teoria] com o analisado [objeto], já que constitui análise concreta de situação concreta. Na historiografia, a beleza é atributo excedente; na ficção, a veracidade não é sequer qualidade marginal. Referindo-se a essa pretensão de autonomia artística, Aguiar e Silva assinala: "A liberdade adquirida em relação a toda a ordem preestabelecida do real põe em evidência o poder pelo qual o artista dispõe das palavras e das formas segundo o seu gênio próprio [...]." 19 A tentativa de superação das visões da arte como imitação, reflexo ou interpretação da realidade através da absolutização do ato de criação do artista, expressa as ilusões liberatórias da sociedade capitalista, que enseja a ilusão de controle pelo indivíduo da sua vontade e de seu destino. Essas visões pecam por fragilidade epistemológica. Apesar do desenvolvimento e especialização milenares, História e Literatura possuem características comuns que denotam a referência a uma essência comum. Ambas registram, expressam e explicam as experiências humanas, cada uma na sua linguagem e com seu programa. A unidade e a diversidade entre Literatura e História foram sempre objetos de discussões. Paradoxalmente, nos últimos anos, o interesse sobre essa realidade aumentou sobretudo devido ao crescente prestígio das visões irracionalistas que desconhecem o status científico da História, reduzindo-a a uma espécie de "romance verdadeiro". A negação da função da História de explicar essencialmente os fenômenos e sua redução a uma mera narrativa em prosa construída pelo arbítrio do narrador debruçado sobre os dados objetivos, reduz a disciplina a uma espécie de ficção de tema histórico e vocação naturalista. O dinamismo do ensaísmo de cunho histórico tem contribuído à exacerbação dessa discussão. Maximizando as propostas da Nova História, esses trabalhos entregam-se a uma descrição positiva e atrativa dos fatos, despreocupados com a explicação dos acontecimentos, tida como impossível e desnecessária. As propostas de autonomia da Literatura do mundo social não conseguem negar o fato de que ela constrói-se, necessariamente, com as palavras, as idéias, os sentimentos, os temas e as preocupações de sua época, comuns ao enunciador e aos receptores, constituindo poderoso registro do mundo que em que foi parida. A teoria literária tem enfatizado a determinação da narrativa pelo mundo social, além mesmo da consciência do autor. Em O enredo, Samira Mesquita lembra: "[...] a ficção, por mais 'inventada' que seja a estória, terá sempre, e necessariamente, uma vinculação com o real empírico, vivido, o real da história. O enredo mais delirante, surreal, metafórico estará dentro da realidade, partirá dela, ainda quando pretende negá-la, distanciar-se [...]." 20 A narrativa ficcional em prosa constitui fonte documental essencial. Ela expressa poderosamente os cenários; a linguagem; as personagens dominantes; as concepções e visões de mundo; as preocupações e preconceitos sociais; etc. de segmentos sociais – em geral dominantes – da época em que foi produzida. Também é uma ilusão a inexorável determinação da historiografia pelos documentos. O historiador não é fantoche dos dados, sobre os quais aplica, como cirurgião hábil, o bisturi técnico-metodológico. É alta a autonomia — consciente e inconsciente — do historiador na escolha e tratamento da documentação. Sua independência cresce quando transita da pesquisa à produção do texto historiográfico. A onisciência e neutralidade absolutas da historiografia são pretensões positivistas desmedidas e desmentidas. Comumente, as insuficiências documentais são supridas por 19

. SILVA,V.M. de A. Teoria da literatura. ob.cit. p. 143. . MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 3a. ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 14. 4

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recursos próprios à prosa ficcional e os hiatos documentais são preenchidos com explicações tidas como tendenciais e verossímeis. Na historiografia, freqüentemente, as debilidades argumentativas; as insuficiências documentais; a impossibilidade ou má vontade em abordar uma questão, etc. são contornadas com soluções estilísticas. Essa construção de uma totalidade harmônica e convincente, através de recursos artísticos, que faz parte da “natureza   da   criação   artística” 21, constitui desvio do método historiográfico, sobretudo se procura criar falsa aparência de cientificidade. A impressão de veracidade cresce quando os fatos históricos são apresentados sem a intervenção explícita do autor.22 A ausência do narrador onisciente intruso adapta-se como luva ao sonho positivista de neutralidade epistemológica e é recurso utilizado em geral inconscientemente pelo historiador e raramente percebida pelo leitor. Os nexos entre História e Romance Histórico – isto é, a narrativa ficcional em prosa que almeja "a reprodução artística fiel de uma era histórica concreta" 23 – são palco privilegiado para a discussão dos fios de Ariadne que ligam História e Literatura entre si e com o real. Entre as íntimas e variadas interpenetrações da História e da Literatura, destaca-se a vocação da narrativa em prosa de tema histórico de descrever, sintetizar, explicar e apreender singularidades essenciais do passado. Tradicionalmente, o historiador viu o romance histórico como leitura impertinente de um passado possível de ser desvelado apenas através dos instrumentos da historiografia e jamais com a fantasia arbitrária do ficcionista. No máximo, para essas interpretações, o romance histórico seria uma ficção do passado, incapaz de aproximar-se de suas singularidades profundas. A gravidade dessa intrusão aumentaria já que o romance histórico cria um mundo ficcional global que é percebido como o real recriado. Referindo-se ao romance em geral, Balzac lembrava a necessidade e, portanto, a possibilidade, de "os personagens de um romance" aparecerem mais verídicos do que os próprios "personagens históricos". 24 Quando atinge nível artístico, o romance histórico é percebido como animação do passado. Heine afirmava que os "romances de Walter Scott reproduzem muitas vezes o espírito da história inglesa mais fielmente do que Hume." 25. Mais ainda, a identificação mimética do leitor com os personagens leva-o a reviver a história como protagonista. Assim, através de recursos artísticos, e eventualmente sem penetrar a essência do passado, a ficção de cunho histórico sugeriria, errônea e perigosamente, a possibilidade da Literatura substituir a História. A má-vontade da historiografia com o romance histórico devese também a compreensível despeito. A narrativa ficcional possui abrangência de público e sobrevida temporal dificilmente alcançada pela historiografia, contribuindo, devido às características assinaladas, mais do que a última à formação das representações de uma comunidade sobre o passado. Os dois volumes do romance histórico O Continente, de Érico Veríssimo, sobre as origens do Rio Grande do Sul, venderam, de 1949 a 1972, aproximadamente cem mil exemplares, tiragem jamais aproximada naquele então por trabalhos historiográficos sobre o tema. E esse romance continua sendo lido. 26

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. LUKACS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 99. . LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo : ou a polêmica em torno da ilusão. 7a. ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 13. 23 . LUKACS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 17. 24 . Apud LUKACS, Georges. Le roman historique. Ob.cit.P. 43. 25 . LUKACS, Georges. Le roman historique. Ob.cit. P. 59. 26 . Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. (Org.) O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Érico Veríssimo. Porto Alegre: Globo, 1972. pp. XX e XXI. 5 22

Na luta pelo monopólio da produção do imaginário social, a historiografia tem também sofrido a concorrência, vista igualmente como impertinente, da cinematografia de cunho histórico, essa ficção visual que fala para milhões de espectadores criados, desde o berço, no amor à imagem e no horror ao texto. O sucesso de público de "Carlota Joaquina", reprodução e divulgação das paisagens e preconceitos vulgares sobre a vinda da família real ao Rio de Janeiro, é bom exemplo da importância do cinema no processo de construção do imaginário histórico. A desconfiança da historiografia com o cinema e o romance históricos aumenta porque essas duas narrativas ficcionais, sobretudo quando alcançam o nível artístico, bastam-se a si mesmas, livres que são do respeito à fidelidade dos fatos que as inspiram. A unidade essencial da História e da Literatura deve-se a que ambas, na diversidade de suas linguagens, constituem reflexos essenciais da realidade objetiva, compreendendo-se a categoria "reflexo" na concepção lukacsiana, isto é, "transfiguração" essencial do real e não transcrição mecânica de uma imagem sobre um espelho. A História e a Literatura devem registrar, não a aparência, mas a essência dos fenômenos. Lukacs lembrava, referindo-se à arte em geral: "[...] las formaciones estéticas son reflejos de la realidad objectiva, y su valor, su significación, su verdad descansan en la capacidad que tengan de captar correctamente la realidad, reproducirla y evocar en los receptores la imagen de la realidad que subyace a ellas mismas." 27 É função da História penetrar a essencialidade dos fenômenos e definir e descrever, teoricamente, o comportamento tendencial das categorias sociais dominantes. A Literatura realiza o mesmo processo através da transfiguração essencial da realidade. Para tal, serve-se de personagens, sobretudo determinantes na realidade abordada, que recriam, na singularidade de suas ações, as tendências gerais da classe de indivíduos que representam. 28 Essa determinação explica e limita poderosamente a autonomia do autor na construção dos enredos e personagens ficcionais históricos. Sem romper com a verossimilhança, deve produzir e animar seus personagens segundo os hábitos, costumes, crenças e sentimentos do período em que os ambienta. Isto é, de acordo às determinações essenciais da época em questão. Ao criar arbitrariamente ou violentar os processos essenciais, cria lapsos que fragilizam a obra, ao romper os fios de Ariadne que a ligam com a realidade artisticamente transfigurada. No romance histórico, o autor e o narrador são obrigados a animarem os protagonistas ficcionais — seres aparentemente individuais e singulares — de tal modo que vivam, amem e odeiem em conformidade com as tendências reais do passado, a fim de que se elevem ao status de personagens singulares e universais. Um processo que pode e muitas vezes deve desligar-se e contradizer a histórica factual, para expressar sua essência. A produção de um romance histórico exige que o ficcionistas realize investigação sistemática sobre a época que abordará. O fato de que esse estudo seja mediado pela sua sensibilidade e instinto artísticos não dilui o fato de que, nesse momento da produção, realiza, consciente ou inconscientemente, o trabalho do historiador, isto é, o desvelamento essencial de um passado datado e localizado. A informação historiográfica, e não o arbítrio do autor, media a produção da ficção histórica. A obediência à verossimilhança constitui respeito ao espírito e às tendências profundas da época. A narrativa ficcional, de temática histórica, que se nega a esse percurso necessário, naufraga vilmente no anacronismo ou abandona o gênero pretendido por um outro 27

. LUKACS, G. Estética : la peculariaridad de lo estetico. Barecelona: Grijalbo, 1965. II. p. 41. . "El sentido de esa concentración es pues ofrecer todos los momentos importantes de un modo abreviado, comprimido, que subraya enérgicamente la esencia, con objeto de alcanzar el objetivo mágico." LUKACS, G. Estética : la peculariaridad de lo estetico. Barecelona: Grijalbo, 1965. II. p. 53; "[...] dans le monde du roman historique. [...] l'individu mondialement historique [...] est un [...] représentant d'une des multiples classes et couches en lutte." LUKACS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 49. 6

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qualquer – fábula, paródia, sátira, etc. Um lapso que erodirá sobretudo com o passar dos tempos sua aparente qualidade artística. O autor seleciona, nos documentos, nas memórias, nos relatos, na historiografia, e nos seus conhecimentos e idéias, conscientes e inconscientes, sobre o passado, o material sobre o qual construirá seus enredos, protagonistas e paisagens. Nesse processo, pode e deve servir-se fortemente da linguagem singular dos personagens centrais da época e dos sucessos em transfiguração, forma de registro singular das visões de mundo daqueles indivíduos. Maria Teresa de Freitas lembra que, no romance histórico, o narrador serve-se de patrimônio cultural pré-existente, hipoteticamente comum a ele e aos leitores, não podendo, portanto, violentá-lo, ao bel-prazer. Em geral correta, essa formulação peca por relativismo, ao reduzir a necessidade de respeito ao patrimônio historiográfico dominante, e não à essencialidade do fato histórico. Comumente, o patrimônio cultural sobre uma época não corresponde ao conteúdo histórico real, desvelando-se essa contradição com o passar dos anos e avanço do conhecimento sobre ela. Para elevar sua literatura ao status de arte, o autor deve ultrapassar o nível do preconceito e senso comum e expressar a essencialidade do fenômeno referido. Sua narrativa deve penetrar a "superfície" dos fenômenos e expressar a "estrutura profunda" dos fatos. 29 A própria licença artística constitui afastamento da legalidade fenomênica para melhor expressar a sua essência. Referindo-se à "fidelidade histórica", Lukacs lembrava: "No relativo a esta autêntica reprodução dos componentes reais da necessidade histórica, pouco importa, [...], que os detalhes individuais, que fatos singulares sejam ou não sejam historicamente justos." 30 O respeito à estrutura superficial dos fenômenos não é condição necessária nem suficiente de qualidade literária. O romance histórico alcança o pathos artístico apenas quando transfigura artisticamente os fatos, registrando suas determinações profundas. Se a "figuração" artística separa-se essencialmente do seu "modelo", quebra-se a tensão narrativa e rompe-se seu efeito "evocador", como já proposto. 31 A necessidade do romance histórico de superar as visões historiográficas superficiais e expressar a essencialidade fenomênica coloca graves questões epistemológicas. A construção do romance histórico dá-se sobretudo a partir do conhecimento historiográfico da época, em geral, produto da documentação e das interpretações das classes dominante do passado, tratadas sob a hegemonia das classes dominantes do presente. Ao contrário, o registro das vidas, dos sentimentos e das tragédias das etnias, dos povos e das classes destruídas, reprimidas, vencidas ou exploradas apresentam-se ao ficcionista, fugazmente, não raro, como incrustações quase imperceptíveis nos depoimentos das classes dominantes. São profundas as dificuldades do romancista de resgatar sentimentos e visões das classes e etnias que tiveram suas vozes silenciadas. O ficcionista que quiser recriar ficcionalmente a angústia de um paí, da encosta da serra gaúcha, no século 19, incapaz de compreender as razões e opor-se à invasão dos seus territórios por colonos alemães, deverá apoiar sua eventual empatia com o personagem em sólida informação etnográfica e antropológica. Mesmo assim, a reconstrução sofrerá o handicap de que as falas e reflexões desse protagonista deram-se em língua e contextos estranhos ao autor e ao leitor, em grande parte perdidos para os próprios especialistas contemporâneos nessas comunidades.

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. Cf. KOTHE, Flávio. A narrativa trivial. Brasília: EdUnB, 1994. pp. 13 et seq. . LUKACS, g. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 63. 31 . "Pero lo decisivo es que en esos casos el reflejo se confronta en seguida con la realidad misma, y el efecto se suspende instantáneamente en cuanto que la comparación muestra una discordancia entre el modelo y la refiguración." LUKACS, G. Astética : la peculariaridad de lo estetico. Barecelona: Grijalbo, 1965. II. p. 70. 7 30

Também a construção de personagens que animem trabalhadores escravizados, sobretudo africanos, exige conhecimento historiográfico e antropológico para que eles não materializem os preconceitos das elites sobre o trabalhador escravizado, como é comum e geral nas narrativas cinematográficas e televisivas. 32 Essas determinação envelhecem rapidamente muitos romances históricos, não raro apesar de um eventual amplo sucesso inicial. Como já referido, a obra ficcional incapaz de registrar a essência dos fatos históricos perde crescentemente caráter evocativo, à medida que avança o conhecimento sobre essas épocas e, portanto, a sensibilidade do público leitor, passando a constituir mero depoimento da realidade cultural da época em que foi produzida, e não da época a que se refere. Entretanto, o romance histórico que expressa, artisticamente, concepções de mundo e, portanto, preconceitos, das elites da época a que se refere, constitui uma expressão poderosa de visões objetivas do período abordado, ainda que alienada. Estabelece uma ligação, ainda que tênue, com o passado, ao afirmar e expor, através dos suas falas e silêncios, o que nega e esconde.

II. RS: História. Mito e Literatura Nesse início de novo milênio, para a imensa maioria dos sul-rio-grandenses, o passado foi tempo de terras sem fronteiras e gaúchos livres e altaneiros. A criação pastoril teria originado uma sui-generis sociedade onde patrões e peões labutavam, fraternalmente, lado a lado, nas lides campeiras. As origens sulinas seriam diversas das do resto do Brasil, onde teria dominado a desumana escravidão negra. Não foram ainda elucidados suficientemente os processos que permitiram que o mito da democracia pastoril sufocasse tão poderosamente a verdade histórica. Também no Sul, a história construiu-se através de lancinantes contradições étnicas e sociais. Comunidades nativas – charruas, minuanos, guaranis, gês – foram espoliadas de suas terras, massacradas, aculturadas, reduzidas à escravidão e ao trabalho semi-servil. O gaúcho pobre – em grande parte produto do amalgama das etnias subalternas – foi mantido à margem da posse da terra, não recebendo uma nesga sequer de terra, nem mesmo quando foram distribuídas entre os imigrantes europeus não-lusitanos. No mesmo sentido, por mais de duzentos anos, milhares de cativos africanos e afro-descendentes trabalharam, penosamente, no Sul, nas mais diversas atividades, entre elas, as pastoris. As visões risonhas sobre o passado rio-grandense foram difundidas por historiadores, ficcionistas, artistas plásticos; pelas Universidades, pelas escolas, pelos meios de comunicação. Hoje, o Movimento Tradicionalista Gaúcho é certamente o mais poderoso vetor da propagação da visão edênica e tranquilizadora das origens da civilização rio-grandense. Essa romantização da história regional não é mero resultado de uma conspiração consciente de intelectuais das classes dominantes com o objetivo de escamotear as contradições étnico-sociais do passado, para melhor domesticar as classes subalternizadas do presente. Não são apenas estórias construídas por imaginações fantasiosas a partir de elucubrações arbitrárias. Não é condição suficiente para a universalização das interpretações apologéticas do passado que sejam difundidas pelas classes dominantes do presente. As reconstruções gentis da 32

. Cf., por exemplo: MAESTRI,  Mário.  “Amistad:  os  heróis  que  Spielberg  esqueceu  ...”.    O  OLHO  DA  HISTÓRIA,   Revista de História Contemporânea, Mestrado de História da Universidade Federal da Bahia, V.v, n.5, (1998), pp. 153-63; "Carnavalização do quilombo". [Sobre o filme "Quilombo, de Cargos Diégues]. JORNAL DO MOINHOS DE VENTO. I, 1, agosto de 1984; Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Agosto de 1984.

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história sulina alcançam alto grau de consenso precisamente porque são produtos de uma manipulação e generalização de realidades históricas que fundem, em um discurso mítico, expectativas das classes populares, do presente, e visões do mundo das classes proprietárias, do passado. Estressadas pelas contradições classistas, as classes populares contemporâneas projetam, no passado, suas expectativas presentes, em geral inconscientes, de uma sociedade fraterna e desprovida de contradições. Manipulada pela classes dominantes, essa mitificação assume caráter negativo, ao negar a verdadeira essência do passado sulino, apresentado-o como mundo em que o lobo apascentava o cordeiro, em que o explorador fraternizava com o explorado. Os escravizadores sulinos jamais negaram que viviam do esforço dos seus cativos. Apenas pretendiam que tal situação era natural, inevitável e que, no Sul, os trabalhadores escravizados eram tratados melhor do que em qualquer outra parte do país, onde os cativos já conheciam, em geral, condições vivíveis de existência. Pretensões compartilhadas praticamente pelos escravistas de todas as regiões do Brasil. Como no resto do país, as visões patriarcais do escravismo sulino apoiavam-se na tendência à generalização, universalização e forte romantização das melhores condições de vida, de cativos empregados nas atividades domésticas e pastoris, em relação aos trabalhadores escravizados nas charqueadas, nas olarias, nas pedreiras, nas plantações, etc. Porém, a proposta de uma escravidão sulina mais humana era contradição que corroia, inexoravelmente, a retórica dos proprietários sobre a democracia pastoril sul-rio-grandense, que teve suas bases lançadas, salvo engano, durante e nos anos subseqüentes à Guerra Farroupilha, através da apropriação das narrativas semelhantes construídas sobre o pastoreio no Plata. Entretanto, benigna ou não, a escravidão negava essencialmente apresentação do mundo pastoril sulino edênico. Logo, essa contradição foi superada. Desde fins do século 19, influenciados pelo determinismo geográfico, racismo e eugenismo europeus, intelectuais brasileiros questionaram a possibilidade de desenvolvimento do Brasil, devido à conformação 'inferior' de sua população. A resposta da intelectualidade sulina a esse desafio foi paradoxal. Já em fins do século 19, inspirados nas “idéia  pseudocientífica  da  superioridade  racial”, historiadores republicanos rio-grandenses negaram a verdade histórica, desconhecendo a contribuição do trabalhador escravizado na história sulina – Francisco de Assis Brasil, etc. Desde o início do século seguinte, para a historiografia sul-rio-grandense de inspiração castilhista, a pretensa pureza da raça sulina garantiria um futuro radioso ao Estado, ao contrário do resto do Brasil, 'diminuído' pela herança cromossômica africana. Arthur Ferreira Filho, brilhante historiador rio-grandense de orientação positivista, em sua História geral do Rio Grande do Sul, apenas reconhece a escravidão no Sul quando aborda a  sua  abolição.  Então,  afirma  que  “o  Rio  Grande,  relativamente  a  outras  províncias,  possuía  um   número   reduzido   de   cativos”   e   que   o   “escravagismo   não   encontrava   ponto   de   apoio   no   temperamento  liberal  dos  gaúchos”.  33 A documentação histórica é clara sobre a grande importância da população escravizada no Rio Grande do Sul. Apesar de não ser aqui o momento para uma análise, mesmo superficial, dos dados demográficos dos séculos 18 e 19, é interessante destacar que, se desconhecermos o ano de 1872, até meados dos anos 1870, a população servil mantinha-se em expansão absoluta. [Cf. Tabela I]

TABELA 1 – População do RS – 1780 – 1887

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. FERREIRA FILHO, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul : 1503-1964. 2a. ed. Porto Alegre: Globo, 1965. P. 117. 9

Ano 1780 1803 1808 1814 1846 1858 1859

Escravos 5.102 ... ... 21.445 30.846 71.911 70.880

Total 17.923 36.721 +50.000 70.653 147.846 285.444 282.547

% 28,47 30,35 25,19 25,09

Ano 1860 1861 1862 1863 1872 1874 1883 1887

Escravos 76.109 77.588 75.721 77.419 67.748 98.450 62.138 8.430

Total 309.476 344.227 276.446 392.725 434.818 462.542 700.000 944.616

% 24,59 22,54 27,39 19,71 15,59 21,28 8,80 0,89

FONTE: WEIMER, Günter. O trabalho escravo no RS. Porto Alegre, UFRGS/SAGRA, 1991. p. 33.

A radical reconstrução de um passado sulino sem cativos viabilizou e potencializou as pretensões da inexistência de contradições sociais profundas nas fazendas pastoris, proposta que assentava raízes, como assinalado, na romantização do comportamento patriarcal dos fazendeiros sulinos, em relação aos seus cativos domésticos e, eventualmente, dedicados a atividades pastoris propriamente ditas – cativos campeiros. Sobretudo citadinos de classe média, frustrados por uma vida material e espiritual tacanha, foram seduzidos pelas visões míticas de um mundo pastoril onde patrões fraternizavam com os peões e o trabalho metamorfoseava-se em prazer. O passado sulino passou a ser visto – e vivido lúdica e mimeticamente nos salões do CTG – como espécie de Idade de Ouro, onde o pampa sem fronteiras – ilusão ótica da propriedade latifundiária – simbolizava um mundo de liberdade social e espiritual. Acreditamos que a Literatura, mais do que a historiografia, contribuiu profundamente para a consolidação dessas visões hegemônicas sobre a história sul-rio-grandense. Na produção ficcional sulina, a magnífica trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, escrita entre os anos 1949 e 1962, constitui o momento mais alto de nossa literatura. Direta ou indiretamente, essa verdadeira "saga do Rio Grande" desempenhou papel essencial na fixação do imaginário da população sul-rio-grandense e brasileira sobre o passado sulino. 34 Para escrever O tempo e o vento, Érico Veríssimo desenvolveu uma importante investigação histórica, baseando-se, entre outras fontes, nas publicações e conhecimentos historiográficos da época. Em Matéria e invenção : ensaios de literatura, Flávio Loureiro Chaves destaca a importância da consulta de relatos dos viajantes, na produção de O Continente – Nicolau Dreys, Arsène Isabelle, Auguste de Saint-Hilaire. 35 Registre-se essa produção literária era determinada pelo viés classista de seus autores, que comungavam amplamente com os preconceitos e com as visões apologéticas das classes dominantes sul-rio-grandenses. No processo de investigação de Érico Veríssimo, teve certamente papel essencial sua compreensão sobre o Rio Grande do Sul e sua história. Em suas memórias, Veríssimo relatou: "Durante os três anos em que vivi na casa de meu avô materno, observando-o [...] no ato de viver, de ser, mal sabia eu que estava fazendo com ele o meu 'aprendizado gaúcho' [...]." Numa outra observação, lembrou: "[...] ao produzir suas ficções, é natural que [o romancista] se ampare mais [...] [nas suas] vivências do que em suas leituras." 36 Destaque-se igualmente que seu avô materno expressava certamente as visões e modos de vida dos fazendeiros dos que as dos gaúchos, diversas e contraditórias, apesar de suas intersecções. A partir das fontes e dos estudos consultados e, sobretudo, de seus conhecimentos, visões, impressões, etc., conscientes e inconscientes, sobre o passado rio-grandense, Érico Veríssimo apresentou uma interpretação ficcional totalizante da história sulina, de suas origens 34

. VERÍSSIMO, Érico. O Continente. 13a. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. [O Tempo e o Vento]. I; ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. 2a. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 84. 35 . Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. Matéria e invenção : ensaios de literatura. Porto Alegre: EdUFRGS, 1994. p. 49. 36 . VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarinete : memórias. 1o. v. 10a. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 295, 300. 10

até 1945, dividida em três grandes partes – O continente [1949]; O retrato [1951] e O arquipélago [1962]. Regina Zilberman, competente crítica literária e historiadora da literatura, qualifica a trilogia de Veríssimo como "autêntico romance histórico" e define-a como relato da "ascensão" e "decadência" do conceito de "gaúcho", evidenciando sua importância cultural e ideológica, já que o conceito "gaúcho" transcende à formação pastorial sulina, passada e presente, representando, simbolicamente, toda a comunidade regional. 37 Pensado em pleno Estado Novo, quando vigia a repressão das tendências regionalistas estaduais, fortíssimas no Rio Grande do Sul, quando da hegemonia castilhista-borgista [18911930], Veríssimo começou a redigir O continente, em 1947, após o fim do regime ditatorial, ao qual acordara seu apoio, ao menos inicialmente. O próprio autor reputaria "a publicação da primeira parte de O tempo e o vento" como "o acontecimento mais importante" de sua "carreira de escritor". 38 O primeiro tomo de O continente aborda os tempos que vão da ocupação territorial lusobrasileiro à Revolta Farroupilha. Em suas memórias, Veríssimo assinalou que, na construção desse imponente painel, "cabia pois ao romancista descobrir como eram por dentro os homens da campanha do Rio Grande." 39 Ou seja, descrever e singularizar os personagens que via como responsáveis pela construção do Rio Grande do Sul. Certamente a abordagem ficcional do trabalhador escravizado, figura renegada pela historiografia positivista sul-rio-grandense, constitui fator aferidor da reprodução ou superação das ilusões fenomênicas, historiográficas e culturais, sobre a antiga formação social riograndense, imprescindível para uma figuração artística do passado sulino. No primeiro tomo de O continente, Veríssimo não seguiu a lição da historiografia positivista, ainda hegemônica na sua época, que, como vimos, negou a objetividade dos fatos, desconhecendo a importante e dolorosa participação do trabalhador escravizado no passado sulino. Fato que registra inegavelmente a grande sensibilidade do ficcionista. O autor de O Tempo e o Vento assinala que os açorianos sonhavam com terras, plantações, rebanhos e cativos e que para receber sesmarias, devia-se possuir escravos. Fala da importância do negro doméstico; das ricas fazendas e das plantações com seus negros; dos cativos que seguiam os amos na guerra; da compra de escravos por fazendeiros endinheirados. Refere-se à charqueada, ao contrabando de negros, à miscigenação e à discriminação raciais. Fala da desqualificação do trabalho pela escravidão.40 Veríssimo ultrapassa a historiografia coeva já que, então, os estudos sobre o trabalhador escravizado sul-rio-grandense reduziam-se praticamente aos desenvolvidos pelo historiador Dante de Laytano, impulsionado pelas investigações antropológicas e sociológicas desenvolvidas, nos anos 1930, sobretudo por Gilberto Freyre. 41 Porém, paradoxalmente, no exato momento em que reconhece a importância do cativo nos primórdios do Rio Grande do Sul, Veríssimo escamoteia, literariamente, essa mesma contribuição. A abordagem da gênese da civilização sul-rio-grandense do autor não possui 37

. ZIBERMAN, Regina. Roteiro de uma literatura singular. Porto Alegre: EdUFRGS, 1992. p. 76. . Cf. BORDINI, Mari da Glória. Criação literária em Érico Veríssimo. Porto Alegre: L&PM/EdPUC, 1995. p. 127; VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarinete : memórias. 1o. v. 10a. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 300. 39 Apud CHAVES, Flávio Loureiro. Matéria e invenção : ensaios de literatura. Porto Alegre: EdUFRGS, 1994. p. 53. 40 . VERÍSSIMO, Érico. O Continente. ob.cit. Pp. 117, 133, 134, 141, 147, 148, 150, 160, 222, 223, 262, 263, 268, 269, 272, 280, 285, 319 41 . Cf. LAYTANO, Dante. "Os africanos no dialeto gaúcho". Revista do IHGRS no. 62. Porto Alegre, 1936; "O negro e o espírito guerreiro". Anais do III Congresso de Estudos Afro-Brasileiros. Salvador-Bahia, 1937; "Como viu SaintHilaire o negro no RS". Anais do II Congresso de História e Geografia Sul-Riograndense. Vol.II. Porto Alegre, 1940; "Alguns aspectos da história do negro no RS. In: RS: Imagem da terra gaúcha. Porto Alegre: Globo, 1942; "O Negro no Rio Grande do Sul". Primeiro Seminário de Estudos Gaúhos. PUCRS: Porto Alegre, 1957; "Considerações sobre o negro riograndense". Anais do II Congresso Sul Riograndense de História e Geografia. Porto Alegre, s.n.t. 11 38

sequer um personagem negro, mesmo secundário, com rosto e nome, que dê corpo, anime e registre, ficcionalmente, a importância dos trabalhadores escravizados naqueles idos. E, como sabemos, sem personagens, não há narrativa ficcional. Fora raríssimas exceções, Veríssimo se refere aos trabalhadores escravizados sob a forma sumária e genérica  de  “escravos”   42, sem lhes traçar um perfil mínimo. Comumente, não se trata de indivíduos singulares descritos no plural, mas sim de cativos abstratos, referidos no geral: “Com  o  produto  da  venda  do  primeiro  trigo  colhido  poderia  comprar  mais  uma  junta  de   bois,  ferramentas  e  mais  escravos”.  43. O único sentimento humano que o narrador registra dos cativos negros é o medo e a covardia   diante   do   perigo,   vividos,   conjuntamente,   por   dois   “escravos”.   Esses   sentimentos   – antitéticos à natureza do gaúcho – são ressaltados pelo absoluto desprendimento e iniciativa de Ana Terra, diante do mesmo perigo – o assalto de bandidos castelhanos: “O  escravo  que  empunhava  também  arma  de  fogo,  estava  acocorado  no  chão,  perto  da   porta, e tremia tanto que Ana temeu que lá de fora pudessem ouvir-lhe bater os dentes; e pela sua cara, dum negro meio azulado, o suor escorria em grossas bagas. Enquanto isso, o escravo que estava desarmado, segurava a cabeça com ambas as mãos e chorava um choro solto e convulsivo.”  44 Os cativos são descritos, apenas uma vez, quando o narrador refere-se à compra de trabalhadores escravizados por Maneco Terra. Porém, mesmo nessa ocasião, não temos construção de perfis acabados, como os delineados para os açorianos, luso-brasileiros, espanhóis, alemães e missioneiros. E, nesse caso, o narrador onisciente intruso45 reproduz velho preconceito escravista, ao deter-se na qualidade da canela que, para os amos, era elemento anatômico que expressava a fortaleza/debilidade e a vocação/antagonismo dos cativos ao trabalho: “Dois  deles  eram  pretos   de canela fina [sic], peito largo e braços musculosos; o outro era retaco, de pernas curtas e um jeito  de  bugio  [sic]”.46 Nas páginas seguintes, os três cativos – não sabemos se eram crioulos, ladinos, africanos, já que não possuem biografias – trabalham e morrem, em forma indistinta, como se fossem parte do gado, sem receberem nome e rosto. “Em  86,  quando  Pedrinho  se  aproximava   dos  oito  anos,  uma  peste  atacou  o  gado  e  um  raio  matou  um  dos  escravos”.   47 Na abordagem da fundação do Rio Grande do Sul luso-brasileiro, apenas duas africanas são nomeadas, en passant, para, a seguir, sumirem, sem deixar traços no trama – a  “negra  velha  Mãe  d’Angola”  e   “a  famosa  Joana  da  Guiné”.48 Alguns personagens mudos, de origens africanas, surgem e desaparecem, aqui e ali, sem se materializarem, não raro com forte carga negativa. Quando o padre Lara manda vir a “mulata   Teresa”, entendida em partos, o “vigário” sente-lhe “o  hálito  recendente  de  cachaça”. A visão do negro cachaceiro é arraigada na cultura dominante sulina e brasileira. 49 No Brasil e na América escravistas, durante as infindáveis jornadas de trabalho, os cativos eram animados por lambadas de chicote e por canecadas de aguardente, hábito que favorecia o alcoolismo. Essa era uma tradição difundida nas charqueadas sul-rio-grandenses.

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.VERÍSSIMO, E. Ob.cit. 62, 92, 94, 97, 114, 115,117, 118, 119, 120, 121, 123, 126, 133, 134, 141, 145, 146,147, 148, 150, 160, 211, 220, 222, 223, 224, 225, 232, 262, 263, 268, 269, 272, 285, 313,319. 43 . Idem. 117. 44 . Idem. 121. 45 . Cf. LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 7a. ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 27. 46 . VERÍSSIMO, Érico. O Continente. ob.cit. p.112. 47 . Idem. 114. 48 . Idem. 135, 237, 49 . Idem. 301. 12

No  romance,  a  cor  negra  tem  uma  carga  semântica  fortemente  negativa:  “nesse  período   negro  de  minha  vida”;;   “passei  então  as  horas  mais  negras  de   minha  vida”;;  “Alonzo  viu  então   um   negro   desânimo   tomar   conta   de   sua   gente”;;   “uma   fumaça   negra   e   enchendo   o   ar   de um cheiro  enjoativo”;;  “a  coisa  estava  muito  preta”;;  “o  céu  estava  negro  como  carvão”;;    “havia  um   negror  de  confusão”;;  “a  situação  era  negra”.  50 Érico Veríssimo não nega, mas supera, em um sentido hegeliano, a lição da historiografia comteana. Por um lado, restringe a história da gênese da população do Rio Grande do Sul à descrição ficcional das origens das suas classes dominantes, ao centrar o relato em personagens socialmente eminentes ou ascendentes. Por outro, soluciona a contradição entre a existência histórica efetiva de grande massa de trabalhadores escravizados no passado e a proposta da historiografia tradicional de sua inexistência, ao referir-se a eles, sistematicamente, sem jamais animá-los ficcionalmente. Sem cor, rosto, carnes, vida, verdadeiras abstrações sociológicas, citados categorialmente, ao modo de um tratado das ciências sociais, perdido nos interstícios do discurso ficcional, o cativo torna-se personagem imaterial, engolido pelo animado protagonismo dos personagens símbolos das etnias tidas como historicamente excelentes e fundadoras da sociedade sulina – o jesuíta espanhol; o mestiço missioneiro; o tropeiro paulista; o veterano sulino; a imigrante alemão, etc. O leitor/receptor estabelece movimentos de empatia com os personagens ficcionais, identifica-se com ele, vive suas experiências, emoções e desaventuras. Durante a escravidão, Castro Alves e Bernardo Guimarães, respectivamente, em 1865 e 1875, com objetivos abolicionistas, desnaturalizaram seus personagens Lucas, Maria e Isaura, para permitir uma forte empatia entre esses protagonistas e leitores ainda imbuídos de preconceitos raciais. 51 Em 1932, José Lins do Rego publicou seu romance de estréia, Menino de engenho, seguido por Doidinho, Bangüe, O moleque Ricardo e Usina. Baseados em suas reminiscências de filho e neto de senhor-de-engenho, traçou um grandioso painel sobre os estertores finais da civilização do bangüe, na pós-Abolição. A morte e o medo à morte constituem temas centrais desses romances e verdadeiras alegorias da desesperança de uma classe social senhorial em seus estertores. Apesar de constituírem verdadeiro testamento literário do mundo dos senhores-de-engenho em agonia, o "Ciclo da Cana-de-Açúcar" introduz o leitor em um espaço ficcional que expressa, em forma poderosa, lingüística, psicológica, social e historicamente, o período abordado. 52 Mesmo que a louvação de Zé Paulinho, o rústico senhor-de-engenho, seja uma constante e momento alto do "Ciclo", alguns dos seus mais excelentes personagens são os moleques, as negras da casa, as velhas africanas, os moradores, os homens do eito, sujeitos históricos apresentados – sempre desde a ótica senhorial – na plenitude das contradições que os animaram no passado. Não satisfeito com isso, o autor dedicou um romance inteiro – o primeiro, na terceira pessoal – ao Moleque Ricardo, o melhor rebento da bagaceira, expressando, assim, artisticamente, no mundo da ficção, a legalidade do mundo real a que se referia. Lukacs lembrava que a "grandeza de Balzac" residia "precisamente na autocrítica" radical de seus preconceitos através da "descrição inexoravelmente exata da realidade". 53 Em O continente, encontram-se apenas referências categoriais a cativos. Não temos personagens que animem e expressem a categoria social dos trabalhadores escravizados, com os 50

. Cf. por exemplo: VERÍSSIMO, Érico. O Continente. ob.cit pp. 25, 26, 56, 88, 278, 286, 287, 289. . Cf. ALVES, Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997; GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. 16a. ed. São Paulo: Ática, 1990. 52 . Cf. MAESTRI, Mário. "50 anos de Bangüê". JORNAL DO MOINHOS DE VENTO, Porto Alegre, novembro de 1984, no. 7. 53 . LUKÁCS, Georg. Balzac et re réalisme français. Paris: La Découverte, 1999. p. 20. 13 51

quais os leitores possam identificar-se ou estabelecer movimento de empatia, e, assim, reviver, neles, experiências sociais e humanas próprias a esses segmentos sociais. Inevitavelmente, essa ausência determina que o leitor nem mesmo registre a existência do trabalhador escravizado no passado rio-grandense. O fato de que o trabalhador escravizado contracene com os personagens cheios – homens livres – como uma mera categoria, constrói um cenário ficcional onde as relações e trocas sociais entre os primeiros e os segundos assumem sentido marginal e não determinante. Rompendo-se com a essencialidade do fenômeno histórico, transfigurada em literatura ficcional, impede-se que o leitor reviva as tensões e as singularidades do período em questão. Essas referências acrescentam pouco à apresentação da época discutida, já que na sua representação artística abstraem uma característica essencial da época – o caráter escravista. Tal fato passa despercebido ao leitor contemporâneo pois essa determinação social do século 18 e 19 foi superada, em 1888, com a Abolição, e negada pela historiografia regional, apesar das importantes heranças e seqüelas que legou ao presente. Tal lapso constitui uma clara modernização do passado. Essa incapacidade de compreender a história como processo em contínua e essencial metamorfose, impede, nesse caso, que se registre o que era diverso e específico, em relação aos nossos dias. Impede que essa leitura ficcional das origens da sociedade sulina contribua para o entendimento de como e por que nos tornamos o que somos hoje. A escravidão foi a principal contradição conformadora das sociedade colonial e imperial brasileiras. No primeiro tomo do romance, ela é enfrentada, apenas uma vez, em forma direta, quando do longo diálogo entre Rodrigo e o padre Lara. Paradoxalmente, a fala anti-escravista e distributiva do capitão Rodrigo Cambará, que torna seu perfil – e do gaúcho médio que representa –, ainda mais simpático, constitui também modernização das idéias e dos sentimentos da época: 54 "– – – – – –

E depois? Dividia essas grandes sesmarias de homens como o Cel. Amaral. Dividia? Como? Pra quê? Dividia e dava um pedaço pra cada peão, pra cada índio, para cada negro. Não vá me dizer que ia libertar os escravos ... E por que não? Acabava coma escravatura imediatamente."

–"Por que é que vosmecê se mostra tão do lado dos negros? Por quê? É porque vosmecê no fundo é um homem de bem. [...]. – Nada disso, padre! sou contra a escravatura só por uma coisa . É que não gosto de ver homem rebaixado por homem." Para o leitor contemporâneo intelectualmente não minorado por preconceitos racistas, a compreensão da identidade essencial entre o homem livre branco e o trabalhador escravizado negro é truísmo e fato comprovado pelas ciências histórica, sociológica e biológica. Porém, na primeira metade do século 19, sobretudo no Brasil, essa concepção não era nem essencial, nem dominante. Nesse diálogo que deveria registrar sentimentos do passado, o narrador revela o que é sabido pelos leitores, hoje, e encobre o que era singular e, em geral, desconhecido em nossos dias, sobre aqueles tempos. Impede que os leitores vivam a fortaleza, articulação e coerência das concepções sobre a superioridade racial e intelectual do “homem branco”. Há uma clara 54

. VERÍSSIMO, Érico. O Continente. Ob.cit.p. 259 -264. 14

modernização psicológica e ideológica do personagem, que rompe com a legalidade histórica, ao fazê-lo ultrapassar o nível de consciência possível da época. No mesmo confronto de opiniões entre o capitão Rodrigo e o clérigo, ambos convergem e concordam sobre a melhor sorte e o bom tratamento do trabalhador escravizado no Rio Grande do Sul, um outro grande mito essencial do passado sulino, desmascarado pela atual historiografia e pela violência permanente contra a população afro-descendente: “ Os escravos nesta província são muito mais bem tratados que em qualquer outra parte do Brasil! Eu queria que vosmecê visse como os senhores de engenho tratam os negros lá no Norte. Eu  sei,  mas  vosmecê  não  respondeu  à  minha  pergunta  ...”.55 Como vimos, essa proposição apologética dos escravistas sulinos sobre a sociedade regional, retomada, no século 20, pelas ciências sociais, registra apenas o tratamento patriarcal de alguns cativos domésticos e urbanos mais próximos aos amos e escamoteia a violência estrutural e sistêmica com que a massa negra trabalhadora escravizada foi tratada também no sul do Brasil. 56 Através do padre Lara, o narrador defende, também, explicitamente, o mito da fraternidade pastoril, reproduzindo, até no estilo, o discurso do historiador apologético: “O   trabalho das estâncias como que nivelava o patrão ao peão e ao escravo. Muitas vezes o estancieiro saía a campear ombro a ombro com aqueles numa faina igualizadora que oferecia certos perigos, pois criava o risco de negros e caboclos quererem gozar as mesmas prerrogativas que  seus  senhores.” 57 Apenas em forma diversa, faz-se a mesma desqualificação dos habitantes nativos dos atuais territórios sulinos. Se a sociedade missioneira é vista com certa simpatia, sua discrição está prenhe de insinuações, recuperadas pela historiografia tradicional entre as visões ideológicas das classes diminantes luso-brasileiras e espanholas – o sonho do império teocrático jesuítico; a falta de criatividade guarani, a exploração do trabalho nativo pelos jesuítas; etc. 58 Pedro Missioneiro, herói-síntese do mundo guarani-jesuítico, exemplarmente filho da violência do colonizador luso-brasileiro contra uma nativa, que se esvai em sangue no momento de seu nascimento, apesar de seu caráter sedutor, naufraga no misticismo e no fatalismo, naturezas humanas tradicionalmente imputadas aos guaranis missioneiros pela historiografia tradicional. 59 Ao contrário, as comunidades nativas – consideradas comumente como verdadeiros empecilhos à civilização – são apresentadas, aqui e lá, apenas através da referência a seus membros, citados em forma genérica e despersonalizada, exatamente do mesmo modos que se trata os cativos negros – índios, bugres, etc. 60 O primeiro tomo de O tempo e o vento não registra, sequer fugazmente, a “excepcional   grandeza”  das  “ruínas” das formações sociais pré-classistas, sobre as quais também se levantou a civilização sulina. Aqui também se assume, artisticamente, o mito da colonização luso55

. Id.ib. p. 263. . Cf. MAESTRI, M. O escravo gaúcho : resistência e trabalho. 2a. ed. Porto Alegre: EdUFRGS, 1993; ___________. Pampa  negro:  quilombos  no  Rio  Grande  do  Sul”.  REIS,  J.J.  &  GOMES,  Flávio  dos  Santos.   Liberdade por um fio : história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 291-331; LIMA, Solimar Oliveira. Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes judiciárias no RS. 1818-1833. Porto Alegre: IEL/EdPUC, 1998; 57 . VERÍSSIMO, Érico. O Continente. Ob.cit. p. 211. 58 . Idem. P. 39, 40, 44 59 . Idem. P. 108. 60 . Idem. P. 23 et seq.; 78, 110, 139, 140, 156, et passim. 15 56

brasileira de um espaço sulino geográfico virgem, já que pretensamente desprovido de habitantes. 61 E, em verdade, no Rio Grande do Sul, jamais houve fronteiras abertas e terras vastíssimas. Houve apenas a expropriação, pela força, de terras já ocupadas pelas populações nativas. Em alguns momentos, há gritante paralelismo, mesmo formal, entre a apresentação literária, do autor, e a da historiográfica tradicional, desses processos. Por exemplo, o narrador informa: “Werner   parou   de   escrever   porque   estava   na   hora   de   voltar   para   a   lavoura.   Nunca   chegou a terminar a carta, pois naquele mesmo dia os índios atacaram a picada e mataram onze colonos”. Através de Arthur Ferreira Filho, sabemos: “Em  15  de  maio  do  mesmo  ano  o  ataque   [dos índios] se repetiu com redobrada violência, sendo mortas onze pessoas, entre homens, mulheres  e  três  feridos.”62 O grande herói do primeiro tomo de O Tempo e o Vento é o homem livre luso-brasileiro, em geral, e os membros da elite pastoril sulina, em especial. E a honra e a coragem, destituídas de conteúdos histórico-sociais, são os grandes traços identificadores dessa categoria social. O capitão Rodrigo, gaúcho remediado, mas sem terras, é macho, mas o coronel Ricardo, senhor de imensas  terras,  também  o  é.  Os  dois  morrem  “peleando”, como verdadeiros machos. Segundo o narrador, praticamente “todos   os   homens   do   interior   e   da   fronteira”   “brigava[m]   por   gosto”   nas guerras sul-rio-grandenses, comprovando a macheza coletiva do homem sulino, visão corrente ainda hoje. Flávio Loureiro Chaves chamou atenção para a importância, dada pelo autor, à macheza do homem rio-grandense, e sua função como forma de folclorização e enobrecimento das raízes autoritárias do "patriciado rural". 63 Em suas memórias, ao referir-se à gênese do personagem capitão Rodrigo Cambará, Érico Veríssimo anotou: "A palavra gaúcho está associada em nosso espírito a termos como macho, bravo, violento, mulherengo, aventureiro, nobre, generoso ... Talvez eu não esteja muito longe da verdade se disser que, antes de ter corpo e nome, o Capitão Rodrigo era uma idéia no meu cérebro – de certo modo o símbolo duma rude estirpe e duma era áspera." 64 Loureiro Chaves lembra que, no romance, mesmo os personagens portadores de uma "visão de mundo" alicerçada no "pacifismo, na lealdade e na sabedoria" são portadores de "igual bravura". 65 Definitivamente, nesse primeiro tomo, fora os cativos, totalmente, e os açorianos, um pouco, todos os rio-grandenses, fazendeiros e gaúchos, são pra lá de machos. Para não falar nas mulheres rio-grandenses que, essas sim, são machérrimas! 66 O duelo entre Rodrigo Cambará e Bento Amaral não possui transcendência, além do fato do filho da oligarquia comportar-se em forma indigna, segundo os padrões formais de sua classe social. Mas, essa falta de coragem não é atributo que expresse essência desse segmento social pois, como vimos, seu pai era homem de coragem, de respeito e pra lá de macho. A previsível vitória do capitão Rodrigo sobre o vilão e sua esperada conquista da heroína tornam-no herói romântico. Um herói que luta contra os empecilhos do destino, pela sua amada. Entretanto, essa luta não reflete essência ou confronto social minimamente profundo, ao modo de I promessi sposi ou de Romeu e Julieta. A gênese guerreira é outra antiga visão mítica da sociedade sulina retomada pelo romance em questão. Nesse primeiro tomo, que se abre com cena da Revolução Federalista, a guerra torna-se quase um jogo, no qual os rio-grandenses envolvem-se com singular prazer. Rodrigo, membro de uma família na qual “o  pai  e  o  irmão  morreram  na  guerra”  e  “muitos  tios   61

. Cf. LUKACS, Georges. Le roman historique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1965. P. 5, 9 [Traduzimos.] . VERÍSSIMO, Érico. O Continente. Ob.cit. p. 156; FERREIRA FILHO, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul : 1503-1964. 2a. ed. Porto Alegre: Globo, 1965. P. 70. 63 . CHAVES, Flávio L. Matéria e invenção. Ob.cit. 57. 64 . VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarinete : memórias. 1o. v. 10a. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 296. 65 . CHAVES, Flávio L. Matéria e invenção. Ob.cit. 57. 66 . VERÍSSIMO, Érico. Ob.cit. p. 221, 306. 16 62

morreram   em   duelo”, parte para a guerra farroupilha “louco   de   contente”,   parecendo   “que   ia   pra  uma  festa”. O capitão é claro sobre as práticas bélicas: “A  gente  passa  trabalho  na  guerra,   mas se diverte muito.” 67 Essa visão mítica e romântica contrapõe-se com a verdade histórica. A incorporação forçada de trabalhadores escravizados às tropas rebeldes deveu-se precisamente – como ensina Spencer Leitman, Moacyr Flores e outros pesquisadores do tema – à resistência do fazendeiro e do homem livre com algumas posses em se alistar. O mesmo ocorreu na guerra contra o Paraguai. O registro sumário de arrolamentos forçados de membros subalternos nas tropas em luta não mitiga a insistente apresentação do sentimento bélico sul-rio-grandense. 68 Também a visão da guerra de 1835, como momento heróico regional, é assumida, acriticamente, na voz da velha Picucha Terra Fagundes, que perdeu sete filhos nos combates! “Pois  foi  uma  guerra  brava,  que  judiou  com  o  Continente.  Mas  dela  saímos  limpos,  passamos   todas  as  provas,  honramos  o  nosso  povo.” Esse resgate não se detém nem mesmo no elogio e recuperação do antigo inimigo, processo desenvolvido pela ideologia das classes dominantes pastoris, após a adesão ao centralismo imperial, subseqüente ao conflito: “Mas  cá  pra  nós  vou   lhe dizer, do lado dos caramurus também havia muita gente boa, que todos eram do mesmo sangue.”  69 Esse primeiro tomo abre um espaço quase nulo ao peão pobre. Fala-se da miséria dos Carés da vida, mas eles jamais assumem status de protagonistas.70 Ao referir-se aos cenários urbanos históricos descritos por Érico Veríssimo, Flávio Loureiro Chaves lembra que a ele interessava "sobretudo o material humano aí presente, em parte produto da antiga linhagem colonial de onde provêm os senhores rurais e, de outra parte, resultado das correntes migratórias que assentaram na Província a partir do século 19."71 Entre suas preocupações não se encontra a gênese das classes trabalhadoras rio-grandenses. Sem jamais captar as contradições mais profundas da sociedade sulina em formação, Veríssimo garante a perenidade de sua obra ao expressar, em páginas memoráveis sobre o passado sul-rio-grandense, a pobreza e a rusticidade das relações inter-humanas, sobretudo familiares, geradas pela rudimentar sociedade pastoril e escravista sulina em formação. O minucioso registro da submissão da mulher pelo pai, pelo irmão e pelo marido na sociedade pastoril abre uma perspectiva que, se não desvela, ao menos ilumina as contradições e as violências que permearam a sociedade narrada. O mesmo ocorre com a sensível apresentação da dificuldade de relacionamento afetivo entre os indivíduos, mesmo no interior da família, no contexto da rústica sociedade de então.

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. Idem. 293; 304. . VERÍSSIMO, Érico. O Continente. Ob.cit. 295. 69 . Idem. p. 313. 70 . Idem. p. 154. 71 . CHAVES, Flário. Matéria e invenção. Ob.cit. 49. 68

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