O TERMO CONTRATUAL DE 1754 E AS MODIFICAÇÕES NO RETÁBULO-MOR DA MATRIZ DO PILAR, EM OURO PRETO.

June 5, 2017 | Autor: J. Grossi Sad Junior | Categoria: Talha Portuguesa E Luso-Brasileira
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O TERMO CONTRATUAL DE 1754 E AS MODIFICAÇÕES NO RETÁBULO-MOR DA MATRIZ DO PILAR, EM OURO PRETO. João Henrique Grossi Sad Jr. Bacharel em Desenho/ Licenciado em Desenho e Plástica – UFMG [email protected] Resumo: O retábulo da capela-mor da Matriz do Pilar, em Ouro Preto, é considerado a obra-prima da talha em estilo joanino na capitania das Minas. Partindo da análise de um termo contratual firmado em 1754 - e levando em conta as exigências eclesiásticas coetâneas - este artigo investiga modificações realizadas na estrutura daquela obra após a morte de seu principal realizador, Francisco Xavier de Brito. Palavras-chave: termo contratual; retábulo; modificação. Abstract: The main retable´s woodwork at Mother Church of Pilar, Ouro Preto, is regarded as the highest point of joanine style in Minas Gerais. Starting from a contract signed in 1754, the following article analyses structural changes made on that retable after the death of its main creator, Francisco Xavier de Brito. In doing so, the article considers coetaneous ecclesiastical demands. Keywords: contract; retable; modification.

A inspiração para essa pesquisa surgiu durante a leitura de um artigo de Sabrina Mara Sant´Anna sobre os sacrários da igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. No corpo do artigo a autora transcreve um documento de 1754, através do qual a Irmandade do Santíssimo Sacramento, responsável pela manutenção da capela-mor daquela igreja, contrata o artífice José Coelho de Noronha para realizar modificações no retábulo-mor (SANT´ANNA, 2013, p.48). Diante de uma fotografia do retábulo, percorri o documento analisando os itens da reforma, e percebi que havia ali um desafio instigante. Os termos técnicos do século XVIII não eram os mesmos usados hoje em dia pelos historiadores, e para compreendê-los foi preciso relacionar as solicitações do contrato às feições originais do retábulo. Esse esforço de interpretação levou naturalmente às conjecturas sobre a forma primitiva do retábulo. Aproximar-se daquela forma é um dos objetivos desse estudo; outro objetivo é investigar as razões que levaram a Irmandade do Santíssimo Sacramento a alterar a obra-prima de um dos mais talentosos entalhadores de sua época, o português Francisco Xavier de Brito. Finalmente, pretendemos demonstrar que, entre a forma original do retábulo e a que temos hoje em dia, preciosas feições intermediárias igualmente se perderam.

O estilo joanino na Capitania das Minas e o retábulo-mor do Pilar de Ouro Preto O século XVIII viu chegarem a Minas Gerais dois estilos portugueses de retábulos barrocos. O segundo deles, chamado D. João V ou simplesmente joanino, prevaleceu a partir da terceira década do século (ÁVILA, 1996, p.172). Seu nome é um tributo ao monarca que, devotado à cultura da Itália, patrocinou um programa sistemático de importação da arte e dos artífices daquele país, os quais iriam alterar os rumos da cultura retablística portuguesa. Passaram a fazer parte dos retábulos, entre outros elementos, os dosséis1, as colunas torsas com terços inferiores estriados, os quartelões 2 e as figuras antropomórficas de grande porte. Germain Bazin, autor da mais importante obra de síntese sobre a talha luso-brasileira, distingue duas tipologias da talha joanina: São ainda numerosos em Minas os altares e decorações realizadas no primeiro estilo D. João V, estilo barroco visando à riqueza pela superabundância e ao qual a cidade do Porto se manteve fiel, enquanto em Lisboa, desde 1725, já se esboçava um estilo mais moderado (BAZIN, 1983, p. 337).

O estilo lisboeta, de ênfase arquitetônica e grande elegância decorativa, também chegaria a Minas Gerais. Nas palavras de Bazin, “por volta de 1745, quando a desordem barroca atingia o paroxismo, processou-se a uma reforma, tendendo a um maior rigor arquitetônico” (BAZIN, 1983, p. 341). O historiador atribui a mudança à atuação do português Francisco Xavier de Brito, nascido supostamente na região de Lisboa, por volta de 1715. Temos notícias dele no Rio de Janeiro a partir de 1734 (HILL, 1996, p. 47), onde trabalhou ao lado de Manoel de Brito, criando na capela da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência uma “obra-prima dessa escola lisboeta, que orientando a escultura para a estatuária, conseguiria integrá-la numa rítmica decorativa” (BAZIN, 1983, 330). Em Minas, seus passos iniciais têm registros esparsos, mas a partir de 1746 sabemos com detalhes de sua contratação para a criação da talha da capela-mor da igreja matriz do Pilar de Ouro Preto. Em 1751 encontrava-se doente, vindo a falecer no dia de Natal. Não sabemos se, na ocasião, a talha do retábulo estava pronta, e pode ser que seu sócio Antônio Henriques Cardoso ou outro entalhador tenha concluído o serviço (BAZIN, 1983, p. 80-81). Seja como for, Francisco Xavier de Brito deixou uma marca inconfundível de sofisticação e delicadeza na talha da capela-mor do Pilar. A partir dali, estava definitivamente implantado na região o segundo estilo D. João V a que Bazin se refere, também chamado de joanino evoluído. 1 2

Coberturas salientes incorporadas aos nichos (cavidades) centrais dos retábulos (cf. ÁVILA, 1996, p. 141). Pilastras entalhadas com relevos que lembram rolos de pergaminho abertos (cf. ÁVILA, 1996, p. 169).

O termo contratual de 1754 Antes que se passassem três anos da morte de Francisco Xavier de Brito, decisivas alterações no retábulo-mor foram contratadas. A 23 de junho de 1754, a Irmandade do Santíssimo Sacramento, juntamente com membros da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar, declarou a existência de “vícios e erros de arquitetura” no retábulo, e a necessidade de reformas para “haver de emendar e ficar a obra com simetrias necessárias e o decoro devido a semelhante lugar 3”. Ficou estabelecido “q se fizesse a obra necessária p.ª a emenda dos ditos erros como tambem o nicho ou lugar q. se inlleger maes comodam. te p.ª acollocação da Imagem da ditta Snr.ª como padroeyra q. he desta matris” (apud SANT’ANNA, 2013, p. 47). Alguns dias depois, firmou-se o seguinte termo contratual, no qual foram especificados os itens da reforma e o nome do artífice responsável pela obra, José Coelho de Noronha: Tr. que fas a Irmande do Santissimo Sacrm.t° a Jose Coelho de Noronha para concertar e compor oTr[o]no Levantar a cupula e fazer o nischo de N. Snr.ª do Pillar (?) Aos vinte e seis dias do mes (?) de1754 sendo na casa do consistorio desta Matriz de Nossa Senhora do Pilar estando junto os officiais da mesa do Santissimo Sacramento a Saber Provedor, Procurador, Thizr.° comigo Escrivão abaixo nomeado em virtude do Tr.° q. se acha visto em mesa neste L.° afl. 83 em que nos dá orde os dittos Irmãos para a meza mandar concertar o Tr[o]no, e a maes obra que necessita a talha da capela mor a qual com effeito ajustamos a saber aLargar a boca da Tribuna Levantar a muldura da capela e os quartoes místicos pollos p.r Sima da colluna Redonda, e no Lugar em q. Estavão por hua quartelas com Seus Rapazes debaixo, o Torno desmancha elhe todo, e pollo na figura de Seis tavo, e puxallo mais fora o possível e a Recualo atrás meyo palmo, e por obancos com igualdade de Sorte de Sorte q.’ Se passa andar com facelid. e Por cima delles e aSim maes duas cúpulas nos nichos com Suas pianhas e também hum nicho (?) Para nosso Snr.ª seguindo a figura do banco ao Sacrário em Seistavo as costas furadas de tavoado (?) e tudo Será Levadio, e o barrete de Sima e as quatro quartelas servirás de pillares tudo será em talhado na melhor forma q. na paraje Se poder acomodar de Sorte que não aSombre a boca, e tr[o]no, e que fique descobreta a Senhora para o que se lhe botará pra (?) os dous Serafins q. estão em Sima do Sacrario e tudo o mais q. José coelho de Nor.ª offecial de entalhador entender e no lhe dissemos ao fazer deste cuja obra ajustamos com o ditto José coelho por preço e quantias de trezentas oitavas de ouro de mil e duzentos cuja nos obrigações nos obrigamos a Satisfazer pelos bens’ desta Irmand.e ev.ª a todo o tempo constar fizemos este tr.º que todos assinamos e Miguel Lopes de Arayo Escrivão desta Irmd.e q. esta mandey fazer e asinamos. /João de Souza Lx.ª /Manoel Mor.ª Trr.ª/Miguel Lopes de Ar.º /Jose Coelho de Noronha /João Pinto de Mir. da (apud SANT’ANNA, 2013, p. 48)

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Uma explicação completa sobre o significado dos conceitos de simetria, decoro e outros termos, no século XVIII, pode ser lida na interessante tese de doutorado de Rodrigo Bastos (ver Bibliografia).

Antes de passarmos à análise comparativa entre os itens do contrato e as feições atuais do retábulo-mor (fig.1)4, falaremos brevemente sobre o espírito subjacente ao processo de criação artística na Capitania setecentista – local e época em que o caminho estético para o céu era pautado pelas exigências da Contra-reforma. Assim será possível especular sobre a natureza dos “vícios e erros de arquitetura” do retábulo-mor e sobre a importância da criação de um nicho para expor a imagem da padroeira.

fig.1

As matrizes de Minas Gerais, no século XVIII, constituíam um símbolo da presença da igreja na colônia. A imponência da Matriz do Pilar de Vila Rica – antiga Ouro Preto – permitia que se realizassem ali, além das cerimônias ordinárias do culto, a posse de

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Os desenhos desse artigo foram criados pelo autor.

governadores e as comemorações de nascimentos, casamentos e exéquias reais (BASTOS, 2009, p.110). Naturalmente, qualquer obra ali exigiria os melhores profissionais, e à época do contrato, José Coelho de Noronha era talvez o mais conceituado entalhador da Capitania, tendo já trabalhado em igrejas como a matriz de Santa Bárbara e a Sé de Mariana (PEDROSA, 2012, p. 84). O valor a ser pago, trezentas oitavas de ouro, era quantia alta para a época, o que nos leva a pensar sobre a importância da função desempenhada por este aparato decorativo, o retábulo-mor. A prática contra-reformista colonial solicitava a máxima atenção para o culto da missa e o sacramento da Eucaristia, e nesse contexto o retábulo-mor era um elemento de destaque. Construído em espaço sagrado - a capela-mor - ele é o termo do itinerário simbólico que o fiel deve percorrer ao entrar na igreja. O conjunto de sua iconografia, que costuma trazer, além do sacrário, imagens de santos, anjos, as figuras da Trindade e outros símbolos, traduz em imagens o destino a que o fiel se dispõe através da Eucaristia. Myriam Ribeiro descreve um dos artifícios usados para induzir os fiéis a concentrarem sua atenção no retábulo-mor: Este ponto central de organização decorativa do ambiente (...) é naturalmente o altar-mor5, para o qual é dirigida de imediato a atenção do espectador a partir da porta de entrada, por um jogo sutil de convergências, no qual os retábulos laterais funcionam como etapas intermediárias até a região do arco-cruzeiro, onde os retábulos são colocados propositadamente de viés acentuando o efeito de convergência. (OLIVEIRA, 2007, p. 372)

A abertura central de tais retábulos, a tribuna ou camarim, contém uma estrutura em degraus chamada de trono eucarístico (ver fig.1). No século XVIII, o topo do trono eucarístico era reservado para a exposição de um dos símbolos mais valiosos do catolicismo, o Santíssimo Sacramento. Esse aparato tinha apoio oficial: recorremos à norma pontifícia de 1705, chamada Instructio Clementina, primeiro documento oficial a referir-se ao trono eucarístico (MARTINS, 1991, p. 33). Fausto Martins descreve a preocupação de manter livre, para os fiéis, a visão do Santíssimo Sacramento, quando esse estivesse exposto no trono: Toda a igreja em geral e a capela-mor em particular devia estar decorada com grande aparato, mas observando escrupulosamente a norma que estipulava que o senhor exposto deveria ser visto de qualquer ângulo do templo (MARTINS, 1991, p. 33-34).

O retábulo-mor também era o espaço de exposição do santo ou santa padroeira do templo, cuja imagem ficava ao pé do trono eucarístico, sobre o sacrário (OLIVEIRA, CAMPOS, 2010, p.74). 5

Altar-mor é entendido aqui como o conjunto formado pela mesa do altar e o retábulo.

O padrão descrito acima foi seguido na Matriz do Pilar de Vila Rica. Ali, aqueles dois ícones - o Santíssimo Sacramento e a santa padroeira - ao centro do retábulo-mor, enquadrados pela moldura da boca da tribuna, transformavam-se em uma espécie de ponto de fuga na perspectiva geral do interior da igreja. O parágrafo inicial do contrato de 1754 (“T[arefa]. que fas a Irmande do Santissimo Sacrm.° (...) para concertar e compor oTr[o]no Levantar a cupula e fazer o nischo de N. Snr.ª do Pillar”) demonstra a intenção de enfatizar a ambos como centros da convergência decorativa da Matriz. Esse e outros trechos (“aLargar a boca da Tribuna Levantar a muldura da capela”) sugerem que a abertura original da tribuna era insuficiente para expor com a devida decência o Santíssimo Sacramento. O texto é omisso quanto às providências para se alargar a tribuna, concedendo, porém (“e tudo o mais q. José coelho de Nor.ª [...] entender”), liberdade para que Noronha tomasse iniciativas (de acordo com nossas visitas à capela-mor, podemos apenas, até o momento, sugerir a hipótese de que os intercolúnios - seções entre as pilastras centrais, ou quartelões, e as colunas externas tenham sido cortados, criando espaço para afastar os quartelões um do outro). É mais fácil conjecturar sobre a maneira como foi levantada a “muldura da capela”. O texto diz em seguida: “e os quartoes místicos pollos p.ª Sima da colluna Redonda, e no Lugar em q. Estavão por hua quartelas com Seus Rapazes debaixo”. Quartela é uma “peça que, numa estrutura ornamental, serve de sustentação a outra” (ÁVILA, 1996, p. 169). Na fig.2 vemos uma das duas quartelas (com um anjo adulto em cima e outros três rapazes) encomendadas com o fim de serem postas sobre as pilastras centrais (ver fig.1). Por determinação do contrato, o par de quartelas deveria substituir os “quartões místicos”, e aqui surge uma interessante questão de interpretação. Tudo indica que os “quartões místicos” a que o contrato se refere são o que hoje chamamos de fragmentos de frontão (fig.3). Acreditamos que o termo quartão devia-se ao formato em quarto de circunferência de tais elementos (místicos, pela presença dos anjos). “Collunas redondas” seriam as colunas externas, chamadas hoje de salomônicas ou pseudo-salomônicas. A partir do contrato deduzimos que, originalmente, os fragmentos de frontão ficavam sobre as pilastras centrais.

fig.2

fig.3

fig.4

Em relação ao trono eucarístico, não temos condições, até o momento, de avaliar os artifícios usados para “desmancha elhe todo, e pollo na figura de Seis tavo, e puxallo mais fora o possível e a Recualo atrás meyo palmo, e por obancos com igualdade (...) de Sorte q.’ Se passa andar com facelid.e Por cima deles”; dessa forma, comentaremos apenas sobre o motivo de tais exigências, e não sobre sua efetiva realização 6. Simbolicamente, a figura de sextavo (hexágono) tem uma função eucarística (BASTOS, 2009, p.192); a forma sextavada também harmonizaria o trono com duas outras estruturas hexagonais, o sacrário e o zimbório 7. E as mudanças nas medidas dos degraus serviriam para adaptá-los à circulação das pessoas no espaço do camarim, que até hoje é eventualmente percorrido.

fig.5 6

A dificuldade em constatar a realização de certos itens nos leva a considerar a hipótese de que nem todas as exigências do contrato foram cumpridas literalmente. 7 Torre que coroava a abóbada da capela-mor, à época (BASTOS, 2009, p.168).

A fig.5 traz uma possível reconstituição da forma original do retábulo. O dossel, mais baixo, é sustentado pelos “quartões místicos”, e os dois anjos adultos que hoje estão sobre as quartelas criadas por Noronha ocupam os topos das colunas externas. O desenho suprime as pequenas cúpulas laterais (fig.4) solicitadas pelo contrato8 (“e aSim maes duas cúpulas nos nichos com Suas pianhas”) e os santos que hoje estão sob elas, já que os santos setecentistas eram outros (OLIVEIRA, CAMPOS, 2010, p.49). No topo do trono está a custódia9 na qual se expunha a hóstia consagrada, e sobre o sacrário a primitiva imagem da padroeira, hoje guardada no museu da Matriz. Esta imagem, menor que sua sucessora (do século XIX), perde em dimensão ao ser vista junto aos anjos que estão sobre o sacrário10. Isso nos leva a pensar no nicho como um expediente para acentuar a imagem da padroeira em meio a outros elementos maiores e mais expressivos. Provavelmente a devoção à santa era inversamente proporcional a seu tamanho; temos uma idéia da intensidade dessa devoção através das palavras de frei Agostinho de Santa Maria, que escreveu sobre a Matriz do Pilar e sua santa: Acabado o Templo, & posto em toda a perfeyçaõ, tratáraõ logo de colocar nelle a Santissima Imagem da Rainha da Gloria [...] Está a Senhora colocada sobre o seu Pilar no meyo do Altar mòr como Senhora, & Padroeyra daquela casa. A sua estatura saõ três palmos, & o pilar tem os mesmos, este he fingido de pedra, & a Senhora estofada de ouro. O anno em que se solemnizou esta colocação daquela soberana Senhora, foy o de 1710, em dia de sua gloriosa Assumpçaõ quinze de Agosto, & neste dia esteve a Igreja muyto ricamente armada. Logo que foy colocada, acendeo Deos em todos os que habitavaõ aquella terra hum taõ grande fogo de devoçaõ para com esta Senhora, que este considero eu, ser hum dos seus grandes milagres, & tambem naõ he pequeno o grande zelo, & fervorosa devoçaõ, com que a servem, & e a festejaõ todos os annos (...) (SANTA MARIA, 1723, p.238)

Assim como o zimbório, demolido alguns anos depois de sua construção, nenhum vestígio do nicho da padroeira restou na Matriz. Sua confecção, porém, é confirmada por recibos assinados por Noronha em 1754 (PEDROSA, 2012, p.234). Na tentativa de reconstituir suas feições, recorremos ao retábulo de Nossa Senhora do Rosário da matriz de Catas Altas (fig.6)11, que possui um nicho cuja estrutura condiz com a solicitação do contrato: “hum nicho Para nosso [sic] Snr.ª seguindo a figura do banco ao Sacrário em Seistavo (...) e o

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Noronha criou cúpulas semelhantes em Caeté, quatro anos depois. Peça de prata cinzelada que se perdeu em um roubo no século XX. 10 O posicionamento original desses anjos é controverso. O contrato fala em “dous Serafins q. estão em Sima do Sacrario”, sem especificá-los. A situação atual sugere uma remontagem; decidimos mantê-la no desenho para mostrar o contraste entre as dimensões dos anjos e da padroeira. 11 Foto do autor. 9

barrete de Sima e as quatro quartelas servirás de pillares”. O trecho sugere uma espécie de baldaquino formado por quatro pilares e encimado por uma cobertura em forma de barrete de clérigo, cobrindo a imagem da padroeira; tal estrutura ficaria sobre o sacrário. A redação do contrato cuidou para que o nicho não obstruísse a visão da tribuna (“de Sorte que não aSombre a boca, e tr[o]no”), vindo talvez daí a instrução para que o fundo do nicho deixasse passar a luz (“as costas furadas de tavoado”). É possível que houvesse um cortinado a ser aberto por serafins, como de costume no estilo joanino; em todo caso, a instrução era para que a santa ficasse claramente visível (“e que fique descobreta a Senhora”). Mais importante, porém, talvez seja a presença de fragmentos, de origem incerta, transferidos do depósito da Matriz do Pilar, em 1994, para a vizinha capela do Senhor do Bonfim, e que hoje servem de oratório (fig.7)12. A remontagem conta com um dos pilares originais e parte do topo da estrutura, em forma de cúpula, com anjos aos quais faltam vários membros (cabeças de anjos também foram retiradas do pilar que restou). O suporte à direita e a moldura central que simula um sacrário são reconstituições. Certos fatores nos levam a supor que estes são os remanescentes do nicho construído por Noronha: as medidas da base da estrutura (supondo-se que houvesse quatro pilares) permitiriam sua colocação sobre o sacrário; a altura interna é suficiente para abrigar a imagem da primitiva santa; o topo da estrutura, como em Catas Altas, lembra a forma de barrete, exigida no contrato; e finalmente, a qualidade da fatura dos anjos indica que foram construídos por um artífice consumado.

fig.6

fig.7

fig.8

A fig. 9 propõe uma reconstituição da tribuna do retábulo-mor, contendo o nicho, a custódia e o resplendor (fig.8)13, também construído por Noronha14. O desenho do nicho segue a forma do oratório da capela do Bonfim. Respeitamos, na medida do possível, as proporções 12

Foto do autor. Foto de Victor Godoy. 14 A peça, conservada hoje em dia no coro da Matriz, perdeu duas de suas cabeças de anjos; foi encomendada a Noronha em 1752 (PEDROSA, 2012, p.226), e até os dias de hoje é ocasionalmente exposta sobre o trono. 13

entre este, a santa primitiva e o retábulo15; tentamos o mesmo com o resplendor e a custódia. (A superposição de ambos no topo do trono compunha um truque visual tipicamente barroco: a impressão de que a custódia era sustentada pelos anjos em pleno vôo.)

fig.9

Conclusão Essa pesquisa teve para mim um caráter ambivalente. Por um lado, ela acrescentou novos itens ao inventário de perdas sofridas pela capela-mor da Matriz do Pilar de Ouro Preto (a tese de Rodrigo Bastos apresenta uma reconstituição da capela-mor à época em que o zimbório ainda estava lá). Em vários momentos, porém, senti um tipo de satisfação que, imagino, é semelhante à do paleontólogo que descobre um sítio cheio de ossos pré-históricos. Essa satisfação deve ser dividida com os especialistas que me ouviram e orientaram, desde o início: Alex Bohrer (IFMG), Marcos Hill e Adalgisa Campos (ambos da UFMG); devo citar também a generosidade do pessoal da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, em especial seu administrador, Carlos José, que contribuiu com informações valiosas, incluindo a dica do oratório da capela do Bonfim.

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Nessa reconstituição decidimos retirar os quatro anjos sobre o sacrário; de acordo com o contrato, dois deles sairiam dali para compor o nicho.

As conjecturas e reconstituições propostas ao longo deste artigo não pretendem ser definitivas; reconheço que o assunto foi abordado de maneira incipiente. Como se trata de um conteúdo muito rico, minha intenção é aprofundar o estudo para apresentá-lo em breve com mais consistência.

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