O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente

June 2, 2017 | Autor: J. Nunes Lanzarini | Categoria: Formación docente, Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) na Educação
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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Sonia Maria Ribeiro Aliciene Fusca Machado Cordeiro (Organizadoras)

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Joinville, 2014

Expediente

Produção editorial Editora Univille

Reitora Sandra Aparecida Furlan

Coordenação geral Claudio Alberto Lassance Rollin

Vice-Reitor Alexandre Cidral

Revisão Cristina Alcântara Marília Garcia Boldorini Viviane Rodrigues

Pró-Reitora de Ensino Sirlei de Souza Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Denise Abatti Kasper Silva Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Claiton Emilio do Amaral

Projeto gráfico e diagramação Marisa Kanzler Aguayo Capa José Isaías Venera (releitura da obra Golconda, óleo sobre tela de René Magritte, 1953) Impressão Impressora Mayer

Pró-Reitor de Administração Cleiton Vaz

CONSELHO EDITORIAL UNIVILLE Profa. Dra. Denise Abatti Kasper Silva Profa. Ma. Ágada Steffen Prof. Dr. Alexandre Cidral Profa. Dra. Berenice Zabbot Garcia Profa. Dra. Denise Mouga Prof. Me. Fabrício Scaini Profa. Dra. Liandra Pereira Profa. Ma. Marlene Westrupp

Tiragem 300 exemplares

CONSELHO EDITORIAL DA COLEÇÃO RIZOMAS Profa. Dra. Aliciene Fusca Machado Cordeiro Profa. Dra. Daniela Leal Profa. Dra. Rita Buzzi Rausch Profa. Dra. Simone Albuquerque da Rocha Profa. Dra. Sonia Maria Ribeiro

Profa. Dra. Taiza Mara Rauen Moraes ISBN 978-85-8209-031-2 Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Univille P475

Pesquisas sobre trabalho e formação docente : aspectos teóricos e metodológicos / organizadoras Sonia Maria Ribeiro, Aliciene Fusca Machado Cordeiro. – Joinville, SC : Editora Univille, 2014. ISBN 978-85-8209-031-2 263 p. ; grafs. – (Coleção Rizomas Educacionais) 1. Educação. 2. Professores – Formação. 3. Professores – Metodologia. 4. Prática pedagógica. I. Ribeiro, Sonia Maria (org.). II. Cordeiro, Aliciene Fusca Machado (org.). III. Título CDD 370

Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 O coordenador pedagógico e a sala de aula – da fiscalização à colaboração: um desafio a ser superado CAPÍTULO I

– Maria Joselma do Nascimento Franco / Maria Ivaldete dos Passos Silva

CAPÍTULO II . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 O letramento para os professores alfabetizadores: concepções e saberes dos docentes – Denise Pollnow Heinz / Rosana Mara Koerner

CAPÍTULO III . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 A autoconfrontação como instrumento de formação do professor e a importância da crítica como constitutiva desse processo – Wanda Maria Junqueira de Aguiar / Maria Vilani Cosme de Carvalho

CAPÍTULO IV .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente – Joice Nunes Lanzarini / Felipe Gustsack

CAPÍTULO V . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho – Cláudia Valéria Gabardo / Márcia de Souza Hobold

CAPÍTULO VI .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 Sala de apoio pedagógico: o trabalho docente entre duas lógicas – Solange Rosskamp / Aliciene Fusca Machado Cordeiro

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 A condição humana do professor e sua formação CAPÍTULO VII

– Anna Maria Lunardi Padilha

CAPÍTULO VIII . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 “Tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim: não, esse tipo de professor eu não quero ser” – Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig / Henriette Luise Steuck

CAPÍTULO IX . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva – Juliano Agapito / Sonia Maria Ribeiro

CAPÍTULO X . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores – Ivanilde Apoluceno de Oliveira / Tânia Regina Lobato dos Santos

CAPÍTULO XI . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 Cadernos escolares e práticas pedagógicas – Caroline Guião Coelho Neubert / Luciane Maria Schlindwein

Apresentação

A Coleção Rizomas Educacionais apresenta o segundo livro, trazendo em seu conteúdo as discussões realizadas na linha trabalho e formação docente do Mestrado em Educação da Universidade da Região de Joinville (Univille). Neste volume estão presentes autores que dialogam direta ou indiretamente com as disciplinas e pesquisas desenvolvidas conforme a temática. Fiel aos princípios básicos de um rizoma – princípio da conexão, da heterogeneidade, de multiplicidade, de ruptura assignificante, de cartografia, de decalcomania –, tal como destacado no primeiro livro, este volume visa oferecer ao leitor a oportunidade de refletir e dialogar com sujeitos distintos e em diferentes espaços envolvidos com o trabalho e a formação docente. Cada capítulo apresenta sua autonomia textual, possibilitando que a leitura ocorra de maneira independente, sem hierarquia para a compreensão de um ou outro tema.

VENERA, R. A. S. A construção de um dispositivo teórico de interpretação da Análise do Discurso: possibilidades nas pesquisas educacionais sobre juventudes. In: ______; CAMPOS, Rosânia. Abordagens teórico-metodológicas: primeiras aproximações. Joinville: Editora Univille, 2012. (Coleção Rizomas Educacionais, v. 1). 



Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Compartilhamos com Freire o entendimento de que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que, além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos, implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante.

Assim sendo, considera-se que o campo da educação é dinâmico, fértil e complexo. Dessa maneira, as tensões ou conflitos que emergem no cotidiano da prática educacional nos impulsionam a buscar respostas a fenômenos ligados à educação, com os quais lidamos diariamente, para que assim possamos compreender essa área que se renova por meio das mudanças sociais e culturais e intervir nela adequadamente. Trazemos a proposta de que cada texto permita ao leitor a chance de olhar e pensar possíveis ramos ou partes que compõem a educação e que, com base neles, novas ideias, pesquisas e discussões ganhem forma. A perspectiva de constituição de um rizoma muito pode colaborar com a educação, se a virmos como uma atividade heterogênea que abarca diferentes pessoas, espaços e momentos, mas que se interligam e que por intermédio dessas ligações novos conhecimentos e formas de trabalho se organizam. Considerando a abrangência da área sobre a qual este livro se estruturou, os capítulos, mesmo podendo ser compreendidos de modo isolado, conectam-se na medida em que trazem como temas comuns o trabalho do professor e a sua formação em diferentes perspectivas, desde a formação inicial, inserção à docência e suas condições de trabalho até temas que perpassam sua atuação, como a inclusão de pessoas com deficiência, o uso  FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 47. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. p. 96, grifos do original.



Apresentação da Coleção Rizomas Educacionais

das tecnologias da informação e comunicação (TICs), entre outros. Os desafios e as dúvidas que os espaços educacionais enfrentam transformam-se a cada dia, e as pesquisas constituem uma das formas de lidar com eles, sempre acreditando que é possível uma educação ética e transformadora, pois como diria Freire, “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode”. Imbuídas dessa crença na educação e nas pesquisas que dela tratam, entendemos que cada leitor com base em suas experiências e arcabouços teóricos poderá ampliar as possibilidades de articulação entre o saber e o fazer docente mediante a apropriação do conhecimento generosamente compartilhado pelos autores nesta coletânea. Excelente leitura! Sonia Maria Ribeiro e Aliciene Fusca Machado Cordeiro



FREIRE, 2013, p. 110.



O coordenador pedagógico e a sala de aula – da fiscalização à colaboração: um desafio a ser superado Maria Joselma do Nascimento Franco Maria Ivaldete dos Passos Silva

Introdução O presente texto é recorte de uma pesquisa maior desenvolvida no Grupo de Pesquisa Ensino, Aprendizagem e Processos Educativos (GPENAPE) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e trata de discutir as razões que levam o coordenador pedagógico (CP) a assistir ou não a aulas dos professores. O interesse pela discussão surgiu da experiência profissional e materializou-se na pesquisa realizada em 2012/2013 nas redes municipal, estadual e privada, na cidade de Caruaru (PE), despertando reflexões na direção de pensarmos se essa atribuição do CP colaboraria para aprendizagem dos estudantes. Doutora em Didática e Práticas Escolares pela Universidade de São Paulo (USP), professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Centro Acadêmico do Agreste (CAA). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Ensino, Aprendizagem e Processos Educativos (GPENAPE), pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento Profissional Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ambos credenciados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected].  Licenciada em Pedagogia pela UFPE, CAA. Participante do GPENAPE. Professora na rede privada de ensino no município de Caruaru (PE). E-mail:[email protected]. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Para tanto, temos como questão central o seguinte questionamento: Que razões levam o CP a assistir ou não a aulas dos professores? Por isso, temos como objetivo geral compreender as razões de o CP assistir ou não a aulas dos professores e como objetivos específicos 1) analisar as razões de o CP assistir a aulas dos professores e 2) confrontar as exigências dos documentos legais com a realidade da prática de assistir às aulas. Com base nisso, levantamos o pressuposto de que a presença do CP em sala enfatiza a ideia de que a fiscalização precisa ser descartada na medida em que seus motivos sejam invertidos, ancorados na perspectiva de apoio, da colaboração ao docente. Nosso aporte teórico está baseado nas contribuições de Clementi (2010), Vasconcellos (2009), Imbernón (2010), Medina (1997), entre outros. Os procedimentos de coleta de dados adotados foram: observação simples, entrevistas e análise documental. Trataram-se os dados mediante a análise de conteúdo. Os resultados apresentados mostram que, embora existam resistências em relação à presença do CP em sala de aula, há aspectos favoráveis à referida ação pedagógica ao se considerar as potencialidades presentes nos registros que emergem desta pesquisa, o que pode subsidiar políticas formativas para a atuação do CP perante os professores, com vistas à aprendizagem dos estudantes. A prática de o CP assistir a aulas tem sido um tema em discussão, já que alguns gestores e professores a julgam desnecessária ou inconveniente, opinião justificada pela trajetória histórica da atuação do supervisor enquanto profissional, que tem um registro na literatura marcado pela perspectiva fiscalizadora, controladora, e até mesmo de coerção. Todavia Clementi (2010), em uma das suas pesquisas, afirma: Muitos coordenadores, reconhecendo a importância de discutir com o professor suas ações com os alunos, julgam necessário conhecer como ocorrem, nas salas de aula, as relações de ensino

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Capítulo I – O coordenador pedagógico e a sala de aula – da fiscalização à colaboração: um desafio a ser superado

e aprendizagem, principalmente no que se refere ao modo como o professor encaminha a interação da criança com o conhecimento. A prática de assistir aulas permite ao coordenador o reconhecimento das mudanças pelas quais passam ou não o professor e o aluno [...] (CLEMENTI, 2010, p. 57, grifos nossos).

Ao assistir a aulas, o CP conhece as ações existentes entre professores e estudantes, em relação ao processo de ensino e de aprendizagem. As discussões com o docente têm a finalidade de identificar as mudanças operadas tanto nele quanto no educando, de maneira que passa a ser uma atividade fundamental para a coordenação pedagógica. Entre as práticas do CP, acompanhar as aulas tem sido motivo para reflexão, tendo em vista alguns teóricos considerarem que as vantagens se sobrepõem às desvantagens. O acompanhamento de aula é um poderoso recurso para a formação do professor, desde que seja feito adequadamente. Infelizmente, no passado a visita à sala de aula foi usada como forma de vigilância e controle sobre o docente. Hoje a visão é totalmente outra. Entendemos que é um privilégio ter alguém para assistir nossa aula e depois sentar e dar a devolutiva, refletir conosco suas observações, visando à tomada de consciência e o eventual avanço da prática. Depois de uma certa caminhada, onde o grupo já adquiriu confiança, os professores podem ter suas aulas assistidas ou filmadas e discutidas no coletivo (VASCONCELLOS, 2009, p. 107).

Na compreensão de Vasconcellos (2009), a prática de assistir a aulas parece favorecer a formação contínua dos professores, compreendida como atribuição do CP (CHRISTOV, 2010). Essa formação precisa “[...] partir do fazer dos professores para melhorar a teoria e a prática [...]” (IMBERNÓN, 2010, p. 57).

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

A ênfase dada às questões de vigilância e controle ainda está presente na contemporaneidade, ainda que de maneira velada. No entanto observamos que os objetivos apresentados, com foco na reflexão da prática e em seus avanços, parecem indicar a necessidade de quebra do paradigma da atuação conservadora, com base nas exigências contemporâneas, o que impõe a constituição de um novo paradigma, que subsidie outras formas de atuar, atitude que no mínimo exigirá relacionamento, planejamento e avaliação. Explicita Clementi (2010, p. 57-58, grifos nossos): [...] A qualidade da relação que se estabelece entre o professor e o coordenador também é um fator interveniente na ação do coordenador. Inicialmente, quando o professor não está acostumado com o coordenador em sala de aula, sente-se inseguro, constrangido e ameaçado. Afinal, este último não é apenas aquele com quem dialoga e troca experiências. Ele é, também, hierarquicamente “superior” na estrutura administrativa da escola e tem o poder de decidir o destino profissional do docente e de avaliar sua competência [...].

Os três elementos (relação, intervenção e ameaça) sinalizados pela autora tratam do valor relacional entre o CP e o professor antes do planejamento e da avaliação, subtendido pela expressão “intervenção”, para a qual o planejar e o avaliar caminham juntos na busca por alcançar objetivos numa perspectiva colaborativa com os professores. O estreitamento das relações entre CP e professores antes, durante e depois da entrada daquele em sala de aula constitui elemento importante para pôr fim à concepção tradicional e fiscalizadora marcada pela história do profissional. Os temores resultantes da presença de um CP em sala podem ser dissipados mediante o nível de confiabilidade construído entre professores e coordenadores. Por ele, os professores saberão os critérios validados por ambos e será possível a presença do coordenador em sala. Tanto um quanto o outro se unem para

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um objetivo maior – a aprendizagem dos alunos. Esse contexto envolve o diálogo, um desafio aos sujeitos educativos envolvidos que exige o despojar de suas práticas para dar lugar a um processo de formação contínuo. Na análise sobre a formação (técnica, científica ou profissional) do professor e o trabalho desenvolvido por este, Imbernón (2010) argumenta como positiva a presença de uma pessoa externa à sala de aula, quando se considera o ponto de vista da formação, e não da avaliação. A observação e a valorização do ensino facilitam aos professores a obtenção de dados sobre os quais possam refletir e analisar, a fim de favorecer a aprendizagem dos alunos [...]. Normalmente, ela ocorre sem a presença de outros adultos, razão pela qual os professores não se beneficiam com observações alheias sobre seu trabalho. Ter o ponto de vista de outra pessoa dá ao professor uma perspectiva diferente de como ele ou ela atua com os alunos [...] (IMBERNÓN, 2010, p. 32-33, grifos nossos).

De acordo com o autor, a prática de assistir às aulas beneficia o professor na sua relação com a aprendizagem dos estudantes, favorecendo a reflexão sobre sua prática pedagógica e a análise desta.

A prática de assistir às aulas: experiências no agreste pernambucano Desenvolvemos este estudo no agreste de Pernambuco, em três escolas (uma da rede estadual, uma da municipal e outra da privada), com três coordenadores pedagógicos (um de cada instituição), por meio de observações, entrevistas e análise documental. Os sujeitos foram tratados como: CPE (coordenadora pedagógica da rede estadual), CPM (coordenadora pedagógica da rede municipal) e CPP (coordenadora pedagógica da rede privada).

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Nesse processo, tivemos acesso ao Plano de cargo e carreira remunerado (PCCR) da cidade de Caruaru (CARUARU, 2013), que explicita a finalidade de o CP assistir às aulas. Acompanhar sistematicamente as aulas dos professores, como ouvinte, sem interferir na exposição do conteúdo disciplinar, a fim de detectar possíveis falhas no processo de ensino-aprendizagem; registrar em Fichas Técnicas as deficiências detectadas e sugerir mudanças nas atividades visando apoiar o professor nas ações que objetivam um maior e melhor rendimento escolar do aluno [...] (CARUARU, 2013, grifos nossos).

Das atribuições apresentadas no PCCR, enquanto documento que trata da carreira dos profissionais da educação na rede municipal e também orienta as atribuições do CPM, é importante ressaltar o entendimento do poder público municipal, expresso no documento, para o CPM acompanhar as aulas de maneira sistemática e sem interferência. São aspectos de extrema importância, como já dito anteriormente. A presença do CP em sala causa insegurança, constrangimento ou ameaça (CLEMENTI, 2010) e, na perspectiva aqui tratada, desenvolve uma relação de proximidade com finalidades claras e acordadas. A não interferência permitiria que as aulas fluíssem e o CP cumpriria qualitativamente suas atribuições, com repercussões na aprendizagem dos estudantes. No entanto fica claro que a tarefa de assistir às aulas, em que se pauta o PCCR, é marcada pela concepção fiscalizadora, que toma o direcionamento na atribuição do registro ao explicitar a finalidade da presença do CP em sala de aula: “Registrar em Fichas Técnicas as deficiências detectadas”. Sem explicitar o que o CP faz com os dados posteriormente, ainda assim se reconhece ser valioso o CP acompanhar as aulas dos professores por meio de um registro marcado por uma ação fiscalizadora apenas. Ao questionarmos o CPM sobre suas principais tarefas no que diz respeito à atuação na sala de aula, ele relata:

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Faz trabalho de porteiro, monitoramento com alunos no recreio, acompanhamento do roteiro de aula semanal, aula atividade – uma vez por mês com os professores –, organização da merenda, recebimento de material, acompanhamento mensal dos alunos, organizar a planilha e enviar para a secretaria (CPM, 2012).

O depoimento revela a atuação do CPM no tocante às principais funções consideradas por ele relevantes, mas não se insere aqui o acompanhamento do trabalho do professor nas aulas. O olhar do CPM põe em dúvida a relevância qualitativa dessa atribuição, possivelmente pelos resquícios marcados por uma concepção fiscalizadora da atuação desse profissional na escola. A não priorização da atividade de acompanhamento das aulas pode também sinalizar a pouca preocupação com o processo de ensino e aprendizagem. O destaque no PCCR (CARUARU, 2013) para “registrar em Fichas Técnicas as deficiências detectadas” tende a demarcar uma vertente fiscalizadora, tendo em vista que denuncia um sistema de controle que pode ser equivocado na contemporaneidade. Tal procedimento pode também gerar dados para alimentar a política de formação continuada de professores e a melhoria das condições de aprendizagem dos estudantes. O cenário aqui discutido revela que, apesar de estarmos no século XXI, as ações pedagógicas continuam seguindo concepções conservadoras, por vezes equivocadas e na contramão dos avanços, sobretudo em relação ao que as pesquisas nesse campo vêm apresentando. O acompanhamento das aulas, a reflexão e a tomada de consciência são fatores importantes que interferem na aprendizagem dos educandos. Compreendemos que assistir às aulas com os objetivos expostos neste estudo torna possível a formação continuada tal como discutem os teóricos. Com base na colaboração, na coletividade e na interação, os efeitos possivelmente seriam outros. No depoimento da CPP aparece uma postura diferente. Ao ser interrogada sobre com que frequência assiste às aulas, respondeu contundentemente:

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Eu... Não assisto aula. O professor foi contratado, e o colégio tem referencial do mesmo. O termômetro maior é o aluno. Acho que se fosse assistir suas aulas, isso causaria uma impressão negativa nos alunos: “Ela veio fiscalizar o trabalho do professor”. Eu estaria transparecendo realmente um “fiscal”, conceito que se tinha ou ainda se tem quanto ao papel do supervisor, hoje coordenador pedagógico. A sala de aula é o lugar próprio do professor (CPP, 2012, grifos nossos).

A CPP traz para a discussão o que marcou a história do supervisor, com seu papel de controlador, de fiscalizador e de vigilante. O temor de ser um “fiscal” parece-nos ter sido o aspecto mais intenso do depoimento. Essa preocupação reflete um sentimento de que a herança fiscalizadora registrada na história não pode ser negada e que a melhor maneira de agir é evitála, o que ganha certa coerência com a concepção fiscalizadora presente no PCCR, ainda que este faça parte da rede pública municipal de ensino. A CPP também lembra que no contrato de trabalho dos professores há referências suas. Seu argumento ainda enfatiza a perspectiva fiscalizadora ou controladora, à qual se coloca contrária. No depoimento a CPP também apresenta o estudante como o termômetro maior, o que nos parece ser uma afirmação nem sempre segura para que se tenha outra concepção da ação coordenadora. A justificativa mantém a herança fiscalizadora, por outras vias. Nessa direção, reflete-se: Por que temos o estudante como o termômetro maior? Que dados são disponibilizados pela população de alunos para que o CP possa acessá-los? Como o CP utiliza esses dados? Faz-se imprescindível pensarmos sobre o assunto para identificarmos os motivos que poderiam levar ou não o CP à sala de aula.

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Capítulo I – O coordenador pedagógico e a sala de aula – da fiscalização à colaboração: um desafio a ser superado

Em outro contexto, observamos a herança conservadora da educadora de apoio da rede estadual após assistir às aulas: “Há as fichas de visitação. Elas são preenchidas uma vez por semana. Mas às vezes, não é possível assistir às aulas. Eu peço para os professores registrar ou preencher as fichas” (CPE, 2012). As orientações dadas pela CPE advêm do Programa Alfabetizar com Sucesso, empregado na rede pública estadual, o qual disponibiliza material e orientações pedagógicas para que se alcancem suas metas. As fichas destacadas no depoimento são enviadas com o intuito de controlar todo o andamento do programa na escola. Não foi informado se os temas discutidos nos encontros de formação continuada têm como base as visitas do CP à sala de aula. Embora se trate de programa elaborado por uma instituição externa à realidade dos professores da escola pública estadual, o cumprimento das orientações para assistir às aulas semanalmente e fazer os registros solicitados revela que a presença do CP em sala serve apenas para submeter-se às determinações recebidas. Não se expressa nessa atitude um conhecimento sobre a importância de assistir às aulas para que, com base nas observações e nos registros realizados, se eleve a qualidade do desempenho do professor em um trabalho de parceria (MEDINA, 1997). Possivelmente a ausência de uma formação, seja na pósgraduação ou na formação continuada, justifique o modo como a CPE executa o trabalho. Ela não enxerga a rica oportunidade de participar das aulas, de compartilhar as experiências com os docentes, de produzir seus registros a fim de que, por intermédio deles, haja a extração de temas a serem trabalhados nas formações. Educador de apoio: nomenclatura para o coordenador pedagógico na rede estadual de ensino no estado de Pernambuco. A denominação de supervisor e de educador de apoio é usada para se referir ao coordenador pedagógico, a depender da rede de ensino em Pernambuco.  Formada em Letras, não fez especialização para atuar como coordenadora pedagógica. 

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, em algumas situações, a CPE solicita ao professor o preenchimento das fichas de acompanhamento requeridas pelo programa. Isso demonstra que não há preocupação com a qualidade do trabalho desenvolvido, a qualidade do ensino e da aprendizagem. Além do mais, a postura revela uma atitude que coloca em dúvida a conduta ética da CPE, ao pedir que os professores façam os registros de sua prática quando estes deveriam ser realizados pela coordenação pedagógica. Medina (1997, p. 30, grifos nossos) expõe: [...] A união entre supervisor e professor regente de classe se faz tendo por base a compreensão de que ambos são profissionais e trabalham em instâncias diferenciadas de uma mesma escola. De acordo com estas instâncias, um profissional – professor – constrói conhecimentos numa relação de ensinar e aprender com o aluno que aprende e ensina. Ambos imbricados em processos simultâneos de ensinar, aprender e educar geram uma produção específica – aprendizagem – do aluno.

A autora ajuda-nos a refletir que a relação do trabalho do CP com a aprendizagem se dá quando “problematiza, pondera, discute e acompanha com o professor o tratamento dado aos conteúdos lógicos e aos conteúdos relativos às condições existenciais dos alunos” (MEDINA, 1997, p. 30). E ainda: Estas duas dimensões configuram o processo de ensinar e aprender, que se dá numa relação entre o professor que ensina e aprende, o aluno que aprende e ensina e o supervisor que orienta, aprende e ensina, embora não se possa identificar com precisão quem inicia este processo [...] (MEDINA, 1997, p. 31, grifos nossos).

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A relação que ocorre entre professor e estudante, com o propósito de validar o processo de ensino e aprendizagem, configura o objetivo principal, cuja finalidade é entender qual seria o papel das ações pedagógicas no intuito de contribuir para a ampliação da aprendizagem dos estudantes. Nessa relação, o CP aparece no processo como aquele que orienta, aprende e ensina. Medina afirma (1997, p. 32) que o supervisor passa a ser um “[...] parceiro político-pedagógico do professor [...]”. Nessa parceria, CP e docente desenvolvem as habilidades necessárias para que a aprendizagem dos estudantes alcance a qualidade desejada.

Considerações finais A discussão em torno da prática de assistir a aulas dos professores continua provocando reflexões que se pautam ora numa perspectiva fiscalizadora, o que aponta para a necessidade de avanços, ora para a necessidade de uma proposta marcada pela perspectiva colaborativa. O estudo mostra que, em decorrência da forte marca de uma concepção fiscalizadora na atuação do CP, o que é tendência na contemporaneidade, a defesa da não necessidade da presença desse profissional na sala de aula ainda se mantém. A herança fiscalizadora passa a ser tão intensa que até os que a ela são contrários têm dificuldades para construir argumentos que justifiquem não ser necessária a presença do CP, bem como de mostrar uma postura proativa para a atuação do CP rumo à aprendizagem dos estudantes, o que dificulta o experimento dos benefícios que uma proposta colaborativa possa apresentar. Quanto à identificação na pesquisa das razões de o CP assistir ou não às aulas, podemos dizer que elas são de origem externa às necessidades dos sujeitos, pois o assistir às aulas acontece quando se trata de exigências de programas adotados em seu contexto de trabalho e produzidos fora dele (CPE), o que aponta para um viés burocratizante.

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Outra forma de identificar tal procedimento ocorre quando assistir às aulas aparece como exigência da legislação (CARUARU, 2013), com os ranços de uma concepção fiscalizadora (CPM), sem proposições que a superem. Não se identificou nos contextos estudados nenhuma proposta construída que reflita as necessidades de busca de alternativas às perspectivas aqui expostas, que aponte para novas possibilidades do trabalho do CP e sua relação com a sala de aula, com o professor e com os alunos. Quanto a confrontar as exigências dos documentos legais com a realidade da prática de assistir a aulas, identificou-se que o PCCR (CARUARU, 2013) exige que o CP assista, mas a perspectiva em que se assenta é conservadora. O pressuposto de que a presença do CP em sala de aula enfatiza a ideia de uma concepção fiscalizadora precisa ser superado na medida em que motivos educacionais justificam a sua entrada em sala. Trata-se de uma ação marcada por uma concepção colaborativa que media a relação entre o professor e o coordenador. Contudo essa concepção não se evidenciou no contexto da presente pesquisa, sendo assim refutada. A concepção colaborativa de atuação do CP, com base nas contribuições teóricas que argumentam em prol das vantagens dessa ação, constitui até o momento um constructo teórico, o qual precisa ganhar materialidade nas propostas fundamentado na necessidade e ousadia dos sujeitos, para assim permitir novas possibilidades de atuação profissional do CP nas diferentes redes de ensino no agreste pernambucano. Até o momento, é assim que pensamos.

Referências CARUARU. Plano de cargo e carreira remunerado. Caruaru, 2013. CHRISTOV, L. H. da S. Educação continuada: função essencial do coordenador pedagógico. In: BRUNO, E. B. G.; CHRISTOV, L. H. da S. (Orgs.). O coordenador pedagógico e a educação continuada. São Paulo: Loyola, 2010. p. 9-13.

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CLEMENTI, N. A voz dos outros e a nossa voz. In: ALMEIDA, L. R. de; PLACCO, V. M. N. de S. (Orgs.). O coordenador pedagógico e o espaço de mudança. São Paulo: Loyola, 2010. p. 53-66. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008. IMBERNÓN, F. Formação continuada de professores. Tradução de Juliana dos Santos Padilha. Porto Alegre: Artmed, 2010. MEDINA, A. da S. Supervisor escolar: parceiro político-pedagógico do professor. In: SILVA JUNIOR, C. A. da; RANGEL, M. (Orgs.). Nove olhares sobre a supervisão. Campinas: Papirus, 1997. p. 9-35. VASCONCELLOS, C. dos S. Coordenação dos trabalhos pedagógicos: do projeto político-pedagógico ao cotidiano da sala de aula. São Paulo: Libertad, 2009. p. 69-129.

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O letramento para os professores alfabetizadores: concepções e saberes dos docentes Denise Pollnow Heinz Rosana Mara Koerner

Algumas palavras iniciais No Brasil as pesquisas sobre letramento iniciaram-se em torno da década de 1980, mas só mais recentemente a temática vem adentrando o ambiente universitário, sobretudo os cursos de Pedagogia. Também nas discussões de âmbito nacional, a noção de alfabetização não se desvincula mais da noção de letramento. São conhecimentos científicos cada vez considerados mais necessários para o professor alfabetizador, uma vez que poderão (ou não) integrar suas concepções quanto ao ato de alfabetizar e orientar sua prática pedagógica, voltada para ações de letramento de seus alunos. Este texto baseou-se em um artigo publicado na revista Linguagem e Ensino, em março de 2013.  Mestre em Educação. Professora da rede municipal de ensino de Joinville.  Doutora em Linguística Aplicada. Professora do Mestrado em Educação da Universidade da Região de Joinville (Univille). 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

O presente texto tem como objetivo apresentar alguns resultados de uma pesquisa que buscou entender como as concepções de letramento estão presentes na voz dos professores alfabetizadores de uma rede municipal de ensino, sendo esta uma das maiores do sul do país. Nessa perspectiva, os estudos do letramento são aproximados do trabalho e da formação docente e da educação, bem como contribuem para o conjunto de pesquisas em educação. As seguintes perguntas nortearam a investigação: Como a compreensão de letramento está presente na voz dos professores alfabetizadores? Como os discursos dos docentes são atravessados por esse conceito, levando-se em conta a atuação na alfabetização? Inicialmente serão feitas algumas considerações acerca da questão do letramento e da alfabetização e, ainda, sobre os saberes docentes. Também serão discutidos os dados e as análises no tocante às concepções dos professores com referência ao letramento. Algumas reflexões no que diz respeito ao professor alfabetizador encerram o capítulo.

O percurso inicial Dada a importância inegável que o processo de alfabetização tem no cenário escolar e educacional, do professor alfabetizador exige-se uma série de saberes necessários ao pleno exercício de sua função. Entre eles cresce a exigência de saber sobre o letramento, o que é, o que representa e as suas implicações no fazer pedagógico. Os professores alfabetizadores, na perspectiva brasileira do letramento, foram historicamente os primeiros a enfrentar as demandas por uma escolarização aproximada das práticas de letramento, tendo por esse motivo especial importância para entender o letramento na escolarização atualmente. Os problemas sociais, as questões do mundo precisam ser trazidos para dentro Recorte da dissertação de mestrado intitulada O letramento na voz dos professores alfabetizadores, defendida em 10 de março de 2013. 

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da sala de aula, de forma que tudo no ambiente escolar possa ter caráter pedagógico, incluindo as vivências dos alunos e professores na sociedade e sua relação com a escrita. A “invenção do letramento”, conforme denomina Soares (2004a), dá-se simultaneamente em diversos países nos anos 1980, apesar de a palavra literacy já estar dicionarizada desde o século XIX. No Brasil, o letramento tem origem vinculada à aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Para Soares (2009, p. 18, grifo da autora), “letramento é [...] o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. No nosso país, o termo letramento, conforme afirmam Kleiman (1995), Soares (2009), entre outros, é cunhado por Kato (2001). Ao discorrer sobre a função da escola na área da linguagem, a autora assegura que o ensino da linguagem escrita tem o objetivo de tornar o cidadão funcionalmente letrado, introduzindo-o no mundo da escrita, de modo que possa atender às diferentes demandas da sociedade por esse instrumento de comunicação. De acordo com Street (apud SOARES, 2009, p. 75), letramento é “um termo-síntese para resumir as práticas sociais e concepções de leitura e escrita”. As formas concretas que as práticas de leitura e escrita assumem em determinados contextos sociais exigem a reflexão sobre os significados político e ideológico do letramento, não mais o considerando um fenômeno “autônomo”, e sim que “depende fundamentalmente das instituições sociais que propõem e exigem essas práticas” (STREET apud SOARES, 2009, p. 75). Scribner e Cole (1981 apud KLEIMAN, 1995), ao definirem “letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos”, entendem que as práticas específicas da escola de aquisição e promoção da escrita são apenas um tipo de prática social da escrita, entre tantos outros. Ainda para Kleiman (1995), as práticas da escola que fornecem parâmetros para classificar como alfabetizado ou não alfabetizado constituem apenas um tipo de prática e determinam uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita.

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Entre os pontos principais defendidos por Soares (2004a) estão a especificidade e a indissociabilidade entre a alfabetização e o letramento. Dessa forma, alfabetizar letrando é orientar a criança a escrever e ler, sempre buscando conviver com práticas sociais. Uma criança alfabetizada é aquela que sabe ler e escrever; já a criança letrada possui o hábito e as habilidades do prazer da leitura de diferentes materiais escritos. A escrita social, como diz Barbosa (1992), envolve o cotidiano, com características e funções diversificadas. Ela vem sendo esquecida pela escola, que tem se preocupado mais com a leitura de textos escritos em livros. Conforme Soares (2004b), as práticas sociais que utilizam a escrita passaram a ser objeto de aprendizagem na escola e foram transformadas nesse processo. O letramento escolar caracteriza-se pelas “habilidades de leitura e escrita desenvolvidas na e pela escola – e o letramento social – as habilidades demandadas pelas práticas de letramento que circulam na sociedade” (SOARES, 2004b, p. 100). Para Cerutti-Rizzatti (2011), os letramentos são situados, mas não são inventados por aqueles que os praticam, passando por um processo de aprendizagem, mediação e mudanças no contato com outras práticas de letramento, destacando a articulação entre os universos locais e globais. O ensino da escrita, nessa perspectiva, deve considerar que os alunos provêm de contextos socioculturais distintos e que possuem usos e entendimentos diferentes para a escrita. Cerutti-Rizzatti (2011, p. 8) entende que “[...] à escola compete ressignificar as práticas de letramento dos alunos, ampliando-as tanto quanto lhes seja dado, de modo que possam transitar com desenvoltura por diferentes espaços sociais, independentemente de tais espaços lhe serem ou não familiares”. A circulação de discursos típicos da sociedade escrita, presentes no espaço urbano e nas expressões cotidianas das crianças, amplia as demandas da alfabetização para muito além do simples ensino das normas de uso do código escrito. A interação social por meio da escrita e a organização de espaços públicos, diferentes imperativos da vida moderna, requerem a leitura e a escrita como indispensáveis para a cidadania. São necessários já

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não somente conhecimentos básicos, mas também saber manipular e inserir em contextos específicos esses conhecimentos. Mesmo antes do ingresso nas séries iniciais do ensino fundamental, a maioria das crianças tem acesso a uma variedade de escritos no meio em que vive, o que torna o mundo da escrita algo familiar. A atual sociedade, claramente caracterizada como grafocêntrica, centrada na escrita que aparece em diferentes contextos e com funções variadas, pode introduzir os pequenos nos códigos escritos e despertar a curiosidade por esses instrumentos de participação social muito antes da alfabetização escolar. Gee (2004 apud CERUTTI-RIZZATTI, 2011) afiança que o domínio da escrita é um processo cultural e mediado. A aprendizagem da língua escrita possui como característica a condição de processo cultural, adquirido na vivência social, em espaços escolares, porém não limitado a eles. Os métodos utilizados pelos professores na alfabetização refletem um projeto político e social, sendo apenas um dos aspectos a ser considerado nesse processo multifacetado. No Brasil, durante décadas, o foco da alfabetização era fazer o aluno reconhecer palavras, baseado em repetições, cópias e reforços, desprezando a necessidade da criança de saber usar o sistema de escrita alfabética em situações reais de comunicação (REGO, 2006). Depois, defendeu-se a alfabetização mediante a profunda imersão das crianças nas práticas sociais de leitura e escrita, descartando-se qualquer tipo de atividade didática que não estivesse vinculado a tais práticas. Rego (2006) defende que atualmente se utilize uma proposta pedagógica que dê suporte ao pleno desenvolvimento dos dois aspectos envolvidos na aprendizagem da leitura: a língua, por meio de seus usos sociais, e o sistema de escrita, por intermédio de atividades que estimulem a consciência fonológica e as relações entre as unidades sonoras da palavra e sua forma gráfica, em uma abordagem mais abrangente de alfabetização. De acordo com Kleiman (2006), o professor é o responsável por inserir os alunos nas práticas de letramento em contexto escolar. Entendendo o docente como um agente de letramento, estudos de Kleiman e Matêncio (2005, p. 7) buscam “como os agentes

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de letramento mobilizam e atualizam seus conhecimentos sobre a escrita, em diversas instituições e segundo diversos objetivos, inclusive o da construção de contextos de aprendizagem da leitura e da escrita”. Assim, além dos saberes relacionados ao processo de alfabetização, hoje se instalou também a necessidade de o professor reconhecer as implicações de um trabalho voltado para o letramento do seu aluno. O conceito de saberes docentes de Tardif (2002), arrazoado também por Borges (2004) em sua pesquisa, inclui conhecimentos, competências, habilidades, atitudes, além do saber fazer e saber ser. Tardif (2002) coloca o trabalho profissional do professor como categoria central de análise dos saberes docentes, sem separar esses estudos das outras dimensões e condicionantes do ensino. O autor propõe uma análise dos saberes docentes baseada na origem social dos saberes, considerando que são de natureza plural, heterogênea, composta, relacional e amalgamada nas e pelas experiências. A formação profissional, disciplinar, curricular e a experiência são relacionadas como fontes dos saberes que os docentes empregam em sua prática. Os saberes profissionais são fundidos aos saberes pessoais, acadêmicos, entre outros. Ao referir-se à questão relacional dos saberes, Tardif (2002, p. 13) afirma: O saber não é uma substância ou um conteúdo fechado em si mesmo; ele se manifesta através de relações complexas entre o professor e seus alunos. Por conseguinte, é preciso inscrever no próprio cerne do saber dos professores a relação com o outro, e, principalmente, com esse outro coletivo representado por uma turma de alunos.

Destaca-se que Borges (2004, p. 66), com base em estudos de Tardif, declara que, “na impossibilidade de controlar os saberes da formação profissional, das disciplinas e curriculares, os professores produzem ou tentam produzir saberes através dos quais possam compreender e dominar sua prática”.

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Outra contribuição para o trabalho de Borges (2004) vem dos estudos de Shuman, que faz um resgate dos saberes do professor quanto aos conteúdos de ensino, de maneira mais ampliada, para além do “nível sintático”, focado nas regras e nos processos de ensino, incluindo também o “nível substantivo e epistemológico” (BORGES, 2004, p. 71). Refere-se à representação dos professores, em uma abordagem compreensiva e ligada às representações que os professores estabelecem sobre os seus saberes. Shuman (apud BORGES, 2004, p. 71) apresenta três tipos de conhecimento do professor: “o conhecimento do conteúdo da matéria ensinada [...]; o conhecimento pedagógico do conteúdo [...]; e o conhecimento curricular [...]”. Borges (2004, p. 77), ao tratar do saber do professor, discorre: O saber do professor é marcado e influenciado não só por um processo de reformulação, reapropriação da informação (conhecimentos, saberes) que transcende as formas tradicionais de transmissão, aplicação de conhecimentos. Esse processo é mediatizado pela experiência e pela prática profissional, na qual o novo conhecimento se produz para e em relação ao outro. Isto é, o professor ensina para uma coletividade e mobiliza seus saberes em função de situações contingentes.

O professor relaciona-se com os alunos, com os pares, com o meio social. A complexidade dessas relações contribui para a diversidade de sua ação. Para Canário (1998, p. 21), a natureza relacional do trabalho do professor faz com que a sua atividade se defina “tanto por aquilo que sabe, como por aquilo que ele é”. Considerando a especificidade do trabalho do professor alfabetizador, também suas concepções e experiências sobre e com a linguagem, especialmente a linguagem escrita, influenciarão o seu fazer pedagógico. Compreender as concepções dos professores, seus saberes e práticas como construídos e significados pelas experiências

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sociais e históricas únicas, mas compartilhadas, implica buscar nas concepções sobre o letramento do professor mais do que uma explicação para as suas práticas, na verdade um estopim para a reflexão e a promoção de formações mais significativas. É preciso dar voz ao professor para que, com base em suas manifestações, as formações, sobretudo em sua fase inicial, possam ser repensadas, na tentativa de maior aproximação com o campo de trabalho que espera o futuro docente. Como propõe Nóvoa (2009), é preciso enxergar a profissão a partir de dentro. Também lacunas, titubeios, silêncios nas vozes dos professores podem fomentar reflexões sobre a sua formação.

Percurso metodológico Segundo a abordagem, a pesquisa apresenta características de um estudo qualitativo, uma vez que, com base nos resultados, se objetivou a compreensão dos processos vividos por um dado grupo social. A ampliação da escolarização, que no Brasil se deu por meio do ensino público, foi uma das propulsoras dos estudos envolvendo processos e instituições educacionais. As políticas públicas voltadas para alfabetização, com ênfase na Lei n.º 11.274/2006, que amplia o ensino fundamental para nove anos com matrícula obrigatória para crianças de 6 anos, têm sido um dos motes para as investigações abrangendo o trabalho dos alfabetizadores. A pesquisa feita com os professores foi do tipo levantamento, ou também chamada de survey, e buscou dados primários sobre os sujeitos e a implicação dos fenômenos analisados, em um processo de exploração do campo de pesquisa. Informaram-se todos os professores quanto à livre participação e consentimento da publicação dos dados, por intermédio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade da Região de Joinville (Univille) aprovou o estudo. Em envelope enviaram-se os questionários, aplicados no mês de fevereiro de 2012, aos 318 professores do primeiro e do

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segundo ano da rede municipal de ensino de uma cidade ao norte de Santa Catarina. O survey obteve retorno de 138 questionários (devolvidos à Secretaria Municipal de Educação da referida cidade, devidamente lacrados nos envelopes), correspondendo a 43% do total. O questionário continha 14 questões fechadas e dez abertas referentes à formação, à atuação profissional e às concepções que envolvem a prática de alfabetizar e as práticas sociais de leitura e escrita do professor. Analisaram-se as questões fechadas com apoio do software SPSS (Statistical Package for Social Sciences), um aplicativo de tratamento estatístico que permitiu relacionar os resultados com a revisão de literatura e o enfoque da metodologia utilizada. As questões abertas foram examinadas individualmente. Como indicadores para a avaliação selecionaram-se as unidades representativas presentes na resposta dos participantes. Em uma mesma resposta, o professor podia apresentar mais do que uma referência para análise, como exemplo: “Revistas [referência 1], livros [referência 2] e jornais que expõem novidades sobre a educação [referência 3] e novas práticas [referência 4]”. Agruparam-se as referências em unidades conjuntas de análise, tendo características semelhantes. Na sequência, serão expostas a síntese do perfil dos alfabetizadores e as concepções de letramento apresentadas nos questionários.

O letramento na voz dos professores alfabetizadores Em um primeiro momento serão exibidos dados amplos, que vêm representar o grupo de alfabetizadores atuantes em 2012 na rede municipal de ensino da cidade lócus da pesquisa, a profissão do alfabetizador e a sua formação. Do total de 138 respondentes, cinco (3,6%) indicaram ser o seu primeiro ano na área da Educação, 26 (18,8%) trabalham entre dois e cinco anos, 25 (18,1%) entre seis e dez anos, 29 (21%) de 11 a 15 anos, 22 (15,9%) entre 16 e 20 anos e o maior número de respostas encontra-se na faixa de mais de 21 anos de atuação na

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área, com 31 professores (22,5%). São professores experientes, que passaram tempo considerável em outros níveis de ensino antes da alfabetização. A importância da experiência prática docente, o maior domínio sobre as inúmeras especificidades da educação e o entendimento da fase da alfabetização como muito importante para toda a sequência na escolarização podem ser alguns dos fatores que se revelam nesses dados. Na questão referente a quanto tempo trabalham com alfabetização, declararam ser o seu primeiro ano 21 professores (15,2%), entre dois e cinco anos 51 professores (37%), de seis a dez anos 32 professores (23,2%), entre 11 e 15 anos 17 professores (12,3%), de 16 a 20 anos dez professores (7,2%) e mais de 21 anos sete professores (5,1%). Nota-se que mais da metade tem pouco tempo de atuação na alfabetização. Observou-se que 125 docentes (90%) concluíram pelo menos um curso de pós-graduação, em nível de especialização, mesmo não sendo na área da alfabetização. Apenas um professor afirmou frequentar pós-graduação em nível de mestrado, e não houve respostas para doutorado. Professores com a sua titulação máxima na graduação em Pedagogia correspondem a oito (6%) com curso presencial e três (2%) na modalidade a distância. Romanowski e Martins (2010) discutem os cursos de especialização na formação continuada de professores da educação básica no Brasil. Afirmam que com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) os cursos de especialização em pós-graduação, além de aperfeiçoamento para o ensino superior, assumem caráter de formação continuada de natureza acadêmica, qualificando professores em todos os níveis de ensino. No tocante à pergunta “Em que ano se formou na graduação?”, a variação foi de 27 anos, entre 1985, o registro mais antigo, e 2011, o mais recente. De 2000 a 2009 corresponde ao período de conclusão da formação inicial de 83 professores (60,1%) e entre 1990 e 1999 é a faixa de 28 professores (20,3%). Considerando que se incorporaram os estudos de letramento mais recentemente aos programas dos cursos de graduação, sobretudo em Pedagogia, investigar há quanto tempo os professores alfabetizadores estão formados pode dar pistas acerca de sua trajetória de formação inicial e se tiveram (ou não) acesso a tais estudos.

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Na questão aberta “O que você entende por letramento?”, houve 247 referências, e cinco professores não responderam. Na concepção mais comum, para 63 referências, o letramento aparece associado à capacidade de compreender e interpretar o que está escrito. Como exemplo, P27 afirma: “É quando o ato de ler e escrever possui um significado. Quando o indivíduo decodifica/ entende o que escreve ao ler”. Esse entendimento não leva em conta as práticas sociais, mas acaba sendo uma versão bastante corrente no espaço escolar. Trata-se do caso de P44 quando afirma que letramento “é a compreensão do que está a sua volta, mesmo quando ainda não sabe ler”. A adoção desse entendimento endossa a concepção de um aluno idealizado, presumido, desconsiderado das suas reais práticas sociais. O próprio conceito de alfabetização na atualidade não admite mais a falta de compreensão no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Chartier (1998) afiança que a atual demanda social da alfabetização passa a ser o domínio da cultura escrita, a compreensão dos textos de diferentes origens (em detrimento da decifração) e a capacidade de produção de textos (em detrimento da cópia e do rigoroso traçado das letras). Nesse quadro, a maneira como o professor entende o processo de alfabetização passa por reconstruções, assim como as demandas sociais sobre alfabetização e as competências que se esperam desse profissional. Os alfabetizadores acreditam que o letramento está ligado às práticas e aos usos sociais da escrita em 43 referências. Para P56, “é uma competência do uso da língua escrita na prática social”. Nessa citação talvez o professor tenha feito uma referência não muito clara a Kleiman (1995, p. 15-16, grifos do autor): “O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita”. Os questionários respondidos pelos professores foram nomeados para fins da pesquisa como P1, P2, até P138, conforme a ordem em que foram recebidos pelas pesquisadoras. 

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As citações relacionando o letramento especificamente aos gêneros ou listando alguns deles somam 21 ocorrências, e outras seis fazem referência ao texto. Ligado à noção de apropriação, ideia defendida por Soares (2009), há nove referências. Como P32 escreve, “no letramento a criança (pessoa) se apropria das competências da língua escrita utilizando em práticas sociais”. Tomar a escrita como propriedade representa um avanço para a diversificação dos seus usos. Reafirma-se que, para Soares (2009, p. 18), letramento é “o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. Segundo P33, o letramento “é compreender e interpretar o mundo ou aquilo que leu a partir de uma reflexão, construindo assim sua autonomia para responder às exigências da sociedade”. Essa referência e outras oito podem ser entendidas como aproximadas da conotação que Freire (1997) traz para a alfabetização, como leitura de mundo, organização reflexiva do pensamento, desenvolvimento da consciência crítica e libertação. O poder transformador atribuído à escrita, tanto na sociedade como para o indivíduo que adquire tal habilidade, parece ser o caso das citações de oito professores. Poderes mágicos conferidos à escrita e à responsabilidade do professor alfabetizador, como aquele que introduz o sujeito na compreensão dos materiais escritos, são algumas das repercussões que advêm da citação de P4: “São práticas que envolvem a leitura e a escrita socializada e que possam repercutir e modificar a sociedade”. P117 traz que “a criança pode ser letrada sem estar alfabetizada”. Essa fala e outras seis referências estão ligadas à seguinte afirmação de Soares (2004a, p. 92) – com citações também em outras obras da autora e nos estudos de Kleiman (1995) etc.: “Analfabetos podem ter um certo nível de letramento: não tendo adquirido a tecnologia da escrita, utilizam-se do que tem para fazer uso da leitura e da escrita”. A oralidade está associada ao letramento em quatro referências, sem considerar as citações dos professores que falam da leitura. Outras três referências estão ligadas às habilidades adquiridas, como por exemplo a frase de P25: “Letramento é a habilidade que o sujeito adquire para utilizar-se da escrita com

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competência e desenvoltura garantindo, assim, sua inserção nas diversas instâncias sociais”. Marcuschi (2001), baseado em Shuman (1993), atesta que nas discussões em que o letramento é entendido como habilidade são estabelecidas relações da escrita com as formas padronizadas de uso, medindo a adequação ao padrão e obscurecendo os modos como a escrita é empregada. Em outras cinco referências, a palavra decodificação aparece para afirmar que as práticas que vão além da decodificação são o letramento. P69 mencionou a “decodificação do código escrito” ao se referir a letramento, numa nítida confusão com a definição mais básica de alfabetização. Em duas referências, os professores acreditam que ser letrado é ter domínio do código escrito. Segundo P91, “a criança deve conhecer a letra para depois partir para sílaba até chegar na palavra”. Essa frase não responde à questão sobre o que o professor entende por letramento, mas mostra a sequência do método sintético, em que se considera a língua escrita um objeto de conhecimento externo a quem aprende e que deve ser dominado seguindo os passos prescritos. O letramento aparece como um conteúdo a ensinar, como garante Soares (2004b), e ligado à escolarização quando é associado ao aluno (sete referências), a ensinar (cinco) e a aprender (seis). A alfabetização escolar passou a ser vista, conforme a autora, como aquela que legitima e torna-se o padrão para qualquer atividade visando à aprendizagem da leitura e da escrita. De modo análogo, para a mesma autora (SOARES, 2004b, baseada em COOK-GUMPERZ, 1986 e STREET, 1995), o letramento escolar vai além do espaço escolar, impondo comportamentos e influenciando as práticas de letramento social. Houve poucas citações (apenas quatro) em que o professor fez referência a um letramento mais amplo, para além dos muros da escola. Conforme P26, “vivemos em um mundo letrado e tudo que observamos e nos trás [sic] informações ou associações com conteúdos é letramento”. Por tudo que foi visto, são muitas as acepções dadas ao termo letramento pelos entrevistados. Há aqueles que o relacionam às práticas sociais da escrita, os que apenas ampliam a necessidade

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de que a leitura feita na escola deve ser mais bem trabalhada e aqueles professores que nitidamente ainda não dão conta do conceito, associando-o à ideia de alfabetização.

Algumas considerações Fontes distintas de saberes, advindos da formação assim como da prática educativa, convergem para a construção dos conceitos de alfabetização e de letramento dos professores alfabetizadores que participaram da pesquisa. Contudo a ênfase das concepções explicitadas pelos professores na investigação recaiu sobre como o letramento e como a leitura e a escrita estão presentes na sua vida e nas suas práticas pedagógicas. Ao analisar como a compreensão de letramento está presente na voz dos professores alfabetizadores, percebeu-se que, mesmo sem saber ao certo como conceituar o letramento, muitos optaram por descrever o que fazem, buscando mostrar a intencionalidade das suas práticas. Não se pode perder de vista que o professor é alguém singular, envolvido em variadas práticas sociais com a escrita e que tem percepções e valores singulares atribuídos a essas práticas. As escolhas que os alfabetizadores fazem para ensinar a língua escrita a seus alunos passam por tais percepções. De acordo com Constanzo (1994 apud MARCUSCHI, 2001, p. 24-25), “letramento parece ter hoje em dia tantas definições quantas são as pessoas que tentam definir a expressão. Significa coisas diversas ao longo da história e coisas diversas na mesma época”. Quando se usa como referência o que as pessoas fazem no contexto social com a escrita, ou seja, os eventos de letramento de que participam, a definição de letrado ou iletrado dependerá dos significados que a escrita assume para o grupo social de que fazem parte. Os discursos do letramento podem ser percebidos na voz dos professores alfabetizadores quando falam sobre os modos como vivenciam as práticas pedagógicas de ensino da escrita e

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da leitura e quando falam dos materiais de que fazem uso. Todavia, levando em conta as exposições dos respondentes a respeito do que entendem por letramento, ainda é possível verificar algumas concepções contraditórias ou até mesmo distantes das discussões acadêmicas e mais recentes sobre letramento. Também se nota a grande responsabilidade que o professor deposita no seu fazer pedagógico e como as concepções de letramento adotadas podem reforçar um ideal de transformação social. Aproveitando o conhecimento e as práticas letradas já desenvolvidas pelos alfabetizadores, pode-se pensar em estratégias para todos os níveis de ensino, de modo a valorizar as práticas letradas dos estudantes e, com base nelas, ampliar o seu envolvimento por meio, por exemplo, do trabalho com gêneros de pouca familiaridade para o aluno. Assim, supõe-se que a escola possa realmente ser um espaço para a formação de sujeitos letrados, que reconhecem nas ações que nela são desenvolvidas o espaço social com o qual defrontam(rão) no seu cotidiano. O professor precisa da prática para constituir a sua identidade profissional, e somente a formação inicial não pode ser considerada a fonte formadora da prática docente. Buscar significados coletivos que permeiam a identidade profissional docente, seus saberes e fazeres, vai ao encontro do sentido individual, da singularidade, compondo cada professor no lócus da prática pedagógica, a sala de aula. Aproximar as discussões pertinentes da prática com a formação inicial e o desenvolvimento profissional, investir mais estudos nas políticas de trabalho docente, não ver a condição docente como um dado, uma forma de ser estática, mas dinâmica, imbricada nos impasses do presente, são contribuições necessárias a todos os níveis da educação.

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A autoconfrontação como instrumento de formação do professor e a importância da crítica como constitutiva desse processo Wanda Maria Junqueira de Aguiar Maria Vilani Cosme de Carvalho

Introdução Este artigo tem sua gênese no entrecruzamento de reflexões realizadas por dois grupos de pesquisa inseridos no Programa Nacional de Cooperação Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Procad/Capes) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Universidade Federal do Piauí (UFPI).  Os projetos em desenvolvimento pelos dois grupos que estão vinculados ao Procad/Capes têm as seguintes características: o primeiro projeto de pesquisa, aprovado pelo Edital 01/2008 do Procad/Capes, foi realizado no período 2008/2012 entre três universidades brasileiras: Universidade Federal de Alagoas (Ufal), PUCSP e Universidade Estácio de Sá (Unesa/RJ). É intitulado Atividade Docente e Subjetividade e tem como objetivo geral “permitir a constituição de uma rede de cooperação científico-acadêmica entre programas de pós-graduação integrantes da área de Educação e Psicologia da Educação, em torno do eixo temático ‘trabalho docente’, tendo em vista elevar o padrão de qualidade da formação de profissionais em nível de pós-graduação, alavancar a produção científica desses programas e contribuir com subsídios para a qualificação dos programas que materializam as Políticas Públicas de Capacitação de Professores” (AGUIAR, 2008, p. 2). O  

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acerca das práticas de pesquisa crítica. Considerando as reflexões surgidas nos encontros desses dois grupos, entendeu-se como promissor o desenvolvimento do projeto de pesquisa Vivendo e Pesquisando a Docência na Perspectiva Sócio-histórica: em Busca de Fundamentos Teóricos e Metodológicos por uma das professoras envolvidas, mediante a realização de estágio de pósdoutoramento. Uma das questões averiguadas nesse estágio, e que nos pareceu sintetizar com maior propriedade as inquietações surgidas nos trabalhos de pesquisa executados pelos grupos, ou seja, as práticas de pesquisas críticas, foi: Que procedimentos metodológicos podem ser empregados no desenvolvimento de investigações quanto à atividade docente que provoquem reflexões no professor sobre a possibilidade de ele desenvolver práticas que se caracterizem pela autonomia profissional na escola? A autoconfrontação, feita nas pesquisas que examinaram a atividade docente, pode ser entendida não apenas como procedimento metodológico de produção de dados, mas também como processo formativo do professor com possibilidades de torná-lo “ser para-si”? Essa questão se faz necessária na medida em que, nas pesquisas analisadas no âmbito do Procad, se aponta que a autoconfrontação provoca movimentos de transformação que tendem à autonomia profissional (SOARES, 2011; RETZ, 2012; BRANDO, 2012). Em face dessas constatações, passamos a investigar se a reflexão propiciada pelas sessões de autoconfrontação, empregadas em trabalhos sobre a atividade docente, consegue transformar o segundo projeto de pesquisa, aprovado pelo Edital 01/2007 do Procad/Capes, foi desenvolvido no período 2008/2012 entre três universidades brasileiras: UFPI, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Universidade de Brasília (UnB). É intitulado Currículo, Trabalho Pedagógico e Inclusão Escolar: Produzindo Redes de Significados e Sentidos na Perspectiva Histórico-cultural e tem o intuito de ampliar e aprofundar reflexões teóricas e metodológicas que possam subsidiar o desenvolvimento de pesquisas que têm como objetivo “investigar como os sentidos e os significados sobre currículo, trabalho pedagógico e inclusão escolar promovem práticas emancipatórias na escola” (IBIAPINA, 2008, p. 8).  O estágio de pós-doutorado foi realizado no Programa de Pós-graduação em Educação: Psicologia da Educação, da PUC-SP, com a supervisão da professora doutora Wanda Maria Junqueira de Aguiar, no período de setembro de 2010 a agosto de 2011.

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professor em “ser para-si”: profissional crítico-reflexivo, que pensa sua prática em sua historicidade. Os resultados do estudo que efetuamos para dar conta de tal objetivo e as mútuas reflexões suscitadas e efetivadas nos dois grupos serão discutidos no presente texto. Para compreender se a reflexão promovida nas sessões de autoconfrontação constitui processo formativo do professor como “ser para-si”, desenvolvemos pesquisa de natureza crítica, conforme sugerem Aguiar e Davis (2011), fundamentada nos conceitos de reflexividade (LIBÂNEO, 2012; CONTRERAS, 2002), de professor reflexivo (SCHÖN, 1997; ZEICHNER, 1993; SMYTH, 1992) e de vida cotidiana (HELLER, 1977), entre outros autores. A discussão acerca desses conceitos foi essencial para mediar o entendimento de que a formação crítica de professores deve passar necessariamente pelo ensino-aprendizagem da capacidade de refletir criticamente a atividade docente, o que significa pensar sobre a prática pedagógica considerando as múltiplas determinações que a formam. Contudo pensar a complexidade da atividade docente requer colaboração de outros e apropriação das objetivações do gênero humano.

Mediações teórico-metodológicas para pensarmos a formação crítica do professor Entendendo que a prática do professor se caracteriza por situações de incerteza e de indefinição circunscritas a determinado contexto sócio-histórico e político-institucional, a formação do docente como profissional crítico-reflexivo é uma necessidade e também um desafio a ser enfrentado por quem pensa, sente e faz a profissão docente. Nessa direção, propostas de formação crítica de professores tornam-se elementos-chave das reformas no sistema educativo, embora não seja comum os governantes ligados à educação considerarem o papel ativo dos professores como agentes significativos no processo de reformas. Em estudos anteriores, sistematizamos argumentos em defesa do professor crítico-reflexivo como “ser para-si”, pessoa

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e profissional capaz de refletir criticamente sobre a realidade educativa em que atua. Nesses estudos, Heller (1977), Zeichner (1993) e Smyth (1992), além de outros autores, colaboraram no entendimento de que a reflexão, quando operacionalizada em espaços de colaboração e ancorada nos conhecimentos advindos do conjunto da produção humana, é crítica e, portanto, medeia o processo de tornar-se professor crítico-reflexivo ou “ser para-si” (CARVALHO, 2012a; 2012b). Como um dos processos constitutivos da identidade do professor como “ser para-si”, “a formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores o meio de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de autoformação participada” (NÓVOA, 1997, p. 25). Em outras palavras, pensar a formação do professor como “ser para-si” significa pensar no professor crítico-reflexivo, pensar sobre uma formação que promova condições de aprendizagem e de desenvolvimento da capacidade de refletir criticamente acerca de questões relativas à sala de aula, ao ensino, à escola, à educação escolar e à realidade como um todo. Compreender essa perspectiva de formação crítica do professor nos remete às discussões de questões como: O que é reflexão? Que tipo de reflexão deve ser aprendida e desenvolvida pelo professor? Por que a reflexão dialética é um dos fundamentos da formação crítica do professor? Como o conceito de professor reflexivo tem estruturado modelos de formação de professores? A apropriação de conhecimentos é uma mediação para o professor refletir criticamente, ou seja, para se tornar crítico-reflexivo? No processo reflexivo sobre as questões aqui colocadas sistematizamos algumas mediações teórico-metodológicas para pensarmos a formação crítica do docente. Em princípio, convém clarificar que, na literatura acerca da formação de professores, se compreende a reflexão como uma capacidade cognitiva e afetivo-volitiva que define a qualidade do professor reflexivo. Trata-se também de um conceito que caracteriza o movimento que tem sido denominado de professor reflexivo. Assim, ambos, o conceito e o movimento professor reflexivo, precisam ser esclarecidos para entendermos a formação crítica de professores (PIMENTA, 2012; LIBÂNEO, 2012; CONTRERAS, 2002; SCHÖN, 1997; ZEICHNER, 1993; SMYTH, 1992).

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Sobre reflexividade A reflexão, ou a reflexividade, como adjetivo que designa a capacidade do ser humano de direcionar o pensamento sobre si mesmo e sobre o que foi produzido pela humanidade, é aprendida e desenvolvida nos espaços intersubjetivos de interação social e supõe transformações não somente naquele que reflete, como também na sua realidade. Porém nem todas as formas de reflexão gestam transformações. Libâneo (2012), ao abordar os significados de reflexividade no campo filosófico e os seus vários entendimentos aplicados à formação de professores, esclarece-nos que há a reflexão introspectiva (o ato de o indivíduo pensar sobre si mesmo), a reflexão prática (o pensar sobre a experiência vivenciada) e a reflexão dialética (o pensar capaz de captar o movimento da realidade, que ganha sentido com o agir humano). De já, ressaltamos que, talvez por isso, Nóvoa (1997, p. 26) afirme que “a formação está indissociavelmente ligada à ‘produção de sentidos’ sobre as vivências e sobre as expectativas de vida”. Dessas três noções de reflexão, a reflexão dialética mostrase capaz de provocar movimentos de transformação e, portanto, fundamentar a formação crítica de professores. Isso porque, ao conseguir apreender o real como devir, examina as mediações sociais e históricas que constituem determinado fato – objetos, situações, experiências, problemas etc. –, com a finalidade de compreendê-lo. Em outros termos, quando a reflexão recupera a gênese das práticas sociais e sua natureza ideológica, ela é crítica e libertadora, “porque nos emancipa das visões acríticas, dos pressupostos, hábitos, tradições e costumes não questionados e das formas de coerção e de dominação que tais práticas supõem e que muitas vezes nós mesmos sustentamos, em um auto-engano” (CONTRERAS, 2002, p. 165). É com esse significado que a reflexão a ser aprendida e desenvolvida nos processos de formação do professor tem sido denominada de crítica e se caracteriza, segundo Libâneo (2012, p. 83), por três capacidades:

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A primeira, de apropriação teórico-crítica das realidades em questão considerando os contextos concretos da ação docente; a segunda, de apropriação de metodologias de ação, de formas de agir, de procedimentos facilitadores do trabalho docente e de resolução de problemas de sala de aula. [...] A terceira, é a consideração dos contextos sociais, políticos, institucionais na configuração das práticas escolares.

O potencial da reflexão dialética e as ideias de Vygotsky (2000a; 2000b) acerca do desenvolvimento sócio-histórico e cultural do psiquismo humano fizeram-nos compreender que a reflexão, quando dialética, tem potencial teórico-metodológico para abrir e expandir zonas de desenvolvimento profissional que gestam possibilidades de transformar o professor em “ser parasi”, constituindo-se, assim, instrumento (mediação) e resultado (capacidade psicológica) da formação crítica de professores (CARVALHO, 2012a; 2012b). Em função disso, defendemos que as propostas de formação de professores devem acontecer em espaços colaborativos de aprendizagem da docência, em que tais profissionais possam aprender a atividade de refletir criticamente sobre sua realidade, apropriando-se de conhecimentos, de saberes e de habilidades necessárias à sua profissionalização. Todavia ressaltamos, com Nóvoa (1997), que a formação não se faz por acúmulo de conhecimentos, e sim pela reflexividade crítica quanto às práticas de transformação da identidade pessoal. Esse tipo de formação requer apropriação dos saberes docentes, os quais precisam ser nutridos pelas teorias da educação (PIMENTA, 2012), pela militância pedagógica (CONTRERAS, 2002) e pelas objetivações do gênero humano (CARVALHO, 2012a; 2012b). Defendemos também a necessidade de as propostas de formação de professores, seja inicial ou contínua, primarem pelo emprego de estratégias que colaborem no desenvolvimento do pensar crítico e reflexivo, como as sessões de autoconfrontação. Com a emergência da reflexividade na formação de professores, surgiram diversos movimentos em defesa do professor reflexivo

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com concepções diferentes acerca da formação profissional, do que seja reflexão e dos seus fins nesse processo.

Sobre o conceito professor reflexivo Como conceito que tem caracterizado o movimento professor reflexivo, é importante esclarecê-lo para compreendermos como os modelos de formação de professores têm se apropriado e mobilizado a reflexão como instrumento de desenvolvimento do pensamento dos docentes e de transformação da prática pedagógica, da atividade docente e da escola. Segundo Zeichner (1993; 2002a; 2002b; 2008), o movimento internacional designado professor reflexivo surgiu como reação aos modelos de professor como técnico e com base nas reformas educacionais que, sob a bandeira da reflexão, defendem a formação do professor reflexivo em todo o mundo. Nele, a reflexão “implica o reconhecimento de que os professores são profissionais que devem desempenhar papel activo na formulação tanto dos propósitos e objectivos do seu trabalho, como dos meios para os atingir” (ZEICHNER, 1993, p. 16). Na obra Os professores e sua formação, organizada por António Nóvoa (1997), autores como Marcelo García, Donald Schön e Pérez Gómez esclarecem que a gênese do movimento professor reflexivo remonta a John Dewey, encontra-se no centro do conflito epistemológico das racionalidades que originam os modelos de formação profissional e tem a própria prática do professor como foco de reflexão ou que suscita todo o processo reflexivo dele. Para Pérez Gómez (1997), todos os modelos de formação de professores estão baseados em concepções de conhecimento, de escola, de ensino e de currículo predominantes em dada época. O significado de cada um desses conceitos, em determinado Para conhecer os vários termos empregados na literatura sobre formação de professor, para caracterizar esse movimento ou a concepção de professor, consultar a obra de García (1997, p. 59). 

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momento histórico, deu origem às metáforas ou às imagens que definem, entre outros aspectos, o papel social do professor e suas competências como profissional. Por exemplo, a metáfora do professor como técnico e a do professor como prático: a primeira tem suas raízes na racionalidade técnica ou instrumental, por considerar que “a actividade do profissional é, sobretudo, instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas” (PÉREZ GÓMEZ, 1997, p. 96). Já a segunda metáfora, a do professor como prático, está ancorada na racionalidade prática e surge em decorrência da crítica generalizada à racionalidade técnica e ao papel passivo do professor que dela se origina. No modelo do professor como prático, parte-se da análise das práticas dos professores quando enfrentam problemas complexos da vida escolar, para a compreensão do modo como utilizam o conhecimento científico, como resolvem situações incertas e desconhecidas, como elaboram e modificam rotinas, como experimentam hipóteses de trabalho, como utilizam técnicas e instrumentos conhecidos e como recriam estratégias e inventam procedimentos e recursos (PÉREZ GOMEZ, 1997, p. 102).

O modelo de professor como prático tem orientado a formação do professor reflexivo, este discutido em profundidade por Donald Schön (1997), como processo de reflexão na ação e sobre a ação. Nele, a reflexão é prática, quer dizer, é sobre a prática e, portanto, possui como foco relatos dos fatos e das situações vivenciadas em sala de aula, tendo como base a experiência e o conhecimento tácito do professor. O autor, ao abordar o tema “formar professores como profissionais reflexivos”, pondera que a crise da desconfiança no conhecimento profissional desencadeia a busca por nova epistemologia da prática profissional que permita, no caso dos professores, desempenhar a atividade de ensino eficazmente. Na verdade, existe um conflito epistemológico no ensino: a racionalidade técnica, orientando a formação do professor como técnico, e a

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emergência do professor reflexivo, como profissional capaz de pensar sua prática, que tem fundamento na racionalidade prática. Para Schön (1997), o pensar sobre a prática profissional é um tipo de ensino denominado reflexivo e que toma duas formas: reflexão-na-ação e reflexão sobre a reflexão-na-ação. A reflexão-naação exige do professor capacidade de individualizar as situações de aprendizagem que acontecem na sua sala de aula, sem perder de vista a noção do grau de compreensão e de dificuldade de cada uma delas. Nessa forma de ensino, a reflexão consiste na capacidade de o docente pensar sobre a sua prática de ensino à medida que ensina e tendo como foco cada uma das situaçõesproblema que acontecem na sala de aula. Tal processo de reflexãona-ação não demanda palavras e pode ser desenvolvido em vários momentos da aula, como: observação da prática em sala de aula, para identificar as situações que causam incerteza e instabilidade; reflexão sobre as situações identificadas; reformulação dessas situações, criando uma nova; colocação de novas situações para que sejam vivenciadas pelo docente e pelos alunos. Já o refletir sobre a reflexão-na-ação se caracteriza pelo pensar a respeito das atividades realizadas. “Após a aula, o professor pode pensar no que aconteceu, no que observou, no significado que lhe deu e na eventual adopção de outros sentidos. Reflectir sobre a reflexão-naacção é uma acção, uma observação e uma descrição, que exige o uso de palavras” (SCHÖN, 1997, p. 83). Desse modo, segundo Schön, formar professores para que se tornem reflexivos na e sobre a sua prática significa desenvolver neles as características do que denominou de “practicum reflexivo”: aprender fazendo no mundo da prática para tomar consciência da sua própria aprendizagem e dos problemas da prática de ensino. Na percepção de García (1997, p. 60), a principal contribuição de Schön na formação de professores reflexivos consiste em destacar uma característica fundamental do ensino: “É uma profissão em que a própria prática conduz necessariamente à criação de um conhecimento específico e ligado à acção, que só pode ser adquirido através do contacto com a prática, pois se trata de um conhecimento tácito, pessoal e não sistemático”. O fato de o conhecimento tácito dos professores orientar o processo reflexivo

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de suas práticas e as possíveis reformulações é uma das críticas feitas ao modelo de Schön. Pimenta (2012, p. 26) sistematiza as principais críticas a esse modelo: Nesse sentido, diversos autores têm apresentado preocupações quanto ao desenvolvimento de um possível “praticismo” daí decorrente, para o qual bastaria a prática para a construção do saber docente; de um possível “individualismo”, fruto de uma reflexão em torno de si própria; de uma possível hegemonia autoritária, se se considera que a perspectiva da reflexão é suficiente para a resolução dos problemas da prática; além de um possível modismo, com uma apropriação indiscriminada e sem críticas, sem compreensão das origens e dos contextos que a geraram, o que pode levar à banalização da perspectiva da reflexão.

Embora defenda propostas de formação do professor reflexivo da sua prática, Zeichner (1993; 1997; 2002a; 2002b; 2008) tece várias críticas aos modelos reducionistas e limitantes, uma vez que acreditam na prática reflexiva individual e desconsideram as condições sociais e políticas do ensino. De fato, o autor discorda dos modelos de formação de professores originados na racionalidade técnica e defende os de professor como prático-reflexivo, mas aqueles “ligados a uma perspectiva reconstrucionista social de prática reflexiva” (ZEICHNER, 1997, p. 120). Diferentemente de alguns modelos de formação de professores como prático-reflexivos, com raízes epistemológicas na racionalidade prática, o modelo sociorreconstrucionista está ancorado na racionalidade crítica e, por isso, “explicitamente orientado para promover maior igualdade e justiça social” (PEREIRA, 2002, p. 38). Zeichner (1993), em um dos seus primeiros trabalhos acerca da formação reflexiva de professores, justifica sua escolha quando ressalta que os modelos de professor prático-reflexivo devem colocar em destaque a reflexão sobre o contexto social e político da escola e do ensino, bem como a valorização das ações na sala de aula quanto à sua capacidade em contribuir para maior

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igualdade e justiça no ensino e na sociedade. A noção de professor prático-reflexivo que o autor defende apresenta como princípios orientadores: o foco da reflexão do professor é sua própria prática, como também as condições sociais em que ela ocorre; a reflexão do professor precisa promover o reconhecimento de que suas ações têm caráter social e político; o compromisso da reflexão dáse como prática social para apoiar e sustentar o desenvolvimento coletivo dos professores. Esse modelo de professor como prático-reflexivo avança em relação ao de Schön (1997), por ampliar a concepção de reflexão sobre a prática, reconhecendo a necessidade de o docente refletir quanto a sua própria prática, mas, coletivamente, com seus pares e considerando as dimensões sociais e políticas que influenciam a prática do professor na escola e, sobretudo, na sala de aula. “Aquilo de que falo é de os professores criticarem e desenvolverem as suas teorias práticas à medida que refletem sozinhos e em conjunto na acção e sobre ela, acerca do seu ensino e das condições sociais que modelam as suas experiências de ensino” (ZEICHNER, 1993, p. 22). Zeichner lembra que, apesar dos esforços empreendidos na formação do professor reflexivo, o seu desenvolvimento genuíno foi minado pelos modelos dominantes de formação do professor reflexivo. Negligenciaram-se, por exemplo, as teorias práticas dos professores (conhecimento-em-ação), as condições sociais e a política da educação escolar e do ensino, e não se reconheceu “o fato de que as teorias sempre são produzidas por meio de práticas, e de as práticas sempre refletirem compromissos teóricos particulares” (ZEICHNER, 2002b, p. 38). Assim, os esforços para encorajar a prática reflexiva dos professores devem incorporar análises sobre o contexto social e político da educação escolar, do ensino e da sala de aula, e, ainda, enfatizar a reflexão como prática social nas comunidades de professores. As questões que reduzem o potencial de desenvolvimento profissional do professor reflexivo evidenciam a emergência de propostas de formação “conectadas a lutas mais amplas por justiça social e [que] contribua[m] para diminuir as lacunas na qualidade da educação disponível para os estudantes de diferentes perfis em todos os países do mundo” (ZEICHNER, 2008, p. 545). Seguindo

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esse raciocínio, a reflexão na formação de professores reflexivos deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um meio para que os professores possam “visualizar e, então, desafiar as estruturas que continuam impedindo que atinjamos os objetivos mais nobres como educadores” (ZEICHNER, 2008, p. 548). Como no modelo sociorreconstrucionista a reflexão é coletiva e consiste em estratégia para formar professores que analisem a própria prática, levando em conta sua base ética e seu contexto sociopolítico, ou seja, as dimensões sociais e políticas da docência e do ensino, então entendemos que a reflexão aqui mobilizada é crítica. Como aponta Zeichner (2002a, p. 84): “O importante é desenvolver uma consciência crítica por parte dos futuros professores e cultivar a capacidade de examinar sua prática e aprender com ela de modo a incluir um olhar sobre as dimensões sociais e políticas do seu trabalho”. Essas ideias acerca do professor prático-reflexivo reiteram nosso entendimento de que a reflexão é atividade consciente a ser desenvolvida pelo professor sobre sua prática e pode, portanto, ser considerada crítica quando a compreensão passa não apenas pelo pensar, sentir e agir do professor quanto às próprias ações em sala de aula, mas também pelas diferentes dimensões que as constituem (CARVALHO, 2012b). Se o propósito da formação do professor mediada pela reflexão crítica é o seu pleno desenvolvimento como pessoa e profissional, precisamos incentivar essa forma de pensamento sobre a docência como prática social e pedagógica composta por dimensões de naturezas técnica, prática, social, política, ética e cultural. Assim, como tomada de consciência da realidade, a atividade de refletir criticamente deve se caracterizar por ações que dotam os professores de possibilidades de pensar e de transformar sua prática, promovendo sua autonomia profissional: a capacidade do ser humano de querer, de escolher, de livremente praticar ou de deixar de praticar certos atos, reconhecendo, no entanto, que tal liberdade só é possível por meio da apropriação das múltiplas

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determinações envolvidas. É nesse sentido que podemos afirmar que os nossos modos de ser professor, sobretudo o que se caracteriza pela autonomia, constituem uma invenção cultural, produto do desenvolvimento social, histórico e cultural da humanidade. Considerando que a reflexão crítica é atividade consciente a ser aprendida e desenvolvida pelo professor, por ser instrumento e resultado da formação crítica de professores, faz-se necessário que as políticas de formação de docentes, ao projetar propostas de formação do professor reflexivo, proporcionem condições de desenvolvimento de ações que operacionalizem o exercício da reflexividade crítica pelos professores em formação. Isso requer “a instituição de políticas de identidade (coletiva) que promovam a formação da identidade política (pessoal), criando possibilidades do indivíduo ou do profissional refletir de forma autônoma, suscitando, com isso, condições de emancipação humana e social” (CARVALHO, 2011, p. 30-31).

Para nossas reflexões sobre autonomia, inspiramo-nos na noção de livre-arbítrio de Vygotsky (1995a) e no conceito cotidiano de liberdade desenvolvido por Heller (1977), por ambos fundamentarem nossa compreensão do conceito de autonomia como construção social e histórica, que possibilita ao homem aprender a orientar seus próprios pensamentos, sentimentos e ações. Fazendo um paralelo entre livrearbítrio e autonomia, bem como liberdade cotidiana e autonomia, entendemos que esta última deve ser compreendida com base na contradição dialética que a constitui, ou seja, como impossível de acontecer, como é impossível sermos livres, já que somos seres multideterminados; ao mesmo tempo em que é condição essencial para desenvolvermos nossa humanidade, sendo essencial o entendimento de que tal determinação está mediada pela dimensão do sujeito ativo, social e individual. Vygotsky (1995a) suscita essa reflexão quando, ao tratar do “Dominio de la propia conducta”, esclarece que o livre-arbítrio não consiste em estar livre dos motivos; ao contrário, consiste no fato de o homem tomar consciência da situação, tomar consciência da necessidade de escolher, o que significa, para nós, a capacidade de tomar decisões conhecendo as múltiplas determinações envolvidas no ato de escolher. Heller (1977) orienta nosso pensamento ao discutir “La libertad” como possibilidade de ação que deve estar articulada em determinada direção. A liberdade de determinado homem depende dele e também da liberdade de outrem, o que nos faz compreender que a liberdade nunca é absoluta e há distintas liberdades que estabelecem relações entre si. Seguindo a lógica do pensamento dos autores, podemos dizer que se avança para situações de autonomia conforme nos apropriamos das determinações que nos constituem. 

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Smyth (1992) dá-nos um norte de quais sejam essas ações, ao discutir o enfoque reflexivo na formação de professores e ao afirmar que não faz sentido denominar qualquer concepção de professores de reflexiva se não possibilitar crítica rigorosa dos modos de pensamento e de ação. Assim, no desenvolvimento de determinadas qualidades na reflexão a ser ensinada na formação crítica de professores, o autor defende que os professores precisam se engajar nas ações de descrever, de informar, de confrontar e de reconstruir, pois estas podem tornar mais eficiente a atividade de ensino. Smyth (1992) organizou tais ações reflexivas em um ciclo de quatro fases, que representam os tipos de reflexão que desencadeiam a atividade de refletir criticamente. Para ele, a organização das ações reflexivas em ciclos justifica-se na necessidade de desenvolver a capacidade de questionamento nos professores, seguindo uma lógica de conscientização progressiva por meio de perguntas críticas. Por exemplo: o que faço ou estou fazendo? (descrever); qual o significado do que faço? Ou, qual a fundamentação teórica da ação que desenvolvo? (informar); como cheguei a ser desse modo? Ou, será que quero ser assim? (confrontar); e, finalmente, como poderei fazer de modo diferente? (reconstruir). Seguindo essa lógica de ações desencadeadas por questões críticas, a intervenção realizada perante os professores, isto é, a intervenção formativa, “consistiria em ajudá-los a descobrir as interpretações que possuem sobre a dinâmica social de seu contexto de atuação, e como este se constituiu historicamente” (CONTRERAS, 2002, p. 166). Aranha (2009), em uma intervenção formativa perante um grupo de professores, para investigar o processo de produção de significados compartilhados sobre direção escolar, com base no processo colaborativo de pesquisa e de formação, esclarece-nos em que consiste cada uma dessas ações reflexivas: Assim, o descrever leva o participante a apresentar verbalmente suas ações, o que lhe permite distanciamento e questionamento sobre as escolhas feitas. O informar envolve a busca pelos princípios que sustentam, inconscientemente ou não, suas

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ações. [...]. É o momento de confrontar, quando o educador retoma o seu agir, num quadro sóciohistórico, que lhe permite uma compreensão maior dos significados de suas ações para a manutenção ou transformação de desigualdades, injustiças e preconceitos. A compreensão de suas práticas, dialeticamente relacionadas com o resultado das três ações anteriores, pode proporcionar ao sujeito a possibilidade de reconstruir sua ação, intervindo de forma mais produtiva no contexto escolar. O momento de reconstruir sua ação coloca-se quando o participante se pergunta: como posso agir de modo diferente? É o momento de emancipação de si mesmo e da possibilidade de se tornar um agente de transformação (ARANHA, 2009, p. 38, grifos da autora).

Ao vivenciarem esse processo reflexivo, os professores em formação narram fatos e situações das suas práticas, criando possibilidades de tomarem consciência das condições sociais e históricas que os determinam e de se reconhecerem como agentes críticos e, portanto, capazes de rever escolhas e transformar a si e a sua sociedade. A discussão de Heller (1977) sobre vida cotidiana faz-nos compreender que as objetivações do gênero humano têm de mediar esse processo de reflexividade crítica a respeito da atividade docente que ocorre em contextos de intervenção formativa, via realização de pesquisa crítica.

Sobre o conceito de vida cotidiana As ideias de Heller (1977; 2000) sobre vida cotidiana potencializam nossas reflexões na busca de compreensões e de modos de viabilizar propostas de formação que visem ao desenvolvimento do professor crítico-reflexivo. Isso se justifica no Parte da discussão desenvolvida nesse tópico consta em trabalhos que já discorreram sobre a temática (CARVALHO, 2012a; 2012b). 

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fato de que, ao considerar a historicidade do homem e, assim, sua constituição dialética movida por contradições, é possível fazer uma análise que desvende a cotidianidade e, assim, as possibilidades do professor, mesmo que voltado para as suas necessidades de sobrevivência, na condição de em-si (alienado) possa movimentarse na direção do para-si (consciente). Heller (1977, p. 19), ao conceituar vida cotidiana como “o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução do homem singular, as quais, por sua vez, criam a possibilidade de reprodução social”, esclarece que a vida cotidiana é a vida de todo homem, pois não há quem esteja fora dela. Na vida cotidiana o homem põe em atividade todos os seus sentidos, capacidades intelectuais e manipulativas, sentimentos e paixões, ideias e ideologias. Nessa perspectiva, cotidiano não significa rotina e menos ainda que a vida do indivíduo pode se restringir apenas à cotidianidade. Cotidiano não significa aquilo que é comum no dia a dia, como por exemplo ensinar matemática diariamente; o que caracteriza dada atividade como cotidiana é o fato de ela reproduzir o indivíduo. Por sua vez, a vida do indivíduo não pode se limitar ao âmbito do cotidiano, porque a vida social humana acontece também no âmbito do não cotidiano e se caracteriza por todas as objetivações produzidas ao longo da história social, as quais, ao serem apropriadas pelo homem, o constituem. Por meio da apropriação das objetivações genéricas o homem consegue se tornar ser em-si (particular) ou para-si (singular). A teoria da vida cotidiana esclarece que a cotidianidade está composta de formas de pensamento, de sentimento e de ação que constituem as objetivações genéricas em-si, como a linguagem, os objetos (utensílios e instrumentos) e os usos (costumes), e estão voltadas para a reprodução do homem. Trata-se de âmbito e de esfera em que predominam a não reflexão, a não ciência, a Duarte (1999, p. 31) explica a distinção que Heller (1977) faz entre os termos homem singular, homem particular e indivíduo: “O que Heller chama de homem singular, nós chamamos de indivíduo, sendo esse termo referente a qualquer ser humano; o que Heller chama de homem particular nós chamamos de indivíduo em-si alienado e o que Heller chama de indivíduo nós chamamos de individualidade para-si”. 

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heterogeneidade, ou seja, uma variedade de fatos de importância e valores diferentes e, especialmente, caracteriza-se por ser o espaço em que predomina o conhecimento tácito e propício para a alienação. Segundo Heller (1977, p. 153), “o que a vida cotidiana exige de cada um é que se submeta, nas eventuais situações conflitivas, às aspirações particulares, às exigências do costume”. A vida não cotidiana, por outro lado, e aqui cabe o esclarecimento de que a vida cotidiana e a não cotidiana compõem uma unidade dialética, constitui uma das objetivações humanas superiores mais complexas, as objetivações genéricas para-si, como Ciência, Filosofia, Arte, Moral e Política, voltadas para a reprodução da sociedade. Referimo-nos a uma esfera em que predomina a homogeneidade, ou seja, a “suspensão de qualquer outra atividade durante a execução da anterior e, por outro lado, que empreguemos nossa inteira individualidade humana na resolução dessa tarefa” (HELLER, 2000, p. 27). Mesmo entendendo o cotidiano como inescapável, a esfera da não cotidianidade favorece à não alienação, ao desenvolvimento do homem como ser singular. Cabe ainda um esclarecimento essencial, o de que o cotidiano é histórico e somente nessa condição pode ser compreendido, fato que nos leva ao entendimento de que sua dinâmica, suas características – por exemplo: maior ou menor alienação – apenas poderão ser analisadas sob esse prisma. Vivendo a vida cotidiana e não cotidiana, apropriando-se dos conteúdos das objetivações genéricas, o homem tem possibilidade de desenvolver as características humanas necessárias à vida em sociedade e ganha, com isso, autonomia e condições de transformação do mundo e de si mesmo. Portanto, na dialética vida cotidiana e vida não cotidiana há a oportunidade de aprendizado da capacidade de reflexão crítica e de desenvolvimento autônomo e consciente do homem como pessoa e profissional. Em outros termos, viver na cotidianidade é não apenas inevitável, mas condição para se tornar humano. Isso traz duas implicações para o desenvolvimento do homem: tornar-se apenas “ser particular”, indivíduo com tendência à alienação, ou “ser singular”, indivíduo capaz de desenvolver a individualidade humana. Reiteramos que ambas as possibilidades devem ser vistas como tendências que

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se movem e se alternam a depender da forma como o homem vive seu cotidiano. Por exemplo, se a vida profissional do professor se reduzir apenas à esfera das objetivações genéricas em-si, sua relação com a vida cotidiana passa a ser alienada, tornando-se, assim, apenas “ser particular”: um professor que tem o seu desenvolvimento cerceado, limitado às motivações particulares e às formas de pensar, sentir e agir espontâneas, próprias da vida cotidiana. Todavia é possível o desenvolvimento do docente ocorrer plenamente, e ele pode se tornar um “ser singular”: um professor que desenvolve maneiras de pensar que se caracterizam pela autonomia. Isso acontece quando as relações do professor com a sua realidade se dão nas duas esferas da vida: o cotidiano e o não cotidiano. Quer dizer, o professor, para se aperfeiçoar como pessoa e profissional, capaz de pensar, sentir e agir com autonomia, precisa se relacionar com os dois âmbitos da vida social – cotidiano e não cotidiano – e as duas esferas de objetivação do gênero humano, em-si e parasi. Se a vida cotidiana é a vida do indivíduo, do professor, como então viver a vida não cotidiana? Segundo Heller (1977; 2000), embora a cotidianidade seja constituinte da existência de todo indivíduo em qualquer sociedade, é preciso viver também a vida não cotidiana, o que se torna possível elevando-se da vida cotidiana via homogeneização. Quando o indivíduo consegue se apropriar das objetivações parasi, ele passa a se relacionar também com a vida não cotidiana e tem mais chances de se distanciar dos modos de pensar, de sentir e de agir espontâneos e de executar formas mais elaboradas, como a capacidade de reflexão crítica acerca da cotidianidade: um indivíduo que sabe conduzir a sua própria vida de forma livre e consciente, capaz de ter domínio sobre suas determinações, isto é, sobre as mediações que orientam seus pensamentos, seus sentimentos e suas ações. Dessas ideias da teoria da vida cotidiana infere-se que as possibilidades de desenvolvimento da individualidade humana estão nas condições de o homem se apropriar, nas relações sociais, das objetivações genéricas para-si, ou seja, aprender e usar tais objetivações como formas de mediação, de direção consciente da sua vida.

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Em suma, Heller (1977; 2000), ao explicitar que a vida social se organiza em dois âmbitos, faz-nos compreender que uma das alternativas de o professor se tornar consciente da sua realidade educacional é apropriando-se das objetivações genéricas, sobretudo as da esfera não cotidiana da atividade docente, tornando-se crítico-reflexivo. Na vida vivida concretamente nessas duas esferas sociais acontece a objetivação do gênero humano – as possibilidades de vir-a-ser humano, tornar-se indivíduo. Nesse sentido, a apropriação das objetivações genéricas para-si não significa advogar a favor de “um saber de base para o ensino” – o saber acadêmico, não cotidiano, em detrimento dos conhecimentos tácitos dos professores, vida cotidiana. Significa argumentar em favor da necessidade de as propostas de formação promoverem ao professor condições de aprendizado e de desenvolvimento, do pensar que se caracteriza pela reflexão crítica, tornando-se, assim, “ser para-si”. A proposição da apropriação das objetivações genéricas, sobretudo as para-si, como mediação da formação do professor, não significa poder para o professor superar a alienação da sua vida cotidiana. Significa proporcionar-lhe condições para realizar movimentos de suspensão da cotidianidade e, com isso, desenvolver a humanidade produzida historicamente pelo conjunto dos professores. Consiste, também, em criar condições para que o professor se torne e se reconheça como pessoa e profissional e reflita sobre sua atividade profissional considerando as múltiplas determinações que a constituem, tendo como fundamento as objetivações genéricas para-si. É nesse sentido que entendemos que Filosofia, Ciência, Arte e Política podem ser fundamentos teóricos com potencial de orientar propostas de formação crítica de professores. Para Heller (1977; 2000), quanto maior for a possibilidade, em uma estrutura social dada, de oferecer aos homens condições de plasmar de modo relativamente livre seu próprio destino, maior será o predomínio do para-si e, concluímos assim, da desalienação. Compreender a formação crítica de docentes nessa perspectiva de “ser para-si” tem sua gênese nos pressupostos da Psicologia Sócio-histórica, especialmente na ideia de que o desenvolvimento

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humano ocorre na relação dialética com o seu aprendizado; relação mediada pelo emprego de instrumentos, sobretudo os psicológicos. Assim, apropriar-se do mundo dos objetos, dos conceitos e dos fenômenos criados no processo sócio-histórico da humanidade é condição para o homem desenvolver suas funções psíquicas superiores, como a capacidade de reflexão crítica acerca dos fatos e fenômenos do mundo. No caso dos professores, a vivência em processos de intervenção formativos, que proporciona condições de aprendizado e de desenvolvimento da capacidade de refletir criticamente, torna iminentes zonas de desenvolvimento profissional que potencializam a (trans)formação nos seus modos de pensar, de sentir e de agir em relação à profissão docente. Na articulação dessas mediações teórico-metodológicas, necessárias na discussão sobre a formação crítica do professor e, portanto, no planejamento de pesquisas de intervenção formativa que têm como foco processos de transformação ocorridos nos professores, referimo-nos necessariamente a processos não lineares, àqueles que acontecem em movimento dialético e, portanto, histórico. Vygotsky (1995b) contribui com o debate quando discute as concepções de desenvolvimento humano produzidas na Psicologia. O autor afirma que seria ingenuidade considerar que revolução e desenvolvimento são processos incompatíveis, quer dizer, que podem ser apreendidos desvinculados um do outro. Para o autor, o entendimento deve ser de que um processo pressupõe reciprocamente o outro, visto que o desenvolvimento humano é processo complexo e dialético que se caracteriza por complicada periodicidade, fluxos e refluxos das diversas funções psíquicas e não se limita a mudanças quantitativas, e sim transformações qualitativas. Por isso, “a consciência ingênua não vê mais que catástrofes, ruína e ruptura quando se rompe a trama histórica e se produzem mudanças e saltos bruscos. A História deixa de existir para ela (consciência ingênua), enquanto não se retorne ao caminho reto e uniforme” (VYGOTSKY, 1995b, p. 141). Tais considerações nos são caras por fornecer fundamentos para refletirmos sobre nossa compreensão acerca das transformações; no caso, referirmo-nos à importância de levarmos em conta a

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existência das contradições na constituição do humano, do tornarse e do ser professor. Em face disso, ressaltamos, de acordo com Cury (1985, p. 27), que as contradições estão presentes no movimento dialético das múltiplas determinações que mutuamente compõem a realidade – ser professor, por exemplo –, dando-lhe caráter dinâmico e automovente: de produzir um movimento interno que, com seus elementos (historicamente constituídos), forme o novo. A contradição, como categoria interpretativa da realidade, “é o momento conceitual explicativo mais amplo, uma vez que reflete o movimento mais originário do real” (CURY, 1985, p. 27), permitindo ao analista interpretá-lo como síntese contraditória. É nesse sentido que estamos defendendo a reflexão crítica como instrumento e resultado da formação crítica de professores. Em outros termos: “A reflexão sobre o real torna-se o momento em que o homem descobre as contradições existentes no real. Pela reflexão, a natureza dialética do real encontra, na consciência da contradição, sua expressão subjetiva, e também a possibilidade de uma interferência no real” (CURY, 1985, p. 32). Isso posto, convém destacar que, ao nos debruçarmos sobre as possibilidades de que os processos formativos vivenciados pelos professores gerem transformações, se mostra premente que apreendamos, em nossas análises, a dialética constitutiva da realidade e, assim, as tendências contraditórias constitutivas dos movimentos de reflexão crítica. Em busca dessa meta, o esforço analítico e interventivo do pesquisador precisa buscar, como nos alerta Prado Jr. (1980, p. 395), momentos que indiquem “a substituição de um termo (conteúdo) por outro no curso do pensamento conceptual, e isto é a negação”. Propomos que o foco do pesquisador que adota procedimentos metodológicos de intervenção formativa incida sobre as transições, sobre o movimento em que o sujeito, ao ser afetado pelo novo, se questiona, pondera e, possivelmente, nega o instituído, transformando-o, ao mesmo tempo em que o incorpora via superação. Ainda considerando as contribuições de Prado Jr. (1980, p. 396), a escolha, por parte do sujeito do termo (conteúdo),

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vai surgir no movimento de superação, que não é arbitrário; ao contrário, o novo termo deve ser algo já existente, que esteja contido na outra concepção, “[...] que faça parte integrante da afirmação (como negação da afirmação), deve estar nela incluída e revelar-se desde o instante em que a afirmação é proposta”. Retomando nossas preocupações com a necessária suspensão do cotidiano, ao pensarmos um processo formativo crítico e reflexivo, tal como já anunciado, não podemos esquecer que “a eliminação da categoria contradição leva a uma análise unilateral que faz uso apenas dos conceitos de confirmação e legitimação” (CURY, 1985, p. 32). Dada a intencionalidade transformadora dos processos de formação aqui propostos, ousamos afirmar que eles se colocam no campo das possíveis catarses, conforme nos orientam Vygotsky (1999) e Heller (1977). A despeito de o termo não ter sido muito desenvolvido por esses autores, vemos seu valor heurístico ao nos ajudar a elaborar o que seria esse momento de transformação esperado nos processos interventivos de formação de professores. Vygotsky (1999, p. 270), por exemplo, em Psicologia da arte, afiança que, apesar de sabermos pouco sobre esse conceito aristotélico, nenhum outro termo traduz com tanta precisão o fato “[...] central para a reação estética, de que as emoções angustiantes e desagradáveis são submetidas à certa descarga, à sua destruição e transformação dos sentimentos”. Tal proposição nos remete à outra afirmação de Vygotsky (2000a, p. 479) de que “o próprio pensamento não nasce de outro pensamento, mas do campo de nossa consciência que o motiva, que abrange os nossos pendores e necessidades, os nossos interesses e motivações, os nossos afetos e emoções”. Com essa proposição, o autor chama nossa atenção para a importância da dimensão afetivo-volitiva; também nos alerta que, para pensarmos os porquês das ações – movimentos e transformações de determinada pessoa –, temos de considerar a força de um campo que é da ordem dos afetos – nunca descolados da cognição, das necessidades, dos motivos, articulados em relações dialéticas e, portanto, contraditórios. Para aprofundar nossa compreensão sobre esses complexos movimentos de transformação que podem ser suscitados em

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contextos de intervenção formativa, via realização de pesquisas críticas, trazemos ainda algumas contribuições de Heller (1977), para quem a “catarse ética” ocupa lugar de destaque, por ser a forma mais pura da homogeneização moral. Pelo discutido até aqui, podemos dizer que a catarse seria um momento propício à desalienação. Seria aquele instante em que a teoria, a reflexão científica, a homogeneização, as motivações morais seriam preponderantes e estariam absolutamente articuladas. Trata-se de momentos não usuais em que as escolhas enfrentam conflitos, tanto de ordem prática como moral. Segundo Heller (1977, p.158), as mudanças ocorridas somente poderão ser denominadas catárticas se continuarem a ter ressonância nas esferas mais diversas da vida, pois se referem a momentos qualitativamente diferenciados em que “[...] minha decisão moral ou minha assunção das responsabilidades são irreversíveis, não só objetivamente, mas também subjetivamente, post festum toda minha vida mudaria. Minha hierarquia de valores se ordenaria agora sobre a base do valor moral descoberto”. Referimo-nos, como alega Engeström (2011), a um processo em que as contradições são tensões estruturais historicamente acumuladas em e entre sistemas de atividade que estão constantemente trabalhando em meio a tensões e a contradições dentro de seus elementos e entre eles. Como as contradições manifestam-se em perturbações e soluções inovadoras, as intervenções formativas perante educadores devem ter como base o entendimento de que as contradições são de mudança e de desenvolvimento. Nesse ponto, resta-nos declarar que, ao nos referirmos aos processos de formação geradores de superação e, assim, transformação, é possível pressupormos, como colocado por Duarte (1999, p. 28), que, quando focamos a formação do sujeito, “não se pode permanecer neste primeiro momento, o do conhecimento do que o indivíduo é, mas precisa se posicionar em relação ao vir a ser da individualidade humana”. As mediações teórico-metodológicas que sistematizamos são necessárias na discussão sobre a formação crítica do professor, via realização de pesquisas de intervenção formativas, porque possibilitam ao professor pesquisador apreender as contradições

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que constituem tanto a sua formação e o seu desenvolvimento profissional quanto a sua atividade docente. Em síntese, o que estamos ressaltando com a sistematização dessas mediações teórico-metodológicas é a reflexividade crítica como mediação na formação de professores ancorada nas objetivações genéricas, tanto as em-si quanto as para-si. Assim, defendemos a compreensão das múltiplas e contraditórias determinações que constituem a atividade docente como condição para superar o practicismo que tem predominado na formação e na prática dos professores e potencializar transformações significativas na prática pedagógica.

Metodologia No desenrolar da pesquisa empírica, tomamos como corpus empírico de análise o conteúdo das autoconfrontações desenvolvidas na pesquisa que originou a tese de doutorado de Soares (2011). A escolha por esse corpus tem basicamente três justificativas. A primeira deve-se ao fato de a autoconfrontação constituir, segundo Clot (2006), procedimento de confronto do sujeito com a imagem produzida em videogravações sobre a atividade real, isto é, a atividade realizada, de modo a desenvolver o pensamento na direção do real da atividade: o que ele deixou de fazer e o que pode vir a fazer. A segunda justificativa está relacionada ao fato de o conteúdo das sessões de autoconfrontação, promovidas nas teses de doutoramento escolhidas, consistir em discussão que amplia a possibilidade de compreensão da atividade docente executada pelos professores pesquisados, dando indícios de que houve reflexão crítica. Isso porque entendemos, com Aguiar e Davis (2011, p. 193), que esse é o procedimento metodológico “para a coleta de informações capazes de gerar, nos informantes, movimento de reflexão sobre seus modos de fazer, de sentir e de pensar, expressando-os de forma passível de ser identificada via análise”. A terceira justificativa diz respeito à possibilidade de a autoconfrontação ser considerada narrativa biográfica e autobiográfica, uma vez que ela abrange sessões de observação das ações e das operações feitas nas aulas que foram filmadas

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– imagem gravada –, como também de narração oral do professor, do seu colega e/ou do pesquisador acerca da atividade profissional, ou seja, da descrição e da explicação das situações vividas em que ocorreu atividade docente (BAUER; GASKELL, 2008). Em síntese, a escolha pelos conteúdos produzidos nas sessões de autoconfrontação deve-se ao fato de esse procedimento metodológico promover movimentos de transformação no modo de pensar, de sentir e de agir do professor, dando-nos condições de investigar a qualidade da reflexividade desenvolvida sobre a atividade docente. Ao selecionar e organizar o corpus empírico a ser analisado, fizemos alguns recortes no conteúdo das narrações dos episódios das sessões um, três e quatro, descritas e disponibilizadas no anexo II da tese de Soares (2011). Para dar conta do nosso objetivo, selecionamos trechos discursivos dos episódios com base nos seguintes critérios: a qualidade dos questionamentos do pesquisador para desencadear e/ou (re)orientar o processo reflexivo; o foco e a qualidade da reflexão desenvolvida pela professora entrevistada; possibilidades de o pesquisador colaborar no desenvolvimento da reflexão crítica da professora. Nos trechos escolhidos, suprimimos com colchetes aqueles em que as descrições se repetiam no mesmo episódio ou entre os episódios. No processo de análise do conteúdo das narrativas adotaramse os procedimentos: leituras reflexivas do corpus empírico e identificação e descrição de aspectos que pudessem evidenciar a qualidade da reflexão promovida e possibilidades de ela vir a ser crítica, já que a proposta da autoconfrontação é refletir sobre a atividade executada e explicar os movimentos de transformação no professor. Na discussão do conteúdo das narrativas a preocupação foi compreender se a reflexão promovida é prática (SCHÖN, 1997) ou crítica (ZEICHNER, 1993; 2008; SMYTH, 1992), destacando as possibilidades de transformação da professora que participou do estudo.

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Reflexão crítica nas autoconfrontações e a formação do professor como ser para-si: possibilidades e limites O processo de análise evidencia a tese de que a autoconfrontação é não apenas procedimento metodológico de produção de dados em pesquisas que investigam a atividade docente, assim como processo formativo do professor com potencial para torná-lo crítico-reflexivo (ZEICHNER, 1993; SMYTH, 1992) ou ser para-si (HELLER, 1977), uma vez que provoca movimentos que abre possibilidades de ação do professor. Nas sessões de autoconfrontação simples, analisamos esse potencial, visto que havia modos de o pesquisador intervir e provocar o desenvolvimento da reflexão crítica pela professora, de maneira a fazê-la ir além da descrição da atividade executada. A forma de o pesquisador intervir, a qualidade da reflexão desenvolvida pela professora nas sessões de autoconfrontação simples e as possibilidades de ela vir a ser crítica estão destacadas na descrição e na explicação que fazemos a seguir. O episódio da primeira sessão, denominado “Organização dos alunos na biblioteca”, é “constituído por eventos microgenéticos que retratam momentos particulares em que a professora, vestida com um avental customizado com motivos da história de Chapeuzinho Vermelho, organiza os alunos para ouvirem a leitura da referida história na biblioteca [...]” (SOARES, 2011, p. 303). Dele, ressaltamos o movimento de reflexão da professora e de intervenção do pesquisador no seguinte trecho: Pesquisador: Depois de assistir ao episódio, a professora faz o seguinte comentário [é importante ressaltar que nesse momento não fizemos nenhuma pergunta]: Professora: É assim mesmo! O professor do ensino fundamental tem muito trabalho dentro de uma sala de aula. Ele precisa se esforçar muito para dar conta de uma sala de aula, dar uma boa aula. Pra isso, ele tem que saber que é preciso orientar os alunos a se comportarem direitinho, incentivá-los para o estudo. Se não for desse jeito, o aluno não aprende. Muitos alunos não têm ajuda em casa... Não são ensinados a se comportar direito. Então, a gente tem que fazer isso. É um esforço muito grande que a gente precisa fazer para conseguir que o aluno

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aprenda alguma coisa daquilo que a gente ensina. [...] A gente tem que ensinar eles se comportarem não só pra assistir aula. É importante que eles aprendam outras coisas também, que ajudem a eles terem [por exemplo] hábito de higiene, saibam como se prevenir desses casos de gripe que estão acontecendo agora e tudo mais. Pesquisador: Depois de assistir a todo episódio, você poderia nos dizer o seu objetivo com essa atividade? (SOARES, 2011).

Observamos no diálogo que, embora o conteúdo em foco de discussão seja a atividade executada – organização dos alunos na biblioteca para realização da atividade de leitura –, a professora começa refletindo sobre questões mais amplas da atividade docente, como o processo ensino-aprendizagem. Porém o pesquisador não intervém analisando o conteúdo do discurso da professora, para ela avançar na reflexão já suscitada sobre o esforço do professor para ensinar não apenas os conteúdos escolares, além da questão da falta de apoio familiar. Com a indagação, a professora passa a justificar o evento microgenético que é o foco da discussão: o esforço para organizar os alunos para ouvir a história que ela havia planejado contar. Vejamos como o foco da reflexão sai do “esforço do professor para ensinar” para “o esforço do professor para organizar os alunos em sala de aula”. Professora: Eu queria organizar os alunos, que era pra eles prestarem atenção à história que eu ia contar. Eu queria que eles se sentassem para ouvir a história. Tem alguns aí em pé conversando, e estou tentando começar a história. Eu sempre faço isso, vou lá, na carteira, arrumo todos eles, ajudo a guardar o material, a tirar o caderno [...]. Eu gosto de deixar tudo preparado antes de começar qualquer atividade. Pesquisador: E se você não organizasse os alunos para essa atividade, como seria? (SOARES, 2011).

Provavelmente, ao pensar em conduzir a reflexão conforme propõe Clot (2006), gerando consideração sobre as possibilidades de o professor sair da atividade real para o real da atividade, o pesquisador intervém sem levar em conta um aspecto que a professora destaca como importante para desenvolver as ações

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em sala de aula: organizar a sala antes de iniciar a aula. Mesmo assim, na sequência da narração, ela justifica o porquê dessa estratégia de ensino-aprendizagem e traz à tona outras questões relativas ao processo. Professora: Se eu não organizasse, mesmo assim eles participariam... Mas seria... Eles não iriam participar do jeito que eu gostaria. Se a gente não organizar, eles participam, mas eles participam sem muito aproveitamento. [...] Quando o aluno aprende, é porque ele participou da aula e ele sabe contar a história. Você pode olhar que, quando o aluno aprende, ele não conta a história do jeito do livro. Ele conta, mas é de outro jeito. Ele cria outra história com personagens, com começo, meio e fim... Ele fica muito mais criativo. Para aprender, eles precisam estar organizados, prestar atenção. É por isso que eu tento organizar todos eles nas carteiras, chamo atenção para que se sentem, façam silêncio, me escutem. Isso tudo dá muito trabalho. Isso não é todo professor que faz. O professor precisa realmente querer que os alunos aprendam, senão ele deixa pra lá, não vai se importar com essa coisa de ficar organizando os alunos nas carteiras, de ficar dizendo o que eles devem fazer, como devem se comportar. [...] Mas, como eu digo, o ambiente da própria sala de aula atrapalha na hora em que a gente vai fazer uma atividade. As salas de aula são muito pequenas, apertadas, não dá pra gente trabalhar direito com criança [...]. Aí os meninos já se agitam por conta do aperto. Tem hora que eu não tenho nem condição de circular na sala. Pesquisador: Como você gostaria que tivesse sido essa aula? (SOARES, 2011).

A pergunta do pesquisador provoca reflexão a respeito do que poderia ter feito diferente – o real da atividade de contar história –, todavia não suscita reflexões sobre o significado da atividade de ensinar, embora a professora dê indícios da ação de informar. As questões que facilitam e dificultam o ensinar e o aprender, destacadas pela professora, como participação e criatividade do aluno e estrutura física da escola, sobretudo, da sala de aula, não são analisadas, e o foco da reflexão volta para a descrição da atividade executada – a atividade real.

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Professora: Quando eu leio uma história que tem animais como personagens, eu sempre aproveito para fazer uma dramatização com eles. Aí eu imito a voz, um aluno pula como sapo... Tudo isso faz parte da aula. E eles adoram! [...] O professor tem que incentivar de todas as formas o aluno para a leitura. O professor tem que se valer de muitas estratégias para isso. O professor não pode simplesmente ir dar aula pensando só no conteúdo, na explicação. Trabalhar com criança exige que a gente tenha essa preocupação de levar estratégias que realmente despertem interesse na criança que já vem de casa, muitas vezes, com problemas até demais. Aí, o professor tem de levar coisas interessantes pra sala de aula. [...] Eu tive uma ideia para trabalhar essa história, e trabalhei diferente da minha colega. Eu não tive uma ideia na hora da aula, mas em casa. Eu planejei a aula. E deu certo. [...] Outra coisa, é que eu contei essa história de Chapeuzinho Vermelho porque o aluno de seis, sete e oito anos já vem com essa cultura de história, de fábula. Eu sei que os pais contam história pros filhos e eles gostam muito [...]. Pesquisador: Você, fazendo essas colocações, me faz pensar que o professor deve ficar satisfeito em ver seus alunos se desenvolvendo, mas o que você sente quando percebe que um aluno não demonstra avanço? (SOARES, 2011).

Ainda que não retome os aspectos discutidos pela professora, quando busca responder à questão de como gostaria que tivesse sido a aula sobre contar história, o questionamento do pesquisador leva a entrevistada a pensar mais quanto a questões de ensino-aprendizagem que considera importante: incentivo ao aluno, sobretudo para a leitura; estratégias de ensino para atuar com crianças; planejamento da aula; conhecimento da cultura do aluno, entre outras. Tal tipo de questionamento pode ampliar o processo reflexivo sobre a atividade docente, pois proporciona condições para a professora avançar na atividade de refletir não apenas descrevendo, narrando a atividade executada (o que estou fazendo?), mas passando para a ação de informar, isto é, buscar apreender o significado social da sua atividade profissional, e não apenas de uma situação de ensino-aprendizagem. Porém a professora avança pouco, pois passa a dar explicações de casos singulares de não aprendizagem, conforme trecho seguinte.

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Professora: Isso me preocupa muito. A gente trabalha, vem com aquela vontade de ensinar, de fazer com que os alunos aprendam, mas às vezes isso tudo é em vão. Então isso me preocupa muito! É tanto que eu chamei a supervisora para conhecer dois alunos assim, pra ver se ela podia me ajudar a resolver. Não é que eles não aprendam. Nenhum professor pode abrir a boca para dizer que o aluno não sabe, não aprende. É errado dizer isso. Ele sabe, ele aprende. O que existe é o desinteresse. E por trás do desinteresse existem problemas que o professor não sabe quais são, e até sabe... Um desses alunos, quando eu passo o dever no caderno, ele faz. Eu chamo e ele diz as vogais, diz o alfabeto. Ele não lê convencionalmente, não está fazendo frases... [...]. Não é culpa minha porque ele tem problema de saúde – a mãe dele disse. Ele passa semanas sem vir à aula. Da última vez, ele faltou um mês. A culpa é do professor? Não! Tem n problemas aí. Por que a maioria conseguiu e eles dois não? Os dois têm problemas. [...] É difícil! Na sala, eles ficam brigando, não prestam atenção, não querem fazer o dever. É realmente muito difícil, muito complicado (SOARES, 2011).

No trecho, a professora parece conduzir sua reflexão para a atividade de ensinar, e não para um evento microgenético da atividade de contar história. Contudo as explicações da professora para o não aprendizado de dois alunos deixam evidente que suas reflexões devem ser orientadas para a compreensão de que são múltiplos os aspectos que incidem no aprendizado e no não aprendizado dos estudantes. Isso requer seguir a lógica do pensar progressivo: do descrever ao reconstruir, passando pelo informar e pelo confrontar, como orienta Smyth (1992). Para atingir esse objetivo, a intervenção do pesquisador com o outro mais experiente é fundamental. O método de análise de alguns dos trechos discursivos do episódio da terceira sessão de autoconfrontação, intitulada “Interpretação coletiva da leitura”, constituído por eventos microgenéticos “que se referem ao momento em que a professora passou a interpretar a história com os alunos” (SOARES, 2011, p. 311), demonstra que o movimento de reflexão quanto à atividade executada se mantém; a reflexão é sobre aspectos da prática da

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professora, os eventos microgenéticos relativos à interpretação coletiva da leitura, e não sobre as múltiplas determinações que compõem a atividade: interpretação coletiva da leitura. Todavia, no terceiro episódio, há indícios de que a intervenção do pesquisador tende a provocar movimento reflexivo que poderia vir a ser crítico, conforme o seguinte trecho: Pesquisador: Coloco o vídeo para fazer a comparação de duas situações. Durante a leitura da história, muitos alunos ficaram sem dar atenção ao que a professora fazia. Já na interpretação da leitura, todos parecem estar envolvidos com a aula. Pergunta: Há diferença entre essas duas cenas? O que aconteceu? Professora: Nesse caso aí, eu estou trabalhando coletivamente com eles. Estou fazendo pergunta a todos os alunos sobre a história que a gente leu de Chapeuzinho Vermelho. Eles estão aprendendo a participar coletivamente da aula. Em grupo, eles participam mais, eles se envolvem mais com as atividades que a gente faz. Todos querem responder quando eu faço uma pergunta, quando eu quero saber o que fizeram os personagens da história. [...]. Eu fico interpretando e direcionando perguntas para eles me responderem. Você vê também que eu gosto de mexer com eles. É para eles entenderem a aula, participarem e deixarem a aula mais prazerosa. É assim que eles vão aprender e saber contar a história. Eu adoro fazer isso na interpretação da leitura! Conversar com eles, puxar deles e eles participarem. É assim que a gente vê que o aluno entendeu. Eles participando, o professor conversando com eles, o aluno se sente feliz. Ele vê que o professor está assim... percebendo o que ele está fazendo. Eu faço tudo isso porque eu adoro trabalhar assim e porque é assim, puxando deles, que eles participam mais, se envolvem mais com a atividade e aprendem mais. Você vê que, quando eles estão ocupados, eles não bagunçam. Agora eles estão fazendo barulho [o sujeito fala isto a partir da observação do vídeo], mas é porque eles estão respondendo, estão participando das perguntas, e não porque estão com conversas paralelas, mexendo com o coleguinha do lado. Para o aluno, quanto mais coisas diferentes, novidades, mais eles participam; eles se sentem mais à vontade e alegres em participar da leitura e da interpretação do texto quando tem material concreto, como esses fantoches (SOARES, 2011).

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Aqui notamos que, mais do que descrever, a professora informa, explica o que significa os alunos participarem em sala de aula não somente para interpretação coletiva da leitura – atividade executada e em observação via imagens dos eventos microgenéticos filmados –, mas no ensinar e aprender. Diferentemente das intervenções anteriores, a pergunta que o pesquisador fez para provocar esse processo reflexivo parece desencadear o desenvolvimento da ação de informar, ao passo que a pergunta que segue mantém o informar, já que a professora conta por que é importante desenvolver a aula com material concreto. Pesquisador: Em sua opinião, por que o aluno fica mais interessado pela aula que tem material concreto, como essa, em que você usou fantoches/personagens de uma história infantil? Professora: O aluno é muito observador. Quando eu fui iniciar o texto, como a gente vê [na cena], tem aluno olhando para o lado, mas tem aluno que desperta o olhar mesmo nos materiais que a gente está usando, como aí os fantoches. Qualquer coisa eles querem estar olhando. O concreto deixa eles mais interessados porque prende a atenção deles. E prende porque deixa a aula mais animada com as cores, os movimentos. Existe aluno aí que não está com a visão voltada para os fantoches, mas isso não quer dizer que ele não está prestando atenção na história, na leitura. É porque ele está visualizando certas coisas que também chamam a atenção dele. Alunos de 1.º aninho são muito curiosos e observadores [fim da discussão desse episódio] (SOARES, 2011).

Convém destacar que a pergunta do pesquisador poderia ter ampliado a reflexão da professora quanto à atividade executada, interpretação coletiva da leitura, se tivesse sido focada na questão mais ampla que está subentendida: a necessidade de o aluno estar em atividade para aprender. A reflexão crítica acerca dessa questão remeteria à discussão sobre o desenvolvimento e a aprendizagem da criança na escola, o que se faz preciso à apropriação dos conhecimentos da Filosofia, História e Psicologia, por exemplo.

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Se considerarmos que o processo reflexivo da professora deveria ter sido orientado pelas ações reflexivas de Smyth (1992), então a próxima intervenção do pesquisador deveria possibilitar a progressão do pensamento na direção da ação de confrontar, colocando a professora para refletir como chegou ao entendimento de que ensinar via situações concretas promove a aprendizagem dos alunos. No episódio da quarta sessão de autoconfrontação simples, denominado “A história recontada pelos alunos”, as reflexões desenvolvidas estão relacionadas a dois tipos de eventos microgenéticos: aqueles “em que a professora convida dois alunos para recriarem a história de Chapeuzinho Vermelho e contaremna, utilizando os fantoches”, e “os eventos microgenéticos sobre o comportamento da professora e dos demais alunos nesse momento de recriação e recontação da história” (SOARES, 2011, p. 313). Evidenciamos o movimento de reflexão da professora e de intervenção do pesquisador quando este pergunta: Pesquisador: O que é essa atividade e o que você pretendia com ela? Professora: Essa é uma atividade que eu geralmente faço que é para o aluno recontar a história que foi lida. Só que ele deve recontar criando uma nova história. Ele tem que ser criativo. Não é pra ele reler ou reproduzir a história lida. É para ele recontar criando uma nova história. Quem não entende acha que o aluno só lê se ele souber o alfabeto. Ele pode ler também imagens de vários tipos. Por isso, quando eu peço pra eles recontarem uma história, aqueles que não sabem ler fazem uma leitura que é mais de interpretação de uma imagem, e criam uma história do jeito deles, do jeito que eles imaginam e sabem contar. A gente – professor – tem que colocar os alunos pra ser criativos do jeito deles. É sendo criativos que eles ficam mais autônomos. Muitas vezes, eles não têm essa oportunidade em casa, e a gente não pode deixar de fazer esse tipo de atividade na escola, que são atividades que deixam os alunos mais ativos, mais participativos, são atividades que mexem com os alunos, que botam eles pra raciocinar, pra ser criativos. Muitos alunos são filhos de pais separados, desempregados, muitos deles moram com as avós, outros têm pais que só vêm visitá-los de tempos em tempos,

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outros têm pais que trabalham mas não têm salário digno, um salário que possa suprir as necessidades da família. São muitos os problemas! [...] (SOARES, 2011).

A reflexão da professora, embora seja para responder a uma pergunta sobre a atividade executada de colocar os alunos para recontar a história lida, recupera questões fundamentais da educação escolar, sobretudo do ensino a ser desenvolvido com crianças. Ao explicar que faz a atividade em questão para estimular a participação do estudante e o desenvolvimento do seu raciocínio e criatividade, a professora coloca em discussão sua concepção de aluno como ser criativo e autônomo e os desafios do professor para ensinar em condições adversas. Esse processo reflexivo demonstra que a questão suscitada orientou, mesmo sem intenção, o desenvolvimento da ação de informar e, portanto, deixa de ser meramente prático e começa a ser crítico. A intervenção que segue parece que dá continuidade à ação de informar. Pesquisador: Retomo a cena novamente e peço à professora para comentar a sua relação com os alunos e por que só convidou dois alunos para recriarem a história de Chapeuzinho Vermelho, embora outros alunos tenham se oferecido. Professora: Chamei Lili [nome fictício], chamei Jean [nome fictício], porque eles gostam muito de participar. Tem uns aí que são tímidos, que eu chamo também [refere-se ao fato de que chamou “esses” alunos em outras atividades, e não nessa da leitura da história de Chapeuzinho Vermelho]. Não vou dizer que não chamo os tímidos, porque eu chamo. Mas não chego ao objetivo que eu quero. Esses que são tímidos não abrem a boquinha, aí fica mais difícil da gente trabalhar com eles numa atividade como essa, que é pro aluno falar, criar, recontar a história. [...]. Você observe que quando eles estão fazendo alguma coisa eles ficam mais entusiasmados, mais enturmados. Quando eu conto uma história bem interessante, eles ficam bem atentos, e, no final, querem dar opinião sobre a história, desenhar sobre a história. Ouvir o aluno não é somente ouvir. É ouvir e falar também sobre a opinião deles. Isso ajuda a eles terem mais interesse pela aula (SOARES, 2011).

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O processo reflexivo da professora é sobre a própria prática, especialmente eventos microgenéticos para explicar a atividade executada, e revela que ela dá continuidade à ação de informar, embora a intervenção do pesquisador não retome as questões destacadas por ela, para esclarecer o que é e para que serve a atividade de recontar a história lida. Do mesmo modo, as intervenções que seguem, até o fim dessa sessão, continuam a orientar a ação de informar: explicar o significado da atividade de recontar a história lida. Pesquisador: Na retomada da cena, a professora, ao observar o segundo aluno contar a sua história, tece o seguinte comentário: Professora: Ele se sente tão feliz quando a gente chama ele para participar, para recontar uma história! Quando eu começo a ler as minhas leituras compartilhadas na sala de aula, todo dia eu tenho que ler e registrar, ele reconta de um jeito que você fica assim... pasma! Ele não foge do assunto da história e cria mais coisa ainda para a história. Isso é muito gratificante. [...]. Pesquisador: Você chamou esses dois alunos para recriarem a história. Um desses alunos participou tanto da dramatização como da recriação da história. E o restante dos alunos, como fica a participação deles? Professora: Meu objetivo aí era chamar poucos alunos, por conta da questão do tempo. Nessa atividade, não dá para chamar todos para participar num dia só. Para que todos participem, eu tenho que ir mudando a atividade. Nesse dia eu chamei esses alunos, mas noutro dia eu chamo outros, inclusive os mais tímidos. Agora, eu não posso repetir a atividade. Tem que ser outra história. Aluno não gosta de nada repetitivo. Eles não aceitam que o professor trabalhe um texto durante uma semana porque logo eles se cansam. Aí fica muito mais difícil para o professor. Você observou minhas aulas e sabe que eu trabalho com material concreto. [...]. Claro que pra isso o professor precisa ter vocação. Precisa gostar muito do que faz (SOARES, 2011).

Na sequência da narração, o foco da reflexão são os comportamentos dos alunos e da professora que emergem na realização da atividade de recontar a história lida. Dessa maneira, a

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professora dá continuidade à ação reflexiva de informar, na medida em que discute as dificuldades do professor em envolver todos os alunos na atividade. Com a mesma lógica, defende que é preciso garantir a participação de todos os estudantes, pois entende que essa atividade os torna criativos e felizes e deixa o professor gratificado. Considerando a importância de a reflexão ser crítica para provocar movimentos de transformação no professor, que devem ir na direção do seu desenvolvimento profissional, ressaltamos, mais uma vez, que a intervenção deveria ter retomado as questões relativas à atividade docente e ao processo de ensino-aprendizagem, às quais a professora deu destaque nos três episódios que analisamos: organização da sala de aula; participação dos alunos em sala de aula; esforço, querer e gosto do professor; estratégias de ensino; planejamento da aula; criatividade; condições subjetivas e objetivas da vida do aluno, entre outras. O modo de o pesquisador intervir pode ser justificado na proposta de Clot (2006), pois nela a reflexão parece estar relacionada diretamente à tarefa (o que o professor planejou fazer), à atividade real (o que fez) e ao real da atividade (o que deixou de fazer e o que pode vir a fazer diferente). Em processo reflexivo com fim formativo, detém-se na reflexão na e da ação e perde-se a oportunidade de discutir o significado social das questões amplas da atividade docente. Intervir colaborando no avanço progressivo do processo reflexivo sobre o que significa cada uma dessas questões no ensino, na escola e na sociedade é um desafio a ser enfrentado pelo pesquisador. Queremos pontuar que a intervenção do pesquisador, nesse processo reflexivo, deve suscitar e ampliar as discussões sobre as mediações de ordem social, moral e política relativas à profissão docente, ao ensino e à educação escolar. Por exemplo, ao levar em conta o desenrolar do raciocínio do professor, o pesquisador pode interferir orientando a reflexão para formar o professor práticoreflexivo que Zeichner (1993; 2008) defende. Para tanto, faz-se necessária a apropriação de conhecimentos para compreender que todas as questões são determinadas social e historicamente e operacionalizar o processo reflexivo com as ações reflexivas de Smyth (1992).

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Capítulo III – A autoconfrontação como instrumento de formação do professor e a importância da crítica como constitutiva desse processo

Em síntese, a reflexão propiciada pelas sessões de autoconfrontação, empregadas na realização de pesquisas sobre a atividade docente, tem potencial para transformar o professor em crítico-reflexivo ou ser para-si. Entretanto é preciso redirecionar as formas de intervenção do pesquisador perante o pesquisado considerando que: • ao observar as imagens filmadas da sua aula, a professora descreve muito bem as ações que desenvolve para dar conta da atividade real. Isso significa que o recurso da videogravação da atividade profissional se mostra uma estratégia com potencial de fazer o professor “olhar para si mesmo” e provocar reflexões, tanto da sua própria prática como da atividade docente; • no processo reflexivo da professora predomina a ação de descrever a atividade real, os eventos microgenéticos (o que estou fazendo?). Mas há indícios de que a entrevistada inicia a ação de informar (qual o significado do que faço?), pois explica o significado da atividade que está desenvolvendo, porém não avança no desenvolvimento da ação de informar. Motivos: as intervenções do pesquisador – retomando o objetivo do episódio e não analisando as questões do processo de ensino-aprendizagem que a professora destaca – e a falta dos conhecimentos advindos das objetivações genéricas para compreender os significados sociais das questões mais amplas da atividade docente dificultam o processo reflexivo crítico; • em vários momentos do processo interativo, o pesquisador poderia tecer conjecturas sobre as questões do processo ensino-aprendizagem destacadas pela professora. Esse tipo de intervenção poderia ajudá-la a avançar na ação de informar, o que ela já estava fazendo quando buscava explicar por que desenvolvia dada atividade. Isso deu a entender que as intervenções do pesquisador, durante a autoconfrontação simples, devem ter como foco orientar o pensamento da professora para que ela inicie seu processo reflexivo pela ação de descrever, mas não fique apenas nela, vá além, desenvolvendo também as ações reflexivas de informar, de confrontar e de reconstruir. Para tanto, ficou nítida nas análises a necessidade de o pesquisador permanecer atento

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ao raciocínio que a professora está desenvolvendo com base na imagem escolhida para desencadear seu processo reflexivo, intervir retomando questões importantes que a professora destaca para explicar o que fez e conduzir à reflexão para as ações de confrontar e de reconstruir. Isso requer a compreensão de que a atividade de refletir se expande e pode tomar dimensões que se caracterizam pelo desenvolvimento da consciência crítica a respeito do mundo: capacidade de descrever, analisar e interpretar dado fato considerando as múltiplas determinações que o constituem. O processo reflexivo crítico envolve o desenvolvimento de várias ações, desde as mais simples até as mais complexas. É preciso estratégias para desencadear cada uma dessas ações e também apropriação de conhecimentos, saberes e habilidades não apenas sobre o objeto da reflexão – a atividade executada –, mas ainda sobre a atividade docente como prática social.

Conclusões A discussão confirma a tese inicial de que a autoconfrontação é não apenas procedimento metodológico de produção de dados em pesquisas que investigam a atividade docente, como também processo formativo do professor com possibilidades de torná-lo ser para-si, uma vez que promove processo reflexivo que pode provocar movimentos de transformação que tendem à autonomia profissional. A reflexão a ser realizada com tal fim é crítica, pois injeta na discussão a realidade histórica; as mediações, que extrapolam o realizado e mesmo o que se queria fazer, vão para o conhecimento genérico, vão para a teoria. Para tanto, o pesquisador tem de planejar e conduzir o processo de reflexão considerando duas necessidades formativas do professor: apropriar-se das objetivações do gênero humano, sobretudo as objetivações para-si, e desenvolver as ações reflexivas que conduzem ao pensamento progressivo. O processo reflexivo desencadeado nas sessões de autoconfrontação é uma proposta de formação de professores reflexivos que rompe com o modelo de refletir-na-ação e sobre a reflexão-na-ação individualmente e vai em direção do professor

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prático-reflexivo ou crítico-reflexivo: refletir acerca da própria prática docente levando em conta suas múltiplas dimensões. Com esse modelo de formação, rompe-se com a ideia de que a reflexão é um fim em si mesma e passa-se a vê-la como meio para os professores perceberem e, assim, desafiarem as estruturas sociais e políticas que impedem que atinjamos os objetivos mais nobres como educadores: contribuir para maior igualdade e justiça no ensino e na sociedade. Nesse sentido, autoconfrontação tem várias possibilidades heurísticas: é procedimento metodológico de produção de dados em pesquisa, é narrativa biográfica e autobiográfica sobre a atividade realizada e é processo formativo com potencial de contribuir no desenvolvimento profissional do professor como ser para-si. Isso se justifica porque a reflexão promovida por esse procedimento proporciona condições ao professor de reorganizar sua prática, conforme narra e reflete a atividade que planejou, executou e pode vir a fazer. No entanto nossa análise lembra que não podemos esperar passivamente esse movimento crítico; fazse imprescindível que o pesquisador tenha a intencionalidade da crítica, que introduza elementos, aqui apontados, que favoreçam tal movimento.

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O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente Joice Nunes Lanzarini Felipe Gustsack

Para começo de conversa Temos vivenciado, nas últimas décadas, mudanças significativas em diferentes esferas: no trabalho, nos relacionamentos, no lazer, nas comunicações etc. Muitas das alterações decorrem das inovações tecnológicas digitais que se inserem na vida social. Assim como são incorporadas rapidamente, são descartadas com a mesma rapidez, dando lugar a algo mais poderoso, diferente e interessante. Em muitos casos “nem percebemos essas mudanças porque a velocidade já se incorporou, como valor, ao nosso ritmo de vida” (KENSKI, 2013, p. 62). Graduada em Ciência da Computação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), em 2000. É especialista em Gestão Universitária pela Unisc, em 2005, e possui MBA em Gestão das Tecnologias da Informação e da Comunicação em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em 2006. Mestranda em Educação na Unisc. E-mail: [email protected].  Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu/UFRGS), é coordenador adjunto do PPGEdu/Unisc e consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: [email protected]. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Como exemplo disso, Kenski (2013) cita as redes digitais (internet) e sua interface gráfica (a web), incorporada a nossos sistemas de intercomunicação e ações cotidianas há menos de 15 anos. Segundo a autora, começamos a utilizar novos protocolos digitais de interação e comunicação (Skype, Twitter etc.) que dispensam o uso da web, ameaçando-a de extinção: As previsões para os próximos anos é de que o acesso à internet será feito de forma muito mais intensa por meio de celulares e tablets do que pelos caminhos naturais e conhecidos dos PCs e da própria web. Ciclos cada vez mais acelerados ocorrem nos processos de criação, industrialização, consumo e superação de tecnologias digitais contemporâneas (KENSKI, 2013, p. 61-62).

Ainda para essa autora, a portabilidade dos equipamentos (notebooks, tablets, celulares) e a flexibilidade de acesso (wireless e computação nas nuvens) independentemente dos locais onde as pessoas estejam são garantidas por tecnologias cada vez mais leves e rápidas. Vale lembrar que os avanços da convergência digital possibilitam acesso e uso de diferentes mídias (sons, imagens, textos) no mesmo espaço virtual e refletem na interação das pessoas, a qualquer tempo e em qualquer lugar. Conforme nos diz Moran (2012, p. 9), a banda larga na internet, o celular de terceira geração, a TV digital estão revolucionando nosso cotidiano. Cada vez mais resolvemos mais problemas, em todas as áreas da nossa vida, de formas diferentes das anteriores. Conectados, multiplicam-se as possibilidades de pesquisa, de comunicação online, aprendizagem, compras, pagamentos e outros serviços. Estamos caminhando para interconectar nossas cidades, tornando-as cidades digitais integradas com as cidades físicas. Nossa vida interligará cada vez mais situações reais e digitais, os serviços físicos e os conectados, o contato físico e o

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Capítulo IV – O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente

virtual, a aprendizagem presencial e virtual. O mundo físico e virtual não se opõem, mas se complementam, integram, combinam numa interação cada vez maior, contínua, inseparável.

Diante de tal contexto, o que mudou na escola? Como os professores atuam perante uma sociedade mais interconectada? E os cursos de licenciatura nas universidades, como têm preparado os futuros professores para integrar as novas tecnologias na educação de maneira inovadora? No presente artigo, fruto de pesquisa que terá ainda outras etapas, problematizamos a formação de professores para o trabalho com as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) com estudantes de licenciatura que participam do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência da Universidade de Santa Cruz do Sul (Pibid/Unisc). Procuramos compreender onde estamos e para onde caminhamos no que se refere à educação com as TICs, com a intenção de problematizar as contribuições e os limites das tecnologias para a educação com base nas experiências de sua inserção na formação desses professores.

Por onde andamos e para onde caminhamos O modelo da ciência positivista que vem influenciando a educação há mais de três séculos decorre de uma combinação de várias correntes de pensamentos da cultura ocidental, influenciadas pela Revolução Científica, pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial. Esse modelo tradicional fundamenta-se no conhecimento objetivo conseguido pela experimentação e pela observação controlada que buscava a verdade na experimentação (sensação) e na lógica (razão). Essa forma de pensar o conhecimento deu origem a duas correntes filosóficas importantes: racionalismo e empirismo. Elas influenciaram perspectivas teóricas que adotam, cada uma a seu modo, posturas epistemológicas diferentes em relação à natureza do conhecimento e da realidade.

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

A configuração do pensamento científico baseado no modelo de ciência positivista, em que predomina a razão, separa o mundo inteligível, colocando-o em oposição ao que se poderia considerar como mundo sensível. O primeiro, situado em um plano superior, é aquele em que prevalecem o conhecimento da ciência, a inteligência, o cérebro. No segundo, um plano inferior, ficam as experiências sensíveis e as emoções. Para Platão, a experiência, acerca da qual voltaremos a falar adiante, que se afastava do eu seria a verdadeira ciência, pois estaria mais próxima do mundo sensível, um mundo de opiniões e aparências. A distinção platônica entre inteligível e sensível refletiu na concepção da ciência moderna, elaborada pelo filósofo René Descartes, que separava mente/corpo, razão/emoção. Segundo essa abordagem teórica, a experiência tornou-se cientificamente válida na medida em que era desenvolvida conforme um método criterioso, em que o experimento precisava ser verificável, analisável, sintetizável e enumerável. Assim, a experiência passou a ser aceita e entendida como método ou experimento, com base em uma acepção científica universalista. Pela perspectiva desse modelo positivista de ciência, acreditava-se apenas nos cinco sentidos para controlar e manipular todas as coisas: olfato, audição, paladar, tato e visão. Toda a verdade estava fora do sujeito e era captada pelos órgãos dos sentidos, ou seja, todo o conhecimento vinha de fora da pessoa. O conhecimento captado do mundo externo tinha de ser dividido para ser compreendido em partes, do mais simples ao mais complexo. Mente e corpo eram coisas diferentes; a mente predominava sobre o corpo. Portanto, todos os efeitos tinham uma causa que podia ser explicada objetivamente. Os princípios epistemológicos e filosóficos positivistas, racionalista e empirista, que serviam aos fenômenos naturais, passaram a ser aplicados aos fenômenos sociais, e ignorou-se não apenas a diferença entre eles, como também as consequências de tal atitude para a ciência e a humanidade. Moraes (1996, p. 59) define muito bem o reflexo desse modelo científico na educação de hoje:

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Capítulo IV – O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente

É uma escola que continua dividindo o conhecimento em assuntos, especialidades, subespecialidades, centrada no professor e na transmissão do conteúdo que, em nome da transmissão do conhecimento, continua vendo o indivíduo como uma tábula rasa, produzindo seres subservientes, obedientes, castrados em sua capacidade criativa, destituídos de outras formas de expressão e solidariedade. É uma educação “domesticadora”, “bancária”, segundo Paulo Freire que “deposita” no aluno informações dados e fatos, onde o professor é quem detém o saber, a autoridade, que dirige o processo e um modelo a ser seguido.

De acordo com a autora, as concepções vigentes de educação sinalizam para a urgência de buscar outras bases teóricometodológicas e a construção de um pensamento educacional mais sintonizado às exigências dos novos tempos. O problema é que a área da educação tem sido uma das mais resistentes a mudanças. Ouvimos dos professores que a educação, na forma como acontece hoje, está desacreditada, mas vivemos o paradoxo de manter algo em que já não acreditamos, porém “não nos atrevemos a incorporar plenamente novas propostas metodológicas e gerenciais dos processos pedagógicos, mais adequadas à sociedade da informação e do conhecimento, para onde estamos caminhando rapidamente” (MORAN, 2012, p. 16), uma sociedade onde o conhecimento é complexo, frágil e instável. Para Moran (2012, p. 40), “nunca tivemos tanta informação disponível e, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil conhecer”. Isso porque a informação é apenas um pequeno passo para conhecer. Conhecer é [...] relacionar, integrar, contextualizar, incorporar o que vem de fora. Conhecer é saber desvendar, é ir além da superfície, do previsível, da exterioridade. Conhecer é aprofundar os níveis de descoberta, é penetrar mais fundo nas coisas, na realidade, no nosso interior. Conhecer é tentar chegar ao nível de

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

sabedoria, da integração total, da percepção da grande síntese, que se consegue ao comunicar-se com uma nova visão de mundo, das pessoas e com o mergulho profundo no nosso eu. O conhecimento se dá no processo rico de interação externo e interno (MORAN, 2012, p. 41).

Essa passagem remete-nos às palavras de Morin (2002, p. 58, grifos do autor) quando diz: O humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagônicos: sapiens e demens (sábio e louco); faber e ludenz (trabalhador e lúdico); empiricus e imaginárius (empírico e imaginário), ecomonicus e consumans (econômico e consumista); prosaicus e poeticus (prosaico e poético).

Sabemos, todavia, que a unidade complexa da natureza humana está totalmente desintegrada pela educação que fazemos hoje. Por isso, temos de aprender novos caminhos. Para aprender novos caminhos, precisamos mudar o pensamento, pensar diferente para agir diferente, compreendendo que “conhecimento não se impõe, constrói-se” (MORAN, 2012, p. 43) e que não ensinamos transferindo o conhecimento, mas criando condições para que a sua construção aconteça. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que ensinamos, aprendemos e aprendendo estamos ensinando (FREIRE, 1996, p. 22-23). A educação de hoje, que organiza ideias, foca no conteúdo e busca compreender objetivamente uma “realidade”, sempre privilegiou o racional. Precisamos caminhar para uma educação que integre melhor o conhecimento sensorial, emocional, intelectual e ético. Em outras palavras, faz-se necessário investir mais no caminho das descobertas, das conexões inesperadas, das junções, das superposições, da navegação não linear, de pesquisas que ultrapassem os limites do previsível, do já aceito de antemão. Afinal, nos dias atuais o aluno não precisa ir à escola para buscar informações. Se assim fosse, o trabalho dos professores poderia

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ser dispensado, pois as TICs fazem isso de forma muito melhor. O estudante vai à escola para interpretar, relacionar, hierarquizar, contextualizar o mundo de informações que chega até ele. Cabe ao professor, então, ajudar a questionar, a procurar novos ângulos, a relativizar os dados, a tirar suas conclusões, ultrapassando a visão de que pode ensinar tudo aos estudantes. “O universo de informações ampliou-se de maneira assustadora nessas últimas décadas e portanto o eixo da ação docente precisa passar do ensinar para enfocar no aprender e, principalmente, o aprender a aprender” (BEHRENS, 2012, p. 70). O entendimento acerca da necessidade de mudança na educação fez surgir um novo paradigma que busca atender aos pressupostos necessários às exigências da sociedade da informação. Alguns educadores, como Santos (1989), Moraes (1996), Pimentel (1993), Gutiérrez (1999) e Behrens (1999), o chamam de paradigma emergente. Caracterizar em poucas palavras esse paradigma não é tarefa fácil. Podemos dizer que ele emerge da aliança entre as abordagens construtivista, interacionista, sociocultural e transcendente e “busca a visão da totalidade, o enfoque da aprendizagem e o desafio de superação da reprodução para a produção do conhecimento” (BEHRENS, 2012, p. 86). Esse novo paradigma desafia os professores a procurar uma prática pedagógica que supere a fragmentação e a reprodução do conhecimento e a reconstruir sua prática tornando o aluno um sujeito cognoscente, de modo a valorizar a reflexão, a ação, a curiosidade, o espírito crítico, o questionamento. Para tal, o docente deve compreender o conhecimento como algo provisório e relativo e preocupar-se com a dimensão histórica da sua construção, além de provocar a interpretação do conhecimento, e não apenas sua aceitação. Na visão de Moraes (2004 apud ARAÚJO, 2007, p. 521), [...] os princípios e valores desse novo paradigma podem ser indutores de práticas pedagógicas mais dinâmicas, integradoras, complexas e holísticas, que requerem, por sua vez, maior entendimento conceitual em relação ao conhecimento, à aprendizagem e à complexidade envolvida nos processos educacionais.

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As tecnologias como pontes no caminho O trabalho com as tecnologias, pela ótica da construção do conhecimento, possibilita a emergência de processos interativos, reflexivos e colaborativos fundamentados por sementes epistemológicas estruturantes do paradigma educacional emergente, ecossistêmico ou complexo. Cabe lembrar que, se as tecnologias tradicionais serviam como instrumento para aumentar o alcance dos sentidos, as novas TICs ampliam esse potencial para o cognitivo do ser humano. Assmann (2005, p. 18) assevera: As novas tecnologias da informação e da comunicação já não são meros instrumentos no sentido técnico tradicional, mas feixes de propriedades ativas. São algo tecnologicamente novo e diferente. As tecnologias tradicionais serviam como instrumentos para aumentar o alcance dos sentidos (braço, visão, movimento etc.). As novas tecnologias ampliam o potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagens cognitivas complexas e cooperativas.

Claro que “não podemos ser ingênuos apreciadores da tecnologia” (FREIRE, 1996, p. 97) e “pensar que a introdução das tecnologias no meio educacional é capaz, por si mesma, de possibilitar informação, comunicação, interação, colaboração e em conseqüência disso tudo promover a aprendizagem” (MAMEDENEVES; DUARTE, 2008, p. 771). Com o avanço das TICs, aumentamos a velocidade da transmissão de informações e as alternativas de comunicação rompendo as barreiras geográficas e temporais. Entretanto os modos de interação e de colaboração que serão estabelecidos entre as pessoas, assim como o que elas vão fazer com essa possibilidade de contato, não são tão óbvios e não são pré-determinados ou mesmo controláveis; vão depender de quem está nos nós da rede que será tecida entre elas (MAMEDENEVES; DUARTE, 2008, p. 771).

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As novas tecnologias, por suas características interativas, permitem-nos interagir, interferindo, influenciando, modificando o curso do que está inventando, ou seja, oportunizam o trabalho colaborativo, apesar de não serem, em si mesmas, garantia dessa postura. Da mesma maneira, não é possível afirmar que as TICs, por si sós, aumentam a aprendizagem. A aprendizagem, aqui entendida como um processo “autoeco-organizativo” (MORIN, 2001), é uma práxis complexa que emerge nas inter-relações do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o mundo e envolve as dimensões do corpo, da mente e da intuição que se autoproduzem em reciprocidade. A aprendizagem resulta das nossas interações com o meio no qual estamos inseridos. As mudanças ocorridas nesse meio perturbamnos e levam-nos a novas configurações de nós mesmos. Nossos sentidos captam rapidamente tais perturbações e trabalham para que essas mudanças sejam reelaboradas e venham a se constituir em novas aprendizagens. Com as novas aprendizagens, provocamos mudanças no meio com o qual interagimos e que volta a nos modificar, formando assim uma espiral complexa de mudanças e aprendizagens. Nesse sistema complexo, a aprendizagem acontece por meio de uma imensa rede associativa em mudança permanente e configura-se como um processo de formação de significado. O conhecimento, para se transformar efetivamente em conhecimento, não pode se limitar a um estoque de informações linearmente organizadas. Para que as informações façam sentido, para que sejam integradas e sintetizadas, tem de haver o que Mamede-Neves e Duarte (2008, p. 777) escolheram chamar de entendimento. Em suas palavras, as informações “precisam entrar na ordem da significação mais complexa, sobre a qual podemos ter uma infinidade de mapas conceituais”. Sobre o assunto, as autoras continuam: “O domínio das tecnologias tem que favorecer os processos metacognitivos que permitem uma  Entende-se como a cognição sobre a própria cognição. Segundo Flavell (1985, p. 29), “metacognição refere-se, entre outras coisas, ao monitoramento ativo e à consequente regulação e orquestração desses processos em relação aos objetos cognitivos ou dados sobre os quais eles incidem, usualmente a serviço de alguma meta ou objetivo concreto”.

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análise crítica das informações e o mais importante, pressupõe sociabilidade” (MAMEDE-NEVES; DUARTE, 2008, p. 777), pois assim as tecnologias contribuirão para pensar o conhecimento como entendimento. Afirmar que as TICs aumentam a capacidade de aprendizagem seria ignorar a complexidade do processo cognitivo que resulta na aprendizagem. Como acontece com qualquer outro artefato tecnológico produzido pelo homem (roda, papel, lápis, telefone, televisão), saber operar com as TICs pode envolver uma pequena dose de cognição, com sínteses muito básicas, como pode exigir um grande esforço para integrar componentes distintos de uma imensa rede de significações, e aí já estaremos falando de aprendizagem, para a qual a cognição é uma das etapas. Sendo assim, as tecnologias sozinhas não garantem transformações significativas no sucesso da aprendizagem dos alunos, mas sua inserção em sala de aula tornou-se uma necessidade e requer reflexão por parte dos educadores. Quer dizer, as tecnologias podem servir como ponte para mudar os paradigmas convencionais do ensino que mantêm distantes professores e alunos ou servir apenas para “dar um verniz de modernidade” (MORAN, 2012, p. 63) às velhas práticas educacionais.

A universidade e as pontes: formação de professores Diante desse cenário, olhamos para os cursos de formação de professores e questionamo-nos se eles estão contribuindo para que os futuros docentes possam vivenciar situações de aprendizagem que os levem a pensar criticamente as potencialidades e as limitações das TICs sobre os processos educacionais, de forma que sua inserção na escola produza uma melhoria na experiência e na aprendizagem. Garcia et al. (2011, p. 80), ao citar Mello (2000), lembram-nos que “não é possível vivenciar na prática aquilo que se desconhece, tampouco é possível promover a aprendizagem de conteúdos que não se domina, que não se teve a oportunidade de construir”. Corroborando tal afirmação, trazemos a ideia de simetria invertida, presente no Parecer CNE/CP n.º 9, de 8 de maio de 2001,

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do Conselho Nacional de Educação, acerca das diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica em cursos de nível superior (BRASIL, 2002). Ela nos diz que a formação do professor tem uma peculiaridade muito especial: ele aprende a sua profissão em um lugar similar àquele em que vai atuar, porém numa situação invertida e, por esse motivo, deve haver coerência entre o que se faz na formação e o que dele se espera como profissional. Conforme o texto referido: O conceito de simetria invertida ajuda a descrever um aspecto da profissão e da prática de professor que inclui o conceito de homologia de processos, mas vai além deste. A primeira dimensão dessa simetria invertida refere-se ao fato de que a experiência do aluno não apenas no curso de formação docente, mas ao longo de toda a sua trajetória escolar, é constitutiva do papel que exercerá futuramente como docente. A compreensão desse fato, que caracteriza a situação específica da formação docente, descrito por alguns autores como homologia de processos, evidencia a necessidade de que o futuro professor experiencie, como aluno, durante todo o seu processo de formação, as atitudes, modelos didáticos, capacidades e modos de organização que se pretende que venha a ser desempenhado nas suas práticas pedagógicas (BRASIL, 2002, p. 30-31).

Pensando sob essa ótica, alunos que experimentam durante seu processo de formação acadêmica momentos em que podem trabalhar pedagogicamente com as tecnologias possuem maiores chances de compreender e trabalhar futuramente com elas, sentindo-se mais seguros em relação à sua aplicação (GARCIA et al., 2011). Vale lembrar que não estamos falando do uso de recursos audiovisuais em sala de aula como suporte a aulas expositivas. Não falamos de vivenciar situações em que o “quadro e o giz são substituídos por algumas transparências, por vezes tecnicamente mal elaboradas ou até maravilhosamente construídas em um Power Point e projetadas em um Data Show” (MASSETO, 2012,

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p. 143). Estamos considerando sim trabalhos com a tecnologia que enfatizem o processo de aprendizagem, que constituam técnicas que incentivem a interação, a pesquisa, o debate, o diálogo, que promovam a produção do conhecimento, a criticidade, que desenvolvam saberes necessários à sua prática profissional. Os professores que não se apropriam das tecnologias garantem que não o fazem por não ter acesso às tecnologias de que precisam, por não possuir habilidades necessárias, por perceber que não é útil na sua disciplina ou por não ser uma prioridade em sua escola. Por outro lado, aqueles que adotam as tecnologias em suas aulas as “usam” para transmitir conteúdo: como apoio à exposição oral ou para realizar demonstrações que permitam simular determinados cenários. Nesse sentido, uma pesquisa realizada por Martin Wild (1996 apud RAMAL, 2002) demonstra que as TICs ainda são subutilizadas, mesmo pelos professores recémformados e por aqueles que se dizem entusiasmados com as possibilidades que elas abrem. Mas por que isso tem acontecido? Por que, mesmo depois de várias ações formativas, os docentes pouco integram as tecnologias em seu processo de ensino? Zhao et al. (2002 apud MARCELO, 2013) afirmam que o processo de implantação de uma inovação em aula, como as TICs, tem relação com três dimensões: com o profissional que inova (professor), com a própria inovação e com o contexto em que a inovação é implantada. Marcelo (2013) afiança que “a inovação necessita de inovadores”: pessoas que se identifiquem e se comprometam com um projeto que introduza uma mudança em suas práticas habituais, nesse caso os professores. Porém precisamos lembrar que os docentes não são copos vazios. Por isso, seu conhecimento, sua experiência, suas crenças, sua história pessoal e profissional influenciam na maneira como integram qualquer inovação. Citando Zhao et al. (2002), Marcelo (2013) diz que as crenças dos professores influenciam de maneira determinante no trabalho com as tecnologias em sala de aula. Eles têm ideias e crenças muito fortes sobre o que é ensinar e aprender, muitas vezes construídas no processo de simetria invertida vivenciada na sua formação. As crenças são como preconceitos ou premissas que as pessoas possuem acerca do que consideram verdadeiro.

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Seguindo com o pensamento de Zhao et al. (2002 apud MARCELO, 2013), há um elemento-chave que facilita ou dificulta a participação de um docente em um projeto de inovação com as tecnologias: a compatibilidade entre suas crenças pedagógicas e a tecnologia. Os estudos de Zhao et al. mostraram que professores mais conscientes de suas próprias crenças pedagógicas geralmente são mais adaptativos e flexíveis. Assim, podemos dizer que é mais provável obter êxito na implantação da tecnologia em sala de aula quando os professores são capazes de refletir sobre sua forma de ensinar e os objetivos que buscam atingir. Quando as crenças pedagógicas são coerentes com as tecnologias, os docentes esforçam-se para desenvolver um trabalho que possibilite conseguir melhores resultados. De modo geral, os cursos de formação de professores contemplam em seus currículos o conhecimento pedagógico (pedagogia) e o conhecimento da matéria que ensinam (conteúdo). Da relação estabelecida entre pedagogia e conteúdo surge o conhecimento didático do conteúdo, ou seja, a maneira de expor, formular e organizar o conteúdo para fazê-lo compreensível aos alunos, os problemas que emergem e a adaptação aos estudantes com diferentes interesses e habilidades. No entanto onde está o conhecimento tecnológico? O conhecimento tecnológico tem sido obtido externamente à formação docente. Tal fato leva os professores a trabalharem com as tecnologias de forma tangencial, e não integrada na sua prática cotidiana. Segundo Ramal (2002), a maneira como as novas tecnologias têm sido introduzidas na formação de professores, na maioria das vezes, não se preocupa em construir um habitus em relação à máquina e aos processos educacionais realizados em articulação. Diversos pesquisadores vêm aprofundando suas investigações no que chamam de conhecimento técnicopedagógico do conteúdo. Muitos asseguram que precisamos integrar as tecnologias ao currículo, mas também às crenças e práticas docentes. Para isso, precisamos buscar pontes, vínculos com outros conhecimentos que esses profissionais já possuem. As tecnologias devem integrar e dialogar tanto com o conteúdo que ensinam quanto com a didática e pedagogia desse conteúdo.

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O conhecimento tecnológico trata do conhecimento sobre os tipos de tecnologias disponíveis e supõe, no tocante à formação do professor, a necessidade de desenvolver habilidades para a gestão de tais tecnologias. No caso das tecnologias digitais, supõe conhecer os sistemas operacionais, processadores de textos, planilhas de cálculo, navegadores, e-mail. O conhecimento tecnológico do conteúdo está relacionado com a maneira como novas tecnologias transformam o conteúdo em que o professor é especialista. Diz respeito a como o trabalho com a tecnologia pode ajudar a resolver problemas ou a compreender melhor determinados conteúdos. Por exemplo: como o Google Earth pode ajudar a compreender melhor um conteúdo de geografia. O conhecimento técnico-pedagógico está relacionado com o conhecimento sobre a existência dos componentes e das potencialidades das tecnologias quando aplicadas no ensino e na aprendizagem. Portanto, refere-se a como o ensino muda por meio do trabalho com a tecnologia e ao conhecimento acerca das ferramentas para criar apresentações (mapas conceituais), confeccionar avaliações (Hot Potatoes), debates (fóruns), estratégias de investigação (WebQuests) etc. Da intersecção desses três conhecimentos surge o conhecimento técnico-pedagógico do conteúdo. Este constitui O Hot Potatoes é um software educacional canadense para criar exercícios sob a forma de objetos digitais para publicação na world wide web. Atualmente na versão 6, encontra-se disponível para as plataformas Windows, Linux e Mac. É gratuito desde que utilizado para fins pedagógicos e permita que outros possam acessar os exercícios na web. Tem sido usado como ferramenta em educação a distância (EAD), como suporte à construção de instrumentos de avaliação on-line. Foi desenvolvido na University of Victoria pela equipe Research and Development do Humanities Computing and Media Centre. Os aspectos comerciais do software são mantidos pelo Half-Baked Software Inc. Informação disponível em: .  WebQuest (do inglês, pesquisa, jornada na web) é uma metodologia de pesquisa orientada para a utilização da internet na educação em que quase todos os recursos usados para a pesquisa são provenientes da própria web, compreendendo assim uma série de atividades didáticas de aprendizagem que se aproveitam da imensa riqueza de informações do mundo virtual para gerar novos conhecimentos. Trata-se de uma proposta feita em 1995 pelo professor Bernie Dodge, da Universidade de San Diego, com a participação do seu colaborador Tom March. Informação disponível em: . 

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a base para um bom ensino com as tecnologias e requer a compreensão de conceitos envolvendo as tecnologias, das técnicas pedagógicas que aplicam as tecnologias de modo criativo para ensinar o conteúdo, do conhecimento das dificuldades de aprendizagem e da forma como as tecnologias podem ajudar a reduzir problemas que os estudantes encontram. Inclui, também, o conhecimento de ideias prévias e teorias científicas dos educandos e o conhecimento de como as tecnologias contribuem para a construção de saberes novos com base no que já existe. Conforme Wild (1996 apud RAMAL, 2002), ocorrem falhas de três ordens nos cursos de formação de professores que abrangem a preparação para utilizar informática educativa: falha de propósito, de método e de significação. A primeira acontece quando a tecnologia é apresentada como algo que os professores devem simplesmente aprender. Nessa situação eles aprendem a usar certos programas e não são levados a descobrir o porquê de trabalhar com determinada tecnologia e o que essa prática pode trazer de relevante para o ensino. Os futuros professores aprendem a utilizar o computador como máquina de escrever, passatempo, ou pior, para (re)produzir velhos paradigmas educacionais. A falha de método ocorre ao se introduzirem tecnologias na educação sem um estudo acerca das capacidades cognitivas envolvidas na construção do conhecimento com o auxílio das novas tecnologias e sem deixar clara a importância de ter objetivos bem definidos para a realização de determinadas atividades envolvendo as tecnologias. Já a falha de significação é detectada ao se aproximar as tecnologias dos professores pela capacitação para o uso, quando se deveria privilegiar a construção de sentidos sobre o trabalho com a tecnologia e suas implicações no processo educativo, conferindo experiência cultural, e não só instrumental. Em vez de capacitar os professores para o uso, os cursos de formação deveriam levá-los a refletir acerca do que a tecnologia pode fazer pelas suas aulas e como o aluno aprende com determinada tecnologia. Tais falhas se tornam um grande problema à medida que resultam em um trabalho desqualificado, fortalecendo os argumentos de parte de alguns profissionais da educação que

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procura manter seu ideário de resistência quanto ao processo de adesão às novas tecnologias como recurso pedagógico essencial no ensino-aprendizagem.

Outros passos desta pesquisa Todas as reflexões e abordagens teóricas acerca da formação de professores para o trabalho com as TICs aqui discutidas surgiram de observações preliminares do contexto da formação de professores, bem como de conversas iniciais feitas com professores em formação que participam do Pibid da Unisc. Tais observações e conversas, por sua vez, confirmam o que evidencia a leitura do Relatório de Gestão 2009-2011 da Diretoria de Educação Básica Presencial (DEB, 2012), especificamente no capítulo que trata do Pibid, um programa financiado pelo governo federal por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) cujos objetivos são incentivar e valorizar o magistério e aprimorar o processo de formação de docentes para a educação básica. Tanto nas observações quanto no relatório, um dos impactos significativos apontados pelas instituições participantes foi a inserção de novas linguagens e tecnologias da informação e da comunicação na formação de professores. Como tem acontecido a inserção? Quais atividades estão sendo propostas e quais paradigmas educacionais norteiam o trabalho dos acadêmicos “pibidianos” com as tecnologias da informação e da comunicação nas práticas desenvolvidas nas escolas participantes do Pibid/Unisc? Como esses graduandos têm vivenciado o trabalho com as tecnologias na sua formação e como tais experiências influenciam suas práticas na escola? Para aprofundar a compreensão desses fenômenos, fizemos a leitura dos relatórios semestrais produzidos pelos bolsistas do Pibid/Unisc, desde dezembro de 2010, do Relatório de Gestão 2009-2011 (DEB, 2012), participamos das rodas de conversa com os bolsistas do programa que acontecem semestralmente e realizamos as observações iniciais das atividades desenvolvidas por eles na universidade e nas escolas. Além disso, dedicamo-nos

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a mapear, entre os trabalhos apresentados no II Encontro Nacional do Pibid/Unisc, no ano de 2013, aqueles que remetem ao trabalho com as TICs. Dos 152 trabalhos desenvolvidos pelos bolsistas do Pibid, cujos resumos foram publicados nos anais on-line do evento e nos quais relatam as experiências vivenciadas em atividades como projetos, oficinas de aprendizagem, monitorias em sala de aula e apoio à gestão, apenas dez aludem à experiência de trabalho com as TICs. Destes, identificamos que 50% foram desenvolvidos por bolsistas dos cursos de licenciatura em Computação ou Informática; os demais estão relacionados a outras áreas de formação, como Geografia, Pedagogia, Química, Biologia e Letras/Inglês. No que tange aos estudos feitos por estudantes de licenciatura em Computação, um concentrou seu foco no desenvolvimento do raciocínio matemático, um na alfabetização, outro na organização da gestão do Pibid na escola e dois na própria área de informática. Ainda que apenas 15,2% das atividades relatadas pelos acadêmicos bolsistas do Pibid correspondam a experiências de trabalho com as TICs, já é possível identificar em algumas práticas o domínio do conhecimento tecnológico, do conhecimento tecnológico do conteúdo e do conhecimento técnico-pedagógico. Um bom exemplo dessa tendência pôde ser visto no trabalho “Dinamizando processos biológicos com stop motion”, apresentado por acadêmicos do curso de licenciatura em Biologia da Universidade de Ilhéus, na Bahia. No trabalho, os bolsistas do Pibid relatam uma atividade cujo objetivo era compreender os processos de divisão celular, mais exatamente o processo de mitose. Para isso, escolheram o stop motion, uma técnica de animação desenvolvida para as primeiras películas de cinema e utilizada até hoje em grandes produções cinematográficas, Stop motion: técnica de animação na qual o animador fotografa objetos, quadro a quadro. Entre uma foto e outra, o animador muda um pouco a posição dos objetos. Quando o filme é projetado numa velocidade de 24 quadros por segundo, temos a ilusão de que os objetos estão se movimentando. 

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como por exemplo A fuga das galinhas. Primeiramente, os alunos assistiram a um vídeo no qual o processo de mitose era explicado. Após essa etapa, dividiu-se a turma em grupos, e para cada um foi sorteado um estágio do processo de divisão da célula. Coube a cada grupo construir, com a utilização de massinha de modelar, o estágio sorteado. Na sequência, os estágios foram fotografados e as fotos carregadas no software Windows Live Movie Maker, em que a animação foi construída. De acordo com os autores do trabalho, durante a exibição, os estudantes demonstraram maior curiosidade e interesse sobre o tema, uma vez que nos livros eles podiam observar apenas as fotografias de estágios específicos do processo e com o filme eles puderam observar a dinamização do processo e compreender que a célula não para entre um estágio e outro, que esse processo ocorre de forma contínua. [...] foi possível perceber que também devido à exibição do vídeo eles conseguiram memorizar e compreender melhor o processo de divisão, o que facilitou a execução da modelagem do processo. [...] Dessa forma foi possível concluir que, apesar de ser uma prática que requer um bom planejamento e bastante tempo para a elaboração do filme e edição do mesmo, contribui de forma significativa com a aprendizagem dos alunos por conta da dinamização dos processos biológicos que nos livros são demonstrados de maneira estática (SILVA et al., 2013).

Compreendemos que o relato supracitado mostra que esses futuros professores, ao propor tal atividade, tinham não somente o domínio tecnológico, como também o domínio tecnológico do conteúdo, pois dominavam o software de edição de vídeo e a técnica empregada para construir a animação. Eles demonstraram ter, principalmente, o conhecimento técnico-pedagógico, uma vez que foram capazes de identificar como a tecnologia usada era capaz de potencializar a aprendizagem. O exemplo destacado reforça a tese que defendemos: a experiência de aprendizagem

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do professor em formação com as tecnologias potencializa a sua formação no sentido de vir a trabalhar com as TICs com seus futuros alunos. Esse tipo de experiência vem sendo possível aos bolsistas do Pibid. Por fim, vale lembrar que nosso estudo avançará ainda para outra etapa. Faremos uma pesquisa-ação colaborativa envolvendo um grupo de bolsistas participantes do Pibid/Unisc. Na pesquisa reuniremos os bolsistas convidados em uma comunidade virtual de aprendizagem para refletirmos acerca da temática aqui debatida. As discussões serão conduzidas com base em uma pauta acordada com o grupo, a qual organizará as interações em etapas. Cada etapa estará relacionada com um aspecto da temática proposta. Os dados serão gerados pelas narrativas interativas produzidas pelo grupo participante após cada uma dessas etapas. A escolha por trabalhar com pesquisa-ação justifica-se por esse tipo de pesquisa adequar-se à categoria da formação e buscar o conhecimento da pedagogia da mudança da práxis (FRANCO, 2005). A metodologia da pesquisa-ação comporta o estudo das ações e das aprendizagens que um grupo, um coletivo de pessoas, realiza na própria dinâmica do movimento de transformação. Nas palavras de Pimenta (2005, p. 523): A pesquisa-ação tem por pressupostos que os sujeitos que nela se envolvem compõem um grupo com objetivos e metas comuns, interessados em um problema que emerge num dado contexto no qual atuam desempenhando papéis diversos. [...] Constatado um problema o pesquisador ajuda o grupo a problematizá-lo, ou seja, situá-lo em um contexto teórico mais amplo e assim possibilitar a ampliação da consciência dos envolvidos, com vistas a planejar as formas de transformação das ações dos sujeitos e práticas institucionais.

Essa ideia de grupo com objetivos e metas comuns que busca aprendizagens por intermédio de um processo de colaboração/ cooperação mútua, noção que aparece constantemente na literatura acerca da pesquisa-ação, justifica, por sua vez, a opção

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por constituir uma comunidade de aprendizagem para a realização de nossa pesquisa. Para Benson (2008 apud CATELA, 2011), a ênfase de uma comunidade de aprendizagem está na colaboração entre seus membros. Para isso, mostra-se fundamental o desenvolvimento de metodologias e práticas que fomentem a colaboração e interação entre todos os participantes. As comunidades de aprendizagem (CAs) funcionam de maneira que os papéis dos diversos participantes se interligam e se complementam. Todos os membros da CA, independentemente do papel assumido, são aprendizes num processo interativo e progressivo de construção do conhecimento. As experiências pessoais, as características individuais, as necessidades e os objetivos de cada um são levados em conta e introduzidos no processo educativo de modo a dar sentido às aprendizagens. Em uma CA ocorrem aprendizagens colaborativas. A aprendizagem colaborativa parte da idéia de que o conhecimento é resultante de um consenso entre membros de uma comunidade de conhecimento, algo que as pessoas constroem conversando, trabalhando juntas direta ou indiretamente (i.e., resolução de problemas, projetos, estudos de caso, etc.) e chegando a um acordo (TORRES; ALCANTARA; IRALA, 2004, p. 2-3).

A ideia principal da aprendizagem colaborativa está baseada na construção de consenso por meio da ajuda mútua entre os membros do grupo. Assim, optamos por explorar, nesse futuro trabalho, também o sentido da aprendizagem colaborativa, como emergência de uma pesquisa-ação que pode ser entendida como uma pesquisa-ação colaborativa. Ou seja, “uma atividade de coprodução de conhecimentos e de formação em que os pares colaboram entre si com o objetivo de resolver conjuntamente um dado problema” (IBIAPINA, 2008, p. 25). Todavia trata-se de outra conversa na qual estamos trabalhando com afinco e que esperamos socializar em um futuro breve, na perspectiva de contribuir com os debates em torno do trabalho com as tecnologias na formação

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de professores pibidianos que estão e/ou estarão atuando na educação básica da região de Santa Cruz do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

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Capítulo IV – O trabalho com as tecnologias da informação e da comunicação: um desafio para a formação docente

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

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Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho Cláudia Valéria Gabardo Márcia de Souza Hobold

O período inicial da profissão docente é um momento de grande importância na constituição da carreira do professor e da sua identidade. Esse momento tem sido reconhecido por suas características próprias e configurado pela ocorrência das principais marcas da identidade que engendram a profissionalidade docente. A fase inicial de inserção na docência é a passagem de estudante a professor, a qual começou nas atividades de estágio  Este artigo é proveniente da dissertação de Mestrado em Educação da Universidade da Região de Joinville (Univille). Os dados parciais da pesquisa foram apresentados no III Congreso Internacional sobre Profesores Principiantes e Inserción Profesional en la Docencia, que aconteceu em Santiago, Chile, de 29 de fevereiro a 2 de março de 2012, e publicado na revista Atos de Pesquisa, do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Regional de Blumenau (Furb), em outubro de 2013.  Mestre em Educação pelo Programa de Mestrado em Educação da Univille. É professora do departamento de Letras da Univille e da rede municipal de ensino de Joinville. E-mail: [email protected].  Doutora em Educação – Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professora do departamento de Psicologia e do Programa de Mestrado em Educação da Univille e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho e Formação Docente (Getrafor) e do projeto de pesquisa Trabalho e Formação Docente na Rede Pública de Ensino. E-mail: [email protected].

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

e prática de ensino. De acordo com Marcelo Garcia (1999, p. 113), “os primeiros anos de ensino são especialmente importantes porque os professores devem fazer a transição de estudantes para professores e, por isso, surgem dúvidas, tensões”. Se por um lado o início de carreira docente é relevante, por outro é um período difícil, em que o professor experiencia novos papéis e depara com inúmeros desafios, tais como a organização das atividades em sala de aula, o relacionamento com os alunos e com os próprios colegas professores, gestores e familiares. A entrada na carreira, conforme Tardif (2002, p. 11), “é um período realmente importante na história profissional do professor, determinando inclusive seu futuro e sua relação com o trabalho”. As primeiras experiências vivenciadas pelos professores em começo de carreira têm influência direta sobre a sua decisão de continuar ou não na profissão, porque consiste em uma etapa marcada por sentimentos contraditórios que desafiam cotidianamente o professor e sua prática docente. Para Cavaco (1993, p. 114), “os primeiros anos parecem efetivamente deixar marcas profundas na maneira como se pratica a profissão”. Além disso, o período inicial da carreira é fundamental, porque um fracasso nessa fase parece levar à desvalorização pessoal, enquanto o mesmo fracasso, ocorrido alguns anos mais tarde, será, provavelmente, apenas vivenciado como um episódio profissional que precisa ser reelaborado. Pesquisadores como Marcelo Garcia (1999), Cavaco (1993) e Tardif (2002) consideram o início da carreira o período potencialmente problemático, tendo em vista as implicações que tem para o futuro profissional do professor em termos de autoconfiança, experiência e identidade profissional. Leva-se em conta que é nos primeiros anos de prática profissional que o professor desenvolve o seu estilo pessoal de trabalho.

 Neste artigo, Carlos Marcelo Garcia será referenciado como Marcelo Garcia, respeitando a forma de citação que o próprio autor utiliza em seus textos.

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

A fim de descrever a dificuldade ou os desafios dos professores no início da carreira, Veenman (1984 apud SOUZA, 2009) tem utilizado o conceito de choque com a realidade, procurando descrever a situação de discrepância entre as expectativas que os novos profissionais possuem e a realidade do trabalho que realizam. Huberman (1992) também faz referência à expressão “choque com a realidade” ao reconhecer que a iniciação na docência é um período de aprendizagens intensas que pode traumatizar e despertar no professor a necessidade de sobreviver aos desafios da profissão. Em outro estudo, Huberman (1995) complementa que, além do choque com a realidade, outros desafios fazem parte dessa etapa: a sobrevivência e a descoberta. A descoberta contribui para que o professor sobreviva à fase inicial da docência. Para o autor, é ela que ameniza as dificuldades, pois “o entusiasmo inicial, a exaltação por estar, finalmente, em situação de responsabilidade (ter a sua sala de aula, os seus alunos, o seu programa), por se sentir num determinado corpo profissional” (HUBERMAN, 1995, p. 39) são elementos que servem de motivação e fazem com que os professores iniciantes sobrevivam a esse momento. A descoberta dos meandros da profissão é o que contribui para a permanência na docência. Considerando essas indicações teóricas, o presente artigo traz dados de uma pesquisa que tem como objetivo conhecer como se dão o acolhimento e as condições de trabalho aos professores iniciantes do ensino fundamental no seu começo de carreira na rede pública de ensino. O processo de inserção de professores iniciantes tem constituído um momento de suma importância na carreira do professor, não apenas por ser um período de adaptação à profissão docente, mas, sobretudo, pelas implicações dele decorrentes. Nesse processo, se o ambiente e as condições de trabalho não forem adequados, a tendência é potencializar as possíveis dificuldades enfrentadas pelos professores em começo de carreira, podendo causar desconforto e sofrimento, desencadeando até mesmo a vontade de deixar a profissão. VEENMAN, S. Perceived problems of beginning teachers. Review of Educational Research Summer, v. 54, n. 2, p.143-178, 1984. 

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

O início da docência: aportes teóricos Apesar do aumento do número de pesquisas que envolvem a temática acerca do ingresso na profissão docente nos últimos anos, ainda é pequena a parcela de trabalhos realizados sobre o assunto. Tais trabalhos abordam diferentes aspectos, que vão desde as dificuldades encontradas até a relação teoria e prática, destacando como os professores desenvolvem seus conhecimentos e como lidam com os problemas ao deixarem de serem alunos para serem professores (GUARNIERI, 1996; MONTEIRO VIEIRA, 2002). Alguns autores como Huberman (1992), Veenman (1984 apud SOUZA, 2009), Marcelo Garcia (1992; 1999) e Gonçalves (1992) trazem à tona o conceito de desenvolvimento profissional e a noção de ciclos profissionais. Esses autores investigam o que seriam “níveis de desenvolvimento do professor”. É “a partir deles que se delineiam as investigações sobre esse tipo de professor (iniciante), procurando abarcar vários aspectos dessa transição” (GUARNIERI, 1996, p. 12). Huberman (1992) realizou um dos mais referenciados estudos do desenvolvimento profissional dos professores. Ele procurou analisar, entre outros tópicos, a existência de fases comuns aos diversos professores, os melhores e piores momentos do ciclo profissional. O autor concluiu que há diversas constantes ou itinerários-tipo que caracterizam o percurso profissional de certos grupos de professores e cada um desses grupos é caracterizado por sequências específicas de desenvolvimento profissional ao longo das cinco fases que distinguiu na carreira docente: exploração, estabilização, dinamismo, conservadorismo e desinvestimento. Suas investigações sobre o desenvolvimento da carreira docente permitem identificar como se caracteriza o ciclo de vida dos professores. De acordo com o autor, o professor passa por uma fase de sobrevivência e descoberta ao iniciar seu percurso profissional, avançando, gradativamente, para a fase de estabilização, quando começa a tomar mais consciência do seu papel. O ciclo não constitui etapas fixas, mas sim um processo dinâmico e bem peculiar (HUBERMAN, 1992).

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

Vale ressaltar que o olhar desta pesquisa está direcionado para a fase de exploração, ou seja, os primeiros anos de docência, que contribuem para a constituição da profissionalidade do professor. Marcelo Garcia (1992; 1999) muito colabora para a discussão da fase inicial na docência. Em suas pesquisas, faz importantes considerações a respeito dos desafios, das angústias, das descobertas e das aprendizagens da iniciação dessa atividade profissional. Para o autor, o ajuste dos professores a sua nova profissão depende [...] das experiências biográficas anteriores, dos seus modelos de imitação anteriores, da organização burocrática em que se encontra inserido desde o primeiro momento da sua vida profissional, dos colegas e do meio em que iniciou a sua carreira docente (MARCELO GARCIA, 1999, p. 118).

Isso quer dizer que os professores já trazem consigo muitas experiências sobre o ser professor, desde a sua trajetória como estudante, nas séries anteriores à formação inicial, bem como as novas vivências culturais que se engendram no espaço escolar e na interação com os colegas e estudantes. As primeiras experiências vivenciadas pelos professores em início de carreira têm influência direta na sua decisão de continuar ou não na profissão, porque é um período marcado por sentimentos contraditórios, que desafiam cotidianamente o professor e sua prática docente. Tal fase é também marcada por intensas aprendizagens, que possibilitam ao professor a sobrevivência na profissão (MARCELO GARCIA, 1992; CAVACO, 1995; LIMA, 2006). Discutir o começo da carreira docente perpassa pela discussão de um campo maior: a formação de professores. De acordo com Romanowski (2012), para os professores iniciantes, a formação ganha relevância, pois é um período de aprendizado profissional e pessoal. Sem adequada formação, os professores terão mais dificuldade para desenvolver seu trabalho pedagógico.

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Daí a necessidade de programas de formação continuada que visam proporcionar novas aprendizagens e interlocuções a esses profissionais. Tratando-se do período inicial da carreira dos professores, as preocupações acentuam-se, porque as instituições formadoras e os sistemas de ensino, em sua maioria, não dão a devida atenção a essa etapa da vida profissional.

Percurso metodológico A presente pesquisa delineou-se por meio da abordagem qualitativa. Gatti e André (2010, p. 30) afirmam que as pesquisas chamadas qualitativas vieram a se constituir em uma modalidade investigativa que se consolidou para responder ao desafio da compreensão dos aspectos formadores/formantes do humano, de suas relações e construções culturais, em suas dimensões grupais, comunitárias ou pessoais. Essa modalidade de pesquisa veio com a proposição de ruptura do círculo protetor que separa pesquisado e pesquisador, separação que era garantida por um método rígido e pela clara definição de um objeto, condição em que o pesquisador assume a posição de “cientista”, daquele que sabe, e os pesquisados se tornam dados – por seus comportamentos, suas respostas, falas, discursos, narrativas etc. traduzidos em classificações rígidas ou números –, numa posição de impessoalidade. Passa-se a advogar, na nova perspectiva, a não neutralidade, a integração contextual e a compreensão de significados nas dinâmicas histórico-relacionais.

Neste estudo, o local escolhido para investigar o início da docência foi a rede municipal de ensino. Os participantes desta pesquisa são professores do ensino fundamental, efetivos na rede, independentemente da idade, do gênero e da carga horária.

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

O número total de docentes foi obtido mediante informações concedidas pela Secretaria Municipal de Educação. Assim, foram convidados todos os professores concursados que ingressaram na rede pública municipal de ensino entre os anos de 2009 e 2011, isto é, com até três anos de experiência profissional. Definiu-se esse tempo de ingresso pelo fato de os professores estarem na fase de exploração, descrita por Huberman (1995). Os sujeitos desta investigação estavam alocados em 66 unidades escolares da rede, todas na área urbana de Joinville. Pela temática de estudo desta pesquisa, fez-se necessário desenvolver um instrumento que possibilitasse descrever, explicar e explorar as questões apresentadas. Assim, o instrumento por que se optou para a coleta de dados foi o questionário. A opção pelo questionário deu-se em função do número de professores iniciantes da rede e por estarem eles em várias escolas, sem se saber ao certo onde. Em consulta preliminar, a Secretaria Municipal de Educação informou que 199 professores ingressaram na rede entre 2009 e 2011, um número significativo de sujeitos a serem investigados. Assim, a amplitude da pesquisa tornou-se evidente, e o questionário apresentou-se como a alternativa mais adequada para a condução da pesquisa. O questionário, segundo Marconi e Lakatos (2003, p. 201), é um “instrumento [...] constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem ter respostas por escrito e sem a presença do entrevistador”. Para a obtenção dos dados deste estudo, o questionário foi organizado de forma autoaplicável, sendo composto por 26 perguntas, das quais 18 eram fechadas e oito abertas. De acordo com Severino (2007, p. 125), questões abertas são aquelas às quais “o sujeito pode elaborar as respostas, com suas próprias palavras, a partir de sua elaboração pessoal”, e as fechadas, aquelas em que “as respostas serão escolhidas dentre as opções predefinidas pelo pesquisador”. Vale ressaltar que a

Dado fornecido pela Secretaria Municipal de Educação de Joinville em outubro de 2011. 

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

opção pelas perguntas abertas se deu pela necessidade de ouvir o que os professores iniciantes tinham a dizer sobre o seu ingresso na docência. Diante da quantidade elevada de questionários e por se tratar de uma pesquisa de levantamento/mapeamento que tem como objetivo conhecer uma determinada situação, compreende-se que este estudo se articula ao tipo survey. Segundo May (2004, p. 109), as surveys são um dos métodos empregados com mais frequência na pesquisa social e são utilizadas igualmente pelo governo, pelos pesquisadores acadêmicos nas universidades e pelas organizações militares. Quase todas se caracterizam pela coleta de dados referentes a um grande ou muito grande número de pessoas.

Para o autor, as pesquisas surveys são processos de coleta de informações sobre sujeitos que constituem uma população real, também denominadas levantamento amostral. Freitas (2000) diz que a pesquisa de método survey se destaca por propor uma investigação que visa responder a questionamentos acerca do que acontece, das possíveis razões e implicações que o objeto de estudo possui no contexto no qual está inserido. Seguindo os critérios sugeridos por May (2004), o questionário foi, ainda, estruturado com um breve cabeçalho com as principais informações a respeito da pesquisa, esclarecimentos sobre quem seriam os respondentes e quanto ao caráter voluntário dos participantes. Também se enviou uma carta explicando a natureza da pesquisa, a sua importância e a necessidade de obter respostas, tentando despertar o interesse do professor no sentido de que ele preenchesse e devolvesse o questionário. A palavra vozes, nesse contexto, é entendida como o espaço proporcionado para que os professores falassem, por meio da linguagem escrita, acerca do início da docência. 

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

De posse dos questionários devolvidos, iniciaram-se a leitura das respostas e a separação entre os documentos preenchidos e os entregues em branco, constatando-se quais dos sujeitos estavam nos critérios de inclusão. Desse modo, obtiveram-se dois grupos: os válidos e os não válidos. É importante lembrar que, dos 199 questionários entregues, 112 retornaram respondidos e quatro vieram em branco; 103 foram considerados válidos, porque os professores tinham até três anos de ingresso na carreira docente. Os outros 83 questionários não foram devolvidos. Para a análise das respostas conseguidas, utilizaram-se planilhas do programa Excel. Dessas planilhas foram gerados os gráficos para melhor visualização dos dados. Por meio desse procedimento, obteve-se o perfil dos professores respondentes. Com relação às perguntas abertas, num total de oito, juntamente com alguns comentários das perguntas fechadas, o procedimento repetiu-se, novamente na planilha do Excel. Assim, começou-se a análise de conteúdo das respostas. Segundo Franco (2005, p. 13), a análise de conteúdo trabalha tradicionalmente com materiais textuais escritos. [...] O ponto de partida é a mensagem, mas deve ser considerado as condições contextuais de seus produtores e assenta-se na concepção crítica e dinâmica da linguagem.

Portanto, na análise de conteúdo devem ser levadas em conta não apenas a semântica da língua, mas também a interpretação do sentido que um indivíduo atribui às mensagens. A finalidade da análise de conteúdo é produzir inferência, trabalhando com vestígios e índices postos em evidência. Para categorizar as falas dos professores respondentes, foram consideradas a recorrência das respostas, a contradição e a complementaridade (FRANCO, 2005). As categorias foram devidamente denominadas para tornar possível a organização dos dados.

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Acolhimento e condições para o início da docência Assumir a função de professor no magistério, público ou privado, é um processo marcado por inseguranças, medos, decepções, impactos, dificuldades, mas também por intensas aprendizagens, alegrias, conquistas e superações. Para descrever a dificuldade ou os desafios dos professores no começo da carreira, Veenman (1984 apud SOUZA, 2009) tem utilizado a expressão “choque com a realidade”, procurando descrever a situação de discrepância entre as expectativas que os novos profissionais possuem e a realidade do trabalho que realizam. O autor constatou, em sua pesquisa, que os professores iniciantes defrontam-se com a realidade das escolas e questionam os “ideais missionários” construídos durante a sua formação inicial. Para Huberman (1995), o início da docência desperta no professor a necessidade de sobreviver aos desafios da profissão. Segundo o autor, esses desafios seriam, além do choque com a realidade, a sobrevivência e a descoberta. Esse impacto com a realidade escolar leva os docentes a ressignificar sua prática de trabalho, tendo em vista a melhoria das suas ações em sala de aula. Ainda, nesse período, os professores vão estabelecer interações com outros agentes da comunidade escolar (supervisores, orientadores, diretores, professores) e fora dela (familiares, colegas de profissão de outras escolas e dos espaços de formação acadêmica), construindo algumas lógicas importantes que poderão tornar-se definitivas para suas ações docentes. Assim, ao ser perguntado aos pesquisados quais ações sugeririam para que os professores iniciantes se sentissem mais acolhidos, a recepção e a integração com os novos pares foram as propostas que mais ficaram evidenciadas, aparecendo em 54 respostas (52%). Muitos professores afirmaram que essa prática já vem sendo realizada pelas unidades escolares, como pode ser observado:

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

Espero que sejam acolhidos como eu fui um dia, por uma escola de portas abertas com gestores acessíveis e um grupo de trabalho focado na educação (P31). Serem acolhidos com uma integração, onde sejam colocadas todas as informações sobre o sistema de trabalho e o regimento (P42).

Segundo os respondentes, a “acolhedora” recepção pela rede está vinculada, principalmente, à figura do supervisor de ensino, que, segundo a Secretaria de Educação, é o profissional responsável por receber e acompanhar os professores ingressantes durante e após o estágio probatório. No primeiro momento é importante o que já acontece na maioria das escolas, a recepção realizada pela equipe administrativa. Em seguida, o repasse da supervisão para conhecer a linha de trabalho da escola. E, claro, seria interessante nesta etapa a troca de experiências com professores que trabalham no mesmo ano (série) que o professor em que está ingressando trabalhará (P11).

Dessa forma, o poder público acredita dar o suporte inicial aos novos professores que ingressam na rede. Também afirma que o supervisor na escola é quem tem o papel de acompanhar, orientar e avaliar esse professor, pois é ele o responsável em supervisionar o estágio probatório. Quando detecta problemas com o desempenho do professor iniciante, a escola comunica a Secretaria de Educação, que passará a acompanhar o docente. Somente depois de esgotadas todas as possibilidades de apoio é que o professor iniciante pode ser reprovado no estágio probatório. Para o bom andamento nesse começo de carreira, os iniciantes apontam a necessidade de um acompanhamento sistematizado e intencional, com cursos de formação continuada, palestras, 

Dados fornecidos pela Secretaria de Educação (2012).

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

formação de grupos de estudos, treinamento na própria escola em que atuam. Também se percebeu em 13 professores (12%) a expectativa por ações simples como, por exemplo, a recepção aos professores iniciantes com paciência, tolerância, simpatia, respeito, motivação e até com “um cafezinho”. Que nos olhem nos olhos e nos vejam como seres humanos sensíveis e com necessidades. Acredito que quando você recebe um bom tratamento da direção, e outros, você repassa isso para os alunos. Todos precisam de carinho e atenção (P7).

Uma queixa frequente entre as respostas diz respeito aos professores mais experientes, os quais, muitas vezes, formam “panelinhas”, tendo certo preconceito com quem chega, deixando a impressão de que estão ocupando o lugar dos outros. Para os professores pesquisados, as contribuições pessoais de colegas mais experientes seriam apoios importantes que os ajudariam a superar os possíveis desconfortos e as dificuldades do início da profissão. O acolhimento aos novos professores parece estar mais relacionado à unidade escolar onde vão atuar, isto é, uma ação mais individual organizada pela equipe gestora do que pela rede de ensino. Já trabalhei e percebo sim que está na mão do administrador fazer com que o novo profissional seja bem acolhido. Por duas vezes me senti muito mal ingressar em duas diferentes escolas (P68).

Por isso, perguntou-se no questionário se o professor iniciante trabalhava em mais de uma escola e se havia diferença de acolhimento entre elas. Dos professores respondentes, 41 (45%) não responderam à questão por atuarem em apenas uma unidade; 41%, ou seja, 38 professores disseram que há diferença

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

de acolhimento entre as escolas; e apenas 13 (14%) alegaram não haver distinção. Essas informações são apresentadas no gráfico a seguir: Gráfico 1 – Distribuição dos professores por número de escolas em que trabalham

Fonte: Questionário da pesquisa O Início da Docência no Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino (2011)

Dos respondentes que afirmaram haver diferença, muitos compararam as redes – particular, estadual e municipal – e não as escolas de uma mesma rede. Mesmo assim, é importante ressaltar que, para os professores, a rede particular de ensino acolhe melhor, dá mais orientação, mas há maior “controle” do fazer pedagógico e de questões administrativas, tais como: faltas do professor, cumprimento do plano de ensino, proposta pedagógica da instituição, índice de reprovação, entre outros. Com relação à diferença de acolhimento entre as escolas da rede municipal de ensino, os professores acham “normal” haver diferença, uma vez que todo ambiente é diferente. Cada escola vive uma realidade, é normal a diferença no acolhimento (P77).

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Para alguns professores pesquisados, as diferenças entre as escolas não dependem apenas de questões culturais, porém também do grupo de profissionais que fazem parte da escola. Em uma das escolas bem acolhida (apresentação da escola, do grupo etc.). Já em outra, se vire, conheça por si sozinha (P81). Cada escola tem o seu perfil. Uma é mais acolhedora, procura ser sensível a algum problema do profissional. Algumas há mais cobrança sem precisar. Depende da escola. Cabe ao profissional saber lidar com as diferenças (P79). Fui bem recebida nas duas escolas, embora em uma delas houvesse uma resistência de troca de atividades; o individualismo predomina. Na outra, posso conversar, trocar atividades e realizar atividades juntos (P30).

Outros professores atribuem essas diferenças não apenas à gestão, mas também aos próprios colegas de profissão: Por parte dos próprios professores, em uma são mais amigos e dão liberdade para você entrar e fazer parte das conversas etc. Já na outra tratam o novato com indiferença, não dão liberdade para você participar (P83). Na escola que eu sou efetiva os professores são mais simples, embora tenham todos ótimas formações. Na escola que eu tenho termo, os professores são mais fechados (P90).

Pode-se afirmar que existem diferenças de acolhimento entre uma escola e outra e que, independentemente dos porquês de elas acolherem desse ou daquele modo, as que acolhem melhor têm professores mais motivados e seguros para realizar seu trabalho. Também esteve presente nas respostas dos professores, além da diferença de acolhimento entre uma escola e outra, a questão

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

das diferentes características de cada local, o que denominaram “realidades”. Tais diferenças têm base principalmente nas condições socioeconômicas e culturais dos alunos. Outros aspectos como falta de condições de trabalho (recursos e baixos salários), variadas concepções dos colegas de trabalho, direção político-ideológica da instituição e atuação da direção e equipe pedagógica foram parâmetros utilizados para caracterizar as “realidades de trabalho” como “melhores” ou “piores”. Em geral, as “boas realidades” relacionaram-se às escolas que contavam com uma equipe pedagógica colaborativa, que possuíam materiais didáticos e que favoreciam a autonomia dos professores. Os depoimentos dos docentes retratam e comprovam que a gestão escolar tem influência direta sobre o acolhimento e as condições de trabalho para os professores iniciantes: “A escola depende de pessoas, a escola é feita de pessoas e cada uma com seu comportamento, portanto os ambientes são criados e geridos diferentemente” (P31). As relações interpessoais com outros sujeitos do ambiente escolar, as condições objetivas de trabalho nas escolas, as dificuldades enfrentadas no processo de ensino e aprendizagem e no domínio da turma foram algumas questões apresentadas pelos professores respondentes. Essa última, especialmente, se refere à capacidade de fazer com que os alunos se interessem pelas aulas e que isso possa mantê-los atentos e disciplinados, no entanto alguns professores afirmaram ter uma boa relação pessoal com os estudantes. Se a relação com os alunos durante as aulas foi apontada como uma das dificuldades do trabalho dos professores iniciantes, as relações interpessoais com os colegas de trabalho adquiriram mais relevância e tiveram mais interferência nessas dificuldades. Quando perguntados em quais profissionais os professores iniciantes buscam apoio para as questões inerentes à profissão docente, percebe-se que a equipe administrativa das escolas em que atuam, os diretores e os supervisores, é que dão suporte para os novatos. Contar com o apoio de pessoas mais experientes parece ser uma das maneiras de amenizar o “choque de realidade” e

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“sobreviver” a essa etapa, descrita como desafiadora. Quando questionados quais profissionais os professores iniciantes consultam sobre as suas necessidades, as respostas focalizaram os supervisores (39%), a direção da escola (33%) e os colegas de trabalho (24%). Gráfico 2 – Profissionais consultados sobre as necessidades dos professores iniciantes

Fonte: Questionário da pesquisa O Início da Docência no Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino (2011)

Novamente os supervisores aparecem como essenciais à etapa de iniciação na docência, não descartando os gestores nem os colegas de trabalho. Mizukami (2004) considera que a constituição de uma cultura colaborativa nas escolas poderia ajudar a superar a situação dilemática em que se encontram os iniciantes, uma vez que o conhecimento que os docentes necessitam adquirir deve vir, de certa forma, da análise de experiências com a sua classe, dos trabalhos dos seus estudantes, das observações de aulas feitas por professores mais experientes, de reflexões pessoais e coletivas – fundamentadas em estudos teóricos – sobre as práticas. A colaboração entre os pares é uma maneira de apoio que os iniciantes valorizam e de que precisam.

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

As primeiras experiências na docência estão ligadas à impressão que os novos professores têm da profissão. Essas impressões se relacionam ao perfil dos alunos, às condições estruturais e de pessoal da escola e às relações interpessoais com os colegas de profissão. Os professores que assumiram turmas com alunos portadores de deficiências, alunos indisciplinados ou com dificuldades de aprendizagem, mas contaram com apoio da equipe pedagógica da escola e de seus colegas, em um ambiente relativamente acolhedor, conseguiram realizar seu trabalho com mais tranquilidade e sem tanto sofrimento. Todavia se, pelo contrário, às condições adversas se une a questão da falta de experiência, a vontade de desistência e o abandono da função surgem com mais intensidade. Essas condições e situações são fatores bastante determinantes quando se pensa no bem ou mal-estar dos professores iniciantes e no sucesso ou insucesso das primeiras experiências na profissão. Para os professores pesquisados, o começo da carreira é um período em que necessitam “provar” aos outros, e a si mesmos, as suas competências como docentes. Nesta pesquisa, procurou-se conhecer as maiores dificuldades enfrentadas pelos professores iniciantes. Menos de 1% dos pesquisados informou não sentir nenhuma dificuldade. Porém a maioria, 99%, apontou diversas dificuldades, as quais perpassam por questões pedagógicas, de infraestrutura e relacionais. A ausência dos pais no processo educacional de seus filhos é uma constante queixa dos professores iniciantes, seguida por inúmeras faltas, seja de material, espaço físico ou apoio. A questão salarial também está presente, assim como a necessidade de um novo plano de carreira do magistério. Por meio das respostas dos entrevistados, pode-se dizer que as dificuldades dos professores iniciantes estão intrinsecamente ligadas às condições de trabalho. Segundo Oliveira e Assunção (2010, p. 12), a noção de condições de trabalho designa o conjunto de recursos que possibilitam a realização do trabalho, envolvendo as instalações físicas, os

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

materiais e insumos disponíveis, os equipamentos e meios de realização das atividades e outros tipos de apoio necessários, dependendo da natureza da produção.

As condições em que os professores exercem suas atividades influenciam diretamente nas suas vidas e nos resultados almejados como profissionais. Reconhecer algumas circunstâncias como condições de trabalho, na maioria das vezes, é imperceptível aos governantes ou, quando detectadas, não se tornam alvo de ações que possam, de alguma forma, modificar esse cenário. Vale ressaltar que condições de trabalho e condições salariais, embora distintas, caminham juntas. Os professores iniciantes buscam um sentido para aprenderem e se desenvolverem no trabalho realizado. Isso deveria promover satisfação a quem o faz. Para tanto, almejam melhores salários e condições de trabalho. Cavaco (1995) afirma que as condições iniciais da profissão docente causam insegurança e instabilidade, podendo ser consideradas de sobrevivência, designação também utilizada por Huberman (1989) para caracterizar os professores no começo de carreira afetados pelo choque com a realidade. O trabalho docente pode ser visto como uma atividade difusa, a qual exige planejamento prévio e constantes estudos. Além disso, certas atribuições de ordem pedagógica e burocrática fazem parte da rotina docente, tais como: correção de trabalhos e avaliações, elaboração de relatórios, preenchimento de notas, entre outros. Essa intensificação de atribuições pode contribuir para a desqualificação intelectual do docente, pois, ao ter de cumprir mais essas tarefas, reduz o seu tempo disponível para estudos, participação em cursos ou outros recursos que possam colaborar com a sua qualificação e favorecer o seu desenvolvimento profissional, bem como diminui o tempo destinado ao lazer, ao descanso e ao convívio social, pois muitas atividades são levadas para fazer em casa, fora do horário remunerado de trabalho.

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

Breves considerações finais O processo de inserção dos professores iniciantes tem constituído um momento de grande importância na carreira docente, não apenas por ser um período de adaptação à profissão, mas, sobretudo, pelas implicações dele decorrentes. Nesse processo, segundo os professores pesquisados, a recepção e a integração com os novos colegas de trabalho e um adequado acompanhamento aos iniciantes são fatores importantes para amenizar os desafios do período. Muitos afirmaram que essas práticas já vêm sendo realizadas pelas unidades escolares, porém como ações isoladas, as quais dependem do gestor escolar de cada unidade. Os professores acreditam que as escolas e a Secretaria Municipal de Educação deveriam deixar bem claras as normas da rede e orientar sobre a matriz curricular e a condução do trabalho pedagógico. Também teriam de possibilitar situações de troca de experiências com os outros colegas. Embora a Secretaria de Educação garanta que tenha iniciativas de acompanhamento aos professores iniciantes por meio do estágio probatório, não se pode afirmar que essa ação seja, de fato, um acompanhamento como apoio efetivo aos professores iniciantes. Nessa direção, pode-se dizer que hoje a Secretaria Municipal de Educação não possui nenhuma ação articulada para a recepção ou o acolhimento dos professores iniciantes, muitos deles recém-saídos da graduação e tendo como experiência, na grande maioria, apenas o estágio supervisionado obrigatório na formação inicial. Romanowski (2012) aponta alguns desafios para a promoção do desenvolvimento profissional dos professores iniciantes. Entre tais desafios está o reconhecimento de que eles precisam de apoio quando iniciam sua atividade profissional. Por isso mesmo, há a necessidade de haver um programa de acompanhamento e supervisão, destinado a promover o desenvolvimento profissional desses professores. Por meio dos dados coletados, também se percebeu que, se o ambiente e as condições de trabalho não forem adequados, a tendência é potencializar as possíveis dificuldades enfrentadas

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

pelos professores em começo de carreira, podendo causar desconforto e sofrimento, desencadeando até mesmo a vontade de deixar a profissão. Ou seja, as dificuldades dos professores iniciantes estão intrinsecamente ligadas às suas condições de trabalho, as quais influenciam diretamente as suas vidas e os resultados que almejam como profissionais. Os dados dos professores mostram que o início da docência é um período que requer uma aproximação com professores mais experientes, um acompanhamento mais efetivo do trabalho que desenvolvem, espaços adequados de formação continuada e de interlocução com os demais colegas e equipe administrativa. As vozes dos professores revelaram disponibilidade e receptividade para ações de formação e de desenvolvimento profissional. Em síntese, a escola precisa constituir um espaço coletivo de formação que proporcione trocas de experiências e grupos de estudo, além de necessitar de uma supervisão que a direcione para a reflexão (teórica e prática) do fazer pedagógico. É bastante complexo demonstrar os problemas do professor iniciante e apresentar um modelo de formação adequado, visando a sua qualificação, com o fim de superar seus dilemas nessa fase da carreira. Esse período consiste em uma fase marcada por crises e pode ser definido como a etapa de descoberta e de sobrevivência. Por isso, é imprescindível que a escola e o professor iniciante conversem muito e reflitam sobre as dificuldades e necessidades específicas do começo da carreira. Faz-se fundamental que os profissionais da educação ofereçam apoio adequado a esse profissional.

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Capítulo V – Professores iniciantes: acolhimento e condições de trabalho

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Sala de apoio pedagógico: o trabalho docente entre duas lógicas Solange Rosskamp Aliciene Fusca Machado Cordeiro

Introdução Este artigo situa-se na interlocução do processo de universalização do ensino em curso no Brasil desde o início dos anos 1990 e da transição nos aspectos físicos e organizacionais das redes públicas de ensino, as quais, aos poucos, foram alterando suas configurações e formas de gestão para se adequar às proposições legais. Tal período sócio-histórico, caracterizado por reformas educacionais em nosso país, tem sido foco de estudo de vários pesquisadores para compreender as mudanças significativas decorrentes e como essas mudanças reverberam na forma de conceber a educação, a escola e o trabalho nela realizado (OLIVEIRA, 2004; 2009; FREITAS, 2002; 2003; 2005; 2011; MIRANDA, 2005; SAVIANI; DUARTE, 2012). Sob esse panorama, faz-se perceptível a constituição de uma nova racionalidade que perpassa os tempos-espaços escolares e instâncias educacionais, subsidiada por diversos modelos, Mestre. Universidade da Região de Joinville (Univille). E-mail: solarosskamp@gmail. com.  Doutora. Univille. E-mail: [email protected]. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

propostas e teorias e que, pouco a pouco, vai transformando objetivos e funções, especialmente no que se refere à natureza do trabalho escolar e ao seu papel primordial, qual seja, o do ensino. Tendo em vista tal conjuntura de circunstâncias, o presente texto elege como porta de entrada para discussão o trabalho docente realizado nas salas de apoio pedagógico (SAP) da rede municipal de ensino de Joinville (SC) e traz em seu recorte uma expressão das formas de lidar com a complexidade que engendra o propósito de acolher/atender as diferenças presentes na escola e as singularidades no modo de aprender dos estudantes em sua articulação com a perspectiva conceptual dos gestores escolares e das docentes, lotados para o trabalho nas SAPs. Nessa vereda inscreve-se a intencionalidade deste trabalho. Pretende-se compartilhar reflexões acerca da finalidade que o trabalho docente assume e que, sob o viés da proposição das SAPs – na voz de professoras e dos respectivos gestores escolares –, convidam para (re)pensar as tensões presentes nos significados que perpassam as concepções e os contornos contraditórios que estas, por sua vez, vêm imprimindo à docência e aos processos de escolarização dos estudantes. Para elucidar as trilhas conceituais tomadas neste artigo, apresentaremos a seguir alguns dos marcos teóricos adotados.

As salas de apoio pedagógico e o trabalho docente Em uma sociedade como a nossa, erigida sob o capitalismo e preocupada com a manutenção desse sistema, corrobora a inculcação ideológica – falseadora da realidade –, que afirma o individualismo, a ideia de desenvolvimento profissional como irrefutável e permanente, diversas noções de competências, as quais são tomadas como essenciais e norteadoras da qualidade dos produtos e/ou serviços; entre estes, não se exime o trabalho educativo (CONTRERAS, 2002; FRIGOTTO, 2010). Muito embora alguns autores, como Roldão (2008, p. 4), assinalem que o exercício da função essencial do professor não tenha mudado, ou seja, que seu trabalho continua sendo

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Capítulo VI – Sala de apoio pedagógico: o trabalho docente entre duas lógicas

“[...] gerar e gerir formas de fazer aprender”, outros posicionamentos assumem direção distinta. Especialistas defendem que, numa perspectiva dialética, a contradição entre a socialização do saber sistematizado produzido histórica e coletivamente pelos homens e a lógica do sistema capitalista também ganha movimento no sistema público de ensino com implicações significativas para a educação escolar e a especificidade do trabalho educativo (SAVIANI; DUARTE, 2012). Na tensão entre tais posicionamentos, a questão que se estampa é que o trabalho educativo na atualidade constitui, inegavelmente, um território permeado de controvérsias. Levandose em consideração o contexto da educação brasileira, as reformas educacionais deflagradas a partir do início dos anos 1990 e a consequente ampliação do universo dos escolarizáveis, conjectura-se que, tratando-se do trabalho docente, este não permaneceu incólume. Comungam da mesma percepção autores como Contreras (2002) e Assunção e Oliveira (2009), que reconhecem uma íntima relação entre as mudanças organizacionais ocorridas no cenário educacional e as decorrentes contradições experimentadas pelos professores em seu trabalho no cotidiano escolar, tanto em sua dimensão quantitativa como na qualitativa. Compõe ainda esse panorama a regulamentação da gestão democrática nas escolas públicas do país pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/96). O referido documento, apesar de representar uma conquista para a democratização da gestão escolar, tem implicado uma série de modificações, tais como o surgimento de novas funções e a reorientação das várias tarefas que se dão no âmbito da escola que, entre outras, vão alterando, pouco a pouco, sua forma de organização. Articuladas às políticas sociais e de desenvolvimento, e levando em conta a vinculação destas à perspectiva da promoção da equidade social, as novas e múltiplas exigências imputadas aos 

Expressão utilizada por Baptista (2006).

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

professores são experimentadas como ambíguas, contraditórias às suas necessidades e condições, uma vez que aparecem embutidas em slogans que aludem às competências e também aos modelos predefinidos de docência, concebidos de forma distante do real e, portanto, idealizados. De teor ideológico e empregadas com pretensões de legitimar políticas de reforma, tais alusões, também nomeadas por Contreras (2002, p. 65) de “armadilhas do profissionalismo”, guardam em si a prerrogativa de fazer com que o trabalho docente, além de responder às objetivações burocráticas, cumpra uma finalidade prévia e externamente definida, qual seja, a de atingir a qualidade do ensino, entendida aqui como a conquista dos resultados/índices esperados e, com especial relevo, aos quantitativos. No entanto há de se considerar que, diante da abertura das escolas na última década do século passado, da notória presença de diferentes públicos nos contextos escolares e da complexidade em discernir situações concretas, imprevisíveis, mutáveis e sempre singulares em seu cotidiano, os impasses vivenciados pelos docentes ganham expressividade em seus discursos e práticas. Sob esse prisma, a lógica da racionalidade técnica, estreitamente vinculada à noção de professor competente enquanto expert, especialista ou perito técnico, implica desdobramentos diversos, haja vista que as políticas mundiais e nacionais de inclusão Termo utilizado por Contreras (2002). Neste momento do texto, o emprego do termo competências alia-se à retórica que adere à lógica do treinamento, de cunho mercantilista e da qual o ideário neoliberal se apropriou no sentido de fazer crer que, sob a roupagem de receitas generalizáveis e passíveis de aplicação em qualquer momento ou circunstância, essas competências são meios de garantir a “eficiência”, a “qualidade total” etc.  Importante salientar que, com base em Freitas (2003; 2005) e Miranda (2005), o sentido de qualidade de ensino assume significações distintas conforme o período histórico, o momento que corresponde à implantação da respectiva política educacional, os mecanismos de regulação utilizados para indução de mudanças, bem como as forças políticas vigentes no poder. No tocante à perspectiva inclusiva nos processos educacionais, esse significado vem processualmente sofrendo deslizamentos em sua apropriação, uma vez que a ênfase tem recaído sobre os índices de escolaridade (tempo de permanência na escola) e não, fundamentalmente, sobre o ensino e a aquisição de conhecimentos, ou seja, a qualidade da escolarização.  

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escolar passam a colocar em xeque as regularidades e certezas que vigoravam no momento histórico precedente. A exemplo pode-se citar o modelo de organização escolar que imperou por décadas e que pautava o trabalho docente na homogeneidade, no esforço/mérito individual do estudante e na certificação garantida pelos títulos escolares. Assim, concorda-se com Baptista (2006) ao observar que os propósitos envolvidos no acolhimento e atendimento às diferenças na escola parecem requerer uma maneira mais crítica de enfrentar o desafio asseverado na Declaração de Salamanca (1994, p. 1): “Toda criança tem o direito fundamental à educação, [...] toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que lhe são únicas”. Nesse ponto, não há frestas para hesitação. O conteúdo pontual e unívoco do texto oficial solicita-nos, reiterada e invariavelmente, a repensar as formas de olhar/conceber as singularidades dos estudantes em seu processo de escolarização. Todavia, mediante as palavras de Baptista (2006, p. 29), cabe ponderar: ainda que em nosso país os índices numéricos revelem avanços no acesso à escolarização inicial e na redução do analfabetismo, constata-se “[...] um cenário extremamente precário e diferenciado em seu conjunto”. Entre as tentativas para compreender a situação, subsiste uma pronunciada recorrência a explicações que relacionam as desigualdades socioeconômicas vigentes ao fenômeno identificado pela escola como o “não aprender” dos estudantes. Tais explicações se encontram alicerçadas em um sofisticado arcabouço conceitual ideológico que perpassa a escola, forjando-lhe concepções e olhares que terminam por culpabilizar o aluno, concretizados sob a fórmula tradicionalmente conhecida como reprovação e repetência (FERRARO, 1999; FERRARO; MACHADO, 2002; MOYSÉS, 2001; PATTO, 2010). Diante dessa maneira de conduzir os processos de escolarização, para o público dos chamados “excluídos na 

Termo utilizado por Moysés (2001).

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escola”, as possibilidades do ensino regular que privilegiem a heterogeneidade e que contemplem os diferentes modos de aprender dos alunos são secundarizadas ou tidas como inviáveis em sua relação com as expectativas curriculares tomadas de forma rígida e padronizada. Decorre daí o engendramento dos atores educacionais e, sobretudo, do professor, num emaranhado de tendências à culpabilização e à naturalização do encaminhamento de responsabilidades para searas alheias. No atalho que compreende o delegar de responsabilidades, e no intuito de articular os percentuais de analfabetos, repetentes e evadidos precocemente da escola com os novos modelos de atendimento educacional especializado, consubstanciaram-se a criação e a implantação de estratégias alternativas para acelerar o tempo de aprendizagem dos alunos identificados pela escola como aqueles que apresentam dificuldades de aprendizagem10. Uma dessas estratégias chama-se salas de apoio pedagógico, uma modalidade de atendimento educativo no ensino regular cujas diretrizes e orientações foram publicadas no documento Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico (BRASIL, 1994b), tendo como finalidade “facilitar a aprendizagem daqueles alunos que apresentam história Termo cunhado por Ferraro (1999) como categoria de análise que faz referência aos alunos excluídos na escola, ou seja, aqueles estudantes produzidos por meio dos mecanismos de reprovação e repetência.  A referência aos novos modelos de atendimento especializado faz jus às alterações e aos deslizamentos que a educação especial foi sofrendo em relação ao seu públicoalvo, ao longo da década de 1990. Num primeiro momento, compreendia todos os alunos que apresentavam dificuldades de aprendizagem por razões diversas, ou seja, com ou sem quaisquer indícios de deficiência. No entanto, gradualmente, a descrição oficial desses públicos foi sendo modificada até a sua supressão completa do espectro da educação especial e incorporação na educação básica, conforme disposto na Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994c), no Encaminhamento de Alunos do Ensino Regular para Atendimento Especializado (BRASIL, 1994a) e nas Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico (BRASIL, 1994b). 10 Charlot (2000) assinala a inexistência do fracasso escolar numa perspectiva individualizante e enfatiza histórias e processos de escolarização produzidos por múltiplas determinações; entre estas, as que decorrem de currículos, estabelecimentos e da experiência escolar vivida e interpretada pelo aluno, culminando na frustração de resultados e expectativas curriculares. 

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de fracasso escolar, principalmente nas primeiras séries do primeiro grau, com multirrepetência, dificuldades em alfabetizarse e hiperatividade”. O documento recomenda que os serviços prestados nessa sala não sejam confundidos com reforço escolar. Tratando-se do município pesquisado – Joinville –, a criação do Programa de Apoio Pedagógico remonta ao ano de 1997 (ROPELATTO, 2003), quando a Secretaria de Educação deu início a um processo de implantação de várias estratégias na rede municipal de ensino, tendo como objetivo a regularização do fluxo escolar do ensino fundamental, visando à conclusão das oito séries11 em oito anos.

Percurso metodológico O presente estudo está alicerçado na abordagem qualitativa, uma vez que esta se propõe a construir o conhecimento de maneira orientada para o compromisso social no que se refere ao tipo de abrangência, ao alvo de impacto, ao grau de consistência, à fidelidade ao real, atingindo pontos críticos concretos, e, portanto, voltada à transformação dos cenários socioeducativos (GATTI, 2010; ESTEBAN, 2010). Em conformidade com esse direcionamento, adotou-se o materialismo histórico e dialético como base epistêmicometodológica, por entender que o fenômeno – trabalho docente – não poderia ser concebido de forma desvinculada da realidade social e cultural na qual se vê engendrado. Em Joinville, conforme dados obtidos em 2011 na Secretaria de Educação, das 87 escolas de ensino fundamental da rede municipal, 40 abrigavam SAPs, distribuídas em 21 bairros da cidade. Nesse contexto, os sujeitos da pesquisa compreenderam: 31 professoras12 que realizam seu trabalho nas SAPs e 27 diretores das unidades escolares que mantêm tais salas. Em 1997 o sistema de séries e o ensino fundamental de oito anos ainda eram vigentes. 12 Utiliza-se a denominação professoras porque, decorrida a pesquisa, 100% das docentes participantes pertencem ao gênero feminino. 11

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Com o objetivo de apreender as concepções das professoras das SAPs sobre seu trabalho e compreender as concepções dos diretores acerca do trabalho delas, aplicaram-se um questionário com 27 perguntas abertas e fechadas às professoras e um questionário com 13 perguntas abertas e fechadas aos diretores das respectivas escolas que abrigam as SAPs. Para a avaliação decidiu-se pela análise de conteúdo proposta por Bardin (1977), pela consideração à mensagem como ponto de partida e como expressão de um significado e de um sentido que não podem ser tomados isoladamente, mas na relação com as suas condições contextuais e seus componentes ideológicos. Ainda na perspectiva dessa metodologia de análise adotada, procedeu-se ao estudo dos documentos selecionados, quais sejam: a Portaria Municipal n.º 111 – GAB – 2009 (JOINVILLE, 2009) e as Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico (BRASIL, 1994b).

Discussão dos resultados Conforme Rockwell e Mercado (1999), a comunicação cotidiana dos professores contém opiniões, noções e conhecimentos que retratam reflexões acerca de suas condições de trabalho, bem como interpretações sobre as disposições técnicas recebidas. O contexto institucional, portanto, conforma determinadas formas e estilos de falar. Das professoras participantes da pesquisa, 40% mencionaram que a finalidade do trabalho na SAP encontra sua razão e propósitos nos alunos identificados com dificuldades de aprendizagem. Conferem clareza a essa afirmação falas como: “Trabalhar com alunos de 2.º ao 5.º ano que apresentam acentuadas dificuldades de aprendizagem” e “Oferecer um atendimento diferenciado para os alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem. Seja através de computadores, jogos, leitura, internet”. Respostas semelhantes aparecem com o percentual de 5%, nas quais as docentes identificam que a finalidade das SAPs é trabalhar com alunos em defasagem quanto a idade/ano escolar e/ou com relação à turma que frequenta. Na mesma tendência,

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seguem 15% das professoras, as quais acreditam que as salas servem para melhorar/resgatar a autoestima/autoconfiança dos estudantes. A correlação desses dados sugere, portanto, que 60% das docentes percebem a finalidade do trabalho realizado na SAP, pautada em uma lógica de ensino13 que prioriza a consideração das singularidades em uma perspectiva compensatória das desigualdades. Denotam o entendimento de que as crianças que não conseguem acompanhar o esperado nas salas de ensino regular, e que por isso não estão adequadas às expectativas curriculares nos anos iniciais de escolarização, são aquelas “legitimamente” identificadas como as que apresentam dificuldades de aprendizagem. O panorama aqui descrito permite notar que a visão dessas professoras se encontra perpassada por uma concepção de aprendizagem e desenvolvimento em que são enfatizadas a falta e as falhas dos educandos, bem como a responsabilização deles sobre as suas dificuldades no processo de escolarização. Desse modo, o trabalho docente realizado na SAP consubstancia-se na compreensão de que seu fim é recuperar as defasagens de aprendizagem identificadas na sala de aula regular, durante os anos iniciais de escolarização. Os discursos apresentados e, mais especificamente, o emprego dos verbos para caracterizar o propósito do trabalho na SAP – “Atender os alunos que apresentam dificuldades acentuadas de aprendizagem”, “Resgatar alunos com escrita/ A adesão à lógica de ensino é assunto abordado por Freitas (2003). O autor fala da ênfase dada pelos documentos oficiais aos resultados quantitativos dos alunos. Tal destaque recai sobre a escola e traz em seu bojo uma noção ingênua de promoção da equidade, uma vez que ressalta o uso de recursos pedagógicos para compensar as condições sociais presentes, ou seja, os diferentes níveis socioeconômicos dos estudantes. Sob esse enfoque, corrobora o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece como projeto educacional “sair-se bem no IDEB [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]”. Este, por sua vez, “foi vergonhosamente amarrado aos resultados do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, do inglês Programme for International Student Assessment], conduzido por um organismo internacional a serviço de empresários” (FREITAS, 2011, p. 6). 13

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leitura marginalizada [...]”, “Aprimorar o conhecimento das crianças, elevar a autoestima, recuperar assuntos mal entendidos” (grifos nossos) – apontam para uma ação marcada por características que encontram fundamento no modelo médico-psicológico14, o que mostra a recorrência e adoção de outros saberes que não os específicos da pedagogia para caracterizar a sua função de professora. As características individuais/singularidades dos estudantes parecem ser abstraídas e, portanto, também a sua condição de sujeitos concretos. Pode-se dizer ainda que essa característica confere à SAP intencionalidade similar à proposição do reforço escolar, por atender à lógica de ensino e de resultados em uma perspectiva de domínio de conteúdos específicos. De acordo com as entrevistadas, “é um reforço onde os que frequentam realmente conseguem aprender e se alfabetizar”. Ainda que tal direcionamento esteja desaconselhado no documento Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico (BRASIL, 1994b, p. 7), no presente estudo aparece como uma contradição com relação ao oficialmente regulamentado. A contradição entre o prescrito e os direcionamentos dados ao trabalho docente remete à discussão de Freitas (2005), quando se refere ao conceito de qualidade negociada como possibilidade de transação entre as políticas públicas centrais e as necessidades e os projetos locais. O autor assinala que na tensão entre as políticas regulatórias (e suas estratégias de indução de mudanças verticalizadas) e o delineamento da fisionomia educativa da própria rede se constrói a qualidade das escolas, uma vez que tal tensão permite a interlocução entre as necessidades existentes e os compromissos que se estabelecem, conforme o contexto local, suas possibilidades e seus limites. Segundo Moysés (2001), o modelo médico-pedagógico tem suas raízes históricas em discursos racistas e eugenistas. No Brasil, demarca sua interferência sobre a saúde nas escolas a partir do movimento da higiene escolar e sua institucionalização, na primeira década do século XX. Tem como pano de fundo o debruçar do olhar clínico (com sua racionalidade e positividade) acerca das questões sociais/humanas, transformando-as em problemas biológicos e de caráter individual. Ou seja, tudo o que escapa da norma ou do padrão é transformado em doença, inclusive a aprendizagem, o comportamento e a inteligência. 14

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Desse modo, parece que pensar a exequibilidade de um programa/projeto tal como a SAP e seus propósitos em uma rede de ensino/escola constitui fruto de uma significação compartilhada e de um “pacto de múltiplos atores”, ou seja, da escola com os gestores da rede escolar, da escola com seus alunos e até da escola com ela mesma (FREITAS, 2005, p. 922). Outras respostas relativas à finalidade do trabalho docente na SAP merecem atenção: 27% das professoras entendem que ela auxilia os alunos dos anos iniciais no processo de alfabetização/ letramento e aprendizagem da Matemática; 8%, apesar de citarem a sua contribuição/suporte ao professor da sala regular, fazem-no mantendo o foco no aprendizado do aluno; e 5% identificam-na com o favorecimento do processo inclusivo de estudantes. A centralidade no estudante como foco do trabalho docente é confirmada quando as professoras se referem ao seu trabalho na SAP como gratificante, pelos avanços e ganhos obtidos pelos educandos, e também como desafiador, em virtude dos obstáculos e das dificuldades que eles apresentam. Isso demonstra a assunção à responsabilidade que lhes é imputada pelo sistema e/ou pela escola, tal como se destaca na seguinte fala: “É gratificante saber que [o aluno] está evoluindo e conseguindo ter um melhor desempenho em sala de aula”. Percebe-se que há preocupação não só com as questões objetivas, como a aquisição de conteúdos, mas também com o desenvolvimento e o cuidado de aspectos subjetivos, tais como autoestima e autoconfiança dos estudantes. Essa última encontrase, de certa forma, referenciada nas Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico, as quais significam o termo “mediação” como “[...] toda intervenção do professor junto a crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem, e que colabore para a melhoria da autoimagem do aluno e para a sua reinterpretação do mundo como menos hostil e frustrante” (BRASIL, 1994b, p. 7, grifo nosso). Um pouco mais adiante, ao se referir ao ambiente da sala de apoio, assinalam que este deve permitir “[...] mudanças, desde o rendimento escolar do aluno até, e principalmente, de seu autoconceito” (BRASIL, 1994b, p. 7, grifo nosso).

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Muito embora a mesma deferência não esteja presente em qualquer um dos dez artigos da Portaria Municipal n.º 111 – GAB – 2009, 15% das professoras das SAPs referiram-se à autoestima e à autoconfiança dos estudantes e relacionaram-nas à finalidade de seu trabalho, sob a forma de “valorizar, melhorar, levantar, elevar e resgatar” esses aspectos. Tais constatações reafirmam a recorrência das professoras a outros saberes que não correspondem à especificidade da pedagogia. Conforme Roldão (2008, p. 4), “[...] professor é professor porque ensina”. Uma observação mais acurada sobre a articulação dos termos “autoestima” e “autoconfiança” aos processos de aprendizagem encontra ancoragem na psicologização15 de fenômenos cotidianos que ocorrem na seara da educação, especialmente os diversos fatores envolvidos nos processos de ensinar e aprender. De acordo com as falas das professoras das SAPs, o trabalho do apoio caracteriza-se por: “Atender os alunos do 2.º ao 5.º ano que apresentam dificuldades acentuadas de aprendizagem” e “Atender os alunos que se encontram com dificuldades na alfabetização especificamente e dificuldades de aprendizagem” (grifos nossos). Sob tais influências, advém a tendência de pensar que as emoções não são bem-vindas à escola, uma vez que podem representar prejuízo no envolvimento e na concentração dos alunos nos estudos. A tendência de pensamento que conjectura a relação entre os possíveis problemas de aprendizagem e as emoções oferece subsídios importantes para a noção de fracasso escolar. A ênfase atribuída ao “atendimento”, além de conferir uma perspectiva individualizante sobre as “dificuldades de aprendizagem”, remete à noção de que existe um profissional específico e mais capacitado para lidar com esses estudantes. Individualizar e responsabilizar o aluno pela situação de fracasso passa pela redução de suas características – ainda que Entende-se por psicologização a recorrência às “explicações de caráter psicológico para descrever e analisar fenômenos, desconsiderando seu processo de produção social” (MEIRA, 2011, p. 113). 15

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intimamente ligadas a um processo escolar – a uma parte de sua personalidade ou natureza, como se o processo escolar e a sociedade não tomassem parte nessa produção. Segundo Rego (1998), a concepção que considera o desempenho individual dos alunos como dependente de suas capacidades inatas é o alicerce conceitual pelo qual a escola passa a reeditar-se como instituição “redentora”, por meio de programas de educação compensatória para reverter as diferenças de que as classes menos favorecidas seriam portadoras. A discussão do assunto encontra ressonância em diretrizes nacionais, ao assinalarem a relação entre as causas e os efeitos do fracasso escolar do estudante que frequenta as séries iniciais. Nesse sentido, as Linhas Programáticas para o Atendimento Especializado na Sala de Apoio Pedagógico Específico alertam que a criança, [...] certamente, vivencia com sofrimento a “sua” diferença, e que tanto incomoda os adultos. Por isso, crianças que “fracassam” reagem defensivamente, seja com comportamentos hostis e agressivos em relação aos outros, seja isolando-se num mundo à parte. [...] Por isso, os professores da sala de apoio devem conhecer, valorizar e respeitar alguns pressupostos básicos, considerados como ideais para o manejo com esse grupo (BRASIL, 1994b, p. 41).

Nesse âmbito, cabe ao apoio pedagógico a incumbência de “[...] superação das dificuldades de aprendizagem, [...] desenvolvendo-lhes [nos estudantes] o seu potencial e melhorando, consequentemente, seus desempenhos” (BRASIL, 1994b, p. 5). Na Portaria Municipal n.º 111 – GAB – 2009, a noção compensatória para as dificuldades de aprendizagem também está presente, entretanto aparece relacionada à preocupação com os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e à “[...] urgência de uma ação direcionada para o processo de alfabetização e letramento dos alunos matriculados no 2.º ano”, entre outros motivos interligados: índice de reprovação, número expressivo de alunos defasados “idade-série/ano”, com

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dificuldades na leitura/escrita e os não alfabetizados (JOINVILLE, 2009, p. 1). Em ambos os documentos encontram-se características que coadunam com a asseveração de Charlot (2000, p.17) sobre essa maneira de traduzir o fracasso escolar, por remeterem a “[...] fenômenos designados por uma ausência, uma recusa, uma transgressão – ausência de resultados, de saberes, de competências, recusa de estudar, transgressão das regras”. Por compreender que os fenômenos são multideterminados e que as vozes das professoras ecoam, evocam e/ou se contrapõem a outras vozes, condições e situações, entende-se que essas conjecturas remetem à questão sobre qual a finalidade do trabalho docente na SAP do ponto de vista dos diretores. As respostas obtidas apontaram que 64% dos diretores responderam à questão de forma ampla, descrevendo as formas pelas quais se desenvolve o trabalho: “Criar estratégias diferenciadas das aulas regulares para atingir seus objetivos”, “Usar estratégias pedagógicas que ajudem o aluno a sanar as dificuldades de aprendizagem de maneira lúdica e menos rápida, observando e considerando as dificuldades individuais”. Nessas colocações reafirma-se a expectativa dos diretores a respeito do trabalho na SAP que, a seu ver, deve corresponder ao preenchimento de lacunas/defasagens. Uma semelhança ao reforço escolar é encontrada em 22% das respostas, em que se entende o propósito do trabalho docente associado ao auxílio no processo de alfabetização e na aprendizagem da Matemática: “O professor tem de fazer um trabalho direcionado à alfabetização”, “[...] auxiliar no processo de alfabetização e letramento e em alguns na Matemática”. Chama a atenção que apenas 14% dos diretores relacionam a finalidade do trabalho à parceria e ao suporte ao professor da sala de aula regular. Nota-se tal posicionamento no pronunciamento de dois diretores: “É trabalhar em parceria com o professor da sala de aula, tendo como objetivo sanar as dificuldades apresentadas na aprendizagem” e “Penso que este profissional tem como objetivo dar suporte ao professor da sala, facilitando, assim, o trabalho pedagógico e contribuindo num aprendizado melhor”. Apesar de essas falas apontarem para a importante parceria entre professores,

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denotam, tal qual observado nos relatos das professoras, um enraizamento na concepção culpabilizante do estudante, colocando-o como foco primordial do trabalho docente. Pode-se dizer ainda que essas concepções repercutem diretamente no modo como se vê o trabalho na perspectiva da coletividade, já que pelo fato de não haver a mobilização do coletivo escolar em torno dos processos de ensino a responsabilidade de promover o desenvolvimento do aluno aparece imputada com exclusividade à professora da SAP.

Considerações finais Na dimensão das diferentes concepções que conformam o trabalho docente na SAP, encontramos elementos para a interlocução com os movimentos de (des)caracterização do ensino na direção de legitimar políticas educacionais comprometidas com interesses dominantes. Assim, nesse momento, tais expressões são assumidas aqui como oportunidades profícuas de articular reflexões com as lógicas presentes. Neste estudo, tendo como foco o aporte em diferentes concepções, foi perceptível a vigência de uma disputa por projetos educacionais, caracterizada pelo embate de lógicas e interesses distintos. Estes, evidenciados nas vozes das professoras das SAPs e dos diretores que mantêm essas salas em suas unidades escolares, acabam por imputar desdobramentos sobre o referido trabalho na expressão de sua finalidade no cotidiano escolar. As professoras e os diretores investigados em vários momentos deixaram transparecer que o trabalho realizado pelas docentes é perpassado por uma concepção individualizante e centralizada no aluno, identificado pela escola como aquele que apresenta dificuldades de aprendizagem. Predomina o entendimento de que os estudantes destoantes do ideal no tocante às expectativas curriculares correspondem aos que, legitimamente, necessitam ser recuperados em suas defasagens identificadas na sala de aula regular. Sob esse viés, muitas vezes sem perceber claramente, as professoras – nos sentidos que seus trabalhos vão ganhando – são tragadas pela ideologia dominante de culpabilizar o

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educando, refutando a possibilidade de refletir/questionar as exigências institucionais, bem como as iniciativas de articulação pedagógica com os demais professores. Dessa forma, tomam para si a tarefa de ensinar os conteúdos escolares e assumem uma responsabilidade coletiva que lhes é delegada, imprimindo à finalidade do trabalho na SAP características que não somente o identificam com a educação escolar, como também lhe imputam a conotação de reforço. Mediante a lógica de ênfase quantitativa que recai sobre o desempenho/rendimento dos alunos, o trabalho na SAP adquire o caráter de atendimento, com status redentor, e recebe adjetivações, como o “coração da escola”, que acabam por conferir uma aura de especialista às professoras, uma vez que com elas o ensino acontece. Cabe observar que, assim compreendido, o referido trabalho conforma-se traído em seu intento e objetivos oficialmente prescritos, já que a SAP foi originalmente concebida/criada como uma estratégia/um serviço para propiciar o desenvolvimento global dos estudantes identificados com dificuldades nos anos iniciais de seu processo de escolarização (BRASIL, 1994b). Em nosso estudo, entretanto, configura-se reeditada numa versão que distingue sua prioridade com o ensino, delimitando-o na forma da recuperação de determinados conteúdos, quais sejam, os relacionados às disciplinas de Português e Matemática. Sob esse enfoque, percebe-se o paradoxo que cerca a existência da SAP, pois, ao mesmo tempo em que esta atesta/ endossa o fracasso da função docente, reafirma sua capacidade de fazer o estudante aprender. Torna-se, assim, vital que seja “o coração da escola”, porque na sua ausência se romperia o último laço que liga a escola à sua função primordial: a de fazer todo e qualquer aluno aprender. Apesar de todo o enfrentamento ético-político feito com as escolas no sentido de deixarem de ser o espaço oficial da transmissão de conhecimentos e assumir um caráter social/assistencial, as concepções das professoras das SAPs evidenciam elementos que apontam uma força de resistência a essas tentativas. Ou seja, ainda que na perspectiva das reformas educacionais deflagradas a partir dos anos de 1990 as políticas

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sigam imprimindo mudanças no perfil da educação escolar e secundarizando o ensino, o trabalho nas SAPs tal como concebido pelas professoras denota um movimento de contrarregulação a essas políticas que, de modo geral, tendem a priorizar a lógica da “socialidade/aprendizagem de cidadania” e corroboram para um gradual aniquilamento do trabalho do professor (OLIVEIRA, 2009; MIRANDA, 2005). Portanto, na expressão das concepções que consubstanciam o trabalho docente realizado nas SAPs, é perceptível que este segue sob o entendimento de preservar sua especificidade, ou seja, a forma da educação escolar. Sendo assim, o trabalho assinala de maneira positiva tal identificação e reafirma-se na preocupação com os conteúdos escolares, assumida numa intencionalidade que ultrapassa sua simples transmissão e pretensões de melhor rendimento e, sobretudo, de apropriação do conhecimento pelos estudantes. Diante do exposto, apesar de essa caracterização do trabalho docente se distanciar do caráter complementar prescrito nas diretrizes nacionais, há de se considerar que as professoras entrevistadas mostraram que o trabalho docente tem como finalidade primordial o ensino. Embora correntezas adversas tentem adulterá-lo processualmente em sua função/finalidade, a escola continua sendo um espaço de ensino e de transmissão de conteúdos que lhe são próprios.

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A condição humana do professor e sua formação Anna Maria Lunardi Padilha

Cada vez que nos dispomos a refletir sobre temas relacionados à formação docente, vemo-nos diante de problemas conceituais complexos e posições teóricas diferentes e até contraditórias. Seja quando nos dedicamos ao estudo do cotidiano da escola, da sala de aula, da vida de um aluno ou de um professor, seja quando buscamos compreender o contexto mais amplo da educação visitando sua história, abordamos fragmentos da realidade que não nos são óbvios nem transparentes. Mas é assim a cada reflexão sobre o humano do homem. E aqui tratarei da formação dos professores assumindo-a como esfera da formação humana. Para essa tarefa aponto três questões: o professor e a sua condição humana, o papel do professor na sociedade e as lacunas na formação do professor.

O professor e a sua condição humana Sobre esta primeira questão poderiam pensar os leitores: “Mas é claro que a condição do professor é a de ser humano; nós, Doutora em Educação. Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). E-mail: [email protected]. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

professores, somos seres humanos!”. No entanto ficaríamos no nível do senso comum se nos contentássemos com tal afirmação sem a necessária densidade que ela merece. Busco em Marx (1978; 1999; 2004), Lukács (2010), Vygotsky (2000) e Bakhtin (1992a; 1992b) os conceitos de que preciso para iniciar a reflexão. O homem não é apenas um ser natural, mas um ser natural humano que tem sua gênese social na história. Sua diferença específica com relação a outros seres naturais está no trabalho e em suas consequências sociais. Lembremos o que disse Marx (1978, p. 216, tradução minha) a respeito da condição humana, cuja atividade-trabalho está dirigida a um fim: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta por meio da atenção durante todo o curso do trabalho.

A condição humana do professor, desse ponto de vista, é a condição de um trabalhador, cujo trabalho tem uma finalidade; a finalidade é conhecida e antecipada. Sobre ela o professor determina o modo de operar e dirige sua vontade, sua força física e espiritual. Lukács (2010, p. 95), em seu último trabalho filosófico, falanos do curso da vida de cada ser humano como “uma cadeia de decisões, que não é uma sequência simples de diferentes decisões heterogêneas”, mas que nos tem a nós, humanos,

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como seus sujeitos. Tal afirmação articula-se à outra, da mesma importância: nossas decisões são socialmente determinadas por problemas sociais. A condição humana do professor é constituída – como toda condição humana – como individualidade que, “em circunstância alguma, pode ser uma qualidade originária, inata a ele, mas resultado de um longo processo de sociabilização da vida social do ser humano, um momento de seu desenvolvimento social” (LUKÁCS, 2010, p. 102), momento de sua gênese sóciohistórica. Na mesma perspectiva, porque filiada à mesma matriz filosófica, encontramos em Vygotsky (2000) uma passagem da maior relevância para os que desejam compreender a condição humana do homem. Parafraseando Marx, diz ele que “a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e formas de sua estrutura” (VYGOTSKY, 2000, p. 27). A consciência de nossa sociabilidade, ou seja, do modo de sermos sociais, parece ser o caminho para fundamentar a discussão sobre a formação docente: partícipes incondicionais do drama humano, somos as relações sociais encarnadas em nós; produzimos nossa história e somos constituídos por ela; modificamos a natureza das coisas com nosso trabalho e somos transformados por ele. O que parece ser apenas uma contingência de vida, uma escolha pessoal autônoma, a condição humana do professor não deriva de sua natureza. Tanto Vygotsky (na Psicologia) quanto Bakhtin (no estudo da linguagem) desenvolveram a tese de que a consciência individual, ou a consciência de nossa própria individualidade, nos chega pelo outro. Fontana (2000, p. 61) apresenta essa ideia com clareza quando retoma os dois pensadores: “Não vimos ao mundo providos de espelhos, mas de pares: a consciência de nossa própria individualidade organiza Vygotsky refere-se à VI tese de Marx sobre Ludwig Feuerbach, que o leitor pode encontrar em MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 13: “Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais”.

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se e desenvolve-se em nossas relações sociais”. Para compor suas reflexões sobre a constituição do ser professor, traz a afirmação de Vygotsky: “Tornamo-nos nós mesmos através dos outros” (VYGOTSKY apud Fontana, 2000, p. 27). Assumindo a concepção de que ao nascer já o fazemos mergulhados na vida social e na história, aponta que os significados dos papéis que desempenhamos e os lugares sociais que ocupamos nos chegam pelo outro. Fontana faz isso ancorada em Bakhtin (1992b, p. 378): Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vemme do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros.

Abordar, mesmo que tão brevemente, a condição humana do professor com base nesse mirante exige uma visão crítica do chamado discurso pós-moderno, que tenta nos fazer crer no desenvolvimento espontâneo da individualidade do ser humano. A humanização pressupõe uma direção, uma teleologia – a transformação da atividade natural em atividade previamente estabelecida. Pensando na constituição do ser humano professor, considero que a educação desse profissional é uma das condições de sua inserção consciente na história e, portanto, de apropriação de conhecimentos sobre sua própria história como gênero humano, bem como de superação da condição de reprodutor da ordem estabelecida, uma vez assumindo a dimensão teleológica de sua vida. Há uma profunda e inseparável relação entre a condição humana do professor e o seu papel na sociedade. Chego à segunda questão.

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O papel do professor na sociedade É comum que se fale em sociedade como conceito pronto e quase inquestionável a ponto de se imaginar que qualquer pessoa entende o que seja. Leem-se com frequência expressões como “sociedade brasileira”, “educar para viver em sociedade”, “nossa sociedade é racista” etc. No campo da educação, e especificamente no da formação docente, falar em “papel do professor na sociedade” também se transformou em uma expressão corrente e muitas vezes repetida. Seria tarefa impossível trazer para um texto todas as concepções de sociedade, desde seus mais remotos significados. Foi necessário, portanto, fazer escolhas. No Dicionário básico de filosofia (JAPIASSU; MARCONDES, 1990, p. 227), o verbete “sociedade” começa por uma negação: “Sociedade não é um mero conjunto de indivíduos vivendo juntos, em um determinado lugar [...]”. Em seguida traz a definição como uma “organização de instituições e leis que regem a vida dos indivíduos e suas relações mútuas”. Já o Dicionário do pensamento marxista (BOTTOMORE, 2001, p. 343) explica que Marx utilizou o conceito de sociedade em três sentidos: como sociedade humana ou humanidade socializada, tipos de sociedades historicamente existentes (a sociedade feudal, a sociedade capitalista etc.) e como qualquer sociedade (a de Roma antiga ou da França moderna, por exemplo). Entre esses sentidos há algo em comum: para Marx, a existência é uma atividade social, e o indivíduo é um ser social, contrariando, dessa forma, qualquer dicotomia entre individual e social e entre natureza e sociedade. Os seres humanos são parte do mundo natural, base da atividade vital, que é o trabalho. Pelo trabalho o homem transforma a natureza e ao mesmo tempo se transforma. Leontiev (1978, p. 170), companheiro de estudos de Vygotsky durante parte de sua vida, em seus escritos sobre o desenvolvimento do psiquismo humano explica o desenvolvimento sócio-histórico e marca-o na época histórica da liberdade do homem da sua antiga (quase absoluta) dependência biológica. Apoiado em Marx, traz o conceito de sociedade dizendo que “as

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relações do homem com o mundo material que o cerca são sempre [grifo nosso] mediatizadas pelas relações com os outros homens, com a sociedade”. As relações existem mesmo quando o homem desempenha uma tarefa exteriormente sozinho. Apreende-se que Leontiev assume o trabalho e a linguagem (a comunicação) como a origem da vida do homem em sociedade. Afiança ele: “O homem encontra na sociedade e no mundo transformado pelo processo sócio-histórico os meios, aptidões e saber-fazer necessários para realizar a atividade que mediatiza a sua ligação com a natureza” (LEONTIEV, 1978, p. 173). A partir de então apenas as leis sociais e históricas vão reger a vida do homem. Do pouco apresentado até agora, conclui-se que o conceito de “sociedade” não é autoexplicativo – depende do ponto de vista teórico de quem o estuda – e muito mais complexo do que cotidianamente nos é dito nos discursos sobre educação, escola e formação docente. Abordar a responsabilidade do professor e seu papel na sociedade supõe que se faça uma escolha epistemológica. Nossa tomada de posição político-pedagógica depende de como assumimos o que seja sociedade e da consciência de sermos dela participantes. Seguirei o caminho de exposição que venho trilhando até o momento. Marx (1999, p. 29) assevera, em Introdução à crítica da economia política, que os homens estabelecem relações de produção que correspondem a diferentes fases do desenvolvimento das forças produtivas materiais, mas os modos de produzir o que necessitam para viver não foram os mesmos em todas as épocas históricas, o que originou “tipos de sociedade”. Não pretendo descrever nem analisar os diferentes tipos de sociedade que foram se formando ao longo da história. No entanto, para discutir o papel do professor na sociedade, fica a pergunta: A qual tipo de sociedade pertence o professor ao qual me refiro? Saviani (2002, p. 24) explica não ser possível entender nem a sociedade contemporânea nem a história da educação sem a compreensão do movimento do capital, ou seja, sem compreender o processo produtivo e a organização do trabalho. Estou falando de uma sociedade mercantil, alienada e intolerante. Uma sociedade de classes na qual as relações

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econômicas, sociais e espirituais estão sob o domínio das classes dominantes, que dirigem as instituições culturais para garantir a manutenção e a evolução do poder. Uma sociedade que historicamente cria e rege a divisão do trabalho – os que pensam e os que executam – e que separa o trabalho do capital. Uma sociedade cuja riqueza material subordina a riqueza espiritual; no reino do capital a própria educação é uma mercadoria. Uma sociedade capitalista que, não sendo um todo homogêneo, pois sua construção é histórica e limitada, também “engendrou uma classe revolucionária que pela própria posição que ocupa na estrutura econômico-social constitui o agente historicamente capaz de tomar para si a transformação estrutural da sociedade a partir de seus próprios interesses” (MACÁRIO, 2005, p. 102). Vale aqui uma citação de Marx e Engels (1996, p. 12): A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade [...]. A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora.

A concepção de educação está profundamente vinculada ao tipo de sociedade que se deseja construir. Essa decisão, porém, não é individual nem depende da boa vontade dos profissionais. Lembremos que até por volta dos anos 1970, quando a produção em série era a característica do trabalho nas fábricas, a preparação para o trabalho era a meta da educação e a formação docente estava posta para essa finalidade; os esforços para formar professores tinham “o caráter predominantemente informativo e limitado, pois o conteúdo de que o trabalho necessitava não exigia um pensamento crítico e capacidade inventiva”, como afirma Tonet

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(2010a, p. 3). Algumas profissões não exigiam nenhuma formação, e propagava-se que quem frequentasse a escola e se esforçasse, por mérito, teria melhores oportunidades no mercado de trabalho. Entretanto sabemos das limitações desse discurso e quantas crianças, jovens e adultos foram expulsos da escola! O novo modelo produtivo exigiu especializações: era preciso aprender a pensar, resolver problemas, ser “criativo”, enfrentar circunstâncias não previstas. A escola tinha outra função, e a formação docente também. Novos discursos, novas resoluções. A pergunta continua a mesma: que tipo de sociedade desejamos? Há apenas uma aparente liberdade de escolha. Aprendemos a desejar nas condições concretas de vida social. É assim que nossa consciência se constitui. “O grau de consciência, de clareza, de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social” (BAKHTIN, 1992b, p. 114). A origem da educação dá-se com a origem do próprio homem, mesmo muito antes de haver escola. Percorrendo a história da educação encontramos que, “com o advento da sociedade moderna, capitalista, burguesa, a educação escolar, antes restrita a poucos, tende a se generalizar, convertendo-se na forma principal e dominante de educação” (SAVIANI, 2005, p. 248). Para a sociedade – no estágio atual em que se encontra, com a hegemonia em mãos das classes dominantes, com a divisão do trabalho marcando fortemente o lugar de quem deve saber mais para continuar dominando e de quem deve apenas saber o básico (o que significa a expressão “escola básica”, afinal?) e fragmentos do saber sistematizado (ser alfabetizado, por exemplo) – que tipo de sociedade nós desejamos? Que educação? Qual o compromisso do professor com a sociedade e a educação desejadas? Impõe-se como desafio, a depender da direção assumida, articular a escola com os interesses da classe dominada, ainda hoje impossibilitada de ter pleno acesso a todos os níveis de ensino e real domínio do saber acumulado pela humanidade. Assim desejou Gramsci (1979, p. 137), ao afirmar que uma escola de tendência democrática não pode se limitar a qualificar a classe trabalhadora; tem de permitir que cada ser humano aprenda tudo

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o que for necessário para que “possa se tornar governante e que a sociedade o coloque, ainda que abstratamente, nas condições gerais de poder fazê-lo”. Eis o papel do professor na sociedade. Depois de caminharmos até aqui, resta saber: Será mesmo necessário falar sobre o que falta à formação docente? Já não estaria pelo menos apontado? Vejamos.

Lacunas na formação do professor Nos discursos de parte da literatura especializada, bem como na mídia e nos debates sobre desenvolvimento social, são recorrentes as críticas à formação dos professores brasileiros e ao baixo índice de aprendizado dos alunos da chamada escola fundamental. Isso sem falar da cobrança em relação à formação dos formadores nas universidades. Ao mesmo tempo em que se acusa a escola de não dar conta de todos os estudantes, há uma forte tendência a chamá-la para participar de projetos que lhe são alheios. Trago alguns significativos depoimentos de profissionais da educação que nos aproximam da terceira questão proposta: as lacunas na formação do professor. Eu fico muito brava quando eu ouço na televisão, por exemplo, um repórter, um jornal que faz críticas à escola pública, que fala que a escola pública é uma droga, que não se ensina nada. Eu fico brava porque não é essa a realidade; a gente que está dentro da escola sabe, eu sei da preocupação de todo mundo para fazer um trabalho bem feito, a preocupação com a criança. Teve um período que a gente ficou meio perdida dentro da escola, acho que quando entrou o construtivismo. Eu acho que a gente trabalha direito (Maria – diretora de escola estadual).

Os depoimentos constam dos registros de pesquisa de campo da mestranda Elisângela de F. Pedroso Braga, minha orientanda no Programa de Pós-graduação da Unimep, e referem-se às entrevistas realizadas e audiogravadas com profissionais da educação em 2009 e 2010. A transcrição preservou o modo de se expressar dos entrevistados. Os nomes são fictícios. 

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Quando Maria fala do tempo em que “a gente ficou meio perdida”, o que poderia ser apenas um desabafo ou uma confissão me parece ser muito mais que isso. Conhecer e analisar tal período, nas condições concretas de produção, torna-se uma necessidade na formação docente. Saviani (2010, p. 428) aborda a questão de maneira bastante clara. O autor discorre sobre a importância do domínio das práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula. No entanto, como dominar e apropriar-se dessas práticas se de tempos em tempos, a cada novo ministro da Educação ou a cada novo secretário, os métodos são declarados obsoletos e os professores são “cobaias da aprendizagem de novos métodos”? Que estudos são seriamente desenvolvidos nos cursos de formação de professores acerca das estratégias utilizadas em nome do desenvolvimento do país que atingem tão diretamente a educação e a escola? O segundo depoimento vem de um professor. Quando lhe é perguntado a respeito de sua concepção de escola pública, responde: A escola pública passou por muitas mudanças. Infelizmente a Secretaria da Educação é uma secretaria que eu não vejo levar a sério o seu devido papel, porque tudo é uma incerteza. As atitudes que se toma hoje amanhã não são mantidas. São muitas informações, muito imediatistas, então não é um trabalho conjunto. Tudo é para ontem, não para amanhã. Eu acho que começou com os ciclos, as nomenclaturas, depois passou para fundamental, então vieram novos métodos e depois se implantou o quê? A progressão continuada? (Paulo – professor de escola estadual).

Com palavras diferentes, com outras entonações afirmativas ou interrogativas, Paulo alega a mesma coisa: há um jogo de poder que manipula as práticas dos professores e, se eles não tiverem acesso aos estudos mais aprofundados sobre o funcionamento desse poder, como poderão enfrentá-lo? Retomo o que eu disse anteriormente, quando discuti sobre qual sociedade queremos. Novamente trago as explicações de Saviani (2010, p. 219) quanto à importância da teoria na formação de professores: “Teoria é o esforço em compreender a prática e, ao compreendê-la, tornála mais eficaz. A prática sem teoria degenera em ativismo” e

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desorienta. Não é de desorientação que falam os profissionais cujos depoimentos eu trouxe para este texto? O filósofo da educação continua alertando para o perigo de confundir teoria com verbalismo inócuo e prática com ativismo ineficaz e espontaneísta (SAVIANI, 2010). Por ocasião do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), em 2010, insisti no que tange à necessidade de estudos da Filosofia na formação de professores e assim argumentei: “Saviani, quando escreveu sobre a necessidade da Filosofia na formação dos educadores, deixou clara sua posição, que eu assumo: ‘Algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema’” (SAVIANI, 1986, p. 21). Filosofia é, fundamentalmente, uma atitude perante a realidade, uma atitude refletida: examinar, prestar atenção, analisar com cuidado. Se não basta que os formadores de professores digam em cursos e oficinas o que fazer e como fazer, o que ensinar e como ensinar, não basta também que digam que não estão ali para dar receitas ou que “os professores devem ter autonomia para tomar decisões sobre o que fazer com seus alunos”. Esses comentários calam os docentes, que continuam com suas dúvidas e necessidades. E mais, eles declaram que acabam por se envergonhar das perguntas que desejam fazer. “Para que perguntar sobre o como se a resposta é sempre essa nos cursos que fazemos?”. Mas a dúvida é “muito grande”, e ela não é nova! Corremos o risco de isolarmos as contribuições teóricas das suas consequências práticas e/ou esperarmos que toda prática seja uma aplicação automática de uma teoria. Saviani, na obra citada, faz a seguinte pergunta: “Como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prática educacional?”. O autor caminha nos ensinando por que os educadores precisam da filosofia da educação e qual o seu papel na nossa formação:

Trata-se da comunicação realizada no XV Endipe, ocorrido em Belo Horizonte, Minas Gerais, de 20 a 23 de abril de 2010: “Espera aí... Como eu vou ensinar os conteúdos para essa criança?”. 

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A filosofia da educação não terá como função fixar “a priori” princípios e objetivos para a educação; também não se reduzirá a uma teoria geral da educação enquanto sistematização dos seus resultados. Sua função será acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuição das diversas disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas. Com isso, a ação pedagógica resultará mais coerente, mais lúcida, mais justa; mais humana, enfim (SAVIANI, 1986, p. 30, grifos meus).

Os relatos a seguir também sugerem reflexões sobre a formação docente e as determinações do sistema educacional que precisam ser debatidas com base em estudos mais consistentes: Hoje, eu acho que a escola pública está fazendo o papel da família também. Antes a gente tinha a divisão: a família, a escola, a comunidade, mas hoje a escola tem que orientar os alunos, educar. Antes a educação vinha de casa (Luzia – orientadora pedagógica de escola municipal). Tem tanta coisa que vem da Secretaria da Educação que você tem que fazer com os alunos que muitas vezes a gente não concorda, mas foi determinado, né? E a gente tem que fazer. Tem tantos projetos que não foram planejados pela equipe da escola! Mas a Secretaria impõe, e você tem que trabalhar com os alunos. Tem projeto de todo tipo: “Meu corpo, minha casa”; MovPaz – que não é da escola (Sílvia – diretora de escola municipal).

Outros depoimentos vão enumerando projetos elaborados por indústrias da região (que poluem, mas propõem programas de conscientização sobre a preservação do meio ambiente) ou projetos da Secretaria da Saúde (que atendem mal a população nos postos de saúde, porém ensinam as crianças como se escovam os dentes), interrompendo constantemente as aulas.

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Desvia-se, dessa maneira, da finalidade primeira da escola: “Processo por meio do qual se constitui em cada indivíduo singular a universalidade própria do gênero humano” (SAVIANI; DUARTE, 2010, p. 431). Desejei apontar que falta densidade nos estudos da Filosofia e da Filosofia da Educação na formação docente. Não se separam, no entanto, Filosofia e História. Se o educador não for um profundo conhecer do homem, da humanidade do ser humano, em sua forma mais elevada, como poderá estar na condição de refletir sobre sua prática e tomar decisões quanto ao tipo de sociedade que deseja? Se concordamos que a escola é o lócus privilegiado de apropriação dos conhecimentos sistematizados pela humanidade, cabe a pergunta: Não é desses conhecimentos, em nível elevado, que os professores devem se apropriar? De outro modo não será possível compreender a polêmica que se instala no campo da educação sobre a inclusão social e escolar ou a igualdade étnica; em outras palavras, não será possível a universalização do conhecimento.

Subjetividade e formação docente como processos inseparáveis Com base nos pressupostos epistemológicos que assumo e que foram brevemente apontados, a formação humana, o processo pelo qual o homem passa a ser membro do gênero humano, é histórica e socialmente determinada. Qualquer impedimento para a apropriação dos bens materiais e espirituais que a humanidade acumula compromete o desenvolvimento humano – a constituição da subjetividade. A sociedade capitalista, como sociedade de classes, proclama a igualdade de todos os humanos, todavia, pela própria divisão social do trabalho, justifica a desigualdade. No campo da educação, os discursos da livre iniciativa, da meritocracia e do “aprender a aprender” necessitam urgentemente de análises críticas por parte dos professores e dos formadores de professores. Diante da questão de base da educação – que sociedade queremos? –, o desconhecimento ou o conhecimento parcelado da

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Filosofia e da Filosofia da Educação, da História e particularmente da História da Educação e das ideias pedagógicas mostra-se uma lacuna séria que compromete a formação humana do professor e os objetivos da educação e da escola. Estamos, ainda, organizados de modo a atender aos interesses da classe dominante, o que determina nossa prática pedagógica e nosso descontentamento constante como educadores. À medida que nos aprofundarmos nos estudos sobre o humano do homem, chegaremos às raízes da desigualdade e, só assim, deixaremos de ser ingênuos – teórica e praticamente. Como assegura Tonet (2010b, p. 6), “é preciso conhecer a realidade social concreta, aí implicada a história da humanidade, a forma capitalista da sociabilidade e a natureza da crise por que ela passa hoje”. Para Mészáros (2005, p. 45), as soluções no âmbito educacional não podem ser apenas formais; devem ser essenciais, ou seja, “[...] abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida”. Cair na tentação – e nós temos caído nela – de reformas ou reparos “passo a passo” não nos livra do aprisionamento no círculo vicioso protegido pela lógica do capital. A nossa formação como profissionais-professores e o desempenho de nosso “ofício” não se esgotam em um curso, em uma graduação, em uma reunião. São as situações vividas no coletivo, partilhadas com nossos pares, com nossos outros, questionadas, aceitas ou recusadas que nos forçam a, deliberada e organizadamente, promover o papel da escola como vimos defendendo.

Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992b.

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“Tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim: não, esse tipo de professor eu não quero ser” Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig Henriette Luise Steuck

Dizeres iniciais: um convite a quem nos lê “Guardamos em nós o mestre que tantos foram. Podemos modernizá-lo, mas nunca deixamos de sêlo” (ARROYO, 2000).

Iniciamos com palavras de Arroyo para suscitar a discussão que apresentamos neste artigo. Entendemos que a identidade de um professor não começa apenas nos cursos de formação; cada docente guarda em si um pouco daqueles que tiveram quando foram alunos e que atravessaram sua vida. Essa compreensão decorre de nossa ancoragem teórica nos estudos de Bakhtin (2003; 2004), pois ele apresenta o sujeito como Doutora em Linguística. Universidade Regional de Blumenau (Furb). E-mail: [email protected].  Mestre em Educação. Colégio Sinodal Doutor Blumenau. E-mail: hetty_luise@ yahoo.com.br. 

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um ser socialmente organizado e resultado de suas interações verbais com os outros que o constituem. Assim, um sujeito, para Bakhtin (2003; 2004), é sempre formado pelo outro e atravessado pelos enunciados desse outro. Portanto, um sujeito não é um Adão bíblico, dono indiscutível de seu discurso, mas tudo o que uma pessoa enuncia surge das interações com os outros. Por isso, também um professor não se forma apenas nos cursos de formação inicial e continuada em que lhe são conferidos os títulos; a sua formação social e a sua prática de sala de aula estão permeadas por discursos que circulam socialmente, desde o lugar onde nasceu, no âmbito de sua família, levando em consideração sua situação social e os outros com quem interage. Na presente pesquisa compreendemos o termo identidade conforme os estudos de Bauman (2005), Hall (2006) e Silva (2007). Para nós, a questão da identidade está também relacionada com a diferença, pois a identidade é marcada por meio da diferença. Um sujeito reconhece-se por intermédio de seu outro, mediante aquilo que o outro enuncia da pessoa que representa o eu na interação verbal. Para Bakhtin (2003), o eu só toma consciência de si quando enunciado pelo outro que o representa. Complementando tal concepção, Gee (2005) afirma que por meio dos discursos de um sujeito este passa a ser reconhecido como tendo esta ou aquela identidade. Assim, justificamos o nosso interesse em analisar os discursos dos professores em relação às suas identidades profissionais. Quando consideramos essa discussão sobre sujeito e sobre a posição social ocupada por ele em espaço de interação, as palavras de Hall (2007) aproximam-se da concepção enunciada por Bakhtin e auxiliam-nos a definir o termo identidade tal qual desejamos que ele seja entendido neste artigo: Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que

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produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posiçõesde-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (HALL, 2007, p. 112, grifos do autor).

Ainda diante do termo identidade faz-se necessário acrescentar que compreendemos a liquefação das identidades na sociedade globalizada em que vivemos. Assim, a questão do pertencimento a uma comunidade com a mesma identidade torna-se cada vez mais complexa. Dessa maneira, buscamos entender a identidade dos professores diante dos desafios de fixar identidades no mundo em que estamos vivendo. Segundo Bauman (2005, p. 17-18), [...] o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a idéia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa.

Para aprofundar mais o conceito de identidade tal qual o compreendemos no presente texto, complementamo-lo com as palavras de Furlanetto (2001, p. 18), quando argumenta que o “[...] sujeito histórico precisa de uma identidade para sobreviver, para não ser apenas um fantasma num mundo de fantasmas sociais que ninguém sabe de onde vieram”. Com base nisso, analisamos a necessidade que os sujeitos têm de, em suas respostas, apontar para a formação que os constituiu enquanto professores. Considerando o que discutimos até aqui, podemos nos aproximar mais uma vez de Bakhtin (2003; 2004), que vê o sujeito como um ser capaz de interagir por meio da linguagem e que é resultado de todo o processo de interação que o permeia, levando

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em conta a posição que ocupa sempre que enuncia alguma coisa. Isso porque “[...] aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo” (SILVA, 2007, p. 93). Em nossa pesquisa, consideramos as condições de produção dos enunciados dos sujeitos analisando o enunciador, para quem se dirige, onde e quando o faz. Contemplamos a imagem que o enunciador faz de si, do outro e do referente. A entrevistadora dos sujeitos é também a pesquisadora e era conhecida por poucos egressos. As entrevistas aconteceram na própria universidade, por sugestão dos sujeitos, que a achavam um ponto de acesso fácil para ambos. O referente era o curso pelo qual tinham passado e se formado. Lançamos olhares sobre os enunciados dos egressos de um curso de formação de professores, o curso de Letras da Universidade Regional de Blumenau (doravante Furb), localizada na cidade de Blumenau, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Além de egressos do curso, os sujeitos são também professores de Língua Portuguesa e atuavam em sala de aula no momento da coleta de dados. Os enunciados aqui analisados foram obtidos para a realização de uma pesquisa mais ampla inserida no projeto Investigação sobre o Ensino de Língua Materna: Ponte entre Formar e Ensinar. Nesse projeto desenvolveu-se o subprojeto O Ensino da Língua Materna sob o Ponto de Vista do Professor Formado pela Furb, que nos permitiu, então, chegar aos dados aqui expostos. A pesquisa surgiu com objetivos mais amplos e que abarcavam outras questões que não serão consideradas neste artigo, pois aqui se apresenta apenas uma das regularidades encontradas nos dizeres dos sujeitos. Os objetivos almejados são: compreender as identidades que se constituíram no processo entre a graduação e a atuação profissional de docentes de Língua Portuguesa e depreender a heterogeneidade constitutiva da identidade profissional dos sujeitos. Trata-se de uma investigação

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de cunho interpretativo-qualitativo com foco enunciativo que de acordo com a teoria da enunciação se baseou nos estudos do Círculo de Bakhtin, o qual auxilia a entender os enunciados dos sujeitos e seus sentidos. Aliado a isso, compreende-se esta pesquisa como uma investigação qualitativa em educação, pois as experiências de pessoas de todas as idades [...], tanto em contexto escolar como exteriores à escola, podem constituir objecto de estudo. A investigação qualitativa em educação assume muitas formas e é conduzida em múltiplos contextos [...] Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas [...]. Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos de investigação (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 16).

Definimos, em um primeiro momento, que os participantes seriam egressos dos anos de 1993 a 2003. Essa especificação decorre do fato de que a princípio buscávamos compreender os enunciados de egressos dos últimos dez anos. Com a continuidade da pesquisa, ampliamos tal comunidade, e entrevistaram-se também egressos dos anos de 2004 a 2008, haja vista em 2004 o curso ter passado por uma reforma curricular. Para localizarmos os egressos do curso fomos até a Divisão de Registros Acadêmicos (DRA) da Furb, na central de formandos, onde conseguimos os contatos. A partir daí, ligamos para os sujeitos a fim de marcarmos um encontro em que pudéssemos conversar. Os encontros aconteceram na própria universidade e, para armazenar os dados, efetuamos entrevistas não diretivas gravadas. Antes da entrevista, no entanto, cada um dos participantes preencheu uma ficha de identificação. Em seguida iniciamos a conversa por meio de um questionário base. Ressalta-se que, como se trata de uma entrevista não diretiva, as questões postas aos sujeitos apenas serviram de base e foram modificadas e/ou ampliadas de acordo com a necessidade que advinha das enunciações.

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À medida que as entrevistas foram sendo finalizadas, realizamos sua transcrição com base nas orientações de Marcuschi, para quem não existe a melhor transcrição. Todas são mais ou menos boas. O essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e não deixe de assinalar o que lhe convém. De um modo geral, a transcrição deve ser limpa e legível, sem sobrecarga de símbolos complicados (MARCUSCHI, 1986, p. 9).

Com as devidas transcrições passamos à análise dos registros coletados. Esclarece-se ainda que os sujeitos são identificados conforme o ano de saída da universidade, ou seja, o ano em que se formaram. Caso existam dois sujeitos de um mesmo ano, além do ano colocou-se também o número 1 ou 2 (como em S19972). Passemos agora para a avaliação dos dados lançando o olhar para os enunciados dos sujeitos que refletem como se deu a constituição da sua identidade profissional.

Enunciados que permitem compreensões sobre ser professor Para começar a análise, é necessário compreender em que momentos o professor se constitui como tal. Acontece que a formação inicial fica marcada pela obtenção do grau de habilitado em licenciatura, mas as marcas da profissão e a formação do profissional têm início antes de o sujeito ingressar no curso propriamente dito.

As entrevistas foram transcritas seguindo as convenções expostas por Marcuschi (1986): (+) indica marcação de micropausa; o uso do símbolo [...] significa que se está transcrevendo apenas um trecho ou cortando parte do todo; :: quer dizer prolongamento de som precedente; ‘ indica elevação média de entonação; ”corresponde a uma subida rápida (como um ponto de interrogação); / significa truncamentos bruscos, a fala é cortada; letra maiúscula demonstra ênfase; palavras em negrito indicam destaque dado pelo analista ao trecho. 

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Segundo Tardif (2002), precisamos considerar o fato de que cada um dos sujeitos que se tornam professores, antes de ingressarem nos cursos de formação, passaram mais de 16 anos em uma escola como aluno dialogando com diversos professores. Esse diálogo, conforme Bakhtin (2004), é conflituoso, e a palavra é a arena onde se confrontam os valores e as posições de cada pessoa. Assim, o diálogo e as interações estabelecidas entre os estudantes (futuros professores) e os atores educacionais contribuíram para a formação do sujeito e para a tomada de posição, concordando ou refutando as atitudes dos mais variados professores que tiveram. Em meio às situações conflituosas do espaço educacional a própria sociedade forma a sua imagem do que significa ser um professor em determinada época e em local específico. Aqui cabe retomarmos as palavras de Arroyo, quando argumenta que “educar incorpora as marcas de um ofício e de uma arte, aprendida no diálogo de gerações. O magistério incorpora perícia e saberes aprendidos pela espécie humana ao longo de sua formação” (ARROYO, 2000, p. 18). O trecho permitenos compreender que um professor se forma ao longo do tempo diante das modificações socioculturais. O professor de hoje não é o mesmo de ontem e, possivelmente, não será o mesmo de amanhã. O seu posicionamento deriva das imagens de professor que circulam na sociedade. De acordo com Bakhtin (2004), os enunciados circulam socialmente e repetem-se na voz de outros. Diante disso, podemos concluir que um professor é resultado do “diálogo de gerações”, ao considerarmos o papel e a postura do docente no passar dos tempos. Tardif (2002, p. 20) também colabora com a nossa discussão e compreensão dos aspectos da formação de professores ao enunciar que “os inúmeros trabalhos dedicados à aprendizagem do ofício de professor colocam em evidência a importância das experiências familiares e escolares anteriores à formação inicial na aquisição do saber ensinar”. Consideramos ainda que, além dos diálogos decorrentes do espaço escolar, a família auxilia na constituição da figura do professor, quando analisamos o fato

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de que a postura dos pais de uma criança diante da escola e de todos os atores educacionais contribuirá para a formação do professor enquanto futuro profissional. Analisamos ainda o fato de uma criança já ter no seu imaginário o que significa ser professor desde pequena, ao ingressar na escolinha, e representa atitudes e verbaliza enunciados típicos do espaço escolar. Os sujeitos, então, enunciam que a sua prática hoje em dia decorre de modelos de professores e métodos que puderam observar quando alunos. Examinemos o dizer que segue: S19941: Eu acho que as aulas não são muito diferentes das que eu recebi o:: P’ (+) elas continuam sendo muito aulas ainda giz né” quadro negro’ professor na frente da turma’ (+) até porque eu não acredito em coisas muito diferentes disso né”.

Compreendemos que o sujeito ressalta as práticas pedagógicas que foram utilizadas com ele enquanto aluno e cita que em seu trabalho, como professor que é, acaba ressignificando modelos que observou. Percebe-se isso quando enuncia “continuam sendo”. A junção do verbo continuar seguido do verbo ser no gerúndio aponta para o fato de que sua prática vem de outro lugar, o qual contribuiu para a formação de sua identidade como professor e que acaba produzindo novo sentido àquilo já usado em outro momento. O mesmo sujeito, ao fim de seu discurso, diz que suas aulas são assim porque ele “não acredita em coisas muito diferentes”. Portanto, o entrevistado tomou a prática de seus antigos professores como verdadeira e válida para as suas aulas, e é isso que o constituiu e o atravessou enquanto profissional, porque “as posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem as nossas identidades” (WOODWARD, 2007, p. 55). Como o sujeito revela que se identifica com as aulas que teve, ele acaba por repeti-las. No tocante à constituição de professor, S19972 reconhece quem foram seus interlocutores nesse processo educativo e destaca um deles:

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S19972: Houve alguns professores com quem eu aprendi muito e que’ por exemplo’ a Jasmim’ é alguém que eu não posso deixar de citar’ ela é um modelo pra mim’ sempre foi’ desde a graduação’ desde o primeiro semestre’ ela é um modelo pra mim de professora’ sempre’ sempre’ [...] eu me espelho em professores’ por exemplo’ a Jasmim’ em que eu penso que puxa quanto que eu aprendi com ela’ né” sem dúvida nenhuma me ajuda muito na minha prática pedagógica’.

O sujeito enuncia diretamente na sua fala quem o atravessou e até mesmo aponta o nome da pessoa que lhe serve de exemplo e em quem se espelha. A autora Authier-Revuz (1990) chama essa evidência de atravessamento do outro em minha constituição de heterogeneidade mostrada marcada, quando está explícito o local ou a pessoa que atravessou o sujeito que enuncia. S19941 também revela em quem se espelha, buscando fazer um trabalho parecido com o dessa pessoa: S19941: A aula de Língua Portuguesa com a Jasmim que sempre foi uma pessoa assim superdinâmica’ e eu aprendi muito a trabalhar o texto a partir de um semestre que eu fiz com ela’ (+) então ela trabalhava o desbloqueio’ (+) até hoje eu uso isso com os meus alunos né” (+) e:: e a gente trabalha também pelo contra né” (++) eu penso que a gente coloca às vezes’ em prática o que a gente teve e não gostou’ [...] eu tive aula com o professor Narciso e a gente achava a aula dele muito chata’ [...] ele era uma pessoa complicada de dar aula’ (+) mas pelo contra eu acabei aprendendo’.

O sujeito indica que aprendeu muito com a professora Jasmim e que ainda repete o que ela o ensinou. Logo em seguida, no entanto, diz que aprendeu a ser professor também observando pessoas com as quais não se identificou e em quem não quis se espelhar. Retomamos aqui o argumento de Bakhtin (2004), quando fala que a linguagem é conflito e que a interação entre os sujeitos Cabe citar que, sempre que os entrevistados citavam o nome de algum professor que tiveram na universidade, atribuímos a ele nomes de flores, para não comprometer o enunciador. 

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se dá por meio desse conflito. Recuperamos ainda a questão da diferença, uma vez que, segundo Woodward (2007), a identidade de um sujeito está marcada pela diferença, isso porque pela diferença se reconhece uma identidade posta. O sujeito, então, ao reconhecer a prática do professor Narciso como não sendo boa, acaba por posicionar-se para trabalhar de maneira diferente da dele. O discurso de espelhar-se na prática de um e tornar-se diferente de outro circula entre os participantes da pesquisa: S19971: Porque sempre tem aquela coisa e eu posso dizer assim que eu tive BONS professores como eu tive aquele professor que porta milagre’ mas mesmo aquele porta milagre me trouxe alguma coisa porque pra eu saber que não se dá uma aula daquele jeito (+) entendeste” (++) tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim’ não’ esse tipo de professor eu não quero ser’ entendeste” (+) então esse tipo de professor’ por exemplo’ como eu tive um professor com ficha de:: de:: de::: de matéria já amareladas que eu já dizia que não pareciam nem folhas pareciam papiros (+) aquilo serviu pra eu não fazer igual né”.

Esse sujeito reflete sobre a questão de ter alguns modelos, alguns professores em quem se espelha, mas compreende a aproximação do conceito de identidade e diferença quando revela seu posicionamento de não deixar se constituir por aqueles modelos com os quais não se identifica. Ele reconhece que foi atravessado por outros professores e outras práticas pedagógicas, todavia não cita o nome de nenhum deles nesse momento. Trata-se, assim, daquilo que Authier-Revuz (1990) denomina de heterogeneidade mostrada: o sujeito aponta os atravessamentos que sofreu, porém não marca nem evidencia os discursos que lhe formaram. Em relação à heterogeneidade dos sujeitos, deparamos com o relato de S19942, o qual se aproxima do conceito trazido por Authier-Revuz (1990) e analisamos sob a perspectiva trazida por Bakhtin, de que nenhum sujeito é um Adão bíblico (BAKHTIN, 2003), dono de todos os seus enunciados e enunciador primeiro: 

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O negrito no enunciado indica uma parte destacada pelo analista para discussão.

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S19942: É principalmente as aulas de Português com a Jasmim’ com a Dália’ com a Azaleia’ as aulas de Literatura com a::: com a professora Margarida’ as aulas de Literatura Portuguesa com a: Magnólia: sabe” e é::: e depois na pós a Tulipa era fantástica as aulas dela eram muito boas’ (+) o Lírio também foi muito bom pra mim’ (+) eu acho que tudo isso eu estou é assim com um pouquinho de cada um assim você acaba criando o seu estilo né”.

Esse sujeito, assim como o anterior, posiciona a sua formação e a sua constituição marcadamente em seu dizer citando o nome de alguns professores dos quais gostou e que auxiliaram em sua formação como professor. Chama a atenção, no entanto, o trecho final de seu enunciado: “Estou é assim com um pouquinho de cada um”. O sujeito reconhece que não atua sozinho. O professor consegue reconhecer que sua prática é permeada pelos discursos, pelas vivências, pelas experiências que ele obteve durante toda a sua vida acadêmica, repleta de diversos outros docentes que fizeram a diferença. Isso inclui tanto os aspectos positivos, como o seu modo de ensinar prazerosamente, quanto os negativos, como as formas de não atuar em sala de aula. Por outro lado, embora Bakhtin conceba que o sujeito é atravessado pelos enunciados dos outros e que esses enunciados circulam socialmente, considera-se que ele seja um ser social que possui concepções e ações individualizadas, resultado da formação por que passou por meio do relacionamento com os outros. O sujeito é resultado de todos os enunciados pelos quais foi atravessado, entretanto, distanciando-se de tais discursos, acaba ressignificando suas práticas e concebendo-as como únicas, pois cada dizer também é único e irrepetível em sua forma original e primeira: S20051: [...] Primeiro o modelo’ óbvio né” eu acho que todo mundo faz’ tipo eu sempre procurei assim ter como modelo o Alecrim e a Jasmim assim principalmente o jeito de dar aula eu procuro/ óbvio que cada pessoa tem seu jeito/ [...] eu sei né” mas eu sempre procuro lembrar assim de como que era a prática deles eu procuro seguir’ claro que eu pretendo fazer do meu estilo do meu jeito.

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S20051 enuncia a sua individualidade enquanto sujeito quando revela que, apesar de seguir alguns modelos, acaba ressignificando as práticas de professores em quem se espelha e tem a ilusão de que cria uma prática sua, individual. Assim, esse sujeito fala sobre o seu estilo próprio, único, esquecendo-se dos atravessamentos pelos quais passou, posicionando-se como dono de seus enunciados. Ainda nos interessa lançar olhares sobre as instituições e as práticas que também atravessam os professores em formação. Lembramos que a constituição da identidade dos professores começa muito antes de eles entrarem nos cursos de formação inicial; ela continua durante toda a sua atuação em sala de aula, levando em conta os cursos de formação continuada e as instituições nas quais atuam. Um dos sujeitos entrevistados discorre a respeito da escola em que leciona e aponta o fato de que é também atravessado por essa instituição: S19971: Faço minhas coisas sozinha’ (+) que como a escola não te exige determinadas coisas’ porque por exemplo (+) eu trabalhei em escola particular em que tem que ter um certo valor entendesse” então já é o tipo de avaliação que eu não gosto’ mas quando eu estou dentro de uma instituição’ não é a instituição que tem que se adequar a mim (+) eu a ela (++) mas se eu trabalho por exemplo numa escola onde eu posso decidir as coisas que eu quero’ então eu:: eu:: eu sempre dou assim ó’ uma nota pela escrita e uma nota pelo oral.

Aqui achamos interessante trazer o conceito de ideologia difundido por Bakhtin (2004). Segundo o autor, existem uma ideologia oficial e uma do cotidiano. A primeira tenta homogeneizar os sujeitos de modo que todos sigam a mesma linha de pensamento e reproduzam a prática que oficialmente se veicula para os sujeitos e que se apresenta como verdadeira e única. A segunda ideologia permite ao sujeito modificar a sua forma de pensar e agir e, por intermédio de forças centrífugas (BAKHTIN, 2004), buscar meios para não tornar seus dizeres e atitudes homogeneizados pela ideologia oficial.

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Capítulo VIII – “Tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim: não, esse tipo de professor eu não quero ser”

No enunciado de S19971, porém, compreendemos a posição dele em relação à instituição em que atua. Ele enuncia que, sempre que opta por trabalhar em uma instituição, se adapta à ideologia da escola, e não o contrário. S19971 encontrou uma escola que lhe dá autonomia para decidir sobre o seu trabalho, mas nem todas são assim. Ele é categórico quando afirma que o professor deve se adequar às normas da escola em que dá aula. Assim, as instituições escolares também são responsáveis pela constituição dos sujeitos como professores, isso porque, muitas vezes, os docentes acabam agindo de determinada maneira para não ir contra a ideologia de onde atuam. Em contrapartida, trazemos a fala de outro sujeito que revela como a instituição limita a sua prática: S19972: Na verdade’ (+) na escola em que eu trabalho hoje’ nós temo::s/ nós não temos uma autonomia muito consistente’ de alguma forma nós somos limitados pelo uso da apostila’ então a apostila é o conteúdo mínimo que tu tens que vencer’ então o que se vê’/ o que se faz é acrescentar algumas coisas a esse conteúdo da apostila’.

Também a instituição em que o professor se formou responde pela constituição desse sujeito como docente. Independentemente de o curso ter sido positivo ou negativo na vida do sujeito, a instituição atravessa e interfere na identidade profissional do professor. Isso porque a universidade possui um papel: formar profissionais habilitados para o exercício de um ofício. Assim, o resultado final é a formação: S20041: Por incrível que pareça’ (++) e::: mas assim claro a gen/ é é: (+) a Furb me formou uma profissional’.

Depreende-se do relato que a universidade possibilitou ao sujeito que se tornasse um profissional. Entendemos, então, que o papel da universidade foi cumprido. Segundo Tardif (2002), às universidades cabe a articulação dos saberes profissionais destinados à formação científica ou erudita dos professores. Trata-

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se de unir as ciências e a prática docente. Assim, conforme o que nos revela S20041, a universidade cumpriu seu papel, articulando os saberes necessários à formação do professor. Em contradição à fala de S20041, encontramos sujeitos que acreditam que o indivíduo só vai se tornar professor quando estiver atuando em sala de aula. Nessa concepção importam apenas os saberes experienciais (TARDIF, 2002) que surgem da experiência em sala de aula e das habilidades adquiridas nela. Assim, eles desconsideram os outros saberes que os atravessaram, assim como os modelos de professores que tiveram durante o processo de formação profissional, nas instituições formadoras, e o processo de constituição de suas identidades, que se iniciou muito antes do ingresso na universidade. Esses sujeitos passam a acreditar que são os próprios articuladores de suas práticas pedagógicas e donos do saber-fazer. S1999: Em termos de prática de sala de aula’ eu posso dizer que a universidade me deu alguns modelos positivos e outros negativos’ e o meu:: (+) a minha prática de sala de aula ela é construída no dia a dia’ ela está sendo construída’ eu acho que eu vou::: (++)[...] a minha prática de hoje ela é construída no dia a dia né” e eu costumo dizer’ professor não aprende a ser professor na universidade’ professor aprende a ser professor na sala de aula’ (+) a universidade ela te dá a bagagem pra você ir com um pouco mais de segurança’ mas as situações que acontecem no dia a dia são tão inesperadas’ tão inusitadas que ali no vamos ver que a gente sabe se a gente sabe fazer aquilo’. S1996: Não’ (+) não’ tu só aprende na sala de aula’ muita coisa tá faltando’ tem muita coisa que devia ser dado mais né” a minha graduação foi dado muito a questão textual sabe” mas de gramática eu senti muita falta’ contextualizar um conteúdo’ lembro bem das aulas de Literatura com o Narciso né”.

S1999 diz que a universidade lhe conferiu alguns modelos, depois denuncia que sua prática é construída no dia a dia e que o indivíduo só vai aprender a ser professor na sala de aula,

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Capítulo VIII – “Tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim: não, esse tipo de professor eu não quero ser”

assim como nos fala também o segundo sujeito. Dessa forma, o sujeito acaba tendo a ilusão de que não foi atravessado por outros discursos e que a sua prática resulta dela mesma, e não de outras que serviram como exemplo. Bakhtin (2003, p. 300), no entanto, chama-nos a atenção para o fato de que “o falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez”. Assim, embora o sujeito tenha a ilusão de que sua prática é primeira e única, Bakhtin (2003) afirma que tudo o que o sujeito diz e faz é o já-dito e passa a ser repetido.

Palavras finais: pontos de reflexão acerca do dito Retomamos, agora, os objetivos deste texto: compreender as identidades que se constituíram no processo entre a graduação e a atuação profissional de professores de Língua Portuguesa e depreender a heterogeneidade constitutiva da identidade profissional dos sujeitos. Para alcançá-los entrevistamos egressos de um curso de formação inicial de professores. Com base nos enunciados coletados pudemos analisar os atravessamentos pelos quais passaram os sujeitos até se identificarem como professores. Os enunciados permitiram-nos entender que um professor é formado por diversos saberes, por outros docentes, pela imagem que se cria dele, pelas instituições formadoras e ainda pelas instituições escolares em que atuam. Os sujeitos da presente pesquisa apontam para diversos lugares de formação e para momentos específicos de constituição de suas identidades profissionais. Foi então que compreendemos o conceito de heterogeneidade apresentado por Authier-Revuz (1990). Os sujeitos identificam, ora marcadamente ora não, as pessoas que os atravessaram e que deixaram marcas em suas práticas pedagógicas de hoje. Além do mais, analisamos a afirmação de Arroyo (2000) que inicia este texto e depreendemos que um professor se forma professor ainda antes de ingressar em um curso de licenciatura.

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Sua formação começa quando ocupa os bancos escolares como aluno, pois nesse momento toma para si bons exemplos de professores e refuta outros. Assim, consideramos os enunciados dos sujeitos sobre o aprender pelo contra. Isso nos aproximou do conceito de Bakhtin (2004) de que a linguagem é um conflito e que os sujeitos, durante a interação, estão em uma arena de sentidos e identificações. Tardif (2002) contribuiu para a nossa discussão quando elencamos a questão dos saberes. Os sujeitos revelaram que a instituição formadora cumpriu seu papel de articulação dos saberes profissionais e, de maneira positiva ou não (dependendo do olhar que se lança sobre), saíram da universidade como profissionais formados. Portanto, independentemente do que vivenciaram no curso de formação, o objetivo foi conquistado e a universidade também atravessou os sujeitos na constituição de suas identidades. Outro discurso que nos chamou a atenção foi o do silêncio. Alguns sujeitos acabaram desconsiderando os atravessamentos que sofreram durante todo o processo de formação e evidenciaram apenas os saberes experienciais, justificando que a formação do professor se dá somente em sala de aula, não antes disso. Além disso, os entrevistados enunciaram que a própria instituição educacional em que lecionam responde pela formação da sua identidade de professor. Isso em virtude do fato de que existe uma ideologia oficial permeada pela escola e/ou pelo governo que insiste em homogeneizar os sujeitos e suas práticas dentro da instituição a fim de que todos atuem da mesma forma e que correspondam aos desejos da escola em que se inserem. Muitas vezes, apesar de não acreditar naquilo que a escola veicula, o professor acaba por ser moldado pela instituição, pois precisa estar ali naquele momento por motivos diversos. Como reflexão, com base na discussão iniciada neste escrito, acreditamos ser necessário respeitar os sujeitos que ingressam em cursos de formação de professores como indivíduos que carregam uma longa memória da profissão (ARROYO, 2000).

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Capítulo VIII – “Tem uns que a gente se espelha pra fazer igual e outros a gente se espelha pra dizer assim: não, esse tipo de professor eu não quero ser”

Torna-se importante também observar os professores que atuam em cursos de formação tanto inicial quanto continuada para que sejam sujeitos que detenham saberes imprescindíveis para a formação de outros docentes. Isso porque um sempre servirá de exemplo (de espelho ou do contra) para os alunos que interagem com ele. O professor precisa considerar que as suas práticas não são somente suas, e sim resultado de interações verbais com outros sujeitos que o constituíram como tal. Contudo, como professores, devemos aceitar o fato de que somos também formadores de outros sujeitos, de outros professores. Por conta disso, temos de levar em conta nossas atitudes e enunciados diante dos estudantes.

Referências ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos, v. 19, p. 25-42. jul./dez. 1990. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vechi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Tradução de Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Portugal: Porto Editora, 1994.

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FURLANETTO, M. M. Autoria: a recusa do impossível? Linguagem em (Dis)curso, v. 1, n. 2, jan./fev. 2001. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2006. GEE, J. P. La ideología en los discursos. Madri: Ediciones Morata, 2005. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaraciara Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma questão teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

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A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva Juliano Agapito Sonia Maria Ribeiro

Introdução Pesquisadores que se dedicam a investigar o campo do trabalho e da formação de professores têm se referido de forma recorrente às novas demandas educacionais presentes nas escolas brasileiras (LIBÂNEO, 2011; DINIZ-PEREIRA; LEÃO, 2008; ARROYO, 2012). O olhar para tais demandas visa, entre outros objetivos, vislumbrar possibilidades de oferecer um ensino de qualidade a todas as pessoas, um ensino que concorra para a emancipação humana, política e social de cada sujeito. Ao relacionar as novas exigências educacionais à profissão docente, Libâneo (2011) considera que as incipientes tarefas da educação escolar assumem uma relevante importância diante das transformações do mundo atual, globalizado, no qual os alunos Mestrando em Educação. Atua na Univille. E-mail: [email protected]. Doutora em Educação. Atua na Universidade da Região de Joinville (Univille) como pró-reitora de Ensino do Departamento de Educação Física. E-mail: soniaproesa@ gmail.com.  

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

precisam estar aptos a fazer uma leitura crítica das transformações que ocorrem nas sociedades. Do mesmo modo, o autor pontua que a educação no contexto contemporâneo precisa contribuir para a consolidação de valores humanos fundamentais, como justiça, solidariedade, honestidade, respeito à vida e reconhecimento da diversidade e da diferença, compreendendo-os como suporte para a concretização de convicções efetivamente democráticas. As mudanças que perpassam a educação escolar refletem aquelas que ocorrem na sociedade, demandando novas orientações no processo de formação inicial dos professores, ou seja, nos cursos de licenciatura, no sentido de aproximar essa formação da realidade com a qual os futuros docentes vão deparar ao começarem sua trajetória profissional. Diante do contexto de mudanças que ocorrem na formação dos professores, certamente a perspectiva educacional inclusiva assume significativa relevância, por tornar premente a formação de professores sensíveis, críticos e dispostos a trabalhar com a diversidade existente no ambiente escolar, exigindo deles reflexão e adequação no modo como realiza seu trabalho. Ante as implicações decorrentes das mudanças sociais no trabalho dos docentes e em sua formação, o presente texto insere-se nessa discussão por meio das contribuições de uma pesquisa realizada para uma dissertação de mestrado, com foco na formação inicial de professores na perspectiva da educação inclusiva voltada à diversidade. O referido estudo, efetuado em sete cursos de licenciatura de uma universidade comunitária do estado de Santa Catarina, terá aqui apresentadas suas considerações referentes à formação inicial de professores, especificamente do curso de licenciatura em Educação Física. AGAPITO, J. A formação inicial de professores na perspectiva da educação inclusiva: um olhar para a diversidade. Dissertação (Mestrado em Educação)– Universidade da Região de Joinville, Joinville, 2013. Orientadora: professora Dra. Sonia Maria Ribeiro. 

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

A opção por direcionar as possibilidades de interlocução entre formação inicial de professores e educação inclusiva, com destaque para a licenciatura em Educação Física, faz-se considerável a partir do momento em que se toma essa disciplina curricular como responsável por toda uma cultura corporal de movimento trabalhada ao longo dos processos de escolarização. Conforme salienta Stigger (2005, p. 108), “[...] em vez de aceitar passivamente as práticas corporais desenvolvidas na sociedade, a educação física poderia produzir significações específicas para essas inúmeras práticas, adequando-as ao contexto escolar”. Os estudantes de licenciatura em Educação Física precisam ter ciência da contribuição que seu campo de atuação no âmbito da escola pode fornecer quando se trata de oportunizar práticas escolares que respeitem as diferenças individuais e de determinados grupos, que historicamente veem cerceado o reconhecimento de suas singularidades, em decorrência da imposição de padrões sociais que limitaram as práticas corporais aos propósitos de grupos e classes dominantes. No decorrer do texto evidenciam-se possíveis aproximações entre os princípios educacionais inclusivos e a formação inicial dos professores de Educação Física no âmbito geral da educação nacional, para posteriormente situar, nessa dinâmica de discussão, o que revelam os dados obtidos por meio da contribuição dos estudantes que participaram da pesquisa que subsidia a problematização proposta.

Educação inclusiva e formação inicial de professores Sabe-se que as iniciativas voltadas à democratização do ensino e à promoção de sistemas educativos que suplantem a dialética exclusão/inclusão não são prerrogativas dos dias atuais. A partir da década de 1990, tem se fortalecido o movimento educacional denominado inclusivo, cujo marco legitimador é a Declaração

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Mundial sobre Educação para Todos, que se configurou como um documento norteador para que diversas nações ao redor do mundo pudessem organizar seus sistemas de ensino com vistas à inclusão de todas aquelas pessoas ou grupos de pessoas que, por inúmeros motivos, não tivessem atendidos seus direitos educacionais. Em virtude desse novo modelo pelo qual se passou a estruturar a educação, a organização escolar vem sofrendo alterações no sentido de abrir-se para a diversidade, ao ter de desfocar suas ações de um padrão estabelecido de aluno para um olhar que abarque diferenças, deficiências e desigualdades no interior da escola. Apesar de tais pretensões, percebe-se que as tensões geradas entre o movimento educacional inclusivo e as lógicas normalizadoras enraizadas nas instituições escolares sinalizam para um longo caminho a ser percorrido. Segundo Dorziat (2011, p. 157): Embora a instituição Escola, pressionada em todo o mundo, tendo em vista as novas configurações de sua população-alvo, tenha passado a tratar, em termos formais, a diversidade cultural e o acesso de todos ao ensino, sua forte tradição reguladora administrativa de ritmo e modo de trabalho tem levado a uma descontinuidade entre a cultura escolar e as diferentes culturas que a frequentam, o que pode produzir dois tipos de exclusão: a mascarada, aquela que mantém os alunos na escola, mas os desconsidera de uma participação real na construção de conhecimentos; e a física, que representa a saída definitiva do sistema educativo.

 A Declaração Mundial sobre Educação para Todos, ou Declaração de Jomtien, originou-se na conferência mundial sobre o tema, em 1990, na Tailândia. O documento tornou-se um marco do movimento educacional inclusivo desencadeado nesse período. Tem como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e considera que o propósito de uma educação básica para todos, pela primeira vez na história, passaria a ser uma meta viável mediante a união de forças entre as nações.

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

A referência que Dorziat (2011) faz à formalidade que tem exigido das instituições escolares atenção ao atendimento à diversidade remete às políticas educacionais elaboradas para atender aos direcionamentos da perspectiva educacional inclusiva. Nesse processo de transformação por que passa a escola, o professor emerge como um profissional que precisa adequar-se ao novo contexto e, para tal, necessita ser formado de modo a corresponder ao que se espera de sua atuação. No tocante à formação inicial docente no Brasil, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2002) passaram a orientar a organização das estruturas curriculares dos cursos de licenciatura, possibilitando, entre outras alterações, preparar os futuros professores para o acolhimento e o trato com a diversidade, comprometidos com os valores inspiradores das sociedades democráticas e cientes do papel social que a escola desempenha, ao ser reconhecida como espaço de formação humana para um público diverso e cada vez mais exigente e consciente de seus direitos. Conforme discorre Arroyo (2007, p. 206), ao considerar a crescente politização dos movimentos de grupos sociais historicamente excluídos dos sistemas educacionais tradicionais, torna-se inevitável que [...] na especificidade da condição e da formação docente essa politização das diferenças, da diversidade e do público exigirá rever os princípios e modelos generalistas, rever as diretrizes e políticas unificadoras, os cursos e currículos niveladores, à luz do reconhecimento da diversidade como uma realidade social, histórica, cultural, a ser equacionada pedagogicamente com um olhar não mais negativo, ameaçador, mas positivo, afirmativo.

A perspectiva de reformulação dos currículos dos cursos de formação inicial de professores incide, a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2002 até o presente momento, nas diversas licenciaturas que formam docentes para a educação básica. A iniciativa leva cada curso, de acordo com as suas especificidades, a adequar a formação às demandas observadas

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

nas novas legislações educacionais, sobretudo as exigências decorrentes do movimento educacional inclusivo. Especialmente quanto ao curso de licenciatura em Educação Física, que aqui se propõe analisar, “as suas diretrizes curriculares sempre ocorreram de forma paralela aos normativos da Educação, quando comparada com as demais áreas de formação de professores” (BENITES et al., 2008, p. 354). Um marco histórico no processo de formação inicial dos profissionais dessa área foi a Resolução CFE 03/87, que estabeleceu o campo acadêmico profissional para atender às demandas tanto da área da saúde (bacharelado) quanto da educação (licenciatura). A Resolução CNE/CES 7/04, mais recente, instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais especificamente para os cursos de graduação em Educação Física, apontando e definindo características e objetivos distintos do curso em nível de bacharelado e licenciatura. A nova proposta de organização do curso tinha como propósito “tornar a prática pedagógica e os estágios curriculares mais condizentes com uma formação integrada em que o cotidiano e a produção de conhecimentos se reflitam no exercício da profissionalidade docente” (BENITES et al., 2008, p. 357). Com base no que a legislação educacional propôs às licenciaturas e, de modo mais específico, ao curso de Educação Física, considera-se que a formação inicial de professores para essa área, na atualidade, precisa promover a articulação entre os conteúdos que tradicionalmente têm trabalhado e a intenção de que se tornem acessíveis a todas as pessoas, de maneira a contemplar as diferenças socioculturais dos diversos grupos. Além disso, a disciplina precisa incorporar em suas proposições de trabalho nas escolas uma diversidade de possibilidades educativas que realmente represente a todos, e não apenas a reprodução de uma cultura dominante e elitizada.

A formação inicial em Educação Física e a perspectiva educacional inclusiva Apesar de disseminadas as possibilidades de intervenção pedagógica das quais a disciplina de Educação Física dispõe no

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

espaço que ocupa na educação básica, sabe-se que determinados conteúdos curriculares dessa área, como o esporte educacional, por exemplo, em vez de se consolidarem como práticas voltadas à formação e educação do aluno, por promover o desenvolvimento de sua consciência corporal por meio da criatividade e da livre expressão, acabam se firmando como práticas baseadas em repetições irrefletidas de movimentos técnicos e formais, decorrentes de meras reproduções dos esportes de alto rendimento (RIBEIRO, 2009), tão característicos da dominação e elitização social. No que se refere às características que marcaram a trajetória da Educação Física no contexto das escolas brasileiras e particularmente ao modo como o esporte educacional ocupou um espaço significativo na disciplina, “é necessário rever esta prática no espaço escolar, onde os propósitos de sua aplicação deveriam basear-se no princípio da democratização e objetivar a formação do cidadão crítico acerca do contexto social onde vive” (RIBEIRO, 2009, p. 40). Para que os futuros professores de Educação Física comecem sua experiência profissional cientes das alternativas de que dispõem para aproximar a oferta dessa disciplina dos pressupostos de uma educação para todos, atenta à diversidade humana e que valorize as singularidades de indivíduos e grupos sociais, torna-se imprescindível que a formação inicial se configure como um decisivo momento no desenvolvimento profissional docente, possibilitando que os professores saiam preparados não apenas para saber lidar com as diferenças presentes na escola, mas conscientes do que é ser professor em tempos de educação para todos. Assim, [...] o ensino da educação física escolar diante do paradigma da educação inclusiva passa por um período de redimensionamento, devendo-se investir em novos tratamentos para o conteúdo e a abordagem pedagógica, sejam eles jogos, esportes, ginástica ou dança. Do mesmo modo, é necessário que os cursos de formação inicial, desenvolvidos pelas universidades, capacitem os professores a lidar com as especificidades que permeiam esse modelo de ensino (RIBEIRO, 2009, p. 65-66).

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Atentos à necessidade de avanços nos cursos de licenciatura em Educação Física, pesquisadores analisam como tem se dado essa formação e propõem possibilidades para a reformulação dos cursos. No balanço das produções realizado para fundamentar as discussões da dissertação que norteia o presente texto, foram identificadas teses e dissertações (CONCEIÇÃO, 2006; GOMES, 2007; SILVA, 2008; FONSECA, 2009) que conseguiram articular os três vértices temáticos aqui discutidos: educação inclusiva, formação inicial docente e licenciatura em Educação Física. Os trabalhos destacam-se por terem “ouvido” os estudantes das licenciaturas para formular as considerações de seus estudos. As referidas pesquisas colaboram com essa tríade temática ao sinalizarem lacunas evidenciadas em seus estudos, permitindo que os envolvidos com a discussão encontrem subsídios para sugerir mudanças de reformulação e adequação dos cursos. Na análise da contribuição do ensino crítico reflexivo na formação inicial de professores de Educação Física, em relação à inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais em classes comuns do ensino regular, Conceição (2006) acredita que o professor de Educação Física, muitas vezes considerado marginalizado e marginalizador da educação, por ser visto como um profissional que se apropria da reprodução de conhecimentos práticos em detrimento dos aspectos educacionais intelectuais, precisa de um ambiente de formação reflexivo, que contribua para sua autoformação e permita o aprofundamento dos conceitos sobre os quais tem de apreender e trabalhar nas escolas. Para o autor, [...] pode-se concluir que a Educação Física inclusiva, é nada mais que a descoberta de outras possibilidades e fugir das convenções sociais, observando o mundo através da crítica que emancipa o professor sob um olhar reflexivo. Emancipação, que liberta o docente das coerções sociais e o remete a autonomia de buscar no seu cotidiano a ressignificação das suas ações. As coerções que se está falando, são providas de uma formação ultrapassada e voltada ao conhecimento

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

técnico racional, limitador da criatividade e organizador de um mundo de coisas que impedem a visão profunda sobre os acontecimentos (CONCEIÇÃO, 2006, p. 68).

Também debruçada sobre a formação inicial de professores de Educação Física com vistas à constituição de uma identidade docente inclusiva, Silva (2008) sugere, ao elaborar sua tese, relacionar o incentivo à criatividade e à solução de problemas com a criação de alternativas práticas de promoção da inclusão nas aulas de Educação Física por parte dos futuros professores. A autora conclui destacando que o atendimento à diversidade, no campo da Educação Física escolar, demanda uma formação inicial que privilegie, na formação ampliada, um debate contextualizado e consistente quanto à relação ser humano-sociedade e, na formação específica, “políticas e práticas que incentivem a criação de estratégias, por parte dos futuros docentes, para atender à diversidade” (SILVA, 2008, p. 337). Outra problematização proposta para a temática foi realizada por Fonseca (2009), que investigou a formação dos licenciandos do curso de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com relação à inclusão em educação. A pesquisa teve como referencial de análise e discussão a estrutura conceitual sobre inclusão, compreendida nas dimensões da criação de culturas, do desenvolvimento de políticas e da orquestração de práticas inclusivas. Com base na pesquisa exploratória feita, a autora identificou certas nuanças relatadas por outras pesquisas no âmbito da formação de professores para a educação inclusiva, como a forte relação que os estudantes estabelecem entre a perspectiva educacional inclusiva e os processos de escolarização de alunos com deficiência. Tal constatação gera questionamentos quanto ao modo como a temática da inclusão vem sendo trabalhada nos cursos de formação inicial, uma vez que parte dos estudantes tem constituído concepções de educação inclusiva restritas à inserção de pessoas com deficiência no ensino regular. Outro fator relevante destacado por Fonseca (2009), e que aparece de modo recorrente em pesquisas com o mesmo foco,

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é o fato de a temática da educação inclusiva, tanto para os futuros professores de Educação Física quanto para de outras licenciaturas, ficar restrita às disciplinas específicas que tratam da inclusão e/ou da educação especial, negligenciando a necessidade da transversalidade dessa abordagem nas demais disciplinas dos cursos, sejam elas ditas pedagógicas ou exclusivas de cada área do conhecimento. Ainda em suas conclusões, a autora traz à tona a histórica dissociação teoria e prática que permeia os cursos de Educação Física e que, no tocante à abordagem da educação inclusiva, também pode ser identificada. Ao averiguar as contribuições da disciplina Educação Física Especial nos cursos de Educação Física de instituições de ensino superior públicas no estado do Paraná, Gomes (2007) na conclusão de sua análise identificou barreiras, já mencionadas aqui, como o modo isolado no qual a disciplina e a temática se encontram nas matrizes curriculares dos cursos. Sobre a possível transversalidade da perspectiva educacional inclusiva entre as diversas disciplinas oferecidas na formação inicial dos professores, Gomes (2007, p. 177) considera que “a maneira mais adequada de se discutir as questões relacionadas às pessoas com necessidades especiais é estruturando uma grade curricular onde todas as disciplinas contemplem esse assunto em suas ementas”. Ainda com enfoque na disciplina investigada, Gomes (2007) levanta a indispensabilidade de atividades práticas ao longo das disciplinas, seja propiciando o contato com a realidade da diversidade nas escolas, ou mesmo mediante a relação com profissionais que desempenham essa aproximação em contextos reais de inclusão escolar. Na conclusão de sua pesquisa, o autor destaca o modo favorável como os futuros professores de Educação Física que participaram de seu trabalho se posicionam acerca do movimento educacional inclusivo, mas pensa que eles não estejam aptos para a prática. Perante as contribuições dos estudos relatados, evidenciamse os propósitos pelos quais se desenvolveu a pesquisa que instigou a produção do presente texto e que deste ponto em diante terá parte de suas considerações apresentadas. Acredita-se que os estudos de realidades locais de formação inicial de professores

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

com vistas à apropriação dos princípios educacionais inclusivos podem colaborar com a reflexão, reavaliação e reformulação das políticas de formação inicial de professores.

A formação inicial em Educação Física e a diversidade: o que pensam os licenciandos O estudo relatado configura-se como uma pesquisa do tipo survey, realizada com alunos de sete licenciaturas de uma universidade comunitária do estado de Santa Catarina. Para aproximar os resultados obtidos com a temática em discussão, são consideradas as contribuições de 43 estudantes do último ano do curso de licenciatura em Educação Física da instituição, distribuídos em duas turmas, uma no período matutino e outra no noturno. A participação desse grupo de sujeitos deu-se por meio de respostas a um questionário estruturado com 24 questões, sendo 20 fechadas e quatro abertas. Dos participantes, 24 são do gênero feminino, e 19, do masculino, com média de idade equivalente a 24,1 anos. Todos eles cursavam sua primeira graduação, e aqueles que relataram já ter certa experiência profissional na docência (63%) atingiram a média de 16 meses de experiência. Cabe destacar que, mesmo cursando a modalidade de licenciatura do curso de Educação Física, quatro estudantes indicaram que não pretendem atuar como professores depois de formados. Ante as inúmeras possibilidades que a contribuição desses acadêmicos pode trazer para o objeto em discussão, podem ser destacadas algumas que coadunam com o que outros pesquisadores evidenciaram em seus estudos. A concepção que os futuros professores possuem acerca da educação inclusiva certamente pode inferir em compreensões sobre como os cursos abordaram a temática e o quanto colaboraram para levar os licenciandos a entender o que vem a ser esse novo modelo educacional. Ao explanarem sua compreensão a respeito de educação inclusiva, exatamente 50% dos respondentes fizeram referência

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

à educação voltada ao atendimento escolar de qualidade para todas as pessoas. Em contrapartida, os outros 50% atrelaram suas concepções à inclusão de grupos específicos de sujeitos, seja de pessoas com deficiência ou com necessidades especiais, nos sistemas regulares de ensino. Quanto ao fato de considerar as políticas de inclusão escolar como prerrogativas da educação especial, Bueno (2008) alerta para a sua recorrência e para a necessidade de os estudiosos, tanto da educação especial quanto do movimento educacional inclusivo, não permitirem que tal associação se dissemine, [...] pois, se assim for, ela [a inclusão escolar] estará fadada ao insucesso, já que as diferentes expressões do fracasso escolar têm se abatido sobre os deserdados sociais, criados por políticas econômicas e sociais altamente injustas, sejam eles deficientes, com distúrbios ou “normais” (BUENO, 2008, p. 60).

Considera-se primordial que a formação inicial do professor de Educação Física leve os futuros profissionais a compreender que a perspectiva educacional inclusiva não pode ser reduzida à inclusão de pessoas com deficiência. Na verdade, trata-se de um modelo educacional que visa à atenção à diversidade humana e às diferenças e desigualdades historicamente negligenciadas nos processos de escolarização. A relação entre diversidade e educação inclusiva, embora reconhecida pela maioria dos estudantes (89%), não se evidenciou no momento em que tiveram a possibilidade de nominar, entre 12 grupos de sujeitos distintos, quais deles mereceriam atenção de uma educação inclusiva. Entre as possibilidades, que simbolizavam a diversidade ora discutida, mais uma vez ficou marcada a relação das pessoas com deficiência como eixo central das discussões voltadas à inclusão escolar, como se verifica no gráfico 1, em que se observa quantos acadêmicos consideraram cada grupo de sujeitos como público-alvo da educação inclusiva.

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

Gráfico 1 – Sujeitos a serem abarcados por uma perspectiva educacional inclusiva na concepção dos acadêmicos

Fonte: Dados da pesquisa de campo

Para os estudantes, mesmo aqueles que indicaram a diversidade como foco central da educação inclusiva, nem todos os sujeitos elencados na questão foram considerados pertencentes à diversidade. Notadamente as pessoas com deficiência apareceram de maneira mais recorrente nas respostas (37 vezes), seguidas pelas pessoas com dificuldades de aprendizagem (34 vezes). Grupos que têm relação direta com as variações dos estudos de diversidade, como indígenas e negros (diversidade étnico-racial), meninos e meninas (diversidade de gênero), homossexuais (diversidade sexual), pessoas em condição de pobreza e risco social (desigualdade social), entre outros, deixaram de ser considerados público-alvo de uma perspectiva educacional inclusiva por boa parte dos entrevistados, como os números mostrados no gráfico 1 demonstram. O entendimento que os acadêmicos do referido curso de licenciatura expressam sobre educação inclusiva, sua relação com a diversidade e a compreensão que têm desta instigam que se problematize a organização curricular que conduziu sua formação, haja vista que 91% acreditam que a matriz curricular do curso atingiu apenas de modo parcial as necessidades formativas para atuação em contextos educacionais inclusivos. No tocante à análise da estrutura do curso, nota-se que três disciplinas, ao longo da formação, foram voltadas especificamente aos processos

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

educacionais inclusivos, a saber: Diversidade e Educação Inclusiva (3.° ano), Atividade Motora Adaptada (4.° ano) e Libras – Códigos de Comunicação (4.° ano). Conforme se depreende das diretrizes curriculares em vigor que norteiam a organização curricular dos cursos de licenciatura, fica evidente que o curso cumpre com as exigências legais de abordagem da temática, contudo resta saber o modo como tais disciplinas são conduzidas, quais contribuições têm trazido aos estudantes e, principalmente, se as discussões em torno da educação inclusiva ficam restritas a tais disciplinas ou ocorrem de modo transversal nos demais momentos do curso. Cabe ainda ressaltar que as três disciplinas específicas são oferecidas ao final da graduação, o que pode trazer dificuldades para os estudantes vivenciarem a formação com o devido tempo e atenção às questões voltadas para a educação inclusiva. Como pontua Gomes (2007, p. 177) ao concluir sua pesquisa, [...] atualmente esta questão só é discutida com os acadêmicos quando estes cursam a disciplina, e como vimos, muitas vezes, ela só aparece no final do curso. Sabemos que esta prática faz com que os acadêmicos não tenham elementos suficientes para questionar os professores das outras disciplinas do curso sobre questões pertinentes à área, o que reflete, no nosso entender, em sua formação profissional.

Para além da importância das disciplinas nos cursos de formação inicial, entendem-se os momentos de estágio curricular supervisionado como determinantes na preparação dos futuros professores. Para 51% dos participantes da pesquisa, não houve relação adequada entre teoria e prática da educação inclusiva durante o curso. Essa preocupação pode ser confirmada quando 30% deles relataram não ter tido, por exemplo, a possibilidade de atuar com alunos com deficiência durante o estágio, um fator que gera insegurança para o início profissional dos futuros docentes, tendo em vista o trabalho com alunos com deficiência ser promotor de grande ansiedade para boa parte dos professores.

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

As questões referentes ao estágio nos cursos de formação de professores têm sido alvo de muitas discussões. Alerta Barreto (2011, p. 273-274): A concepção fragmentada da formação – em que a sala de aula é o espaço para a teoria e o campo profissional é o espaço para a prática – é uma das responsáveis pela efetiva desarticulação desses elementos, contribuindo para que a preocupação principal na realização do estágio curricular se concentre nos seus aspectos burocráticos. [...] Assim, o estágio deve ser caracterizado por uma relação ensino-aprendizagem mediada pela ação do professor/formador, entre o aluno estagiário e um profissional reconhecido, em unidades escolares dos sistemas de ensino.

Uma concepção de estágio na qual se rompe com a dicotomia teoria/prática, tão evidente na formação inicial de professores e por vezes potencializada nos cursos de Educação Física (essa mesma dicotomia é encontrada nos conteúdos da própria disciplina), se faz ainda mais pertinente quando se coloca em debate a vivência dos futuros professores em contextos educacionais inclusivos, em que deveria se assegurar o contato dos estudantes com toda a diversidade de sujeitos que compõem hoje o alunado da educação básica brasileira. Com a ciência de que muito ainda deve ser discutido no âmbito da formação inicial dos professores para atuar em uma educação física inclusiva, encaminha-se para as possíveis considerações que a pesquisa aqui relatada e as contribuições dos teóricos convidados ao diálogo permitem que sejam elencadas.

Possíveis considerações Com o advento das novas exigências colocadas aos sistemas de ensino, decorrentes de uma organização social que se caracterizou historicamente por negligenciar processos de escolarização de qualidade para todas as pessoas, os cursos de formação inicial de professores precisam rever sua estrutura de

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

organização, com o intuito de formar profissionais conscientes da necessidade de permitir que todos os seus alunos tenham acesso aos bens culturais e intelectuais produzidos pelas sociedades humanas ao longo do tempo. Nesse contexto, aos cursos de licenciatura em Educação Física cabe preparar seus futuros professores para lidar com a diversidade humana em ambientes educacionais inclusivos, em que diferenças e desigualdades devem ser consideradas ao trabalhar corpo e movimento em um viés pedagógico e social que valorize as produções culturais e não se submeta às reproduções de caráter elitista de culturas dominantes. Os dados do estudo local realizado, bem como as demais pesquisas destacadas, indicam que os cursos de licenciatura em Educação Física têm se adequado à legislação que prevê a formação de docentes aptos a ingressar em sistemas educacionais inclusivos. Contudo a contribuição dos estudantes revela lacunas na organização da formação e imprecisões conceituais desencadeadas por tensões que envolvem as políticas educacionais inclusivas e a realidade das práticas encontradas nos cursos de formação docente e nas escolas de educação básica. Da interlocução proposta nesta discussão entre formação inicial docente, educação inclusiva e a especificidade da licenciatura em Educação Física, despontam inúmeras e urgentes possibilidades de investigação e discussão, tendo em vista que não se consideram mais retrocessos no que diz respeito à consolidação de sistemas educativos que promovam mecanismos para a escolarização de todas as pessoas, com qualidade e conduzida por professores formados na/para a diversidade.

Referências ARROYO, M. G. Condição docente, trabalho e formação. In: SOUZA, J. V. (Org.). Formação de professores para a educação básica: 10 anos de LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 191-209. ______. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.

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Capítulo IX – A formação inicial do professor de Educação Física na perspectiva da educação inclusiva

BARRETO, M. A. S. C. Estágio e pesquisa: uma contribuição à formação inicial de professores de educação especial. In: JESUS, D. M. de et al. (Orgs.). Inclusão, práticas pedagógicas e trajetórias de pesquisa. 3. ed. Porto Alegre: Mediação, 2011. p. 271-280. BENITES, L. C. et al. O processo de constituição histórica das diretrizes curriculares na formação de professores de Educação Física. Educação e Pesquisa, v. 34, n. 2, p. 343-360, maio/ago. 2008. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n.° 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Brasília, 2002. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2013. BUENO, J. G. S. As políticas de inclusão escolar: uma prerrogativa da educação especial? In: ______ et al. (Orgs.). Deficiência e escolarização: novas perspectivas de análise. Araraquara: Junqueira&Marin, 2008. p. 43-63. CONCEIÇÃO, V. J. S. da. Formação inicial: uma experiência crítico-reflexiva no desenvolvimento da educação física inclusiva. 81 f. Dissertação (Mestrado em Educação)–Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2006. DINIZ-PEREIRA, J. E.; LEÃO, G. (Orgs.). Quando a diversidade interroga a formação docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. DORZIAT, A. A formação de professores e a educação inclusiva: desafios contemporâneos. In: CAIADO, K. R. M. et al. (Orgs.). Professores e educação especial: formação em foco. Porto Alegre: Mediação, 2011. p. 147-159. FONSECA, M. P. de S. da. Inclusão: culturas, políticas e práticas na formação de professores em Educação Física da UFRJ. 262 f. Dissertação (Mestrado em Educação)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

GOMES, N. M. Análise da disciplina de Educação Física Especial nas instituições de ensino superior públicas do estado do Paraná. 198 f. Tese (Doutorado em Educação Física)–Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. LIBÂNEO, J. C. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011. RIBEIRO, S. M. O esporte adaptado e a inclusão de alunos com deficiências nas aulas de Educação Física. 169 f. Tese (Doutorado em Educação)–Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2009. SILVA, K. R. X. da. Criatividade e inclusão na formação de professores: representações e práticas sociais. 422 f. Tese (Doutorado em Educação)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. STIGGER, M. P. Educação física, esporte e diversidade. Campinas: Autores Associados, 2005.

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Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores Ivanilde Apoluceno de Oliveira Tânia Regina Lobato dos Santos

Introdução A política de educação inclusiva está presente nas escolas, e os educadores destacam a necessidade da formação inicial e continuada dos docentes. Para que o professor da rede regular de ensino que atua na sala comum possa trabalhar pedagogicamente com crianças com necessidades educacionais especiais, é preciso que ele tenha em sua formação profissional acesso à situação Pós-doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação e coordenadora do Núcleo de Educação Popular (NEP) Paulo Freire da Universidade do Estado do Pará (Uepa).  Pós-doutora em Educação pela PUC-Rio, doutora em Educação: História, Política e Sociedade pela PUC-SP. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação e do NEP Paulo Freire da Uepa.  Utilizamos o termo necessidades educacionais especiais para todas as pessoas que requerem atendimento educacional especializado, incluindo as surdas, cegas, com comprometimento físico e mental, transtorno global no desenvolvimento e com superdotação, considerando que o termo deficiência denota caráter negativo por expressar o significado de carência, falta, imperfeição, defeito, insuficiência. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

social e educacional desses estudantes. O fato de os professores não terem preparação para receber o aluno com necessidade educacional especial em sua sala é causa de medo e insegurança sobre o que fazer em sua prática pedagógica. Entretanto, além da formação geral dos professores, a formação especializada continua sendo indispensável. O educador especial precisa avançar no ensino, nos estudos, nas pesquisas, nas experiências pedagógicas que envolvem as pessoas com necessidades educacionais especiais. O educador precisa dessa formação para atuar nas salas de recursos multifuncionais e promover atendimento educacional especializado. Para Bueno (1999, p. 18-19): Se a perspectiva da inclusão dessas crianças implica, portanto, a preparação do professor da classe regular, ainda por muito tempo permanecerá a necessidade do concurso conjunto de professores especializados. Mesmo, e se, os sistemas de ensino tiverem atingido níveis elevados de qualidade e de preparação de professores do ensino regular para absorção de crianças com necessidades educativas especiais, haverá necessidades de educadores especiais, que deverão se responsabilizar pela formação dos primeiros.

Atualmente, com a maioria das licenciaturas formando professores para ministrar aulas no ensino comum, com base em duas ou três disciplinas da educação especial, levantamse as seguintes questões: Quem está formando o especialista da educação especial para realizar o atendimento educacional especializado? A formação do educador especializado na formação inicial está sendo preponderante nos cursos de especialização e na formação continuada por parte das redes de ensino? Como está sendo efetivada a formação continuada nas redes públicas de ensino? Tais formações atendem às especificidades do trabalho pedagógico feito pelos professores nas salas de recursos multifuncionais?

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

Passa a ser importante um olhar para essas e outras questões problematizadas pelos docentes, quando se pensa em educação inclusiva nas escolas. Conforme Pimenta (2008), as recentes pesquisas sobre a formação de professores demonstram que a prática da formação inicial desenvolvida com um currículo formal distanciado da realidade das escolas e muitas vezes das necessidades dos professores, que não leva em conta as práticas docentes, ou as organizações escolares, tem colocado em pauta a formação inicial e continuada desses profissionais. Na compreensão de Freitas (2007), Pimenta (2008) e Tardif (2010), a formação continuada pode promover a reflexão da prática e o aprofundamento teórico-metodológico do professor e a troca de experiências entre os pares, de modo a minimizar a possível lacuna deixada pela formação inicial em relação à matéria específica da educação especial. Nesse sentido, a formação continuada deve ser amplamente discutida em todos os espaços formativos para que sejam introduzidas propostas que se baseiem no interesse dos professores e que consigam articular os conhecimentos adquiridos tanto na formação inicial como na continuada. No presente artigo tomamos por base uma pesquisa feita em 20 escolas (uma estadual e 19 municipais) distribuídas em oito municípios do estado do Pará: Belém, Ananindeua, Marituba, Tucuruí, Altamira, Barcarena, Santarém e Marabá. Como objetivo pretende-se analisar como se desenvolvem as práticas de escolarização inclusiva e o atendimento especializado em escolas da rede pública de Belém. A investigação envolveu 83 sujeitos, sendo 45 professores de salas de recursos multifuncionais (SRM), 27 professores de salas comuns (SC), um professor itinerante, três alunos surdos, um diretor de escola, dois coordenadores pedagógicos, três diretores do Departamento de Educação Especial e um assessor do Departamento de Educação Especial. Teve como procedimentos Pesquisa financiada pelo Programa de Apoio à Educação Especial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Proesp-Capes), concluída em 2012. 4

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

metodológicos: revisão bibliográfica de autores que tratam sobre o tema em estudo e entrevista semiestruturada, com roteiro básico. Os dados coletados foram interpretados e analisados por meio de técnicas da análise de conteúdo de Bardin (2002). A investigação seguiu os princípios éticos estabelecidos na Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996). Os integrantes da pesquisa tiveram ciência do conteúdo do estudo e suas identidades foram preservadas por meio da utilização de nomes fictícios. Este artigo expõe resultados obtidos em três escolas de Belém, duas da rede municipal (EM1 e EM2) e uma da estadual (EE1), envolvendo 11 professores, quatro de SC e sete de SRM, sendo dez do sexo feminino e um do masculino, este vinculado à SRM da rede estadual de ensino. O foco de debate são a formação continuada de professores e o processo de inclusão escolar.

Formação continuada e processo de inclusão escolar: o que pensam os professores Os professores entrevistados das SRM da EE1 ressaltaram que a educação inclusiva trouxe novas demandas em termos de formação profissional, entre as quais o autismo. Eles apenas atendiam alunos surdos e, quando receberam alunos autistas, não se sentiram aptos para realizar atendimento educacional especializado nas SRM, pela falta de conhecimento, de formação. Pietro (2007) destaca que a formação de professores para a educação inclusiva pressupõe a “indissociação teórico-prática”. Faz-se imprescindível criar condições que atendam à diversidade dos alunos com necessidades especiais, e os docentes precisam estar qualificados para o trabalho pedagógico em várias situações que requerem a educação especial. Dessa forma, os entrevistados, por só conhecerem o trabalho com surdos, estão buscando se qualificar para o trabalho 

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As falas serão transcritas literalmente conforme ditas pelos participantes.

Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

pedagógico nas SRM. Para tal, participam de palestras sobre o método braille e autismo e estão cursando especialização para conhecer outras necessidades educacionais especiais. As professoras entrevistadas da EM1 chamaram atenção para o fato de que a formação inicial voltada para a educação especial ainda se mostra frágil, apesar da introdução de disciplinas específicas nos cursos da área de educação e mais especificamente na Pedagogia. Estas não vêm dando conta da diversidade de informações e conhecimentos da área na perspectiva da inclusão escolar e social. O profissional que se volta para a educação especial precisa de uma formação em processo que ajude o seu ingresso e a permanência na ação docente na perspectiva da inclusão. Há, portanto, a necessidade da formação continuada na perspectiva de atender as suas demandas formativas em função de um conhecimento que é diverso, dinâmico e específico. Os docentes entrevistados das EE1 e EM2 problematizaram ainda a pouca formação continuada específica, já que as formações ofertadas pelas instituições estão direcionadas para os docentes da sala comum e para uma formação em caráter global. Carvalho (1997) considera que dois dos maiores desafios da escola inclusiva são transformar a prática docente e dotar a escola com uma nova pedagogia capaz de educar todas as crianças, tendo como princípio a educação inclusiva para a diversidade. A própria diversidade do cotidiano escolar faz com que os professores busquem diferentes estratégias para favorecer o aprendizado dos estudantes. Já as professoras entrevistadas da EM1 participam semanalmente no Centro de Atendimento de Educação Especializado (CAEE) de formações direcionadas à educação especial, em virtude de essa necessidade ser premente, pois algumas situações vivenciadas na escola, como dificuldade em relação à aprendizagem dos alunos, constantes faltas dessas crianças e adolescentes nas atividades escolares, diversidades

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

de deficiências, entre outras, exigem de tais profissionais novos conhecimentos e novas metodologias de trabalho na perspectiva da inclusão. Em relação à formação recebida no Centro de Referência da Secretaria Municipal de Belém, a professora Vera (SRMEM1) explica que o local proporciona formação para “todas as deficiências: a intelectual, a física, a baixa visão”. Conforme a fala das professoras Vera e Taís (ambas da EM1), no interior das redes as formações ainda são realizadas por palestras, com temas pontuais, que em geral não garantem respostas imediatas à realidade vivenciada: “Porque foram palestras que foram dadas, foram trabalhadas palestras do autismo, palestras de hiperatividade; essa última sexta-feira agora a temática foi surdez” (Taís – SRM-EM1). Na EM1 as professoras informaram que houve consulta sobre o conteúdo do trabalho formativo a ser feito. A professora Vera (EM1) destaca que “há o levantamento das prioridades, mas até o que não é prioridade é trabalhado lá no CAEE também”. Diferentemente das docentes da EM1, Paula informou que “nas formações que a gente participa não é a gente que planeja, quando a gente chega lá o tema é dado por eles. Porque nem tudo que é sugerido lá a gente trabalha, a gente se adequa” (Paula – SC-EM2). Pietro (2007) salienta que a formação de professores deve basear-se nas necessidades deles e atender aos propósitos estabelecidos pelos sistemas de ensino. O lócus das ações formativas, em geral, para as professoras da EM1 é o CAEE, mas outros espaços também se constituem ambientes formadores. A professora Vera (SRM-Em1) ressalta que “nós tivemos também no Álvares de Azevedo,

A Unidade Técnica José Álvares de Azevedo é especializada na educação de pessoas cegas e regida técnica e administrativamente pela Coordenação de Educação Especial (Coees), vinculada à Secretaria Executiva de Educação, tendo o governo do estado do Pará como órgão mantenedor. 

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

no Felipe Smaldone, em vários espaços, a gente foi para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais [Apae]. A gente consegue essas formações em outros espaços também!”. Já a professora Taís (SRM-EM1) enfatiza que “nós participamos lá no Centro Integrado de Inclusão e Cidadania [CIIC], ali na Almirante Barroso em frente do Hospital Adventista. Participamos também na Universidade do Estado do Pará [Uepa]”. Constata-se que as formações são realizadas semanalmente no âmbito do CAEE e existe a prevalência da modalidade de palestras em diferentes lugares. As formações de que a professora Paula (SC-EM2) participou aconteceram em diversos lugares, na Escola Rui Brito e em um centro de formação da Secretaria Municipal de Educação (Semec), localizado na Vila Leopoldina. Mantoan (2003, p. 81) critica a oferta de cursos pontuais e afiança: “Ensinar, na perspectiva inclusiva, significa ressignificar o papel do professor, da escola, da Educação e de práticas pedagógicas que são usuais no contexto excludente de nosso ensino, em todos os níveis”. As formações continuadas do CAEE para a inclusão, conforme as professoras entrevistadas, colaboram para as suas práticas. Para a professora Vera (SRM-EM1), “contribui 100% sempre, porque sempre você tem um conhecimento novo, você tira uma dúvida. Enriquece 100% cada formação que a gente faz, enriquece 100% a nossa formação pedagógica”. Ela informa: Sempre há uma mudança, se você ver que outrora você fazia uma coisa que não estava muito boa e aprende uma outra forma de trabalhar onde a criança vai ter um desenvolvimento O Instituto Felipe Smaldone é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, especializada na educação de crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 18 anos com surdez, oriundos dos vários bairros da cidade, distritos e municípios do estado do Pará. A sua renda advém de doações de terceiros e convênios com órgãos públicos: Secretaria de Estado da Educação (Seduc) e Secretaria de Estado de Saúde Púbica (Sespa), para cessão de funcionários, e Fundação Papa João XXIII (Funpapa), para repasse de recursos do Fundo Nacional de Assistência Social, especificamente usado na reabilitação da linguagem. 

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

melhor, você vai ter essa mudança [...]. Olha, eu me sinto bem contemplada, por que eu faço a pós-graduação em educação especializada e temos as formações às sexta-feiras do prático ao teórico. Então, eu me sinto bem contemplada sim na minha atuação profissional (Vera – SRM-EM1).

Já Taís salienta que, por trabalhar com alunos surdos, precisa de formação específica quanto à surdez: Olha, eu gosto... Estou me identificando muito com os cursos de surdez, eu gosto muito. Apesar de ter tido outros tipos de cursos em que é necessário para minha formação enquanto professora de sala de recurso, mas a surdez tem me agradado muito. Agora por que a surdez? Nós atendemos [...] quatro crianças surdas, então eu vejo a necessidade da gente nessa formação mais específica na surdez (Taís – SRM-EM1).

Há também demanda para a formação especializada, para o atendimento a uma modalidade específica de necessidade educacional especial nem sempre lembrada. Vejamos o que expressa a professora Joana (EM2) sobre o assunto: Já corri atrás por conta própria [...] porque eu sempre me identifiquei, trabalhei com isso, tu estás me entendendo? Fiz curso de Libras [língua brasileira de sinais] [...]. Mas tem situações que a gente se vê em apuros, como é que eu vou trabalhar? Eu fico me interrogando (Joana – SC-EM2).

A professora Paula (EM2) considera que a formação continuada “é mais uma forma de você estar em constante [formação], reciclando, não deixando perder de vista pontos comuns da tua prática, são trocas de experiências, de saberes. Estar renovando é muito válido”. Quanto às contribuições dessas formações para a sua prática docente, Paula (SC-EM2) afirmou: Olha, a contribuição deles lá para as crianças ditas normais dá certo, mas para as crianças da inclusão não, porque não vem assim nada específico para elas, já é muito complicado o que elas colocam, a gente que já pega para as crianças não ficarem de fora e faz uma adaptação para elas.

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

Ela considera que uma formação continuada para a inclusão “deva contemplar em parte a forma de trabalhar [...]. Poderia haver uma articulação, porque aí você não precisaria ir para muitas formações e a gente tem saído muito da escola, e [isso] gera problema dentro da escola. É legal, é enriquecedor para nós” (Paula – SC-EM2). A professora Edina (SRM-EM2) gostou do curso de especialização em Educação Inclusiva realizado de 2006 a 2008, pela Uepa, e acredita que o curso lhe deu base para trabalhar com a educação especial: Deu sim, mas aí só na prática realmente que a gente vê, né, a dificuldade [...]. A única prática foi do surdo que a professora M. J. levava muita coisa prática, assim como ensinar a pessoa com surdez. Mostrava para a gente. Levou a gente para o Astério de Campos, para a gente observar na época.

Edina contou que tem participado de todas as formações realizadas às sextas-feiras no CAEE Centro. Na Hora Pedagógica a formação acontece uma vez por semana, com carga horária de 8 horas. “A cada sexta-feira eles focam uma deficiência. É trabalhado em cima dela” (Edina – SRM-EM2). Segundo a entrevistada, além do CAEE, as formações ocorrem em outros espaços, por exemplo, “sexta-feira nós fomos para a Uepa assistir o seminário dos surdos. Há momentos que pode ser... No Felipe Smaldone nós já fomos lá. Às vezes vai palestrante para o CAEE. Nós já tivemos quem falou sobre autismo” (Edina – SRM-EM2). A professora Léa (SRM-EM2) informou: O Centro Gabriel Lima Mendes é responsável em estar fazendo essa capacitação, essa formação para nós, professores que somos indicados para trabalhar na educação especial. [...] Fazem parceria com a Uepa, onde a gente recebe a distância algumas atividades, alguns cursos. A Unidade de Ensino Especializado Professor Astério de Campos, uma instituição de referência na educação de surdos no estado do Pará, é parte integrante da Seduc.  Horário nas sextas-feiras dedicado aos professores para realizarem o planejamento pedagógico de suas aulas e formação docente. 

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Além disso, informou que realizou um curso sobre deficiência mental a distância pela Uepa. Havia um grupo de professores tutores que orientava a distância. A professora disse também que frequenta as formações semanais do CAEE. Uma dessas formações contemplou uma palestra sobre autismo. Léa explicou: Existe um programa dentro do centro. Todas as sextas-feiras a gente é incluído em um programa. Primeiro foi o programa bilíngue, que trabalhou libras, sinais, nos ensinou, nos deu noções básicas. Depois a gente teve o braille. Além de trabalhar o braille, toda a legislação, a fundamentação teórica sobre essa deficiência... o braille. Depois a gente trabalhou o deficiente intelectual (Léa – SRM-EM2).

Percebe-se uma chamada de atenção para a formação continuada em termos das universidades, que passam a ter papel fundamental na formação na perspectiva da inclusão. A Declaração de Salamanca destaca a função das universidades no processo de pesquisa, avaliação e formação de professores: Universidades possuem um papel majoritário no sentido de aconselhamento no processo de desenvolvimento da educação especial, especialmente no que diz respeito à pesquisa, avaliação, preparação de formadores de professores e desenvolvimento de programas e materiais de treinamento. Redes de trabalho entre universidades e instituições de aprendizagem superior em países desenvolvidos e em desenvolvimento deveriam ser promovidas. A ligação entre pesquisa e treinamento neste sentido é de grande significado. Também é muito importante o envolvimento ativo de pessoas portadoras de deficiência em pesquisa e em treinamento para que se assegure que suas perspectivas sejam completamente levadas em consideração (UNESCO, 1994, p. 46).

Acredita a professora Léa que as formações contribuem para a sua prática docente, na medida em que a ajudam a trabalhar com

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

as especificidades e necessidades pedagógicas dos alunos. Uma dessas formações foi sobre o uso de recursos pedagógicos. Nós recebemos formação do CAEE para utilizar o braille. Pequenas formações. Por exemplo, a gente recebeu agora no final do primeiro semestre [2011] como trabalhar a reglete10, como trabalhar com o material alternativo de pauta ampliada [...]. Recebe para poder passar essa informação para o aluno (Léa – SRM-EM2).

Edina afirmou que tais formações colaboram com a sua prática docente, mesmo não sendo ainda o ideal. “Contribui sim, contribui muito. Não é o ideal, não é o suficiente, mas está contribuindo bastante”. Destacou também o que as formações mudaram em sua prática: “O que mudou foi um olhar mais voltado para o aprendizado do aluno” (Edina – SRM-EM2). As professoras das SRM admitem que a formação continuada recebida da Secretaria Municipal de Educação as auxiliou no trabalho com a educação inclusiva. Já conforme as professoras das SC, houve pouca contribuição, pois elas tiveram pouco acesso ou nenhum aos cursos, durante o ano de 2011, de formação continuada para a prática pedagógica e para a educação inclusiva na escola. Essas professoras acreditam que a formação precisa ser articulada e atender às necessidades específicas. Pietro (2007) chama atenção para o fato de que a formação dos docentes especializados deve ser compartilhada com os demais profissionais da escola e do sistema de ensino, por meio de práticas interdisciplinares e planejamento dos conteúdos da formação em conjunto.

Dificuldades na formação continuada A professora Vera (EM1) explica que a principal dificuldade que encontra no processo de formação é a resistência dos professores em termos da inclusão: A reglete é uma prancheta de 35 x 20 cm, contendo uma grade para a escrita em braille.

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Olha, não vamos dizer que todos os professores estão conscientes da inclusão. Sempre tem algum que a gente precisa conscientizar, convencer. Então, existe essa dificuldade de alguns professores, de alguns funcionários, ainda, terem resistência à inclusão, mas isso a gente até já consegue dar um jeitinho para vencer as dificuldades (Vera – SRM-EM1).

Assim, a não aceitação da inclusão escolar teria de fazer parte das discussões na formação de professores da rede municipal de ensino de Belém. Qual a razão de existir, ainda, resistência à inclusão escolar? Jesus (2006) aponta a necessidade de trabalhar a formação continuada dos profissionais da educação de maneira que eles sejam capazes de compreender e refletir sobre as suas práticas, sobre o próprio processo de inclusão escolar e de transformar lógicas de ensino. Outra situação crítica observada é a falta de chamada para a importância das formações continuadas pela equipe coordenadora do CAEE, o que reflete em pouca participação docente nas formações. Explica a professora Joana (SC-EM2) quanto às formações realizadas no CAEE: “Eu estou sempre presente e lá é muito bom, aprendi muita coisa. Só que eu acho que eles têm que dar muita ênfase para esse encontro, porque, se você for perguntar quantos professores daqui foram lá, foi muito reduzido”. A professora Edina (SRM-EM2) informou não ter recebido nenhum treinamento para trabalhar com os equipamentos ou os materiais das SRM recebidos. O treinamento não foi dado nem nas formações da Secretaria Municipal de Educação nem na Hora Pedagógica do CAEE. Léa (SRM-EM2) destacou que os docentes não são ouvidos em relação à programação das formações. Explicou que há muitas dificuldades em termos de formação, entre as quais: o grupo de formação ser pequeno e a necessidade de formação na área da saúde, para auxiliar no diagnóstico pedagógico da deficiência. Léa explicou, ainda, que o professor da sala comum não tem formação para trabalhar os recursos pedagógicos específicos e que das formações oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

nem todos participam. O CAEE, responsável pelas formações, não está dando conta, pois a amplitude da rede é muito grande. As professoras da EM1 são unânimes em afirmar que a formação continuada vem dar conta das especificidades da prática pedagógica, todavia essa formação está distanciada da formação inicial. Isso significa que compete às políticas de formação de professores garantir a articulação entre formação inicial e formação continuada. “Trata-se, portanto, de pensar a formação do professor como um projeto único englobando a inicial e a continuada” (PIMENTA, 2008, p. 30). Entre as dificuldades na formação continuada, a professora Paula afiança: Não tem assim uma organização dentro da escola que a gente saia e as turmas recebam um atendimento [...] não faz parte da escola dispensar as turmas. Então, a gente encontra uma certa dificuldade de sair da escola para ir para essas formações (Paula – SC-EM2).

Edina (SRM-EM2) relata as dificuldades encontradas nas formações continuadas: para ela, são urgentes mais palestras, mais estudos que possam orientar o caminho que “a gente deve seguir, porque às vezes a gente fica insegura”. Considera que, para melhorar as formações, elas deveriam acontecer nas escolas: Acharia eles vindo para cá e nós fazendo aqui mesmo. Uma formação assim em cada escola. Se tivesse mais pessoas disponíveis para vir. Não que seja toda sexta-feira, mas que ficasse mais tempo conosco (Edina – SRM-EM2).

Oliveira e Santos (2011, p. 197) declaram que “a escola precisa se reconhecer como lócus de formação e se preparar para acolher o projeto de inclusão”. Oliveira (2009b, p. 34) explica: O pressuposto de que é de responsabilidade da escola a formação continuada de seus profissionais, bem como de que a função do profissional de apoio pedagógico é a de articulador e mediador dessa formação, implica uma reorganização do espaço

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escolar, no sentido de se buscar alternativas para conciliar as atividades de coordenação, apoio e formação, considerando, igualmente, as novas exigências educacionais de atendimento inclusivo dos alunos com necessidades educacionais as mais diversas.

Assim, as professoras da EM2 vêm recebendo formações continuadas, entretanto estas não atendem às necessidades de formação, tendo em vista que não explicam como utilizar os recursos didáticos das SRM. Além disso, a participação das docentes nas formações fica reduzida em função do horário. Oliveira (2009a, p. 147) chama atenção para o fato de as formações continuadas não atenderem às necessidades pedagógicas dos professores. Pode-se constatar que realmente é grande o número de cursos de formação continuada na área da educação especial com a perspectiva inclusiva, oferecidos ao longo das duas últimas décadas. No entanto, o modo como essa formação vem se processando parece não atender às necessidades pedagógicas reais dos educadores das redes de ensino pública, uma vez que muito pouco se observa de concreto na ação profissional educacional. Tal fato é agravado quando se percebe a repetição de ações formativas que concretamente não vêm, ao longo do tempo, apresentando resultados satisfatórios, mas continuam se repetindo com a mesma metodologia.

Nesse caso, faz-se imprescindível repensar que cursos estão sendo ofertados e com qual metodologia. Os discursos dos professores evidenciam que a política de formação das redes municipal e estadual de Belém não está dando conta do processo de inclusão, e os docentes das SRM são responsabilizados pelo assessoramento aos docentes das SC. Existe por parte dos entrevistados a compreensão do significado e da importância da formação continuada, mas é

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

insuficiente sua oferta pelas redes de ensino. Há docentes que no decorrer do ano de 2011 não participaram de nenhuma formação sobre inclusão, pois o horário coincidia com outras formações ofertadas pela Semec, e outros não possuem conhecimento quanto à política de formação da educação especial da rede municipal. As professoras das SRM da rede municipal de ensino têm formação semanal no CAEE acerca de libras, inclusão etc. Já as professoras das salas comuns frequentaram mais formações realizadas no ensino regular que abordam questões gerais sobre educação especial. Além disso, as professoras da EM2 não opinaram a respeito dos conteúdos planejados para as formações. Uma das dificuldades no processo de formação continuada para a inclusão foi coincidir com outras formações da Secretaria Municipal de Educação. Na opinião das professoras deveria existir articulação entre o ensino regular e o CAEE, tanto em relação ao calendário como em relação às temáticas que deveriam envolver a discussão sobre educação inclusiva.

Considerações finais Os sujeitos pesquisados ressaltam a importância da formação continuada dos professores para a melhoria da qualidade da educação e também aprofundamento de estudos sobre a realidade educacional, inclusão escolar, voltada para as especialidades e demandas com que lidam no cotidiano das SRM. Nesse sentido, a parceria entre as SRM e as SC torna-se fundamental no processo de construção de práticas pedagógicas de qualidade e exitosas. Na maioria das vezes os docentes das SRM recebem formação semanalmente. Os professores das SC, que passam boa parte do tempo com as crianças incluídas nas escolas, têm pouco acesso às demandas formativas específicas na perspectiva da inclusão escolar. Entendemos que o professor da sala de aula regular precisa participar de formações que garantam intervenções perante as crianças em condições de igualdade às do professor da SRM. O grande desafio da inclusão é pensar formas diferentes de educar, em que as crianças e seus professores, tanto das SRM

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quanto das SC, experimentem de tudo, compartilhem várias estratégias de aprendizagem, usem inúmeros materiais, tudo com o intuito de aprenderem cada vez mais as formas mais variadas que assegurem às crianças uma formação pedagógica de qualidade em ambos os espaços. No sentido da inclusão as instâncias de formação precisam também repensar as suas práticas e garantir políticas públicas de formação continuada de professores oriundas de projetos coletivos que respeitem e considerem as demandas formativas, as diversidades, os anseios e as perspectivas dos grupos. Vale destacar, ainda, a responsabilidade dos formadores; eles têm de ser portadores de conhecimentos diversos, fundamentados em teorias que tomem como referência a realidade, o conhecimento específico e as práticas inclusivas.

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Capítulo X – Formação continuada e inclusão: o que pensam os professores

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Cadernos escolares e práticas pedagógicas Caroline Guião Coelho Neubert Luciane Maria Schlindwein

Do surgimento dos cadernos escolares Para que possamos pensar e discutir o uso dos cadernos nos dias de hoje, precisamos primeiramente recuperar a sua origem e a sua trajetória na história, bem como seus usos e papéis na sociedade. Caderno tem origem na palavra latina quaterni, de quattuor, que significa folhas de papéis agrupadas protegidas por uma capa; caderno escolar; caderno de rascunho. Ou seja, os cadernos carregam, desde o princípio, uma finalidade escolar, como algo que se insere no cotidiano da escola, utilizado no dia a dia das aulas. A. A. C. Santos (2002) e Grendel (2009) corroboram essa acepção. Para Grendel (2009, p. 28), serve “como meio para uma produção específica, no caso escolar, mas sempre apreendido na e a partir da sociedade”. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), professora e pesquisadora do curso de Pedagogia e do Programa de Pósgraduação em Educação da UFSC, bolsista produtividade do CNPq.  No original em francês e de acordo com o dicionário de etimologia Le Robert Pour Tous (2004, p. 144): “Feuilles de papier assemblées et munies d´une couverture. Cahiers d´écolier, cahier de brouillon”. 

Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Segundo Mignot (2008), a relação entre ensino e cadernos escolares sofreu uma transformação: de objetos escassos entre os alunos, os cadernos passaram a ser materiais corriqueiros na sala de aula, desprovidos de questionamentos e reflexões. Inicialmente protagonistas, passaram a ser coadjuvantes do ensino. Modificamse e diversificam-se os tamanhos, formatos e valores, são vendidos na papelaria e até mesmo em postos de gasolina. Tornaram-se objeto de consumo, e não mais de desejo. Lopes (2008), ao trazer Hébrard, ressalta que, embora a utilização dos cadernos escolares seja universal desde o século XVI, não há fontes documentais exatas que mostrem a história dos cadernos, sendo então vestígios que encontramos na história. Conforme Hébrard (2001), algumas congregações cristãs na França recorriam à concepção do estudo da língua escrita para conduzir as crianças à escola e, assim, ao catecismo. Com a alfabetização, visava-se não apenas à formação religiosa, como também se buscava prevenir as revoltas camponesas. “Instruindo, a escrita pode erradicar as antigas culturas camponesas e abrir o espaço rural francês para a modernidade e a paz social” (HÉBRARD, 2001, p. 116). A. A. C. Santos (2002) demonstra que os colégios apareceram no século XVI como um método da Igreja Católica, a fim de agir contra as revoltas protestantes. A concepção pedagógica jesuíta exibia um método inovador de conduzir e formar sujeitos, que, para se interarem à modernidade, necessitavam se caracterizar como pessoas letradas, católicas e obedientes. O difícil alcance à escrita em função do alto preço do papel fazia a aprendizagem dessa habilidade algo excludente, uma vez que era preciso tempo e dinheiro. De acordo com Hébrard (2001), apenas por volta do século XIX o ensino da língua escrita ultrapassou os muros das corporações de mestres de escrita e aritmética, das quais somente alunos com boa condição financeira faziam parte, e alcançou outras instituições. Todavia, para que a difusão da escrita fosse possível, eram imprescindíveis instrumentos que possibilitassem essa aprendizagem, que durante anos se deu artesanalmente. “Tal será o papel da ardósia e do quadro negro para os iniciantes, ou o do caderno para os que já têm a mão mais treinada” (HÉBRARD, 2001, p. 117).

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Capítulo XI – Cadernos escolares e práticas pedagógicas

A. A. C. Santos (2002) afirma que, no momento em que papiros e pergaminhos deixaram de ser utilizados para realização da escrita, surgiram os quatérnios (cadernos). A nova organização das folhas favoreceu o transporte e as atividades de leitura e escrita. Os cadernos contribuíram com a pedagogia e a disciplina que apareceram na época e com o surgimento de um novo homem, o sujeito moderno, auxiliando inicialmente os colégios jesuítas no século XVI e as escolas elementares cristãs no século XVII. Hébrard (2001) recupera o Ratio Studiorum, uma vez que esse documento jesuíta denomina o caderno escolar de “livro-branco”. Segundo o autor, até o século XIX os cadernos não apareceram nas pequenas escolas. Hébrard considera o caderno “o testemunho precioso do que pode ter sido e ainda é o trabalho escolar de escrita” (HÉBRARD, 2001, p. 121). No entendimento de Hébrard (2001), na metade do século XIX os cadernos começaram a preencher uma enorme fração do tempo e das atividades escolares. A. A. C. Santos (2002, p. 26) acredita então que o caderno se revelava como um “precioso e fiel aliado a cimentar regras, produzir e controlar novos comportamentos, estando eles mesmos sujeitos a permanentes ajustes e transformações”. A. A. C. Santos (2002) declara ser possível perceber a correlação escrita x caderno x controle do tempo. O caderno “é o mais nítido comprovante ou documento, tanto da freqüência quanto da produtividade de cada aluno sobre determinado conteúdo escolar” (SANTOS, A. A. C., 2002, p. 29). A autora explica que a mudança do método individual para o coletivo – método simultâneo – está ligada com os cadernos e o surgimento do quadro-negro, uma vez que este passou a ser ponto de referência para direcionar olhares durante as aulas. Segundo a mesma teórica, a escrita das escolas cristãs representava a imobilidade e o silêncio a que tal ato sujeitava os escreventes, deixando clara a influência dos cadernos para uma didática centralizada na escrita, produzindo silêncio e trabalho. É a abreviatura de Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu. Trata-se de um plano para a educação elaborado pela Companhia de Jesus. Tal plano, que consistia no currículo, orientou os trabalhos dos jesuítas, especialmente entre os séculos XVI e XVIII. 

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

Os cadernos e a escrita tornaram-se substitutos dos castigos físicos, de maneira que “castigar é exercitar-se” (SANTOS, A. A. C., 2002, p. 45). Além da função de exercício destinada aos cadernos, esses materiais prestavam-se ao controle e à vigilância, pois eram capazes de tornar transparente e visível para todos o trabalho dos alunos e dos professores. Assim, A. A. C. Santos (2002) remete-se a Foucault ao apresentar o caderno como “máquina de observar” e, logo, um instrumento panóptico. Os cadernos escolares firmaram-se no Brasil na passagem do século XIX para o XX, com o surgimento dos grupos escolares (SANTOS, A. A. C., 2002). No século XIX, assevera Souza (1998), moralização, civilização e consolidação da ordem social eram funções destinadas à escola, sendo a racionalização um princípio primado pelos grupos escolares, de modo que a jornada escolar (intervalos e ritmos), a hierarquia de uma disciplina ante as demais (percebida pelo tempo concedido para cada uma delas) e ainda a noção de repetência foram convenções dessa nova organização. A criança passou a ser concebida como aluno, no coletivo, e não pelas suas especificidades, porque era ao grupo que o professor se referia. Souza (1998, p. 49) afirma que em 1890 essa nova organização do ensino que se preocupava com o controle do tempo, com a ordem e com a disciplina começava a ser implantada em São Paulo “a fim de racionalizar os custos, controlar os sujeitos e escolarizar a massa. Surge ainda a função diretor escolar, na qual este organizava, controlava, coordenava e fiscalizava o ensino”. O controle e a disciplina estavam presentes simbolicamente na cultura escolar, indo desde “a arquitetura do edifício, a distribuição dos espaços, [...] as carteiras, os móveis, o controle do tempo, [...] normas e valores relacionados à conduta, ordem, limpeza, asseio, higiene” (SOUZA, 1998, p. 58), e serviam ao controle de movimentos, impulsos e emoções das crianças. Esse contexto de modificações no ensino implicou alterações dos materiais escolares, como cadernos, lápis, livros e ardósias, uma vez que tais transformações “[...] obrigam que cada aluno tenha seu próprio material escolar, aumentando consideravelmente

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Capítulo XI – Cadernos escolares e práticas pedagógicas

a demanda” (RAZZINI, 2008, p. 101). Além da finalidade educativa, os materiais possuíam também o objetivo de inculcar os princípios de ordem, trabalho e moral. A. A. C. Santos (2002) aponta que no primeiro terço do século XIX aconteceu o boom dos cadernos escolares na escola primária, embora eles tenham se propagado com a instalação dos grupos escolares na mudança do século XIX para o século XX. O conjunto de modificações no ensino demandou novos materiais, capazes de sustentar a nova metodologia. A maioria dos materiais, segundo Souza (apud RAZZINI, 2008), expirou com o decorrer dos tempos nos grupos escolares, porém os cadernos continuam até os dias atuais no contexto escolar, tomando subitamente conta das práticas escolares. “Os cadernos, como parte desse verdadeiro turbilhão de metodologias e materiais, tomará [sic] seu lugar de prestígio, como peça-chave a integrar as sutilezas disciplinares da moderna pedagogia” (SANTOS, A. A. C., 2002, p. 65). Mignot (2008), ao discorrer sobre a história da Casa Cruz, uma das papelarias mais antigas do Rio de Janeiro, demonstra a contribuição do estabelecimento para a transformação da maneira de perceber os cadernos. A história da Casa Cruz perpassa pela história da educação, pois o aumento do ingresso de estudantes nas escolas contribuiu para novas demandas industriais e, por conseguinte, fez crescer a venda de suportes de escrita. Explicase o êxito no mercado dos cadernos escolares pelo barateamento do papel, e a papelaria, por sua vez, firmou-se como um espaço de memória da produção de cadernos no Brasil. “Além de comercializar os produtos fabricados por outras empresas, havia criado diversas coleções de cadernos escolares” (MIGNOT, 2008, p. 70). Apesar das múltiplas seções, como de artigos religiosos, livraria, vidros e pinturas, a papelaria destacava-se pela venda dos cadernos escolares, e era nesse ramo que almejava ser reconhecida. Mignot (2008) assevera que, ainda que existissem aumento significativo no ingresso das crianças nas escolas e redução do custo do papel, os cadernos ainda não eram objeto comum a todos os alunos. “A presença de cadernos escolares, em substituição à lousa, [...] era mais usual nas salas de aula

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Pesquisas sobre trabalho e formação docente: aspectos teóricos e metodológicos

das escolas da capital daquele estado. Nas escolas do interior, ela ainda sobreviveu até meados de 1940” (MIGNOT, 2008, p. 80). Para a autora, era claro o intuito de universalizar os cadernos, haja vista serem divulgados em jornais escolares e tais anúncios visarem tornar esse suporte da escrita em objeto de desejo pelos estudantes. Essas mudanças na educação acabaram por auxiliar no início do uso intensivo dos cadernos (RAZZINI, 2008). Eis então a colaboração dos grupos escolares para a propagação dos cadernos nas salas de aula. Os ideais modernos refletiram diretamente nas práticas pedagógicas. Na concepção de Cambi (1999), a família e a escola consolidaram-se como duas instituições educativas que sofreram redefinições e reorganizações na sociedade moderna. Desse modo, ambas as entidades passaram a ser centrais na formação dos sujeitos e na reprodução da sociedade moderna. “As duas instituições chegam a cobrir todo o arco da infância-adolescência como ‘locais’ destinados à formação” (CAMBI, 1999, p. 204). A escola tem como responsabilidade adequar comportamentos por meio da didática e da disciplina, regulando os corpos, interiorizando boas maneiras e submetendo os corpos à autodisciplina. Todas essas práticas, de acordo com Cambi (1999), otimizam o tempo, princípio que deveria estar incorporado na mente do homem moderno. No século XVI apresentou-se a civilidade como programa pedagógico. “A educação moderna é pensada para formar a criança civilizada” (BOTO, 2002, p. 56), de maneira que, para integrar à “boa sociedade”, o indivíduo deveria ser polido, fino e distinto, agindo conforme os padrões. Havia a grande preocupação de controlar o social pelo individual. Os colégios jesuítas tinham o propósito de extinguir todo vestígio da espontaneidade infantil. A rotina existente nos colégios controlava os ritmos individuais, e tinha início a regulamentação social do tempo. O método jesuítico fundamentava-se em exposição, repetição, exercícios e disciplina; para que o método obtivesse êxito, ele necessitava de ordem. As escolas configuravam-se “instituições escolares especializadas em produzir adultos” (BOTO, 2002, p. 28).

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Os cadernos escolares na literatura Iniciamos esta discussão fundamentados em um mapeamento dos estudos já realizados sobre os cadernos escolares. Empreendemos um levantamento bibliográfico nas bases de dados da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e busca avançada no Google, em que utilizamos os descritores “caderno escolar”, “cadernos escolares”, “caderno” e “cadernos”. Optamos por não realizar um recorte temporal durante o levantamento pelo fato de que a falta de opção de descritores (apenas a variação entre plural e singular) e a escassez de pesquisas que abordam diretamente o uso do caderno em sala pelas crianças poderiam deixar de fora trabalhos feitos em outros anos. Encontramos uma grande quantidade de investigações com esses descritores, pois, ainda que existissem poucas variações, inúmeras são as possibilidades de estudo com os cadernos escolares. Por tal motivo, selecionamos apenas as pesquisas que apresentassem um dos descritores no título, nas palavraschave ou no resumo e ainda que abordassem o caderno escolar propriamente dito, e não o estudo por meio deste para outros assuntos. Entre teses, dissertações e artigos foram selecionados 18 trabalhos: duas teses, quatro dissertações, uma monografia, e 11 artigos (alguns artigos fruto de teses ou dissertações). Além dos 18 trabalhos encontrados nas bases de dados citadas anteriormente, localizamos um único livro que fala dos cadernos escolares, denominado Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita (2008), com organização de Mignot. A obra reúne 15 estudos sobre a temática dos cadernos escolares. Vale ressaltar que o livro apresenta trabalhos internacionais com pesquisas efetuadas na França, Argentina, Espanha e Itália. Os estudos selecionados foram lidos na íntegra e organizados em tabelas com as seguintes informações: tipo de trabalho (artigo, dissertação, tese ou trabalho de conclusão de curso); ano; instituição; título; orientação; foco de investigação; objetivos, referências e comentários pessoais.

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Os cadernos em estudo A necessidade de refletir e investigar os cadernos escolares é explicitada em diferentes pesquisas, como nas de Grendel (2009), Lopes (2006), A. A. C. Santos (2002; 2008a; 2008b), Mignot (2008), Faria (1988), Viñao (2008), entre outros autores. Tais materiais apresentam-se como objetos naturalizados no contexto escolar, são ricos como fonte documental para a pesquisa em história da educação, história da infância e da cultura escrita, além de ser tema pouco abordado, conforme dizem Grendel (2009) e A. A. C. Santos (2002). Na opinião de A. A. C. Santos (2002; 2008a; 2008b), Chartier (2002) e Souza (2010), os cadernos escolares encontram-se naturalizados no contexto da sala de aula e isentos de reflexões e questionamentos, tanto por parte da equipe pedagógica, quanto pelos pais e pelos próprios alunos. “O seu uso é comum neste espaço, seria no mínimo estranho se uma professora não o colocasse na lista de materiais obrigatórios para o consumo infantil” (SOUZA, 2010, p. 15). Tamanha é a naturalização que o caderno escolar se torna, muitas vezes, condição sine qua non para a entrada e permanência em sala de aula, sendo na maioria das vezes indissociável da ideia de escola e estudante. Segundo Faria (1988), muitas escolas não adotam o livro didático, mas o caderno sempre se faz presente. Todavia, ainda que os cadernos sejam objetos que sofreram um processo de naturalização nas práticas escolares, seu uso não é natural para as crianças. Para que elas consigam utilizar esse material, faz-se necessária a aprendizagem de regras e, logo, para que haja aprendizagem, as regras devem ser ensinadas (SANTOS, A. A. C., 2002; 2008a; 2008b). Então, para que sejam ensinadas, é preciso que seu uso seja cuidadosamente planejado e repensado. O processo de naturalização sofrido pelos cadernos acaba por esconder o grande potencial de tais documentos. Kirchner (2009) garante que são fontes valiosas e possuem grande potencial histórico. Mignot (2008, p. 13) afirma que o caderno, “objeto

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quase invisível que guarda a memória da educação”, é capaz de falar sobre os alunos, professores, pais, projetos pedagógicos, avaliação, valores disseminados e todas as relações e práticas que circundam a escola. Viñao (2008) considera que esse material/documento está apto para oferecer informações sobre a realidade escolar e as atividades efetuadas na escola. Para ele, os cadernos escolares constituem uma fonte preciosa para a pesquisa do ensino, da aprendizagem e da propagação da cultura escrita. Todavia Ângulo (2008) e Kirchner (2009) ressaltam que os cadernos não são neutros, uma vez que podem servir para a propagação de ideologias. A respeito da propagação de ideologias, o caderno escolar apresenta-se como um meio para difundir os ideais da modernidade, como mostram Braga (2008), Andrés e Zamora (2008), Ângulo (2008) e Pessanha (2008). Braga, ao apresentar o livro A escrita na escola primária, de Orminda Marques (2008), evidencia a aprendizagem da caligrafia para a funcionalidade, bem como a racionalização da escrita pela disciplina corporal. Andrés e Zamora (2008) salientam a escola como ambiente de criação de bons cidadãos e investimento para o futuro, uma vez que a caligrafia presente nos estabelecimentos escolares estava associada à aquisição de valores morais. Na atualidade os cadernos escolares aparecem como organizadores do trabalho em sala de aula e suporte para a execução das atividades, conforme apontam A. A. C. Santos (2002; 2008a; 2008b) e Viñao (2008). Do ponto de vista de Peres e Porto (2009), o caderno não ocupa apenas o lugar de suporte físico; trata-se de um dispositivo que interfere na dinâmica escolar. Mesmo que o valor dos cadernos enquanto fonte privilegiada para a pesquisa seja reconhecido, A. A. C. Santos (2002; 2008a; 2008b), Faria (1988), Oliveira (2008) e Viñao (2008) frisam que o conteúdo a que temos acesso nos cadernos é uma pista, são indícios do ocorrido em sala de aula. Viñao (2008) declara que não podemos julgar possível reconstruir o currículo real com base nos cadernos, pois esse espaço designado ao registro da produção escrita não explicita o tempo aplicado em cada atividade, tampouco

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as intervenções orais e os gestos vividos na sala de aula. “Nem tudo está nos cadernos. Eles silenciam, não dizem nada sobre as intervenções orais ou gestuais do professor e dos alunos” (VIÑAO, 2008, p. 25). Os cadernos acabam por exprimir marcas individuais de quem os utiliza. Neles “descobrimos marcas da singularidade de cada um no uso desse artefato” (OLIVEIRA, 2008, p. 131). Quando a criança cola figurinhas em seu caderno, quando escolhe os desenhos que vai realizar, ela está inserindo sua marca. Os desenhos, as inscrições e as brincadeiras que as crianças fazem inserem no caderno suas marcas pessoais, suas percepções de mundo. De acordo com Grinspun (2008), pelos cadernos podem-se perceber indícios da vida cotidiana em diferentes momentos. A autora aponta também que, embora seja um objeto comum, “cada caderno tem o jeito de cada um de nós, de suas preferências e da forma como se tratavam essas preferências” (GRINSPUN, 2008, p. 261). Ou seja, ao utilizá-lo, cada estudante imprime nele aspectos de sua personalidade, de suas vontades, de seu modo de ser. Com base nas afirmações de Grinspun (2008) e Oliveira (2008), podemos inferir que, ainda que a maioria das atividades presentes nos cadernos não parta inicialmente do aluno e seja fruto da ordem do professor, ao se posicionarem ante esse material e imprimirem nele suas marcas, as crianças se tornam autoras do seu material. Definir o futuro do caderno escolar – se será guardado, descartado ou repassado – também é expressão de autoria. Ainda no tocante às inscrições realizadas nos cadernos, aparece a discussão a respeito da autoria delas: afinal, quem seriam os verdadeiros autores dos cadernos? V. M. Santos (2002), Faria (1988), Chartier (2002) e Andrés e Zamora (2008) são alguns dos teóricos que falam sobre o assunto. Prestando-se ao controle, o caderno escolar passa a oferecer poucas possibilidades de expressão por parte dos alunos (FARIA, 1988).

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Para discutir a questão da autoria dos cadernos, V. M. Santos (2002) remete-se a Gvirtz (1999), que afirma: apesar de a quase totalidade das atividades registradas sair das mãos do educando, “o estilo de redação revela claramente a autoria adulta” (apud SANTOS, V. M., 2002, p. 29). Desse modo, a autora considera que o caderno é um material didático que possui autoria múltipla. Chartier (2002) percebe os cadernos escolares como um dispositivo sem autor. Ela, fundamentando-se em Foucault, esclarece o termo dispositivo. Segundo Foucault, a palavra em questão pressupõe uma realidade que mistura “discursos, instituições, agenciamentos arquiteturais, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: o dito tanto quanto o não dito” (FOUCAULT apud CHARTIER, 2002, p. 12). Para diversos autores (SANTOS, A. A. C., 2002; 2008a; 2008b; LOPES, 2006; PERES; PORTO, 2009; SOUZA, 2010; FARIA, 1988; VIÑAO, 2008; GVIRTZ; LARRONDO, 2008; FERNANDES, 2008; BRAGA, 2008; ANDRÉS; ZAMORA, 2008; ÂNGULO, 2008), o emprego dos cadernos em sala de aula manifesta duas finalidades principais: o controle e a disciplina. Lopes (2006) entende a correção das atividades como um meio de controle do professor sobre o alunado. O caderno presta-se ainda ao controle por parte dos pais, dos diretores e supervisores sobre a professora/o professor, a fim de verificar as atividades desenvolvidas. Além de refletirem na dinâmica da sala de aula, os cadernos têm a função de expor o trabalho escolar para a família e os demais sujeitos que fazem parte da escola, “servindo como objeto de controle que ordena o espaço e o tempo do trabalho na escola” (PERES; PORTO, 2009, p. 3). O capricho e a organização aparecem como valores essenciais para os docentes e estão incorporados nas falas das crianças, que a todo momento dizem que o caderno precisa ser caprichado. Faria (1988) cita que o caderno possui grande valor no processo de avaliação. Entretanto, pela fala das professoras, a autora deduz que tal objeto não possui significado para elas.

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Ainda que o zelo e o capricho sejam valores percebidos como essenciais para professores e alunos, o destino apontado para o caderno demonstra o contrário. O destino mais citado para os cadernos escolares que não possuem mais folhas em branco é o lixo (FARIA, 1988; SANTOS, A. A. C., 2002; 2008a; 2008b; GRENDEL, 2009). Assim, o caderno escolar fica à mercê da sorte. Quanto à sua utilização, A. A. C. Santos (2002; 2008a; 2008b), Miguel e Lunardi-Mendes (2009), Chartier (2002), Peres e Porto (2009) e Chakur (2000) constataram a predominância das atividades de cópia e de treino sobre as demais, havendo assim grande quantidade de atividade envolvendo cópias do quadro em cadernos de escrita, cópias nas atividades de desenho e atividades semelhantes a um treino para desenvolver a coordenação motora fina, ou seja, atividades distantes dos objetivos almejados para o trabalho na infância (MIGUEL; LUNARDI-MENDES, 2009, p. 58).

Considerações finais Com base na leitura de 30 trabalhos que estudam o uso dos cadernos enquanto objetos em sala de aula, percebemos que algumas considerações são comuns a todas as pesquisas: caráter disciplinador; controle; valor do capricho; descarte do material após o término das folhas brancas; processo de naturalização sofrido por esse material; seu potencial para a pesquisa; predomínio das atividades de cópia; necessidade de orientação para o uso nas séries iniciais da escolarização; escassa produção acerca do tema, entre outras. Assim como Lopes (2006), Chartier (2002) e Faria (1988), podemos notar que pouco se modificou com relação às práticas com esse material, bem como o seu papel no trabalho escolar. Os ideais que impulsionaram o uso dos cadernos, desde o século XVI até o surgimento da escola moderna, continuam vivos até hoje. Fica explícito o predomínio das atividades de cópia sobre as demais, o que faz com que muitas atividades não alcancem o real sentido para o aluno, por serem desvinculadas do contexto.

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Cabe à escola e aos educadores buscar métodos que melhor se adaptem à realidade e ao contexto de cada estudante, fazendo de cada ensinamento algo concreto, próximo da criança e prazeroso de ser aprendido. Assim as crianças se apropriarão mais facilmente dos conteúdos escolares e levarão na memória a escola como um espaço de construção de conhecimento, como algo que somará positivamente para a sua vida, e a escrita como a possibilidade de expressão, expansão de horizontes e de abertura para novas reflexões, indo além do controle e da avaliação. Dessa forma, os materiais escolares – entre eles, o caderno – atenderão de fato a finalidades pedagógicas.

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