O Terrorismo de Estado: Aplicação da Lei de Segurança Nacional às Manifestações Populares

November 13, 2017 | Autor: Humberto Fabretti | Categoria: Political Violence and Terrorism
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O Terrorismo de Estado: Aplicação da Lei de Segurança Nacional às Manifestações Populares

Durante todo o ano de 2013, principalmente entre os meses de maio e agosto, o Brasil foi palco de diversas manifestações públicas, que em linhas gerais mostravam o descontentamento popular com situação política do país.

Ocorre que enquanto alguns manifestantes simplesmente andavam pelas ruas bloqueando a passagem dos veículos, em verdadeiro exercício de cidadania, outros, principalmente ao final das manifestações, passavam para uma atitude mais enérgica, incorrendo formalmente em alguns crimes, com por exemplo, dano ao patrimônio público e particular, furtos e lesões corporais.

As cenas de jovens mascarados quebrando lixos, pontos de ônibus, bancas de jornais, portas de bancos etc. foram veiculadas incessantemente pela grande mídia, menos com o intuito de informar a população do que amedronta-la.

Porém, conforme as manifestações foram acontecendo, a população foi aderindo, sendo que a cada evento mais pessoas iam para as ruas, demonstrando que a tentativa de se criar uma sensação de medo e insegurança na população em relação aos "baderneiros" e "arruaceiros" não funcionou.

Na verdade o tiro saiu pela culatra, pois o que mais se viu foi uma crítica acirrada de vários setores da sociedade, principalmente pelas redes sociais e imprensa alternativa, em relação à resposta estatal às manifestações. O principal alvo das críticas, sem dúvida, foram as desastradas ações policiais, que deixaram patente a falta de preparo das forças de segurança para lidar com a população.

Não foram raros os casos de abuso e excesso por parte do Estado, como pode ser contabilizado pelos jornalistas e manifestantes que receberam tiros de borracha, das pessoas intoxicadas pelas chamadas "bombas de efeito moral" e "spray de pimenta" que simplesmente eram despejados como água na população, as prisões arbitrárias por porte de vinagre ou qualquer outra coisa, isso sem falar nas covardes agressões sofridas por aqueles que tinham o azar de serem alcançados ou derrubados.

A pressão da sociedade civil sobre o uso excessivo da força policial foi tanta que a certo momento os chefes dos executivos proibiram a utilização de balas de borracha por suas tropas e foram às redes de TV assegurar que ninguém seria preso por portar vinagre ou qualquer outro objeto lícito.

Diante deste quadro, como não poderia deixar de ser, apareceram mentes brilhantes, com soluções ainda mais brilhantes, que como num passe de mágica, resolveriam o problema da "selvageria" dos manifestantes. Uma das soluções apresentadas que sempre costuma aparecer em momentos de tensão social, e que talvez seja a mais perigosa, foi a que sugeriu a aplicação da Lei 7.170/83 – Lei de Segurança Nacional – aos fatos praticados durante as manifestações.

Entretanto, tal proposta, como será demonstrado, não é cabível neste contexto, pois inviável tanto do ponto de vista dogmático-penal, como do ponto de vista político. Porém, talvez o maior defeito seja querer insistir na ideia de solucionar os problemas da violência com a própria violência.

A análise puramente dogmática-positivista da referida Lei de Segurança Nacional, representada por uma simples leitura sem necessidade de qualquer esforço hermenêutico do artigo 1º, já demonstra sua inaplicabilidade às condutas praticadas pelos manifestantes, vez que a abrangência da referida lei está limitada aos crimes que "...lesam ou expõem a perigo de lesão: I – a integridade territorial e a soberania nacional; II – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III – as pessoas dos chefes dos poderes da União."

Somente uma mente absurdamente criativa poderia concluir que os manifestantes com suas máscaras (mesmo as perigosíssimas máscaras de gás), vinagres, latas de spray e bombas caseiras poderiam abalar a integridade territorial, a soberania, o regime político, o regime de governo, o regime de Estado ou mesmo a segurança pessoal de autoridades federais.

Ainda, como se não bastasse, o art. 2º da mesma lei reforça o argumento anterior ao prever que: "Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei: I - a motivação e os objetivos do agente; II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.

Percebe-se impossível a aplicação da Lei de Segurança Nacional às manifestações populares, pois a própria lei se autolimita às situações que de fato coloquem em perigo a segurança nacional, ou de forma mais atual, o próprio Estado Democrático de Direito.

Se aceitarmos que o Estado Brasileiro corre perigo de ruir frente à meia dúzia de jovens mascarados munidos com paus, pedras, spray, vinagre e muita insatisfação, então talvez seja mesmo melhor que este Estado sucumba.

Porém, seria um excesso de ingenuidade supor que os aplicadores da lei não conseguem ler e interpretar os referidos artigos, ou que pensem ser correta – do ponto de vista dogmático - aplicação da Lei de Segurança Nacional. É óbvio que sabem do equívoco técnico que cometem. Mas se conhecem o erro em que incorrem, porque insistem nele? Simples. Porquê querem dar uma resposta penal a um problema político e social - tem sido fardo do direito penal, principalmente à partir do fina da segunda guerra mundial, ser a panaceia dos problemas políticos, sociais e econômicos - e, assim, caem na armadilha do direito penal simbólico e do direito penal do inimigo, defendendo um verdadeiro terrorismo de Estado.

A Lei de Segurança Nacional, como sabido, é herança da ditadura militar brasileira, que assim como praticamente todas as ditaduras latinas americanas foram erigidas sobre os princípios da chamada Doutrina de Segurança Nacional, importada ao Brasil diretamente dos EUA pela Escola Superior de Guerra. Nos termos da doutrina da segurança nacional, o Estado deveria garantir a sua própria segurança e todos aqueles que não concordassem com a política estabelecida e se opusessem ao governo ou pertencessem a algum grupo de oposição eram considerados como fontes de perigo que deveriam ser eliminadas, isto é, eram considerados inimigos. Trazia-se para dentro do Estado a concepção militar de segurança típica dos séculos XIX e XX.

A Lei de Segurança Nacional, portanto, trabalha com a ideia de inimigo interno e externo, tanto que sua linguagem é típica de guerra (por exemplo: "atos de hostilidade", "invasão", "planos, códigos e cifras sigilosas", "sabotagem", "espionagem", "aliciamento de indivíduos de outro país para invasão" etc.). Reforçando a lógica de uma legislação de caráter militar – típica do direito penal do inimigo – destaca-se que a competência para o julgamento dos crimes previstos na referida lei é da Justiça Militar (art. 30).

Mas não é só, pois a autoridade responsável pela investigação (Delegado Federal, via de regra) poderá manter o preso sob custódia por 15 dias, sem necessidade de autorização judicial (art. 33), fato que viola completamente o sistema de prisões cautelares do atual Código de Processo Penal.

Ainda, a Lei de Segurança Nacional tem em seu art. 20 um verdadeiro tipo penal "curinga", que mandando às favas o princípio da legalidade, da culpabilidade e da proporcionalidade das penas, prevê toda sorte de condutas ("Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.") que podem ser punidas com pena de 3 (três) a 20(vinte) anos de reclusão.

É exatamente aqui que entra o caráter simbólico do direito penal, já tão criticado pelos penalistas do mundo todo. Com uma pena tão alta (3 a 20 anos), não é possível à autoridade policial arbitrar a fiança, o que somente poderá ser feito pelo juiz (lembre-se, juiz militar), de modo que, aos poucos azarados que forem vítimas desta odiosa lei, recairá uma punição e um sofrimento absolutamente desproporcionais, sendo certo que isso será devidamente noticiado com a intenção de se mostrar que o Estado está "fazendo a sua parte", quando na verdade está apenas selecionando alguns "bodes expiatórios".

E é a partir deste ponto que ocorre a situação mais dramática e mais terrível de todas, que é o terrorismo de Estado, que pode ser genericamente definido como "conjunto de práticas e discursos políticos abusivamente violentos, de caráter legal ou extralegal, visando controlar populações por meio da disseminação do medo e do terror, da repressão à oposição e pela indução de comportamentos passivos nos âmbitos público e privado de um país".

Assim, enquanto o terrorismo "ordinário" pode ser reconhecido como "atos criminosos pretendidos ou calculados para provocar um estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em indivíduos para fins políticos" e, em regra, é praticado por indivíduos, grupo de pessoas e organizações não estatais, o terrorismo de Estado é praticado pelo próprio Estado contra sua própria população.

A partir do momento em que o Estado passa a utilizar-se da via inadequada, seja lícita ou ilícita, com o intuito de criar uma situação de medo e insegurança em seus próprios cidadãos, que passam a temê-lo, bem como aos seus agentes, esse mesmo Estado deixa de ser o protetor da cidadania e passa a ser a fonte de insegurança dos cidadãos, que tem medo de terem seus direitos violados.

Tal situação transforma o Estado – que desde Hobbes tem por finalidade garantir a segurança dos cidadãos, sendo que para tanto, conforme Weber, é o detentor legítimo do monopólio da violência – em verdadeiro terrorista, pois busca por meios violentos atemorizar sua população e discipliná-la, nos termos da constatação de Foucault.
Ao assim proceder, o Estado simplesmente viola as conquistas da democracia e cidadania, pois não há nem uma nem outra em um Estado que governa – e mantém a ordem - através do medo.

E é exatamente isso que a utilização da Lei de Segurança Nacional pode causar aos cidadãos: medo. O medo de ser preso indevidamente, de ser julgado por um Tribunal Militar, o medo de ter uma pena desproporcional, o medo de ser utilizado como "bode expiatório, enfim, o medo de ser despojado de sua cidadania e de ser tratado como inimigo.

Aplicar a Lei de Segurança Nacional às condutas praticadas no âmbito das manifestações populares, por mais violentas que essas sejam, não trazem mais segurança e tampouco mais tranquilidade, mais sim o contrário, pois como já defendia Fábio Konder Comparato em 1981 "a organização da segurança nacional passa pelo fortalecimento da sociedade civil e não pelo seu aviltamento por obra do Estado."





Para a compreensão da ideia de cidadania que se adota neste texto conferir SMANIO, Gianpaolo P. As dimensões da cidadania. Revista ESMP, nº2, p. 13-23, jan/jun de 2009.
Sobre a Doutrina da Segurança Nacional conferir PESSOA, Mário. O direito da segurança nacional. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército e Revista dos Tribunais, 1971.
FABRETTI, Humberto B. Segurança Pública: fundamentos jurídicos para uma abordagem constitucional. São Paulo, Atlas, 2014. prelo.
Por todos MELIA, Manoel Cancio. Direito penal do cidadão e direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de André Luis Callegari e Nereu José Jacomelli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 65.
Não há uma unicidade conceitual sobre a expressão terrorismo de Estado, mas todas giram mais ou menos sobre a seguinte ideia: "forma de poder soberano estatal caracterizada por um conjunto de práticas e discursos políticos abusivamente violentos, de caráter legal ou extralegal, visando controlar populações por meio da disseminação do medo e do terror, da repressão à oposição e pela indução de comportamentos passivos nos âmbitos público e privado de um país ou região territorial." DUARTE, André. Poder soberano, terrorismo de Estado e biopolítica: fronteiras cinzentas. In: Terrorismo de Estado. Guilherme Castelo Branco (org). Belo Horizonte, Autêntica, 2013, p. 11.
ONU, Res. 49/60. (http:// http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-em-acao/a-onu-e-o-terrorismo/).
COMPARATO, Fábio K. Para viver a democracia. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 197.



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