O TEOREMA DE ANTÓNIO TELMO

May 28, 2017 | Autor: Ruy Ventura | Categoria: Philosophy, Portuguese Philosophy
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O TEOREMA DE ANTÓNIO TELMO

“Os sábios são aquelas divinas inspirações que põem ordem nos pensamentos, ponderam as palavras, abrilhantam as obras, compõem a vida e tudo dispõem rectamente. Quem caminha juntamente com estes sábios torna-se sábio. […].” Santo António de Lisboa Sermão da festa do protomártir S. Estêvão

1. Conta António Telmo em Filosofia e Kabbalah que Álvaro Ribeiro ensinava os seus discípulos “a converter os poemas e os filosofemas, sempre que possível, em teoremas”, explicando-lhes que tal deveria traduzir-se “numa figura geométrica visível, porque o desenho, se viesse a ser traçado segundo as regras da arquitectura, nos revelaria o desígnio do poeta ou do filósofo” [FK1, 174]. Isto dizendo, indicava o filósofo d’ A Razão Animada pelo menos duas tríades: a primeira estabelecendo uma hierarquia de géneros (poema, filosofema e teorema) e a segunda aclarando a gradação do percurso hermenêutico (desenho, desígnio e arquitectura). Se estivermos atentos, repararemos que a segunda é o desenvolvimento do vértice superior da primeira, ou seja, do teorema – “figura geométrica visível” –, desenho instrumental que leva à revelação do “desígnio” do autor do texto poético ou filosófico, por obediência às “regras da arquitectura”. Tratar-se-á não só do projecto, propósito ou intenção do ser escrevente, mas também da vontade de um autor superno, legislador dessas “regras”, ou pelo menos do seu nome ou designação. A “figura geométrica visível” deve assim ser entendida pela expressão inversa, sem a qual esta não existiria, pelo seu reverso, oculto, incluso ou latente no texto analisado. Se há manifestação de uma figura, do aspecto exterior de um corpo ou de uma sua representação, é porque além do representante está o representado. Se é necessária a geometria, terrestre, é porque esconde a medida do empíreo ou do mundo inferior. Se algo se torna, assim, visível, é porque estava invisível. O verbo que a tudo preside é revelar, vocábulo dúplice que mostra e esconde no seu prefixo. E as “regras da arquitectura” assim se evidenciam porque obedecem ao arkhé, ao princípio, ao segredo e à potência, emanados daquele a que a tradição maçónica – de que Telmo e Ribeiro se reivindicavam – chama Supremo Arquitecto do Universo, ou seja, Deus, o Théos incluso no teorema e também na theoria de que aquele é expressão. A acção hermenêutica sobre um texto poético ou filosófico deve assim visar a sua revelação, sendo ele a expressão de algo de divino, de que o filósofo ou o poeta é agente, inspirado por intermédio da imaginação. Em rigor, o que Álvaro Ribeiro propunha e António Telmo propaga era algo de muito sério e perturbante, nomeadamente para aqueles que se habituaram a surfar nas águas do relativismo estético e ético: a poesia e a filosofia só detêm veracidade se permitirem a theoria, que é muito mais do que uma teologia. Se, para Platão, a theoria era a visão da essência, o platonismo tardio entendeu-a como ascensão da alma que deseja tornar-se semelhante a Deus (homoiosis), requerendo, na opinião de Boécio, a sua participação no Espírito Divino mediante um pensamento puro (participatio) e tendo como consequência, segundo Cassiano, uma luta intelectual em recolhimento, em quietude e contemplação (contemplatio). Trata-se de um caminho de esforço mental e de purificação da parte animada do ser, que se encontra presa no corpo Os livros de António Telmo, bem como os dicionários, são citados através de uma sigla, seguida do número da página. Essas siglas estão indicadas na bibliografia. Na citação dos textos restantes, segue-se o uso habitual. 1

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(cf. Lüdemann in DM, 829). Tal actividade – dirigida ao nous – consiste numa perpétua descoberta, conduzindo da potência ao acto, segundo Aristóteles (cf. Santiago, 2013: 152). António Telmo, ao longo de 58 anos de produção escrita (1952 – 2010), pôs em letra de forma as três modalidades (poema, filosofema e teorema), sendo sobretudo assinalável a sua actividade hermenêutica, na qual praticou os ensinamentos daquele a quem devia “ter podido escrever quanto escrev[eu]” [FK, 7], mesmo quando tal não é manifesto. Tinha consciência de que “a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela” [FK, 8] e por isso se expressou nos mais diversos géneros literários. No teorema procurou a theoria, submetendo-se sempre às “regras da arquitectura”. Não sendo “paleógrafo” nem “biógrafo”, podemos incluir assim o autor de Congeminações de um Neopitagórico na conta dos “arqueólogos”, definidos assim pelo seu mestre: “[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque esse é o seu processo de realizar obra de filosofia. Na meditação dos princípios aristotélicos o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura. […]” (Ribeiro, 1953: 44) Se António Telmo aplicou às obras que analisou os princípios metodológicos expressos por Álvaro Ribeiro, creio que construiu a sua com as mesmas regras de ocultação ou velatura, embora procedendo inversamente. Escrevendo ensaios, crónicas, diálogos, peças de teatro, contos, poemas ou aforismos, submeteu-os na maior parte, se não na totalidade, a uma disciplina arcana, jogando com o leitor e exigindo-lhe um esforço adicional que o incita a passar do nível literal de entendimento aos restantes definidos por Dante, no seguimento da antiga tradição judaico-cristã. Cabalista como era, sabia que a kabbalah medieval considerava que o Éden é, por excelência, o “lugar da leitura”, ao qual se chega subindo quatro degraus. Já Orígenes e São Jerónimo, alguns séculos antes, haviam proposto três degraus que levariam a um correcto entendimento das Escrituras: um primeiro, histórico ou literal; um segundo, tropológico ou moral; e um terceiro, místico ou alegórico. A boa tradição da kabbalah foi radicar-se, contudo, em dois outros autores cristãos, Cassiano e Santo Agostinho, que vislumbraram a perfeição hermenêutica em quatro etapas: na primeira domina a letra, oferecendo um sentido histórico, ao ensinar os acontecimentos do passado (littera gesta docet); na segunda, salienta-se a alegoria, ao desvelar o conteúdo da crença (quid credas allegoria); na terceira, exibe-se o conteúdo tropológico, que apresenta o sentido moral dos textos, iluminando o modo como convém agir (moralis quid agas); no cume da escada, temos o sentido anagógico ou escatológico, que esclarece o objecto da nossa esperança (quod tendas anagogia) (cf. Mendonça, 2013: 255 – 257). Nos alvores do Renascimento, Dante Alighieri tomou como sua toda esta tradição, definindo: “[…] as escrituras [podem] compreender[-se] e devem explicar[-se] mormente por quatro sentidos. Um se diz literal, e é aquele que não vai além da letra das palavras fictícias, tal como são as fábulas dos poetas. Outro, alegórico, e é aquele que se esconde sob o manto destas fábulas, constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira […]. § O terceiro sentido chama-se moral, e é aquele que os leitores devem atentamente andar buscando nas escrituras, para sua utilidade e dos seus discentes […]. § O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, super sentido; ocorre quando espiritualmente se expõe uma escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas significadas diz das coisas supernas da glória eterna […]” (Alighieri, 1992: 61 e 62). Telmo praticou este método como legente-hermeneuta. Escreveu desafiando os seus leitores para o exercício dos mesmos procedimentos, como se desejasse a todos a chegada ao Paraíso (pardèsh). Como teorizador, conheceu e expressou sempre o valor da humildade, quantas vezes através da auto-ironia, nos diálogos em que se foi vendo ao espelho. Num deles, uma das figuras chega a afirmar que “os seus livros são a expressão de um profano que se pôs a falar do que só por ouvir dizer conhecia” [CNP, 76]. Afinal, abordamos alguém que se definiu como “um pensador errante, sem casa própria”, reivindicando o direito a errar, defendido por Fernando Pessoa e por São Karol Wojtila (que ele cita) [FK, 10], ou seja, ao 2

engano e à errância, ou não se apresentasse ele como um peregrinus [cf. DLP, 484] e também, deduzo, como um filósofo viajante ou um cabalista nómada. Percebendo quanto há de indeterminação na interpretação de qualquer texto que se preste a uma tradução teorética, António Telmo surge a defender um método associativo, que não entra em colisão com os quatro sentidos de um texto da antiga tradição judaicocristã. Se a sua meta é, como se viu, a revelação da vontade superna num teorema, tem consciência da incerteza que domina as relações com o sagrado e com o divino. Constata assim ser esse o melhor meio hermenêutico, quando se confronta, por exemplo, com uma obra de arte com a altitude da Mater Omnia, de Gregório Lopes, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra: “Há um processo de interpretação por associações significativas de imagens e ideias, falsamente tomado por ‘simbólico’, que podemos aplicar ao estudo do painel […]. Não se trata de pensamento simbólico porque as conclusões a que se chega não contêm um carácter de evidência ou de certeza. […] Não há certeza na interpretação mas apenas uma conjectura.” [S, 41] Esta via reveste-se de grande contemporaneidade. Se, por um lado, aplicada aos escritos de Telmo, reduz à sua verdadeira dimensão todas as leituras que se têm apresentado como verdades ou certezas, não escondendo alguma jactância (ao recusarem o artigo indefinido que Pedro Martins apôs humildemente no título de um livro seu (cf. Martins, 2015)), por outro vem recordar-nos o que há de melhor na Filosofia Portuguesa, que, sem complexos de inferioridade ou nacionalismos serôdios, pode ombrear com as melhores conclusões de outras linhas da nossa cultura e da cultura extralusitana. António Telmo aplicou aos seus objectos de análise o método defendido, em ensino acroamático, por Álvaro Ribeiro. Claro está que não foi, como o correspondente de José Régio, um filósofo hierático. Sem deixar de ser sagrada, a sua via foi contudo outra, talvez mais lúdica, na medida em que entendia o jogo como algo de muito sério (como se pode ler em textos como “O Best” ou “A Dama de Oiros” [FK, 28 – 35]), envolvendo um risco e um perigo que vale a pena enfrentar com coragem: “[…] bem pesados os prós e os contras, se todos estamos no grande jogo e todos vivemos alucinados pela prestigiosa irrealidade do mundo sensível, não há nada como arriscar, antes que a rotina nos torne definitivamente brutos” [FK, 31]. Parece-me assim ser a hora de submetermos os seus textos ao mesmo processo, simultaneamente associativo e arqueológico. Para descobrir o desígnio de António Telmo é, pelos vistos, importante desenhar uma figura geométrica visível onde ele se manifeste. Um bom ponto de partida será sempre Filosofia e Kabbalah. Quem leia este livro pelo menos três vezes, como aconselhava e fazia o filósofo de Uma Coisa que Pensa, conhecendo já algo da obra restante do escritor de Almeida e Estremoz, perceberá que esse volume, editado pela primeira vez em 1989, aos 62 anos de idade, é não só o eixo de toda a sua filosofia, como também o seu cume e a sua súmula retrospectiva e prospectiva. Se alguém ler outros títulos de Telmo sem conhecer este que menciono, ficará com uma visão fragmentária e desfocada de quanto pensava. Pelo contrário, se o ler, sem se aproximar de outros, beneficiará da recepção da essência ramificada do seu pensamento, no núcleo, nos temas e, até, nos géneros pelos quais se espraiou a sua escritura. Essa ideia de totalidade parece ter presidido, aliás, à organização do livro. Se tivermos em conta que o “Prolóquio” é continuado em “Caçando com cão”, teremos um volume constituído por vinte e dois textos que abarcam todos os temas fundamentais da filosofia de Telmo. Não por acaso, o vinte e dois simboliza a manifestação do ser na diversidade, um ciclo completo e a conclusão da obra do Criador, sendo o número do Universo; por isso mesmo, são vinte e duas as letras do alfabeto hebraico, vinte e dois os capítulos do Apocalipse e, até, vinte e dois os arcanos maiores do tarot [cf. DS, 1019]. Se juntarmos porém os dois textos supracitados, dando-lhes um carácter prefacial, ficaremos apenas com vinte e um capítulos; assim se verá sublinhada a perfeição de Filosofia e Kabbalah, centrada num objecto transcendente (Théos ou nous), sendo vinte e um os 3

atributos da Sabedoria divina (Sb 7, 21) [cf. DS, 1018 – 1019]. Este raciocínio é confirmado pelo tempo que medeia entre as únicas duas datas inscritas no livro (20/6/1972 e 20/6/1980), precisamente oito anos. À perfeição e à totalidade se vê assim associado o algarismo do equilíbrio cósmico, da mediação entre o Céu e a Terra (entre o círculo e o quadrado), da justa completude e, ainda, da transfiguração, da eternidade e da beatitude [cf. DS, 511 – 512].

2. Na edição de Dezembro de 2011 dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que homenageia o filósofo pouco mais de um ano depois da sua morte, foi publicada uma fotografia de infância do escritor, à qual Telmo conferia a maior importância. É ele mesmo quem a descreve: “Alter do Chão. § Aos seis anos. § No quintal da casa de uma irmã de meu Pai. § […] Estou sentado num carrinho a pedais. O extraordinário é que, na parede branca de cal, por detrás de mim, se vê a figura de um rectângulo […]. § Tudo quanto escrevi, meus livros, emerge daqui. […]” [LC, 149]. Num texto intitulado “Autobiografia e Sobrenatural”, essa memória é vertida noutras palavras: “[…] Brincava sozinho no quintal de paredes caiadas. Nestas desenhava com o suco verde de umas ervas sempre a mesma figura geométrica: § […] § Estou sentado num carro a pedais, vendo-se bem nítido na parede este rectângulo. Ele é a expressão do arquétipo que orienta o movimento do meu espírito […]” [LC, 278]. Há ainda uma terceira versão, em que o rectângulo passa a quadrado, com desenvolvimentos e pormenores a que é preciso estar atento: “Quando eu era uma criança de 6 anos de idade, […] passa[va] os dias inteirinhos […] a andar de triciclo e a aprender a imaginar. E assim era que […] tracei, e não sabia de onde na minha alma a trazia, […] a figura da rosa-dos-ventos que é afinal o quadrado em que se combinam a cruz direita e a cruz em X.” [LC, 152] Completando estas leituras de uma mesma fotografia e, sobretudo, de uma mesma figura geométrica visível, temos este último texto relacionando-a com o chamado “jogo do galo” e com um tal tapete “maçónico”, juntando ainda ao divertimento infantil o X, “sinal da luz”, que faz dele, jogo, um anúncio do “nascimento do sol”. A luz liga-a António Telmo à primeira letra do título grego de Jesus, Cristo, o X, o sol invictus, e ao número dez, romano, sendo pela via pitagórica “uma das figuras do quaternário pelos seus quatro braços”, pois a dezena “é a soma dos quatro primeiros números” [LC, 150 – 151]. A estas considerações ou congeminações, acrescenta ainda uma descoberta: “[…] a figura do jogo, se a inscrevermos num quadrado, numerando ao mesmo tempo as sucessivas nove casas da esquerda para a direita e de cima para baixo § […] § ficaremos perante o prodígio de um quadrado mágico, porquanto somando os números sucessivos, no sentido das duas cruzes nele combinadas, obteremos sempre o número 15 (3x5) […]” [LC, 152]. Se o “desenho” pode mostrar o “desígnio” de um autor, desde que traçado “segundo as regras da arquitectura”, elevando o poema ou o filosofema à alta categoria de “teorema” [FK 174], algo dirá este quadrado (onde se inscrevem duas cruzes) sobre António Telmo, sobre a sua designação ou nome, sobre a sua obra. É ele quem o afirma, ao asseverar que tudo quanto escreveu dali emerge, na medida em que é “a expressão do arquétipo que orient[ou] o movimento do [s]eu espírito” [LC, 278]. Quem disse “movimento” poderia ter dito “viagem”, sendo “a filosofia […] uma arte especial de viajar”, conforme lhe ensinara (mais uma vez) Álvaro Ribeiro [FK, 10], na qual “o barco é a metáfora”, “humana, cósmica e divina”, promovida pelo “espírito”, “que ao cindir une e ao unir cinde o Todo e o Nada, da visão unívoca em tudo é para extrema cisão em que nada é” e, talvez por isso mesmo, é preciso transcender [FK, 119 – 120]2. Desse arquétipo, apresentado numa “figura geométrica visível”, António Telmo não exclui o carácter lúdico, pois entendia o jogo como algo de muito sério na vida humana. Talvez por isso mesmo relembre o selo de Saturno ou de Cronos (aquele cujos algarismos, 2

António Telmo segue, neste raciocínio, a doutrina de Sampaio Bruno vista pelos olhos de José Marinho. 4

dispostos em nove casas, somados em qualquer direcção, totalizam sempre 15); não creio contudo que olhasse para ele e por aí se ficasse, valorizando-o como amuleto apotropaico (cf. Lorente, s/d: 72 – 73). Ao recordar o autor e o livro que o levou à descoberta dos selos planetários – Aggripa von Nettesheim in Occulta Philosophia (1533) –, certamente nos indicou que, aí, no quadrado mágico de nove, temos um símbolo plúmbeo e negativo, plenamente ultrapassado quando, multiplicado por quatro, se transforma noutro quadrilátero com trinta e seis casas – o selo solar, áureo [DS, 170]. Recordo, que ao falar do “jogo do galo”, o filósofo valoriza sobretudo o X, em detrimento de outras combinações com as quais é possível fazer o três-em-linha. E ao valorizar tal signo fá-lo porque é “sinal da luz”, “letra inicial do nome de Christo em grego”, “símbolo do 10” na numeração romana, confirmado “através de misteriosos cálculos pitagóricos”, sendo possível “vê-lo a anunciar o nascimento do sol” e justificando-se assim – “com um pouco de boa vontade e de imaginação” – a designação popular [LC, 150 – 151]. Não nos deixemos enganar pela ironia de Telmo. Pela luz se ultrapassa CronosSaturno, que devora os seus filhos, luz essa representada pelo X, que é sobretudo o número 10 e só depois Sol e Cristo. É importante verificarmos que esse algarismo pode corresponder, também, à décima letra do alfabeto hebraico. Sobre ela diz-nos um fragmento publicado em Congeminações de um Neopitagórico que, “enquanto yod, do alfabeto hebraico, é aquele ponto luminoso irradiante (Tipheret) para oito direcções”, designando “o judeu” [CNP, 143 – 144]. Assim sendo, não devemos estranhar que, ocultando, Telmo vá mais longe do que parece ir. Se o Y é equivalente ao X é porque inicia tanto o Santo Nome de Deus (YHWH) quanto o Santo Nome de Jesus. O Filho de Maria é conhecido na literatura cristã como “Sol da Verdade”, nomeadamente quanto surge na sua Transfiguração, ladeado por Moisés e por Elias, sendo entendido também como “Sol Iustitiae” ou “Sol Invictus” [DS, 892]. O Sumo Sacerdote dos judeus usava sobre o peito um disco de ouro, símbolo do Sol divino [DS, 892]. Telmo sublinha, contudo, a sexta sefira, tipheret – generosidade, esplendor, beleza – como correspondente do Y. Certamente recordou o arcanjo São Miguel ou Mikael que, como Anjo da Face ou Metraton, vem iluminar, esclarecer e instruir a humanidade, sendo uma hipóstase solar d’ Aquele Que É [DS, 763]. A totalidade espacial, representada na rosa-dos-ventos, torna-se assim infinita, porque vista sobrenaturalmente, transcendendo assim a limitação saturniana do tempo, transformado em eternidade. Ao sobreporem-se, num quadrado, a cruz grega e a cruz aspada ou X, sobre as quais se inscreve, subtilmente, a décima letra hebraica, tudo se combina, tudo coincide: Javé e Jesus, Jesus e Miguel, o Sol e todos eles. De onde vem, então, o “galo” do “jogo”, em cujas casas de processa a viagem ou movimento que conduz ao encontro ou descoberta das duas cruzes, do Y, do Sol e do quadrado onde tudo se inscreve? Poderia recordar que o animal é símbolo da luz nascente, com um papel psicopompo, atribuído a Hermes, mensageiro que percorre os três níveis do cosmos (do Hades ao Céu), sendo ainda no Antigo Testamento uma manifestação da inteligência divina e, na tradição maçónica, o sinal da aproximação de uma luz iniciática, correspondendo ao mercúrio alquímico [DS, 282 – 283]. É todavia António Telmo quem nos oferece a chave em Filosofia e Kabbalah. Referindo mais uma vez tipheret, assevera que aí “já não há perigo de cair, porque o baixo é o alto e o alto é o baixo”, sendo nesse “centro dos centros” que se situa o Sol. Acrescenta então o seguinte, referindo-se sempre à árvore sefirótica da kabbalah3: “O ser em si dos filósofos […] é como um pássaro que voa de ramo em ramo, sustentado, não pelas asas, mas pelo que move as asas. § O ser em si, livre por não ter o seu princípio noutro ser, é, mais do que o pássaro o voo. § O pássaro foi pensado na ideia (em Aziluth) como voo puro, foi criado como arcanjo em Beriah, formado na energia de uma imagem em Yetzirah, feito como pássaro em Aziah. Mas de keter a malcuth, pela linha vertical, a ideia é um relâmpago, onde o pássaro é o voo e o voo o pássaro. § O 3

Junto nesta transcrição os vários fragmentos numerados por António Telmo. 5

pássaro dos Jerónimos, da coluna do oriente, é um galo, a visão imediata do Sol, a essência ígnea do homem redimida […]. § Nos reis, […] o galo é substituído pela águia, essa senhora dos vastos domínios do Sol, ser absoluto sem vertigens. § […]” [FK, 25]. Jogar como o galo ou, melhor, com o galo é, de igual modo, jogar com a águia. Esta ave é mensageira do fogo celeste e do Sol (a mais alta divindade uraniana), seu símbolo, sendo capaz de fitá-lo sem queimar os olhos. Atributo da ascensão e da realeza de Cristo, ou do seu Anjo, acompanha ou sinaliza o evangelista São João. Indica, ainda, a percepção directa da luz intelectiva, ou seja, a contemplação [DS, 12 – 13] ou theoria, de que o teorema é uma expressão visível. No autor de Gramática Secreta da Língua Portuguesa, o quadrado onde tudo se inscreve tem vértices que, de certo modo, correspondem a quatro hipóstases divinas. Estão impressas na contracapa da primeira edição de Filosofia e Kabbalah e expressas como títulos das quatro partes desse livro axial: Poesia, Verdade, Filologia e Filosofia. O mesmo é dizer: poíesis, aletheia, lógos e sophía. Ou seja: criação, memória4, palavra e sabedoria. Entre os quatro termos se estabelece uma cruz aspada ou X. Não é, por isto, estranho que alguns livros deste filósofo tenham na contracapa o início do Evangelho segundo São João e que o desenho que assim se pode traçar se aproxime imenso quer do “jogo do homem” ou “jogo do moinho” (cf. Carolino, 1994)5 quer das representações quadrangulares da Jerusalém Celeste, anunciada no Apocalipse, em cujo centro se situam Deus Todo Poderoso e o seu Cordeiro (Ap 21, 9 – 27). Creio estar aqui, se não o teorema de António Telmo, pelo menos uma das expressões figuradas dos desígnios da sua poesia e da sua filosofia, que ele próprio descobriu, autoconhecendo-se, “numa figura geométrica visível” [FK, 174] traçada na primeira infância, vinda de um lugar inefável, enquanto aprendia “a imaginar” [LC, 152]. Nos seus traços e nas explicações disseminadas que dela deixou o filósofo, percebe-se que a sua viagem – que tornou desde o princípio a Arte Poética uma expressão da Arte Divina [cf. FK, 41 – 43] – se dirigiu ao encontro da theoria [DM, 827], por um caminho conciliatório entre o pitagorismo, o cristianismo e o judaísmo. Foram postos a dialogar em figuras como Thomé Nathanael [cf. FK, 45 – 54] que são, sobretudo, a indicação de uma via de síntese cabalística (mais tarde associada a uma maçonaria só sua, muito purificada). Não tenho a pretensão de descobrir todos os meandros da sua obra. Nunca decifrarei sobretudo o seu segredo, ou núcleo sagrado. Usando as palavras de Telmo sobre Camões, devo afirmar que, “[s]e Deus me tivesse consentido que o soubesse, teria a honra de o não dizer” [FK, 180]. Fui antes pelo caminho das evidências, grande parte delas oferecidas pelo autor de Viagem a Granada na sua enigmática semeadura. E neste desenho que o filósofo registou com seis anos numa parede e mais tarde interpretou como expressão arquetípica do seu movimento espiritual, muito se pode ver, se estivemos atentos e considerarmos o quanto tem de memória universal a sua forma.

3. “António Telmo nasceu em Almeida, distrito da Guarda, numa casa da rua do Convento, no centro do hexagrama formado pelas muralhas que cercam a vila. Foi no dia 2 de Maio de 1927, pelas duas horas da tarde. O Leão aparecia no horizonte e o Sol erguia-se alto no Touro.”

Em Dante, “a verdade, por ser a-letheia, é superação do Lethes”; também o amor, “por ser a-mor(s), liberta da morte” [DM, 277]. 5 Deste jogo, já existente na época romana, existem exemplares gravados em pedra na casa de um antiquário de Borba e no castelo de Estremoz. No século XV dizia-se que fora inventado pelo construtor da Torre de Babel. Guénon e outros autores atribuem-lhe uma dimensão iniciática, mágica ou religiosa (cf. Carolino, 1994: 88 – 92). 4

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Assim reza a badana de um dos livros do autor em causa6, falecido em Évora (essa cidade com um “passado de sombras”7) a 21 de Agosto de 2010, mas sepultado em Estremoz, urbe onde ensinou, escreveu e viveu ao longo das suas últimas décadas de existência. Estamos na presença de um texto que vai além da mera exposição de um curriculum vitae pessoal, profissional e literário; tece considerações e apreciações subjectivas e desejos cuja intimidade indicia um carácter autoanalítico e autobiográfico. Nele, são referidos os dezassete lugares por onde peregrinou; é dado destaque a alguns deles, entre os quais assumem especial significado Arruda dos Vinhos (“da sua infância, […] forma terrestre do seu Paraíso”) e, sobretudo, Sesimbra, “a da sua juventude que lhe ensinou o mar, a amargura e a imaginação”. O derradeiro parágrafo é menos informativo e merece a transcrição: “Tenciona nascer de novo, mas não sabe onde, nem quando, nem como, nem se isso é possível fora deste mundo. Entretanto, espera e crê, sem pressa, como aprendeu com os alentejanos, procurando estar de pé sobre a extensa planície, a toda a volta, com a sua sugestão de liberdade e de infinito.” Talvez a sua compreensão possa ocorrer apenas em associação com outro, anterior, onde a terceira pessoa gramatical volta a indicar a duplicação especular do eu: “Por uma dessas estranhas coincidências que, por vezes, marcam a relação íntima de certos acontecimentos, nas Centúrias de Nostradamus, escritas há cerca de meio milénio, vem anunciado o nascimento do ‘grande Portugalois’8, junto a um convento em ‘la Guardia’. Claro que esta Guarda é outra e outro é o convento. Quem dera ao autor […] pertencer a uma organização conventual de altos espíritos que guardassem o mundo humano nestes tempos do fim.” Destas linhas permito-me destacar três lugares fundamentais: Almeida, Sesimbra e Estremoz. Reservo ainda, para memória futura, alguns vocábulos e expressões. Dois nomes: liberdade e infinito. Cinco verbos: esperar, crer, estar de pé, guardar e nascer de novo. Só um autor, vendo-se ao espelho, poderia escrever assim. * Por que reconheço, como vértices da vida de António Telmo Vitorino, Almeida, Sesimbra e Estremoz, secundarizando qualquer dos outros catorze lugares em que decorreu a sua existência? Parto dos textos assinados pelo filósofo, daquilo que disse e escreveu, não rejeitando porém a aplicação de alguns métodos indiciários. Escolho a vila beirã – em detrimento, até, de Arruda, terra da sua criação –, porque aí ocorreu o seu nascimento. Fosse outro o autor em estudo e esse dado teria pouca ou nenhuma importância, tanto mais que daí teve de migrar na primeira infância. Tratando-se de quem se trata, de um escritor que não desdenhava o uso sério da astrologia e de outras ciências antigas (como outro grande do século XX português, Fernando Pessoa), tal acontecimento teria de se revestir de grande relevo. Bastará ler-se o primeiro parágrafo antes apresentado, o qual surge desenvolvido num texto posterior, que transcrevo em parte: “Não haver um ‘luminar’ único senhor da minha carta do céu; haver, pelo contrário, como dominante um certo jogo de forças em teia e trama nas casas e nos signos, é o que talvez explique o curso da minha existência interior e exterior marcada, no vasto domínio da filosofia, por uma constante oscilação entre o pólo solar e o pólo lunar do conhecimento. § Pelo ascendente em Leão possuo uma natureza solar. O Sol, senhor do signo, estava alto no céu quando nasci: na casa nona, a da filosofia e das grandes viagens religiosas. Ali se aliava com a Lua, exaltada em Touro, cheia de poder e fascínio. Formava esta Usei a versão publicada n’ A Verdade do Amor, obra editada em 2008. Ao descrever deste modo a capital do Alentejo, António Telmo pensou decerto no passado da cidade como sede da Inquisição a sul do Tejo. 8 Uma das quadras de Michel Nostradamus aludida por Telmo é a seguinte: “La grand’ cité de Tharse par Gaulois / Sera destruite, captifs tous à Turban: / Secours par mer du grand Portugalois, / Premier d’ esté le iour du sacre Urban” (Centuries, VI, 85). 6 7

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quadratura com o ascendente, fitando com um olhar maléfico o lugar por onde entrei no mundo. Mas a força benéfica de Júpiter em Peixes conjugava-se harmoniosamente com a da Lua e com a do Sol. […]” [VG, 201] Sublinho uma expressão: “o lugar por onde entrei no mundo”. Esse lugar foi Almeida. Vale a pena debruçarmo-nos sobre ele, dada o significado que lhe é conferido pelo filósofo [cf. TP, 172]. António Telmo Vitorino refere que veio à luz “numa casa da rua do Convento, no centro do hexagrama formado pelas muralhas que cercam a vila”. As muralhas são um elemento preponderante9, não pela sua função ou pela sua beleza, mas pelo hexagrama desenhado na sua planta, em cujo “centro” nasceu. Poderia ter escrito, antes, “no centro do hexágono estrelado”, mas preferiu uma palavra com outra carga semântica. Apontou, assim, como elemento principal do lugar do seu nascimento a “estrela de seis pontas, formada por dois triângulos equiláteros sobrepostos” e, em simultâneo, o “conjunto de seis letras ou sinais” [cf. H, 1978]. Faz toda a diferença. Qualquer leitor minimamente instruído conhece o nome dessa estrela. Trata-se, como é bom de ver, do selo ou signo de Salomão. Os autores do Dictionnaire des Symboles resumem bem a sua importância: estamos na presença de uma figura que representa “uma verdadeira súmula do pensamento hermético”; contém em si os quatro elementos, as quatro propriedades fundamentais da matéria, os sete metais básicos e, ainda, os sete planetas que resumem a totalidade do empíreo; surge como síntese dos opostos e como expressão da unidade cósmica, não desdenhando a sua complexidade. Vale a pena lê-los: “[…] Todo o pensamento e o todo o trabalho da alquimia visam chegar à transmutação do imperfeito, situado na periferia, numa perfeição única, situada no centro, simbolizada pelo ouro e pelo Sol. A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito ao perfeito, sonho dos sábios e dos filósofos, exprime-se no selo de Salomão. § Certos intérpretes não hesitaram em passar do plano material ao plano espiritual e em ver na Grande Obra da alquimia uma ascese e uma mística que tende a reconduzir um ser, dividido entre múltiplas tendências, à união com o seu princípio divino. Outros vêem a união dos princípios masculino e feminino nos dois triângulos sobrepostos.”10 [DS: 853] As actuais muralhas de Almeida foram edificadas entre os séculos XVII e XVIII, a partir de uma traça atribuída aos engenheiros militares Pedro Gilles de São Paulo e Miguel Luís Jacob (cf. Almeida & Belo, 2007: 268). Embora o apelido de um dos autores da planta indicie ascendência judaica, creio que a planta estelar da fortificação teve uma intenção evocativa, além da sua funcionalidade militar. Explico melhor esse intento. A associação da terra-natal de Telmo ao sábio monarca de Israel tem raízes ancestrais. Uma crónica anónima do século X, escrita em árabe, contando-nos o percurso realizado na Península Ibérica por Târiq ibn Ziyâd, entre 711 e 712, afirma que “chegou a uma cidade […] chamada Almeida (a Mesa), nome devido ao facto de se ter encontrado nela a mesa de Salomão, filho de David, cujos bordos e pés, em número de trezentos e sessenta e cinco, eram de esmeralda verde” (in Rei, 2002: 161 e 162). Um texto posterior, do século XIII, assinado por um andaluz chamado Ibn Sa’îd, refere a mesma tradição, embora com acrescentos interessantes: “[…] Sobre a cordilheira da Serra […] há muitas fortalezas de nomes não-árabes, estando entre elas […] a Fortaleza da Mesa (Hisn al-Mâ’ida […]), assim chamada por a Mesa de Salomão […] nela ter sido guardada, e dela ter sido tomada por Târiq […]” (in Rei, 2002: 162). António Rei defende que este episódio, recorrente em fontes da Alta Idade Média, deverá referir-se não a uma mesa que pertencesse ao filho de David, mas a uma peça de mobiliário litúrgico (cf. Rei, 2002: 159), talvez (digo eu) “a mesa de ouro sobre a qual se punham os pães da

A importância do sistema militar defensivo na Almeida de António Telmo é sublinhada na entrevista dada a Américo Rodrigues em 2004: “Tem muita importância para mim, embora há muitos anos não vá a Almeida. […] § As lembranças que eu tenho são das muralhas e de brincar com outras crianças. § […] Fui lá mais tarde e vi então as muralhas e a casa onde nasci” [TP, 172 – 173]. 10 Tradução minha. 9

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oferenda” (1 Rs 7, 48), existente no Templo de Jerusalém, edificado por Salomão. Não me parece má leitura. Atentemos no entanto nas suas características: “bordos e pés, em número de trezentos e sessenta e cinco, […] de esmeralda verde”. O número é claramente simbólico e o material lítico precioso talvez o seja também. Se, mentalmente, colocarmos o nome do móvel em latim, pensaremos primeiro em mensa (altar), mas logo de seguida nos lembraremos de tabula (tábua de jogo ou de escrita, quadro votivo, elemento pétreo ou lígneo onde se afixam os decretos, testamento, contrato, etc.) [DLP, 413 e 640] e a relacionaremos com a távola e a tavolagem. Tanto quanto sei, há contudo apenas uma expressão que junta a mensa-tabula à esmeralda: a Tabula Smaragdina, transmitida por Hermes Trismegisto aos alquimistas, segundo conta uma lenda. Se, de facto, o guerreiro encontrou algo em Almeida e o levou consigo, parece-me que terá sido algo de bem diferente de uma mesa preciosa pela sua matéria ou antiguidade. Reparo que o topónimo Al-Mâ’ida (Almeida) não era considerado árabe pelo cronista andaluz (“há muitas fortalezas de nomes não-árabes, estando entre elas […] Hisn al-Mâ’ida”). Latina não parece ser. Tratando-se de uma localidade com evidentes ligações lendárias à cultura judaica, é natural que a origem etimológica do seu nome se radique no hebraico ou nalgum dos dialectos semitas/fenícios, falados na Ibéria mesmo durante a romanização11. Permito-me assim propor que provenha de alû mdo [alu madou], expressão híbrida12 que significa “povoação [do] conhecimento” ou “cidade [do] pensamento” [DFP, 101 e 170], embora não exclua outras explicações provenientes do mesmo domínio linguístico, mais prosaicas. Só assim os dados encaixam. António Telmo nasceu, segundo afirmou, “no centro do hexagrama”. Qualquer leitor da sua obra ímpar tem de confrontar-se com uma multiplicidade de retratos que o escritor propõe da sua identidade. Só um olhar ingénuo e descuidado sobre os seus textos pode levar alguém a afirmar que a sua produção é “espontânea”, como alguns fizeram [in HAH, 7], decerto com boas intenções. O mesmo autor que subscreveu um texto intitulado “Autobiografia e Sobrenatural” [LC, 267 – 304], definiu o seu lugar na cultura portuguesa, procurou-lhe as raízes mais profundas e verdadeiras e, ao mesmo tempo, quis expressar (quase sempre de forma velada, indirecta ou alusiva, tantas vezes sob a capa da ironia) a sua autoimagem não só como homem, mas também enquanto hermeneuta, filósofo e poeta. Quando alguém diz que nasceu “no centro do hexagrama”, tendo os conhecimentos que demonstrou possuir nos vários livros que publicou, não o faz com leviandade. Embora, na aparência, se refira apenas ao ponto central de uma vila raiana rodeada por muralhas estreladas, tinha consciência do lugar altíssimo ocupado por esse símbolo maior do hermetismo e da cultura hebraica. Utilizou-o, aliás, pelo menos duas vezes, em Filosofia e Kabbalah, uma delas para expressar a interconexão sobrenatural entre “oito medianeiros da humanidade portuguesa”13 e “a unificada plenitude do pensamento” [FK, 84 e 127], irradiando “a estrela” de um eixo arbóreo, da “sizígia central” [FK, 85], união de ramos saindo de um mesmo tronco de árvore [cf. H, 3349], real ou simbólica. Não sei até que ponto teria na memória as lendas da Mesa de Salomão que envolviam a sua terra ou a etimologia assírio-hebraica do nome dela. Estranho seria, contudo, que não tivesse em mente o poder simbólico e evocativo da forma das suas muralhas, ele que tanto as observou e lembrou desde a mais tenra infância. Se há quem proponha que nesse eixo central do signo-saimão está o mais valioso dos metais, o ouro, associado ao mais importante Segundo Theodor Mommsen, historiador da romanização, só com grande dificuldade o latim se implantou na Hispânia e mesmo assim apenas entre as classes cultas, dado que a população falava a língua dos fenícios, ou seja, o púnico ou cartaginês, talvez em variantes dialectais (Histoire Romaine, l. VIº, cap. II, Paris, Robert Laffont, 1985: 548). 12 O primeiro termo é assírio e o segundo hebraico. 13 Esses autores são: Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno (no centro do signum salomonis), rodeados por Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e José Marinho, José Régio e Álvaro Ribeiro [cf. FK, 84]. 11

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dos astros, o Sol [cf. DS, 853], não nos custa pensar que o autor de Arte Poética tenha pensado, ao escrever a sua nota biográfica, nalguns emblemas herméticos, como aquele em cujo centro se lê que “Deus é a fortaleza de todos os que acreditam nele”14, alguns relacionados, por exemplo, com a mística de Jakob Böhme (cf. Roob, 2006: 274, 380 e 553), que Telmo bem conhecia. Entre eles, toma especial relevo uma ilustração saída da mão de Dionysos A. Freher (1649-1728), publicada em 1764 na edição inglesa dos escritos do autor de Mysterium Magnum: no centro do hexagrama, rodeado pelas chamas das hostes celestiais, inscreve-se um triângulo invertido, circundado, em torno do qual está escrito o Santo Nome de Deus, vocalizado e assim totalizando seis letras, IEHOVA (cf. Roob, 2006: 150). A divindade pode assim ser vista como a estrela-fortaleza, em cujo eixo reside o ouro solar, símbolo supremo do conhecimento e da perfeição, arma luminosa [cf. DS, 705 e 707], mas também como centro da Árvore da Vida, cume de beleza, onde muitos vislumbraram e vislumbram Cristo, o sol invictus, invencível. Sendo a “sizígia central” [FK, 85] do sinal de Salomão também “a conjunção [astrológica] de qualquer planeta com o Sol”15 [H, 3349], António Telmo resolve acautelar-nos e esclarecer-nos: “Deus não é o Sol, mas o Sol é um símbolo vivente de Deus. É símbolo quando, através dele, se presta culto a Deus que infinitamente transcende todos os sóis” [S, 60; LC, 248]. Caso tenha tido contacto com a legenda milenar que situava na sua vila o lugar onde Tarîq teria encontrado a preciosa mesa (ou távola ou tábua) esmeraldina, não me parece assim impossível que tenha pensado em Mercúrio, nesse iniciado, psicopompo e mensageiro divino, deus do comércio mas também dos ladrões, que representava o perigo e a ambivalência do ouro material e intangível, visto contudo pelos antigos “como um símbolo dos mistérios subtraídos ao conhecimento do vulgo” [DS, 70716]. Não convém esquecer que Thomé Nathanael, o alter-ego do filósofo, é apresentado, em Filosofia & Kabbalah, como “um dos discípulos actuais de Hermes” [FK, 45]. António Telmo bem saberia que, na tradição cabalística, o valor do número seis (que está na base do hexagrama), sem um eixo central que some aos dias da criação um sétimo de shabat, está longe de ser completamente positivo, ao ponto de a sua triplicidade (666) se opor à bondade de Deus, tornando-se sinónima de Satã (cf. Lorente, s/d: 69). Nada disto é estranho se tivermos em conta a etimologia semita da palavra estrela. Se em latim stella é nome atribuível a qualquer astro (em especial, ao Sol) e stellatus pode significar clarividente (“com cem olhos”) [DLP, 617], o uso sagrado do termo evoca, em hebraico e aramaico, o “esconderijo” e a “protecção”, bem como o “segredo”, associados ao acto de se esconder ou de se abrigar (str [DFP, 242]), neste caso unidos ao deus supremo (al/el), sinónimo tanto do cordeiro/“carneiro” quanto da “árvore majestosa” [DFP, 101]. Revertendo, como diria Sampaio Bruno, torna-se evidente que António Telmo souber ler os sinais legendários, onomásticos e arquitectónicos oferecidos pelo “lugar por onde entr[ou] no mundo” [VG, 201], percebendo o quanto seriam centrais, basilares e determinantes na sua vida e na sua obra. Perante um sistema simbólico “visto” ou descoberto, teve a capacidade de imaginar um “símbolo pensado”17, velado, desvelado e revelado nos seus textos. Fê-lo em relação a Almeida e às suas muralhas, num texto só Publicado em 1653, na cidade de Tübingen, por M. J. Ebermeier, na sua obra Sinnbilder von der Hoffnung, a sua forma é absolutamente idêntica à da planta das muralhas de Almeida (cf. Roob, 2006: 274), se dela retirarmos os revelins (cf. Almeida & Belo, 2007: 267). 15 Como se sabe, este sinal é conhecido na linguagem popular por signo saimão. Esta designação recorda o seu carácter solar e celestial: shmsh significa “sol” em hebraico; shmin é o “céu” em aramaico. Tudo isto pode estar ligado com o Santo Nome de Deus, pois shm é raiz hebreia para “nome” [cf. DFP, 250]. Daí ser usado como objecto protector. 16 Tradução minha. 17 Colho estes termos num texto de Maria de Lourdes Belchior, publicado em 1960 como prefácio a Campo Aberto, do poeta Sebastião da Gama, que assim procedia em relação à Arrábida, seguindo aliás frei Agostinho da Cruz. 14

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aparentemente marginal. Tal procedimento é, contudo, uma constante ao longo de todos os seus livros, ao ponto de podermos afirmar sem riscos que está na base da estrutura do seu pensamento. Numa obra como a de António Telmo, não parece haver assim distinção entre o texto e o paratexto. Fazem os dois parte da mesma estrutura filosófica, como teia e trama. Quem se confronta com eles tem, por isso, de redobrar a atenção, pois nada pode ou deve ser menosprezado. Até uma nota (auto)biográfica, inscrita na badana dos seus livros, é importante. Com estes dados, compreendemos melhor que o autor de Filosofia e Kabbalah, a poucos anos da sua passagem, esperasse, cresse, “procurando estar de pé” (como a árvore) “com a sua sugestão de liberdade e de infinito”, desejando “nascer de novo”, ao mesmo tempo que mantinha o ideal de “guard[ar] o mundo humano nestes tempos do fim”. Olhando a forma das muralhas almeidenses e vendo nela o mais alto emblema solar ou de Salomão, percebeu-se nascido em Deus, ou seja, com Deus no centro de toda a sua vida. Por isso nasceu “no centro do hexagrama”, na “sizígia central”, num eixo já não espacial, mas simbólico, porque sobrenatural, onde estão o ouro tangível e inefável, Hermes, o Sol, Cristo e YHWH, envolvidos em segredo, porque sagrados e divinos no seu mais alto grau. Ao descobrir-se nascido nesse lugar simultaneamente material e inefável, Telmo terá sentido o temor provocado pelo confronto com o númen. Daí ter utilizado uma afirmação velada e sucinta, de modo a transmitir sem alardes o que, na sua opinião, não poderia contudo calar. Foi a sua forma de fugir aos perigos da vanitas e, também, do narcisismo gnóstico e cátaro, “designável em termos cristãos por luciferismo” [LC, 100] e numa linguagem clássica por hybris, que não anda longe do titanismo, a que tantas vezes se referiu.

4. Os teoremas e os símbolos multiplicam-se, bem como a sua explicação, à medida que vamos lendo os livros de António Telmo – livros interligados, como se fossem tomos de um mesmo tratado, numa curiosa trama, visível na repetição, por vezes modificada, de alguns textos de volume para volume. Contudo, se bem virmos as páginas antecedentes, verificaremos nelas a co-incidência de duas figuras geométricas, que até podem sobreporse: o quadrado (dividido ou não em nove ou trinta e seis partes), com duas cruzes sulcando esse lugar sagrado; e o hexagrama. Ambas se centram no mesmo ponto, eixo ou sizígia, que corresponde a tipheret. Ambas apresentam ou representam o Sol. E essa estrela é Deus simbolizado – “um símbolo vivente de Deus” (vale a pena repetir as palavras do filósofo) através do qual se Lhe “presta culto”, pois “transcende todos os sóis” [S, 60; LC, 248]. O autor d’ A Verdade do Amor chega a sublinhar o papel do astro-rei no movimento cíclico das estações, assinalando contudo a sua dupla face, natural e sobrenatural: “[…] há um centro. / Será o sol que brilha fora / Ou o que nos ilumina dentro?”. Indica assim, em declaração enigmática, que a “Primavera” referida no poema, a qual “vai e volta” [HAH, 43], pode bem ser a Primeira Verdade, a Verdade Primordial, ou seja, a aletheia, inseparável do arkhé, um dos nomes divinos, se entendermos o vocábulo como inversão de lethes ou esquecimento [cf. DM, 277], tornando-o num sinónimo da “Memória Universal” (expressa por Teixeira de Pascoaes) revelada na imagem da Jerusalém Celeste: “[…] a Saudade acorda a lembrança viva da Jerusalém Terrestre; a Memória da Jerusalém Celeste. § […] § Para a Memória […] não há lugar nem tempo. Se ‘Deus é a Memória Universal’ [como propôs Pascoaes], a instantânea luz pela qual se nos revela é naquele limite em que já se toca o inespacial e intemporal, isto é, o eterno” [FK, 148].

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E pergunta: “Como ascender da Jerusalém Terrestre para a Jerusalém Celeste?” [FK, 149]. Parece-me ser esta a interrogação18 central da filosofia de António Telmo – e por isso figurou o seu teorema associando ao hexagrama o quadrado, traçado à imagem e semelhança da cidade que o Anjo mostrou ao evangelista São João no Apocalipse (Ap 21, 9 – 27). Esse sol aponta todavia algo cuja importância é decisiva na viagem filosófica empreendida pelo nosso autor. Vejamos estes versos: “Todas as árvores são chamas / Porque é fogo a essência da semente / E tudo o que na árvore é e sente / Busca o sol e é sol verde nos ramos” [HAH, 47]. Claro que uma leitura literal nos levaria a falar apenas na fotossíntese. Não nos devemos no entanto quedar em tal patamar. Sem delongas, perceberemos a que árvore se refere o escritor de Almeida no seu poema: “Alimenta-se de luz a árvore do mundo, como as pobres e belas árvores dos nossos campos. § […] § Esta árvore não cresce de baixo para cima, mas do alto para o abismo. […] § […] § Uma árvore pode ter muitas raízes, mas o número exacto é três. § Pode ter muitos ramos, mas o número exacto é sete” [FK, 23 – 24]. Lêde o “Louvor da Matéria” [FK, 23 – 25] e entendereis as razões que levaram António Telmo a afirmar a kabbalah como a ciência da tradição d’ “o já adquirido no conhecimento da verdade”, sublinhando-a como “a Coisa, a Nossa Coisa, o objecto constante do nosso estudo, o que nos irmana com os outros povos e seus pensadores”, catolicidade que se faz por intermédio da “multiplicação infinita da mesma essência”, num fogo que é pensamento enquanto actividade espiritual [FK, 10 – 11]. Não foi por acaso que, na hora de registar uma sua visão imaginária, de que terá beneficiado nos campos do Alentejo, o escritor recordaria os versos antes transcritos, na mesma página em que relevou a sua interpretação intelectual, dizendo que “pela metáfora é possível conhecer, embora de modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal” [VG, 38]. É este o homem que, aos 62 anos de idade, compreendera já o quanto havia de “agradável mentira” na sua História Secreta de Portugal, construída com base na indevida confusão que estabelecera entre a gnose (nomeadamente cátara e templária) e a kabbalah; nesse momento o seu “encoberto” seria já, como se tornaria explícito em Viagem a Granada, “o nosso subconsciente hebraico”, que o gnosticismo tão contrário à matéria deixara “na sombra e no nevoeiro” [VG, 118 – 119]. Revertendo, a sua obra reflecte-se nessas “figuras geométricas visíveis”, que mostram os seus desígnios, vertidos em poemas e filosofemas. Se nos focarmos na forma hexagramática do diagrama da tradição filosófica portuguesa, iniciada pelo autor d’ A Ideia de Deus, ficaremos a perceber onde se situava António Telmo ao nascer “no centro do hexagrama”: junto de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno, seus eixos [FK, 35]. Assim sendo, numa viagem sagrada, o nosso filósofo parece conceber-se como agente de um regresso às origens dessa tradição ou, então, qual Fénix [FK, 11], como motor de uma Filosofia Portuguesa renascida do fogo, depois da morte de Álvaro Ribeiro, “o nosso último filósofo” [FK, 97], cujos ensinamentos guiam toda a escritura do seu seguidor falecido em Estremoz. Quanto ao quadrado, se o virmos à luz do diagrama que se pode traçar com os títulos das secções de Filosofia e Kabbalah, por seu intermédio entenderemos que partes do Todo, ou seja, que nomes divinos ou hipóstases de Deus o criador de Contos Secretos privilegiou nos seus livros. Poesia, Verdade, Filosofia e Filologia – ou, melhor dizendo, Poiésis (Criação / Fabricação), Aletheia (Verdade / Memória), Lógos (Palavra / Acção) e Sophía (Sapiência / Sabedoria) – são, na sua visão, as quatro torres angulares das muralhas da Jerusalém Celeste (Ap 21, 9 – 27). A sua associação levar-nos-ia muito longe na exegese ou hermenêutica… Já tentei explicar a cruz aspada. No que respeita à grega, julgo corresponder ao cruzamento do cardus e do decumanus dessa urbe celestial descida à Terra, sendo ambos vias Vale a pena lembrar que a “interrogação”, no seu mais alto grau, corresponde à “sabedoria divina ou Sofia”, ou, nas palavras de Álvaro Ribeiro, ao “conhecimento especulativo do Absoluto” [FK, 124]. Para um bom entendimento deste vocábulo, convém equacionar o seu parentesco com o verbo rogar. 18

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rectas infinitas que se desdobram na entrada da cidade em doze portas, três em cada face do quadrilátero. Nasce, assim, a “cruz potêntea ou potentada […] formada por quatro taus apontados a um centro” [FK, 177]. Desse modo, António Telmo (enquanto autor textual que não se confunde com o autor empírico, escrevente19) figura-se como cividade terrena espelhando o Céu, o que se pode verificar no quadrado mágico solar [DS, 170], divisível em quatro partes, cada uma com nove casas: “Sou um ser quádruplo dividido” [FK, 178]. Se as portas e as ruas que levam à “praça […] de ouro puro, semelhante ao vidro transparente” (Ap 21, 21) e dela partem formam quatro taus, tal parece indicar que são múltiplos os caminhos expansivos que partem de um mesmo forum, correspondendo tal letra hebraica, o T, ao ómega grego no fim do alfabeto. No centro teremos assim o aleph (ou alfa), cuja configuração gráfica original lembra o nosso N, aquela misteriosa letra traçada por alguém n’ A Verdade do Amor [cf. VA, 18 – 19] e que pode ser vista como “síntese, perfeita, da Divindade e do Sagrado – do Sem Fim, do Inabarcável, do Incognoscível, do Inominável” (Ventura, 2014: 30). Desse cruzamento de eixos numa cidade onde deixou de haver templo e onde existe um dia eterno sem necessidade de luz solar ou lunar, onde se ergue o “trono de Deus e do Cordeiro” e é possível vê-Los “face a face”, onde cresce e se expande a “árvore da Vida”, nasce “um rio de água viva” (Ap 22, 1 – 5). Doze são as portas que abrem a Cidade de Deus, desdobrando as quatro vias que partem dessa praça; nunca se fecharão, mas por elas apenas “entrarão os que estiverem inscritos no livro da Vida que está na posse do Cordeiro” (Ap 21, 25 – 27). O desígnio de António Telmo, ainda que exigindo laboriosa interpretação, antecedida pela reunião do que está disperso, parece legível neste excerto: “[…] O centro, a origem, a fonte invisível donde brotam ou irrompem ou partem as quatro linhas do ser, permanece misteriosa e insondável. […] § Encontrar esse ponto original, atacando por um dos taus: uma das vias possíveis de realização mágica. § […] § O pensamento de simplesmente reflexivo, pela realização mágica, reintegrava-se na sua energia criadora de vida, mónada restituída à sua prerrogativa primordial de imagem projectada da Mónada das Mónadas, mais tudo quanto ganhou na viagem” [FK, 178 – 179]. Assistimos, assim creio, à passagem da magia à imaginação. E essa passagem só se faz em viagem, não dispensando a teurgia ou “acção mágica a que […] talvez Diana presida com o arco-lua de flechas invisíveis” [FK, 17], mas tendo sempre em conta a necessidade de levar a cabo uma libertação que conduza à metanoia [FK, 125]. Sabemos bem o quanto o perturbou a sua iniciação alvarina, centrada precisamente na definição da imaginação incriada e criadora, dotada de divina asseidade: “cria o seu próprio mundo, é senhora do seu próprio mundo, não depende do mundo sensível, do mundo que nos rodeia”, fazendo com “que haja o mundo sensível”, no ensinamento de Álvaro Ribeiro. Muitos anos depois, António Telmo ainda se interrogava: “Até onde terei de ir em viagem da alma para compreender isto?” [LC, 175 – 176]. A cruz grega que espelha o cardus e o decumanus da Nova Jerusalém (em cuja intersecção se elevam Deus e o seu Cordeiro e se situam a Árvore da Vida e a nascente do Rio de Água Viva), conjugada com o X, estabelece o eixo microcósmico terrestre (e télmico), por correspondência ao macrocosmos uraniano. Apresentando uma expansão infinita, apesar de nascida de uma colisão e contradição, é sinal escatológico de redenção, estabelecendo como meta uma theoria luminosa (per crucem ad lucem) (cf. Ventura, 2014: 25). Tenho de ser sucinto e afirmo, com Guénon sobre Metraton e Shekinah, que tudo quanto vou sugerindo exigiria uma explicação demorada; talvez a dê um dia, noutro estudo (cf. Guénon, s/d: 35). Para compreendermos melhor essa cruz, deixemo-nos todavia orientar pelos pontos cardeais, tal como fez o nosso cabalista ao estudar Fernando Pessoa [FK, 164 – 165], transformando-o talvez num seu outro alter ego, semelhante a Thomé Nathanael [FK, 45 – 54] e até a António Telmo, enquanto imagem espelhada de si próprio num autor Recorde-se um diálogo, publicado em Congeminações de um Neopitagórico: “[…] não pretendes identificar-te com o escritor mas com o que o seu nome pode significar” (Philonous); “António Telmo é o nome que me convém para que eu me aproxime de ti […] O nome de António Telmo foi o que me atraiu e não ele” (Hylas) [CNP, 75 e 76]. 19

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textual [CNP, 75 – 76]. As qualidades e os lugares imateriais habitados pelos heterónimos do poeta de Mensagem ajudam-nos e esclarecem-nos: 1. a norte temos o Paraíso, ou mundo superior, e também o “ponto fixo polar e originário”, onde se estabelece uma linguagem primordial, anterior ao abismo e à queda, possível se chegarmos à “ponta suprema que atrai a influência do Céu”, ou seja, à “flor do intelecto”, cifrada no nome António (interpretado como anthos noû) [FK, 165 e 167; CNP, 76]; 2. a sul situa-se o Hades, Inferno ou mundo inferior, onde toda a escrita se dirige ao encantamento musical ou dobra, à magia, servindo para invocar outros seres e para esconjurar os demónios; aí parece estar o nome Thomé, representante do gnosticismo cristão que, por ser cátaro e puritano, desligado da matéria, se pode tornar luciferino [FK, 165 – 167; CNP, 127; LC, 100]; 3. a oriente, vemos a herança greco-latina, “o ritmo medido e exacto, o sentido grego do limite, o reconhecimento sem protesto e equânime do fado e do destino”, mas também a lembrança hebraica, apresentada pelo apelido Nathanael, “o judeu cabalista” [FK, 165; CNP, 127]; 4. e, por fim, a nascente, o futuro resultante do “Ocidente fim de ciclo”, por isso mesmo vertido numa linguagem desmedida (porque livre, prospectiva e expectante), “descondensa[ndo] energias” e “prefer[indo] o desacerto e a inexactidão”, de modo a atingir “a potência do limite”; aí se encontra Telmo, o thélêmos “que significa vontade, desejo, aspiração” [FK, 165 e 167; CNP, 76]. Convém recordar que, para o autor de Filosofia e Kabbalah, Thomé Nathanael e António Telmo são duas versões anagramáticas da mesma realidade onomástica e, por que não dizêlo, da mesma figura criada pelo hermeneuta de Camões. As diferenças entre um nome e o outro são mínimas, nomeadamente “os dois agás” inclusos na designação do alter ego, “dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome”; fitam os dois “a mesma estrela”, “distintos, mas harmoniosos entre si pela comum origem persa das suas doutrinas” [CNP, 127]. Podemos afirmar, como o autor sobre Pessoa (que ele tenta, de algum modo, superar, tal como Agostinho da Silva (cf. Martins, 2015a)): quem percorrer “o círculo dos quatro detém o segredo da totalidade poética”, funcionando a cruz “como uma chave mágica” [FK, 165], ou seja, como o teorema que permite compreender os desígnios dos poemas e filosofemas do escritor. Esta interpretação, em que se vê ao espelho, provoca-lhe temor, pois percebe nela fortes consequências pessoais, resultantes afinal da auto-análise: “Esta lógica da alma surpreende e espanta. Chego a ter medo que não seja verdadeira, como se o intérprete tivesse caído em qualquer espécie de falso delírio” [FK, 165]. Se as quatro torres angulares são a poiésis, a aletheia, o lógos e a sophía, as doze portas da Cidade de Deus são o éden, o princípio e o intelecto (a norte), o inferno, o fim e a gnose (a sul), o passado, a tradição e a lembrança (a nascente), o futuro, a prospecção e a esperança (a poente). O viajante sagrado é esse Hermes que tem perpassado por toda esta leitura da obra de Telmo Vitorino, assomando aqui e ali, esse Mercúrio – deus das estradas e protector dos viandantes – representado pelo quatro, que está na base do quadrado mágico. O mensageiro dos deuses tinha como símbolo a palmeira (cf. Smith, 1996: 202), à semelhança do povo israelita, árvore que figurou em todas as edições dos Cadernos de Filosofia Extravagante, criados pelo autor d’ A Aventura Maçónica e assim concebidos. Não seria por acaso que, na Idade Média, os peregrinos eram conhecidos como palmeiros… António Telmo dizia-se, através de Thomé Natanael, “um dos discípulos actuais de Hermes” [FK, 45], dessa divindade em que, à semelhança de Camões, poderia ver “o Espírito Santo revelando-se […] no inesperado encontro com a Ilha dos Amores” [VG, 132]. 5. Voltemos à estrela. Num excerto de Viagem a Granada, diz-se que ela “é uma ilha cercada de todos os lados pelo infinito” [VG, 132]. Por sua vez, noutro livro, citando Álvaro Ribeiro (como sempre faz quando é preciso afirmar algo da maior importância), António 14

Telmo lembra que “A estrela sobrenatural aliada à esfera armilar é um símbolo”, sublinhando que o globo “é o desenvolvimento infinito da mónada” [FK, 177]. Retornando, devo realçar que essa “mónada é propriamente o indivisível, isto é, o indivíduo, quando o compreendemos pela imagem da ilha” [VG, 132]. Conclui, recordando Os Lusíadas e asseverando: “Só os heróis têm a revelação da Ilha com os seus três outeiros, as suas aves, as suas flores e as suas águas onde o Amor abre o acesso ao Paraíso, onde a mónada se conhece enquanto mónada na forma de ‘um globo diáfano e profundo’.” [VG, 133] Curiosamente, no diálogo com um tal David (ou seja, consigo, ao espelho), o filósofo afirma que “Sesimbra é uma ilha ou, como se diz em ciência, um microclima”, acrescentando que se incrustou “no território português como um diamante num anel” [FK, 22]. Quem diz clima, diz região [DLP, 145] ou microcosmos, neste caso uma parcela de território isolada e com características distintas. Noutro trabalho, tive oportunidade de demonstrar a importância deste lugar na vida e na obra de Telmo, como lugar de libertação e de comunicação com o sagrado (cf. Ventura, 2014: 19 – 21). Aqui devo recordar o texto biográfico da badana dalguns dos seus livros: a Piscosa ensinou-lhe “o mar, a amargura e a imaginação”. Numa “Balada” dedicada a essa vila, manifesta o desejo de aí – “no extremo do mundo” – colocar dentro de si o “Curso divino” do astro-rei, tornando-se “por dentro um girassol” [HAH, 25]. Nessa terra, aspira a construir o seu “barco” com “As tábuas unidas / Pela força do nada”, de modo a ouvir “o som […] / […] que repetisse / A palavra perdida” [HAH, 27], esse vocábulo subtil cuja demanda – empreendida também por outros místicos cristãos como Swedenborg ou Anne-Katherine Emmerich (cf. Guénon, s/d: 98) – surge associada à procura do “Iod no Gui” [HAH, 29], ou seja, de YHWH no centro solar do hexagrama. Na mesma Sesimbra tem no entanto manifestações que o levam a compreender os perigos de tal via gnóstica. Na Serra da Achada, Deus diz-lhe “ao ouvido” que “Quem se ganha não é nada” [HAH, 18]; e, no Cabo Espichel, parece ter descoberto que “Só Deus escreve sobre Deus”, embora por vezes use as “nossas pobres palavras” [LC, 248]. Tais acontecimentos ou experiências investiram a capital da Arrábida de uma importância enorme na obra de Telmo, ou não se associasse a esse lugar uma iniciação ao Abismo marítimo20, geradora de “amargura”, a qual culminou no conhecimento profundo, reagente, da “imaginação” sobrenatural [cf. LC, 175 – 175]. Se a estrada percorrida pelo peregrinus (ou seja, pelo estrangeiro ou iniciado [cf. DLP, 484]) “é um rasgo de luz”, estando o “infinito / […] à distância de um só seu passo / Descuidadamente finito” [HAH, 33], não deixa de ser, de igual modo, um “caminho ínvio e incerto” [HAH, 40]. Essa via provoca no sujeito dessa viagem “do conhecido para o desconhecido” que é a filosofia [FK, 119] o temor de quem acaba por confrontar-se com a “porta do céu”, com “a terrível casa de Deus”, percebendo ao mesmo tempo que “entre a terra e os infinitos céus / Descem e sobem anjos uma escada” [HAH, 31] (cf. Gn 28, 10 – 18). Assim se explica o terceto final do poema editado na primeira parte do livro de 1989; percebendo o quanto há de titânico, húbrico e luciferino na gnose, interroga-se e assume as suas limitações: “Porque não tento abrir o tempo e a treva? / Não sei como tentar e, se sei, temo / O fulgor essencial que mata ou cega” [FK, 36]. Este caminho – da filosofia à gnose e da gnose à contemplação ou theoria – tê-lo-á visto António Telmo espelhado no brasão antigo da vila de Sesimbra. Com uma incomum forma quadrangular, o seu centro tem inscrito “um grande castelo com três torres, cinco janelas e uma porta, todas abertas; no quinto inferior, o que parece ser um galgo correndo e olhando para trás; saindo da torre cimeira e coroando o escudo, uma águia enorme com os pés no eirado mas prestes a levantar voo” (Ventura, 2014a: 4). É claro que o escritor pode ter interpretado nesse elemento heráldico o que expliquei numa conferência proferida na vila em 24/7/2014 (cf. Ventura, 2014a: 4); prefiro todavia conceder atenção à “Legenda” que para ele escreveu: “Gama, Cão ou Zarco / Não nasceram aqui. // Quem nasceu aqui foi o barco” [HAH, 13]. O poeta poderia ter escrito divisa no título, mas escolheu “legenda”; ou seja, o poema é uma leitura do brasão, o qual 20

Lembro que topónimo Espichel significa “falésia do abismo” (cf. Ventura, 2014: 4). 15

deve ser lido à luz da sua obra, usando-se de algum modo o método judaico-cristão dos quatro patamares, antes explicado. A aproximação a esse texto só estará porém completa que tivermos em conta o que pode muito bem ser o seu desenvolvimento ou segunda parte: “Primeira maravilha: / Pela associação de Zarco / Com barco e arco / Se encontra a Ilha. // Segunda maravilha: / Só que essa Ilha / Por ser ilha não há / Senão na ideia / De quem a teve já. // Terceira maravilha: / Mais do que o sol / Essa ideia brilha” [HAH, 14]. O retrato poético de Thomé Nathanael também nos ajuda, nomeadamente os seus primeiros versos: “Leva nas mãos o arco / E às costas o violino / Grande como um barco” [HAH, 33]. Se sistematizarmos os dados, temos uma viagem para a qual é necessário um veículo (o barco), três navegadores (Gama, Cão e Zarco), três elementos que, associados, facilitam a descoberta (Zarco, barco e arco), uma meta (a Ilha) e três milagres ou maravilhas que é preciso vivenciar para lá chegar. O percurso, como afirmei, parece figurado no brasão antigo da Piscosa. Trata-se de uma viagem iniciática ou mística, onde a caçada solitária “com cão” permite a liberdade de “errar à sorte pelo campo”, “com tempo para tudo, até para pensar”, sendo talvez orientada pela deusa “Diana […] com o arco-lua de flechas invisíveis” [FK, 17]; a caça é assim vista como uma actividade filosófica [FK, 18], equivalente à viagem interior, sendo o cão o seu instrumento e também o companheiro do caçador, com estatuto próximo desse arco lunar que sagita, atira setas – símbolos da sabedoria; juntam-se assim a “sagacidade inteligente” e o “instinto sensitivo” [FK, 16]. No que respeita ao castelo, tal como num poema de Pessoa que interpretou, simboliza a gnose [FK, 171]. Já a águia21 – que, recorde-se, é equivalente ao galo do jogo que antes abordei – indica a percepção directa da luz intelectiva, ou seja, a contemplação [DS, 12 – 13] ou theoria, como também afirmei, “senhora dos vastos domínios do Sol, ser absoluto sem vertigens” [FK, 25]. Este movimento na coluna do meio da árvore sefirótica causa temor a António Telmo, pois percebe que a centração na sizígia central de tipheret, sem mais, pode ter consequências mortais – “fulgor essencial que mata ou cega” – resultantes tanto do titanismo [cf. FK, 108 – 109], quanto do luciferismo [cf. LC, 100] ou de “caminhos de iniciação” neo-orientais que extinguem o pensamento, estimulando o sentimento [FK, 123]. Escritor místico, António Telmo opõe-se a todos quantos “renunciam a pensar, orgulhosos de uma experiência inefável de união com o divino”, oposta e hostil “à filosofia, ao pensamento e à razão”, dado que, para ele, “Mística é uma nobre palavra” porque equivale à iniciação [FK, 86 – 87]. Percebendo tudo isto no brasão da vila onde tantos anos viveu, resolveu propor uma via diferente, que passa por uma viagem árdua no fim da qual talvez se mereça a descoberta e a vivência de uma Ilha, onde se torna possível a contemplação da Esfera. Retornando às origens da Filosofia Portuguesa, fazendo-a renascer como Fénix, percebe que nessa ínsula (onde se situa o porto subtil) se encontrará – como Sampaio Bruno encontrou – A Ideia de Deus, mais brilhante do que o Sol22. A peregrinação faz-se num barco que é a metáfora com atributos de tipheret (“a Beleza suprema”, afirmava o autor d’ O Encoberto [FK, 119]), sefira onde se localiza Metraton. É, porém, decisivo “transcender (não eliminar) a imagem do veículo ou do barco”, segundo ensinava José Marinho [FK, 120]. Nessa tarefa, tornam-se importantes Zarco e o arco: Zarco porque descobriu a Madeira, aqui matéria lenhosa, maternal, “matéria do mundo” vinda da árvore sefirótica que, sim, “[cresce] em direcção ao Sol, mas quanto mais se [aproxima] da luz mais fundo [mergulha] as raízes na terra” [FK, 23]; o arco, tão parecido com a Lua, porque lança como a irmã de Apolo as suas setas de sapiência [FK, Cão, castelo e águia são elementos simbólicos que podem ser lidos à luz da tradição dantesca (Inferno, I, 101 e seguintes; Inferno, IV, 70 – 144; Paraíso, XVII, 100 e seguintes). Se assim se confirmar, o brasão antigo de Sesimbra poderá ser, antes, a empresa ou emblema de construtor do edifício onde se exibe, antes palácio de D. Jaime de Lencastre, bispo de Ceuta, edificado na década de 40 do século XVI. 22 É curiosa esta qualificação, tendo em conta que este atributo costuma ser atribuído, na tradição católica, a algumas aparições luminosas da Virgem Maria. Não deveremos esquecer que, nalguma tradição sincrética do marranismo peninsular, a mãe de Jesus é posta em equivalência com a Shekinah. 21

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17]. António Telmo demonstra, assim, que a viagem mística só se completa quando de tipheret se desce ao Reino ou malkut. Assim se realiza o Amor enquanto conhecimento carnal, natural e sobrenatural (éros, philia e agapé) – ou seja, enquanto caminho redentor, que acabará por permitir a visão de Deus face a face. São Paulo afirmou que tal só é possível se acontecer uma inserção colaborante no mundo das três virtudes teologais, manifestações terrenas e humanas que testemunham a presença do Altíssimo entre nós. Considerando que essa contemplação directa só poderá ocorrer no empíreo, como benefício celestial, deixa-nos uma centelha que satisfaz a mais elevada aspiração: “Agora, vemos como num espelho, / de maneira confusa; / depois, veremos face a face. / […] / Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor, / mas a maior de todas é o amor”. E explica a sua preferência, afirmando que “[esse] amor jamais passará” (1 Cor 13, 8, 12 – 13), desde que se desdobre na tríade que manda amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. São João (o do arkhé que é princípio cósmico e cosmogónico à maneira de Heraclito, mas também encarnação do Divino entre os Homens) chega a afirmar numa epístola que o Amor é uma teofania, defendendo que não é possível conhecer a divindade sem amar, porque “Deus é amor” e, “se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chega à perfeição em nós”, desaparecendo nesse momento todo o temor, “que pressupõe castigo” (1 Jo 4, 7 – 21). António Telmo refere que a revelação da Ilha só se oferece a quem tem a sua vontade apaziguada [cf. FK, 191] e já guarda no seu interior a Ideia de Deus, enquanto Memória Universal, como propôs Pascoaes. Não foram diferentes o caminho e a meta de São Brandão (ou até de São Thomas More). Se o Gama do poema pode ser lido como designação da letra grega e esta significa, na sua configuração, “a terra surgindo das águas”, logo liberta do abismo (cf. S/A, 1901: 372) (tal como acontece, aliás, no canto IX d’ Os Lusíadas com a metafísica Ilha dos Amores), então percebemos que a visão da Esfera corresponde à contemplação directa do arquétipo primordial: “[…] a esfera é a figura geométrica perfeita […] presta-se para simbolizar a ideia de Deus e servir de suporte mental para compreender essa ideia” [FK, 185]. Tal só é possível, contudo, não dissociando a face lunar e a face solar da divindade, Diana e Apolo filhos gémeos do mesmo Júpiter, os deuses da pureza23 e da poesia [DSS, 26 e 102]. São designações latinas dos mesmos princípios divinos que a tradição cabalística (de que o filósofo almeidense se reivindicava acima de tudo) figurou nesses intermediários celestes ou hipóstases divinas denominados Shekinah (a presença real da divindade entre os humanos) e Metraton (Anjo da Face e “autor das teofanias no mundo sensível”), os quais manifestam a paz entre os homens de boa vontade e a glória de Deus nas alturas, respectivamente24 (cf. Guénon, s/d: 31 e 37). Não devemos ocultar que na base da palavra esfera (sphera, que também pode ser spera…) está uma raiz hebraica – spr – que designa o livro, o número e a letra [cf. DFP, 241]. A contemplação do orbe parece assim corresponder à leitura de um Novíssimo Testamento, talvez o Evangelho Eterno de Joaquim de Flora, na medida em que a hermenêutica levada às últimas consequências conduz sempre a um regresso ao Paraíso, ou Pardèsh, sendo o Éden o “lugar da leitura” por excelência. * António Telmo tinha consciência da importância dos resultados das suas “congeminações”, nas quais segredo e sagrado nunca se puderam separar. Por isso mesmo os disseminou, dificultando a tarefa do leitor dos seus livros e tornando-a, assim, mais aliciante. Temia, sobretudo, a vanitas, achando necessário fugir ao “prazer de ser admirado”. Se A pureza de Diana surge por vezes como auxiliadora da sabedoria de Minerva [cf. DSS, 102]. Não seria disso que falava António Telmo ao sublinhar, na interpretação da sua carta astrológica, a “constante oscilação entre o pólo solar e o pólo lunar do conhecimento” [VG, 201]? 23 24

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nunca se negou à escrita e à publicação, manifestou constantemente uma humildade que foi descida à Terra, ao reino de Shekinah, e desvalorização dos seus escritos, em benefício da maior glória de Deus. Confessando que “o fogo de São Telmo no alto mastro / Resplandece na ideia, mas é sargaço” [HAH, 46], lamentou afinal que “Entre o medo do secreto / E a dor de o não viver” tivesse ficado “um analfabeto / Que sab[ia], porém, escrever” [HAH, 41]. O seu refúgio parecia estar no silêncio perante o mistério divino, ao ponto de afirmar que “Compreender faz mal”, sendo “Bom o enigmático” [HAH, 49]. Talvez por isso se tenha afastado dos grandes centros, onde mais facilmente seria seduzido pela fama e pela mundaneidade, resguardando-se antes nesse refúgio acastelado que foi Estremoz25. Ele próprio o afirmou: “Como escapar disto? § Fazendo por pensar e escrever com a mesma inocência com que vivia o rapazinho de calções armado de fisga; não deixar, por excesso de humildade, de pensar e escrever o que me vai sendo dado como o rio corre ou o vento sopra. E, cada // vez mais, estar retirado do mundo no meu canto provinciano, onde o 666 e as suas manobras se esquecem de atingir-me” [CNP, 145 – 146]. Tal atitude traz responsabilidades aos seus leitores. Queira Deus que nunca nos incluamos no número daqueles a quem se dirigiu o nosso cabalista: “E o que acontece em cada um de vós? Ou reagem negativamente ou se deixam ir no embalo ou ficam indiferentes, tanto se lhe dando que eu afirme isto ou aquilo. Todas as posições são defensáveis, mas, por esse caminho, não me parece estabelecer-se, entre nós, a relação capaz de despertar-nos para a Memória” [FK, 150]. A Memória é Verdade enquanto aletheia, não devemos esquecer. Não podemos assim sair indiferentes da leitura dos seus livros, ainda que em muitas páginas apenas o admiremos na discordância. É preciso desencarcerar a sua obra dos lugares mal frequentados em que tem sido colocada. É necessário ainda ler e estudar Telmo em pé de igualdade com outros autores que pertencem à sua família (Jorge Luis Borges, Martin Buber ou Paul Celan, por exemplo). Só assim, sem preconceitos académicos ou estrangeirados, entenderemos a sua verdadeira dimensão. Sopé da Arrábida, em dia de São Francisco de Assis / 2015. Para Maria António Vitorino e Pedro Martins, agradecendo-lhes a salvaguarda do legado de António Telmo. BIBLIOGRAFIA: Alighieri, Dante (1992) – Convívio. Lisboa, Guimarães Editores. Almeida, António Rodrigues de (2008) – Dicionário de Latim – Português. Porto, Porto Editora. [DLP] Almeida, Álvaro Duarte & Belo, Duarte (2007) – Portugal Património, vol. IV. Rio de Mouro, Círculo de Leitores. Carolino, Luís Miguel N. (1994) – “A gravação das Carreiras – Portalegre – e as tradições lúdicas no Alto Alentejo”. Ibn Maruán – Revista Cultural do Concelho de Marvão, nº. 4, Marvão, Dezembro: 83 – 94. Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain (1982) – Dictionnaire des Symboles. Édition revue et augmentée, Paris, Robert Laffont / Jupiter. [DS] Dinzelbacher, Peter (2000) – Diccionario de la Mística. Burgos, Editorial Monte Carmelo. [DM] Espírito Santo, Moisés (s/d) – Dicionário Fenício – Português, contendo os glossários das línguas e dialectos falados pelos Fenícios e Cartagineses. Lisboa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, Universidade Nova de Lisboa. [DFP] Guénon, René (s/d) – O Rei do Mundo. Lisboa, Editorial Minerva [ed. original de 1958]. Hall, James (1974) – Dictionary of Subjects and Symbols in Art. London, John Murray Publishers. Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia – Portugal (2003) – Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (seis volumes com paginação seguida). Rio de Mouro, Círculo de Leitores. [H] Lorente, Juan F. Esteban (s/d) – Tratado de Iconografía. Madrid, Istmo. Estremoz vem de duas vozes semitas que significam “esconderijo, protecção” (str) e “fortaleza, baluarte, lugar de refúgio” (mooz) [DFP, 177 e 242]. 25

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