O território perdido em Maria Martins e Veronica Stigger

July 14, 2017 | Autor: Gustavo Ramos | Categoria: Literature, Modernist Literature (Literary Modernism)
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O território perdido em Maria Martins e Veronica Stigger, Por Gustavo Ramos.1 Em 1929, Georges Bataille escreve seu verbete “Métamorphose” na revista “Documents”, na segunda dentição, de número 6, que Podemos definir a obsessão pela metamorfose como uma necessidade violenta, se confundindo aliás com cada uma de nossas necessidades animais, que excitam um homem a deixar de lado os gestos e atitudes exigidos pela natureza humana: por exemplo, um homem em meio de outros, em um apartamento, se joga de bruços e vai comer a comida do cachorro. Existe assim, em cada homem, um animal trancafiado em uma prisão, como um prisioneiro e há uma porta, e se nós entreabrirmos a porta, o animal se apressa a sair como o prisioneiro que encontra uma saída; então, provisoriamente, o homem cai morto e a besta se conduz como uma besta, sem qualquer preocupação de provocar a admiração poética do morto. É nesse sentido que nós olhamos um homem como uma prisão de aparência burocrática.2

É a necessidade de se travestir em um outro, de se modificar e, para usar as palavras de Bataille, de se metamorfosear, que nos separa daquilo que é o humano – processo esse bastante complexo, pois incide não só na conhecida diferença entre homem x animal e homem x natureza, mas também, e tão ou mais significativo, na própria derrubada das leis – da palavra – e dos sentidos atribuídos a instituições vistas até então como portadoras daquilo que se espera ser o bem e o normal. Com a mudança de homem para animal, qual a importância da lei, p. ex.? Por que respeitar instituições, como os bancos, se elas não nos dizem mais respeito?3 A besta está aprisionada e precisamos abrir a porta para que ela saia e possa nos mostrar que não somos únicos, fechados e inteiros. É a partir do conhecimento que a besta – o outro, o diferente – pode nos trazer, que podemos rearranjar os sentidos anteriores, vistos como solidificados, mas que só ganham relevância quando tirados de nós mesmo, quando expatriados. ____________________ 1

Estudante de Mestrado em Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob orientação do Professor Doutor Raúl Antelo. 2 “Métamorphose”, em Documents, n. 6, nov. de 1929, pp. 332-334. 3 No Brasil, p. ex., com as recentes manifestações que colocaram em xeque justamente as instituições que dizem nos representar, a imprensa se valeu do significante “vândalo” para caracterizar as passeatas e as pessoas que “liberavam seus animais” para protestar. O que já nos indica que a discussão proposta por Bataille em 1929 – mas não só – ainda hoje está em questão, pois existe uma divisão latente entre os manifestantes “normais” e os vândalos, ou seja, entre os homens e os animais, entre a civilização e a barbárie. Indo à origem do significante vândalo, como bem lembrou Raúl Antelo, encontraremos que os vândalos eram uma tribo germânica cujo objetivo era saquear e acabar com o Império Romano, possível caminho de leitura para os nossos atuais “vândalos”.

Anos depois, no Brasil, Flávio de Carvalho, em 1936, publica seu livro “Os Ossos do Mundo”, fruto de sua viagem à Europa, em que o autor lê o Brasil, o “Novo Mundo”, a partir dos novos sentidos atribuídos e agregados com o deslocamento feito, com o conhecimento do outro e que pode ser também o meu próprio conhecimento. No capítulo “As Ruínas do Mundo”, Flávio afirma que o homem dentro de uma civilização tem os seus sentidos impregnados e afogados, ele quase que só emana e recebe do que existe imediatamente em redor, ele é um ser isolado pelos fatos que o rodeiam, um ser sem ponto de vista; não há julgamento porque não há contraste, e ele é, como o peixe dentro do mar, quase incapaz de apreciar os acontecimentos de uma vida vizinha, principalmente quando é simultânea. Para enxergar e apreciar, ele precisa afastar-se dos acontecimentos, adquirir um ponto de vista.4

A questão da viagem, do deslocamento, no espaço ou não, do encontro com o outro, tem suas ressonâncias também na arte. Lasar Segall, lituano, abraça o Brasil como seu território a partir de 1923, deixando-o em uma posição intermediária entre lá e cá, entre dois territórios, duas diferenças, caracterizados por uma “cidadania indecisa”, segundo Gilda de Mello e Souza. Na produção de Segall essa mudança é relevante quando se comparam suas pinturas de início de carreira até a chegada ao Brasil: à medida que chegamos perto da viagem, de seu des-locamento, as cores ganham vibrações e até quando ele se reproduz, como é o caso de “Encontro” de 1924, a cor utilizada é o marrom, mostrando-se, portanto, um verdadeiro mulato brasileiro; é uma maneira de se adaptar à terra nova, uma maneira de se metamorfosear com ela. Porém, é na tela “Menino com lagartixas”, também de 1924, que o pintor, metamorfoseado com a luz, o clima tropical e a cor verde, produz uma tela em que podemos ver um negro, duas lagartixas e diversas folhas de bananeira, de cor verde forte. O outro entrou de forma latente na vida de Segall – fato esse cuja possibilidade só lhe foi dada quando partiu para o Brasil. ____________________ 4 Cf. CARVALHO, Flávio de. As Ruínas do Mundo. In: _______. Os Ossos do Mundo. São Paulo: Editora Antiqua, 2005. p. 41. Anos antes, em 1932, o mesmo escritor publica “Experiência Número 2” cujo mote é a análise da reação da multidão ao vê-lo andar na contramão de uma procissão de Corpus Christi de chapéu. Foi o encontro com o outro, com o diferente, com o animal que saiu dessa massa para atacá-lo. O linchamento só acabou, nos diz Carvalho em seu livro de 1936, quando o canto retornou ao normal. “Uma hora depois, refugiado numa leiteira e protegido por um pelotão de guardas-civis armados, ouvia os cânticos que recomeçavam ao longe e fui informado por um guarda-civil que o poder do cântico havia de novo congregado os crentes.” (p. 59, grifo meu)

Veronica Stigger, no catálogo dedicado ao artista Lasar Segall, de 2013, escreve um belo texto intitulado “Olhar à margem, olhar a margem” em que analisa a vida e a obra de Segall a partir do deslocamento e afirma que “o exílio, para o escritor como para o artista visual, talvez não seja apenas um tema entre outros, mas algo como uma temática fundamental, que designa a condição mesma da literatura e da arte.”5 Ao trazer à tona a figura do expatriado nas artes, aquele que anda por diversas terras, mas não pertence a nenhuma em específico, Stigger de uma certa forma também se apodera de tal exílio nos seus próprios textos, como é o caso de “2035”, publicado no Brasil na antologia de contos “Todas as Guerras”, organizada por Nelson de Oliveira, no volume 1, dedicado aos “Tempos Modernos”6, e que foi recentemente traduzida ao espanhol por Gonzalo Aguilar para a Editora Grumo, no livro “Sur”.7 Nele, a escritora faz uso do gesto como forma de articular o horror da violência com uma narrativa permeada de descrição – ao longo das primeiras páginas, somos apresentados a Constância, menina que comemora dez anos no dia em que se passa a história. O narrador faz questão de caracterizar todos os prédios, os formatos, as roupas, cabelos e principalmente a cor, uma constante ao longo do texto, no qual podemos encontrar, desde a cor do uniforme dos oficiais (“cinza-chumbo” p. 55) como a cor de pele das mulheres que ajudam Constância a se arrumar (“Na porta do prédio, o oficial entregou a menina para duas mulheres jovens, morenas, com os cabelos presos numa grossa trança e vestidas com aventais brancos” p. 65). A gestualidade como um processo de mascaramento do que ainda seria narrado no terceiro e último parágrafo do escrito e que de uma certa forma nos dá uma nova leitura do que até então fora narrado – como se a experiência final de Constância, que é levada ao mesmo tempo para quatro partes diferentes, fosse o nosso próprio deslocamento, nossa viagem de redescoberta e rearranjo dos sentidos. O gesto final, de divisão corporal, de des-pedaçamento, como um exílio forçado e que provoca uma releitura de nossa própria vida em 2013 ou em 2035, como nos é sugerido no título do escrito stiggeriano. ____________________ 5 Cf. STIGGER, Veronica. Lasar Segall. São Paulo: Folha de S. Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2013. p. 27. 6 OLIVEIRA, Nelson de Oliveira (Org.). Todas as Guerras: antologia de contos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. vol. 1. A partir de agora todas as citações do texto “2035” serão dessa edição e virão indicadas somente pelo número de página. 7 STIGGER, Veronica. Sur. Trad. de Gonzalo Aguilar. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Grumo, 2013.

A separação em quatro partes é descrita de maneira pormenorizada e de forma extremamente normal, como no episódio anterior em que Constância não quer chicotear a pessoa que a carregava até o lugar da “festa” feita exclusivamente para ela, em um campo aberto, bonito e arborizado. É o que podemos chamar de narrativa pasteurizada, asséptica, que deseja eliminar os resquícios baratos da violência para enganar o leitor, usando as cores e a ansiedade da garota com a festa, efeito esse quebrado quando lemos que quatro oficiais se aproximaram de Constância e a seguraram cada um por um de seus membros, erguendo-a no ar. Quatro outros homens, todos de branco, vestindo calças de pernas folgadas e camisas de mangas compridas, se aproximaram, a cavalo, dos quatro oficiais. Cada um dos oficiais amarrou uma das pernas ou um dos braços de Constância na sela de cada um dos cavalos. Constância sentiu o calor do sol no rosto, fechou os olhos e sorriu mais uma vez. Os quatro cavaleiros, ao som do primeiro disparo de canhão, comprimiram simultaneamente suas esporas contra as costelas dos cavalos que montavam, fazendo-os disparar. Cada cavalo correu para um lado, levando consigo um dos membros de Constância e deixando um rastro vermelho sobre a grama verde. O tronco da menina pousou novamente sobre a grande almofada azul, na qual estavam bordadas, com um fio muito claro e vivo, pequenas estrelas brancas. (p. 68)

O “corpo”, ou talvez seja melhor dizer o pedaço de corpo, de Constância, seu tronco, ao ser destroçado, volta à almofada azul na qual estavam bordadas estrelas brancas. Stigger aqui dá um passo além para o que Clarice Lispector fez em “A Hora da Estrela”, de 1977, em que Macabéa, no final, é atropelada e vomita uma estrela de mil pontas “e então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a água voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.”8 Macabéa regurgita uma estrela como uma maneira de ganhar vida, humanidade, mesmo que isso tenha ocorrido no final de sua trajetória. Já Constância, ao viver em um mundo sem cor, tem a ilusão de que tudo o que estão a fazer a ela será para o bem, como uma festa, um banho com água quente, corte de cabelo, roupa nova e bem lavada, para terminar, não vomitando e trazendo vida ao que não mais existe, mas sim terminar em cima de uma almofada de cor azul em que estão bordadas estrelas brancas. ____________________ 8 Cf. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Stigger também explora o universo dos corpos des-pedaçados em seu livro “Os Anões”, de 2010, em que o escrito homônimo de abertura narra o linchamento de um casal de anões. Ao fim, tal casal, transformado em uma massa morta, sem vida, destroçado, é retirado com um rodo, descartado para o lixo, como se fosse uma sujeira, eles perderam o território, perderam as referências. A narradora diz que “já do outro lado da calçada, olhei para trás para cumprimentar a dona Sílvia, que entrava na confeitaria, e via a balconista, com um grande rodo, empurrando para um canto toda aquela sujeira.”9 Tal perda de território também está presente na artista Maria Martins, cuja última exposição teve curadoria da própria Veronica Stigger no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) de 10 de julho a 15 de setembro de 2013. Nela, a escritora dividiu a grande sala do museu em cinco núcleos: “trópicos”, “lianas”, “deusas e monstros”, “cantos” e “esqueletos”. Maria Martins, que nunca passou nem perto da Amazônia, é um caso especial nas artes plásticas, pois, em 1943 ela inaugura sua exposição na Valentine Gallery, em Nova York, com figuras amazônicas, como Cobra Grande, Boiuna, Yara, Yemenjá, Aiokâ, Iacy e Boto. Nelas, a “figura humana” se metamorfoseou aos elementos da natureza, da terra, ligação esse perdida como vimos no verbete de Bataille. Os galhos das árvores e a natureza em si estão integrados aos “corpos” que não conseguimos mais distinguir um e outro, são uma coisa só. Em “N’oublie pas que je viens des tropiques”, de 1945, p. ex., percebemos dois seios femininos e uma cabeça, mas, se olharmos de outra maneira, enxergamos também dois braços do outro lado, como se fossem garras e protuberâncias que saem da “coluna” em direção ao alto, processo esse um pouco semelhante como em “Glébe-ailes”, de 1944, com a diferença que nessa escultura nós podemos perceber os contornos de um rosto, o que não nos é nítido na de 1945. Em “L’Impossible”, de 1946, a figura masculina e feminina estão interligadas, mas estão afastadas, pois não podem se tocar no todo, não podem se totalizar, formar uma figura única, por isso o título, deixando claro que a aproximação de um é a morte do outro. Veronica lembra, no texto para o catálogo da exposição, que

____________________ 9 Cf. STIGGER, Veronica. Os Anões. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 12.

é interessante notar que, nas esculturas de Maria Martins, a metamorfose não se dá apenas na imagem – o ser meio humano, meio vegetal de N’oublie pas que je viens des tropiques ou de Comme une liane –, mas também na migração, de uma escultura a outra, de determinada forma, que, na passagem, sofre pequenas mas significativas alterações.10

E aqui acrescento que a metamorfose também se dá no corpo, se é que podemos ainda chamar de “corpo” tais partes que observamos, pois são corpos retorcidos, des-pedaçados e que se fazem novamente em pedaços, como Constância, dividida em quatro partes, os anões, que são colocados no lixo com um rodo, mas também em “Sans écho”, de Maria Martins, de 1945, cujo corpo é completamente arregaçado, torcido ao máximo, impossibilitando o tal “eco” que já não existe mais. Em “Comme une liane” de 1946, podemos ver melhor um possível “corpo”, mas com as pernas alongadas e torcidas, o que está novamente em “Chanson en suspens” de 1947, em que o galo tem braços e pernas, deixando-nos “em suspense”. O interessante a observar nessas comparações é que o animal já saiu de sua prisão e agora se mistura, se metamorfoseia com a terra, com o “homem”, deixando-nos sem lei, sem palavras, sem corpo, des-pedaçados, sem território. O encontro com o diferente provocou mudanças em Segall, e em Maria Martins que depois de ir a Nova York começa sua série sobre a Amazônia. O deslocamento, a mudança, o outro, a viagem, em outras palavras, a literatura, faz com que não consigamos mais nos identificar com os antigos sentidos atribuídos; precisamos, portanto, arranjar e rearranjar os fragmentos do nosso antigo corpo para lhe dar uma possível significação – que nem sempre vem, às vezes fica em suspenso, às vezes se metamorfoseia, mas sempre que retorna, o faz de modo diverso, bagunçando os sentidos, nossas “vidas” e nossos “corpos”.

____________________ 10 STIGGER, Veronica. Maria Martins. São Paulo: MAM, 2013.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Flávio de. Os Ossos do Mundo. São Paulo: Editora Antiqua, 2005. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. OLIVEIRA, Nelson de Oliveira (Org.). Todas as Guerras: antologia de contos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. vol. 1. STIGGER, Veronica. Lasar Segall. São Paulo: Folha de S. Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2013. p. 27. _______. Os Anões. São Paulo: Cosac Naify, 2010. _______. Sur. Trad. de Gonzalo Aguilar. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Grumo, 2013. _______. Maria Martins. São Paulo: MAM, 2013.

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