Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2011) 857-871
Revista Brasileira de Geografia Física ISSN:1984-2295
Homepage: www.ufpe.br/rbgfe
O Trabalho de Campo e Análise da Paisagem: Proposta Metodológica no Parque Nacional de Itatiaia Fabio de Oliveira Sanches1 1
Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) campus Erechim-RS. Av. Dom João Hoffmann, 313 centro – Erechim-RS. CEP. 99.700-000. E-mail:
[email protected] Artigo recebido em 08/07/2011 e aceito em 01/12/2011 RESUMO O reconhecimento do espaço constitui uma das atividades desenvolvidas nos trabalhos de campo. Embora classificados em diversas categorias e sob diversas óticas, sua adoção mostra-se muito útil no processo de ensino-aprendizagem. Neste trabalho, busca-se apresentar um roteiro metodológico de trabalho de campo, com base na análise da paisagem de acordo com os princípios geossistêmicos propostos por Bertrand (2004), desenvolvido no Parque Nacional de Itatiaia (RJ), no Posto Avançado das Agulhas Negras. No roteiro, desenvolvido em campo, discutem-se processos morfoestruturais, morfoesculturais, intempéricos, evidências de processos paleoclimáticos, ações climáticas e suas relações com a cobertura vegetal. Conclui-se que os trabalhos de campo são atividades fundamentais na formação acadêmica, pois permitem tratar na prática os aspectos teóricos abordados em sala de aula. Palavras-chave: paisagem, geossistemas e trabalho de campo.
The Fieldwork and Landscape Analysis: the Proposed Methodology in the Itatiaia National Park ABSTRACT Recognition of space constitutes one of the activities developed in geography field work. Although classified in several categories and in different perspectives, its adoption appears to be very useful in the teaching-learning process. This paper aims at presenting a methodological itinerary of fieldwork, based on analysis of landscape, according to the geosystems principles proposed by Bertrand (2004), developed in the Itatiaia National Park (RJ), in Agulhas Negras Outpost. In the rout developed are discussed morphostructural processes, morphodynamics processes weathering, evidence of paleoclimatic processes, climate action and its relationship with vegetation cover. Field works are fundamental activities in academic, because they allow to practice the theoretical aspects discussed in classroom. Keywords: landscape, geosystems and fieldwork.
1. Introdução
existência. O Decreto Federal Nº 1.713/37
No dia 17 de junho de 2007, o Parque
pode ser considerado como sua “certidão de
Nacional de Itatiaia, cuja criação foi inspirada
nascimento” e, de lá para cá, suas belezas
nos moldes dos grandes parques nacionais
naturais encantaram gerações, inspiraram
norte-americanos do final do século XIX e
aventureiros e despertaram em cientistas e
início do século XX, comemorou 70 anos de
estudantes o desejo de desenvolver trabalhos de pesquisas.
* E-mail para correspondência:
[email protected] (Sanches, F. O.). Sanches, F. O.
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O processo de formação acadêmica do estudante
universitário
está
intimamente
informações
para
compreensão
da
organização dos lugares. Todavia, de 1960 e
vinculado às experiências por ele vividas no
1970
decorrer de suas atividades de graduação.
Geografia teceu severas críticas aos trabalhos
Parte da experiência acadêmica decorre das
de campo, em decorrência da possibilidade de
atividades práticas laboratoriais e em campo,
analisar
atividades
diversas
levantamentos e/ou registros como censos,
formações, e não somente à Geografia. Essas
fotografias aéreas e, mesmo, das imagens de
atividades ocorrem, assim, desde uma simples
satélite, que se difundiam, naquela época.
saída
essas
para
inerentes
a
sensibilização
reconhecimento
e
do espaço até a
a
renovação
a
epistemológica
realidade
por
da
meio
de
breve
No entanto, vê se que Pontuschka
mais
(1992) salienta que o “estudo do meio”
completa coleta e monitoramento de dados
constitui
para análises posteriores executadas em
perseguidos,
gabinetes. Especificamente em relação ao
professores e alunos de disciplinas específicas
geógrafo, as atividades de campo cumprem
em um trabalho coletivo e interdisciplinar,
papel
formação
com o objetivo de compreender a realidade,
profissional, uma vez que possibilita o
uma vez que o uso de metodologia vinculada
contato direto com o objeto de estudo.
às práticas de campo (trabalhos de campo)
fundamental
na
sua
Embora haja diversas classificações quanto aos tipos de trabalhos de campo e seus objetivos,
neste
apresentar
um
trabalho roteiro
pretende-se
um
dos no
caminhos
sentido
a
de
serem
aproximar
não se apresenta como prática exclusiva do universo geográfico. Acompanhando
essa
mesma
metodológico
perspectiva, Braun (2007) defende que a
fundamentado na abordagem geossistêmica –
aprendizagem a partir do contato direto com a
e seus níveis têmporo-espaciais - propostos
realidade é uma ação pedagógica com grandes
por Bertrand (2004) para ser desenvolvido
potencialidades
junto ao Posto Avançado da Agulhas Negras,
contempla a discussão e a consolidação dos
no Parque Nacional de Itatiaia (RJ).
conhecimentos
e
por
que,
meio
na
fase
de
final,
registros,
mapeamentos e síntese das conclusões. 1.1 Classificando os trabalhos de campo
Dessa forma, é possível considerar os
Para Suertegaray (2002), a história
trabalhos
de
campo
como
recurso
clássica da Geografia sempre sobre valorizou
metodológico de fundamental importância no
a prática do trabalho de campo, concebido
aprendizado, sobretudo na Geografia, pois
como
da
permite ao aluno perceber e apreender os
realidade (espaço geográfico) e desenvolvida,
vários aspectos que envolvem o seu estudo,
sobretudo, pelos geógrafos, que teriam as
tanto nos aspectos naturais quanto nos sociais.
indispensável
Sanches, F. O.
conhecimento
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No trabalho de Compiani e Carneiro
de campo em Geologia (Tabela 1) que
(1993) apud Scortegagna (2001) encontra-se
permite verificar os tipos de trabalho de
uma proposta de classificação dos trabalhos
campo propostos e suas características.
Tabela 1. Objetivos de ensino/aprendizagem nas excursões geológicas propostos por Compiani e Carneiro (1993), apud Scortegagna (2001) (adaptado) Categoria/pa
Visão de
Modelos científicos
Relação
Lógicas
pel
ensino
existentes
ensino/aprendizage
predominantes
m Ilustrativa
Informativa
São aceitos e
Professor é o
preservados
centro. Ensino
Da ciência
dirigido Indutiva
Formativa/
São aceitos e
Aluno é o centro.
Da ciência e do
Informativa
preservados
Ensino
aprendiz
dirigido/semi dirigido Motivadora
Formativa
São aceitos e
Aluno é o centro.
preservados, em
Ensino não dirigido
Do aprendiz
grau variável. Treinadora
Formativa/
São aceitos e
Equilíbrio. Ensino
Da ciência e às
Informativa
preservados
semidirigido
vezes do aprendiz
Investigativa
Formativa
São aceitos, mas
Aluno é o centro.
Da ciência e do
questionados.
Ensino não dirigido
aprendiz
Na proposta descrita, a atividade de
objetivo da atividade de campo ilustrativa
campo ilustrativa pode ser considerada como
consiste na iniciação do aluno no universo da
a mais tradicional das saídas de campo, pois
própria disciplina.
serve para reforçar os conceitos vistos em sala
Na proposta de atividade de campo
de aula. Ela reafirma os conhecimentos como
indutiva, a saída de campo visa “guiar
um produto pronto e acabado, e o aluno
sequencialmente os processos de observação e
exerce o papel de mero espectador, anotando
interpretação, para que os alunos resolvam um
as informações repassadas.
problema dado” (Scortegagna, op. cit.). O
Como geralmente tal atividade é
professor conduz os alunos a seguir ou fazer
desenvolvida nas séries iniciais, o principal
determinado roteiro de atividades, na maioria
Sanches, F. O.
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das vezes guiados por um questionário teórico
A atividade de campo investigativa
e técnico. Seu ensino é dirigido, sendo
visa propiciar ao aluno a possibilidade de
possível chegar ao semidirigido, no entanto
resolução de problemas em campo: elaborar
delimitado
hipóteses a serem pesquisadas, estruturar
pelo
professor,
que
definiu
previamente o ritmo dos trabalhos. O autor
sequências
ressalta que o processo de aprendizagem
interpretação), decidir sobre estratégias a
valoriza os métodos científicos e o raciocínio
serem
lógico
literatura; Além disso, os alunos podem
sem
se
preocupar
com
os
conhecimentos específicos.
metodológicas
tomadas,
(observação
validá-las,
recorrer
e
à
discutir entre si, refletir e tirar conclusões.
A proposta de atividade de campo
Nessa atividade o professor é um orientador
motivadora tem como objetivo despertar o
na resolução de dúvidas, quando solicitado,
interesse dos alunos para um dado problema,
incentivando-os, e oferecendo-lhes suporte,
um aspecto a ser estudado ou, ainda, o
quando necessário.
interesse do aluno pela disciplina.
Sob um outro prisma, a classificação
Esse tipo de atividade assume um
encontrada em Suertegaray (2002) apresenta
caráter provocativo uma vez que exige do
as saídas de campo e sua relação com o
aluno a visão problematizadora de questões a
ensino, destacando que o trabalho de campo
serem estudadas. A atividade permite ainda
não se constitui por completo, sofrendo
que o aluno aplique no objeto em campo o
limitações que serão supridas por outras
conjunto
formas de apreensão do conhecimento.
de
métodos
investigativos
já
apreendidos. Já
Em sua classificação, os trabalhos de nas
atividades
de
campo
campo
usualmente
desenvolvidos
em
treinadora e de campo investigativa os
Geografia Física podem ser classificados
objetivos mostram-se diferentemente daqueles
como:
das atividades anteriores. A atividade de campo treinadora
reconhecimento lugar
ou
dos
genérico
do
lugares
(as
visa treinar certas habilidades com o uso de
excursões) - em geral, tem um
aparelhos, instrumentos e outros aparatos
caráter
científicos,
reconhecimento,
conhecimentos
exigindo prévios
dos
alunos,
para
fazerem
anotações, medições ou mesmo coleta de
generalista descrição
de e
treinamento da observação.
reconhecimento
pontual
de
fenômenos
no
dados e amostras. Tais atividades são
elementos
direcionadas pelo professor, cabendo ao aluno
campo (exposições em campo): a
seguir suas recomendações e treinar técnicas e
partir de um roteiro em que o
procedimentos.
professor previamente estabelece
Sanches, F. O.
ou
860
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os lugares a serem observados
metodológicos mais importantes de um
(pontos de observação). Nesses
projeto. Constituem um dos instrumentos
pontos, em geral, o professor que
mais poderosos para contextualizar o ensino,
orienta
considerando-se o ambiente extra-sala de
o
trabalho
faz
uma
exposição sobre o observado.
a
Com a perspectiva de se fazer
partir da seleção, a priori, de
necessário pensar o espaço geográfico como
procedimentos
impliquem
um todo na interdisciplinaridade na própria
levantamento de informações por
disciplina, para que o aluno construa o seu
parte
conhecimento e aprenda a pensar superando a
reconhecimento
aula.
do
do
que
lugar
grupo
envolvido
(levantamento de campo).
fragmentação
Reconhecimento, no campo, de
geográfico, Braun (2007) descreve o Trabalho
padrões observados em imagens
de Campo como um caminho metodológico
de
que possibilita articulações entre os vários
lugares
(fotografias
e/ou
do
próprio
conhecimento
campos da Geografia e entre as diferentes
imagens). (2005)
áreas do conhecimento. Sua finalidade é
considera que os trabalhos de campo: a)
contribuir para a formação do cidadão do
permitem contato direto com a natureza e seus
século XXI e para a compreensão do mundo
processos; b) formam o locus privilegiado
atual.
Por
para
a
sua
vez,
integração
de
Compiani
saberes
Assim, como também nos aponta
prévios, e
Suertegaray (2002), o trabalho de campo na
observações/dados obtidos no campo; c)
formação do geógrafo e na investigação
remetem à localidade e ao cotidiano dos
geográfica deve ser abordado com um
alunos; d) despertam nos estudantes novo
instrumento muito mais amplo do que uma
entusiasmo
técnica
informações
adquiridas
pelo
em
aprender.
sala
Assim,
os
trabalhos de campo são um dos resultados
de
observação
e
coleta
de
informações.
Ele faz parte de um processo de investigação que permite a inserção do geógrafo pesquisador na sociedade, reconstruindo o sujeito e, por conseqüência, a prática social, permitindo o aprendizado de uma realidade, à medida que oportuniza a vivência em local do que deseja estudar. Também possibilita um maior domínio da instrumentalização na possibilidade de construção do conhecimento (Suertegaray, 2002, p. 110).
1.2 Proposta de roteiro para o campo A proposta aqui apresentada consiste
graduação em Geografia nas disciplinas de Geografia Física I e III, na Universidade de
de um conjunto de experiências em atividades
Taubaté
de campo como docente junto a cursos de
Geomorfologia
Sanches, F. O.
(SP),
e no
na Centro
disciplina
de
Universitário
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Salesiano de São Paulo, Lorena (SP), durante
Parque Nacional de Itatiaia na região da Serra
o período 2002–2009.
da Mantiqueira próximo a divisa dos Estados
A Figura 1 mostra a localização do
do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Figura 1. Localização do Parque Nacional do Itatiaia. Fonte:
Adaptado
de
http://www.redebrasileira.com/mapas/regioes/sudeste.asp
e Santos e Zican (2000). Para
o
desenvolvimento
dessas
campo, caracterizando-se pelo envolvimento e
atividades, julgou-se necessário, ainda que de
mobilização do aluno na problematização do
maneira
cotidiano, com informações prévias.
preliminar,
que
os
alunos
desenvolvessem um levantamento básico de informações
geomorfológicas,
se propício para discussões referentes às
hídricas, climáticas cartográficas etc., a
características da paisagem nas escalas do
respeito do Parque Nacional de Itatiaia,
Domínio e da Região Natural (Bertrand,
sobretudo de informações relacionadas ao
2004), muito embora na atividade em campo
Posto Avançado das Agulhas Negras, com o
fosse necessário retomar algumas discussões
objetivo
que
no nível dessa escala (região natural) como
minimamente, toda a discussão posterior in
forma de contextualizar abordagens mais
loco.
específicas em outras escalas de análise
de
geológicas,
Em sala de aula, o momento mostrava-
subsidiar,
mesmo
Como visto nas obras de Scortegagna (2001), Suertegaray (2002), Marandola Jr. e
(Geossistema,
Geótopo
e
Geofácie),
inserindo-as no ambiente de análise.
Lima (2003), Compiani (2005) e Braun
É importante ressaltar que, no dia do
(2007), esse momento é parte da 1ª etapa da
trabalho de campo, o próprio trajeto deveria
fase de planejamento didático do trabalho de
ser considerado como elemento de análise da
Sanches, F. O.
862
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paisagem,
como
parte
das
condicionantes ou não da ocupação espacial
discussões, de ordem física, da ótica humana
junto às encostas e proximidades de corpos
e econômica e, principalmente, de uma
d'água, etc.). Nesse caso, mesmo tendo como
perspectiva
objeto principal deste trabalho de campo as
ambiental
integrante
ou
mesmo
socioambiental (Sanches, 2005).
características
geológico-geomorfológicas,
A leitura da paisagem (uma das
não poderíamos e nem deveríamos nos furtar
habilidades iniciais a serem desenvolvidas
a aproveitar a saída da sala de aula, ainda que
nessa atividade) deveria ser exercitada desde
como caráter ilustrativo, conforme citado por
o início do roteiro do trabalho de campo até a
Compiani
sua finalização, quando então retornariam ao
Scortegagna (2001), para discutir temáticas
gabinete para a organização e sistematização
referentes
de ideias, dados e registros, para elaboração
conhecimento geográfico.
do relatório final.
Com
e
a
Carneiro
outras
o
(1993)
áreas
auxílio
do
de
apud
amplo
recursos
Cabe destacar que ao iniciar a viagem,
provenientes do sensoriamento remoto, por
do fundo do vale do Paraíba em direção as
exemplo, de imagens de radar obtidas pelo
terras altas da Mantiqueira, o aluno poderia
projeto SRTM (Shuttle Radar Topographic
encontrar toda uma sequência de paisagens
Mapper),
que se sucederiam de acordo com aspectos
computacional (software globalmapper), seria
naturais e antropogênicos (transição dos
possível observar os acentuados contrastes
núcleos urbanos ao longo do eixo rodoviário
topográficos decorrentes dos movimentos
da rodovia Presidente Dutra, transição entre o
tectônicos que deram origem à formação
espaço urbano e o não urbano, seus padrões
regional (grabem ou fossa tectônica), como
de
aponta a Figura 2.
organização
socioespacial,
variáveis
tratadas
em
ambiente
Figura 2. Imagem de radar obtida pelo projeto SRTM (Shuttle Radar Topographic Mapper), tratada tridimensionalmente no software Globalmapper Sanches, F. O.
863
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Ao
subirmos
a
escarpa
da
para a participação da variável geossistêmica
Mantiqueira, intencionalmente nos meses de
climatológica na formação dos solos rasos, na
junho ou agosto, buscaríamos aproveitar o
sua estreita relação com a fitogeografia local,
padrão das características climáticas da época
sobretudo com o chamado “efeito montanha”
– estação seca e temperaturas baixas –, com o
na sucessão da vegetação (Figura 3).
intuito de acentuar a sensibilidade do aluno
Figura 3. Perfil de relevo mostrando o chamado “efeito montana” na Floresta Ombrófila Mista Fonte: Veloso, 1991. A escolha por esse período do ano
principalmente, a questão da segurança.
também se devia à baixa probabilidade de
A trilha de aproximadamente seis
chuvas, fato que poderia comprometer a
quilômetros inicia-se com certa tranquilidade
segurança
na
do terreno, sendo possível, nesse trecho da
atividade de campo no alto do parque (riscos
caminhada, observar a singularidade quase
de
que
de
alunos
isolamento,
e
elevada
professores
pluviosidade,
nebulosidade, etc.).
bucólica
da
paisagem.
Complexas
formações herbáceo-arbustisvas e arbóreas de
Uma vez no Posto Avançado da
baixíssimo porte caracterizam o recobrimento
Agulhas Negras, a opção da “Trilha das
vegetal do terreno, descrito por Santos (2000)
Prateleiras” apresentou-se como a mais
como um local formado por conjunto
apropriada para o evento, em decorrência do
intrincado de combinações de variáveıs dentro
grande número de participantes (geralmente
do mesmo tipo de relevo, de grande amplitude
um grupo com cerca de 40 alunos e três ou
de altitude, temperatura e variações de
quatro professores), os conteúdos a serem
pedregosidade.
trabalhados, a baixa dificuldade da trilha e,
Seriam
Sanches, F. O.
elementos
observáveis
na
864
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paisagem
ainda
desenvolvida
a
nas
cobertura
planícies
vegetal
fluviais
em
arbustais, arbustais densos e florestas de pequeno porte.
altitudes em torno de 2.400m e os sedimentos
Simultaneamente,
os
afloramentos
turfosos responsáveis pelas diferenças na
rochosos e solos pedregosos com pouca ou
vegetação
as
sem cobertura vegetal permitem ainda o
combinações geossistêmicas da “exploração
desenvolvimento de um sistema composto por
biológica”
bromélias,
de
entorno.
das
manifestam-se
No
campo,
formações como
florísticas
campos,
campos
alagadiços, campos associados a arbustais,
líquens,
briófitas,
orquídeas,
cactáceas ou outras espécies adaptadas a essas condições (Figura 4).
Figura 4. Início da trilha em direção ao Pico das Prateleiras
Adotando-se
como
escala
de
formação do vale do rio Campo Belo ter
abordagem o nível geossistêmico proposto
origem
por Bertrand (2004), nessa primeira etapa da
cenozóicos que atingiram a região de uma
caminhada rumo ao pico das Prateleiras
forma geral, ou nas glaciações pleistocênicas
caberia o registro da participação das
destacadas por Ab'Sáber e Bernardes (1958),
principais
componentes
geossistêmicas
e sobre a formação vulcânica quartzo-sienito
envolvidas
na
morfogenética
e nefelina-sienito-foiaito do final do Cretáceo
dinâmica
estrutural e escultural da paisagem local. A discussão sobre o fato de a
Sanches, F. O.
nos
movimentos
tectônicos
(Santos, Pires Neto e Csordas, 2000; Perrotta, 2005) é necessária, como base para a
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caracterização da paisagem.
profundas caneluras, orientadas por suas
As evidências paleoclimáticas e o
diáclases.
comportamento climático na região permitem
A análise da paisagem local nas
observar a extreita relação com a morfologia
unidades Geossistêmica, Geofácie e Geótopo
local. Por localizar-se nas superfícies mais
(escalas
elevadas da serra da Mantiqueira, sobretudo
discorrer sobre os processos de decomposição
acima
dos inúmeros blocos rochosos (matacões) e
dos
1600m
comportamento
de
altitude,
climático
pode
o ser
suas
têmporo-espaciais)
depressões
turfosas
permitem
alinhadas
ao
considerado com sendo mesotérmico com
talvegue, cortado por saltos e barras (rupturas
verão brando e estação chuvosa no verão
de declive), que dá a impressão de se tratar de
(Cwb). Embora a precipitação anual fique em
um pequeno vale suspenso.
torno de 2400 mm, o parque enfrenta um
Ao observar a face voltada para as
longo período de baixíssima precipitação, do
terras mineiras, visualisam-se “circos” de
final de abril até o final de outubro. Em
fundo pantanoso onde se encontram as
decorrência
baixas,
nascentes dos ribeirões locais, denotando
sobretudo no inverno (médias em torno de
existência de evidências de geleiras no
11,4 ºC e mínimas de 8,2 ºC), é comum a
quartenário,
ocorrência de geadas e eventuais, porém
topográficas.
das
temperaturas
raras, quedas de neve (Santos e Zican, 2000). Por sua vez, Ab'Saber e Bernardes (1958)
descrevem
de
características
tais
geleiras
pleistocênicas, ainda que limitadas a alguns quilômetros quadrados, explicaria os degraus
discussão sobre a possível ocorrência (ou não)
suspensos, os traços de “encarneiramento”
de glaciações pleistocênicas no maciço de
(rochas moutonnés) dos blocos em sua borda
Itatiaia
estudos
e o perfil côncavo de base das vertentes,
desenvolvidos por Emmanuel De Martonne,
caracterizando a forma em “U” desses vales,
que destaca que a condição singular em que
assim como os amplos circos em sua
um batólito de sienito tenha alcançado tal
montante.
altitude,
uma
existência
suas
complexa
fazendo
que
A
visto
referências
submetido
as
tais
a
condições
Contribuindo
para
tais
deduções,
atmosféricas, explicaria a originalidade de seu
encontraríamos a formação de cones de
modelado. O fato de essas rochas (formadas
dejeção de torrentes de regime fluvio-glacial,
por feldspatos alcalinos) serem sensíveis à
com
decomposição
(processo
encontrados na baixa vertente da Mantiqueira
intempérico químico), às elevadas chuvas de
em direção ao rio Paraíba do Sul, no distrito
tempestades do verão e à ação eólica
de Homem de Melo.
por
hidratação
explicaria a nudez das massas do cume e suas
Sanches, F. O.
materiais
essencialmente
Corroborando
tais
grosseiros
interpretações
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Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2011) 857-871
acerca das possíveis glaciações no maciço de
formação de tais caneluras às glaciações
Itatiaia, verificar-se-ia a existência de uma
ocorridas no período pleistocênico.
drenagem
desordenada,
esvaziamento
de
típica
circos
de
um
Em continuidade pela trilha, em
pós-glacial
direção ao pico das Prateleiras, observa-se
interligando depressões lacustres.
que, logo após o abrigo Rebouças, o leito do
Quanto aos processos morfogenéticos
rio Campo Belo assume um trecho mais
no nível do Geofácie, ou mesmo do Geótopo,
acidentado. Isso se deve a prováveis rupturas
de acordo com a proposição metodológica de
de declive que geram pequenas quedas d'água
Bertrand
e corredeiras por aproximadamente uns dois
(2004),
poderiam
ser
aqui
trabalhados, ao analisar-se a formação dos
quilômetros
solos
novamente uma planície de maior dimensão.
extremamente
jovens
e
delgados
à
jusante,
até
encontrar
(litólicos) decorrentes da combinação dos
Nesse trecho do relevo, o vale tende a
processos intempéricos fisico-químicos que
assumir a forma da letra “U” (sendo essa uma
atuam sobre o embasamento rochoso da
das fortes características de processos de
elevada
encostas
glaciação), o que, em certos casos, pode ser
combinada com a dinâmica das águas
associado aos processos paleoclimáticos de
superficiais.
glaciação descritos por Ab'Saber e Bernardes
declividade
de
suas
A longa estação seca (abril a outubro)
(op. cit.).
favorece, em grande parte, a ocorrência de
A cobertura vegetal dos campos de
processos intempéricos de ordem física,
altitude, juntamente com as depressões do
sobretudo os termoclásticos, submetendo as
terreno recobertas por espelhos d'água e a
províncias
de
formação de solos rasos, tende a encobrir e
degradação, por exemplo, o de esfoliação
dificultar análises mais profundas de outras
esferoidal (erosão por “casca de cebola”,
evidências e vestígios glaciais (solos que
responsável pela formação arredondada dos
foram
inúmeros matacões.
acúmulo
geológicas
a
processos
congelados, de
superfícies
detritos
estriadas,
supostamente
Outro processo intempérico que pode
transportados pela frente de geleiras, etc). No
ser facilmente observado em campo é o de
entanto, acredita-se que caberiam, neste e em
oxidação do hidróxido de alumínio existente
outros casos, futuros trabalhos de campo de
nas rochas sieníticas. A coloração escura
caráter mais investigativos e detalhados. No
atribuída às caneluras existentes no pico da
momento,
cabem
Agulhas Negras é decorrente de tal processo
despertem
interesse
associado a processos de erosão diferencial
procederem a outras pesquisas sobre o
(minerais mais susceptíveis à solubilização).
assunto. A Figura 5 representa esse trecho do
Já Ab'Saber e Bernardes (1958) atribuem a
vale do rio Campo Belo.
Sanches, F. O.
aqui nos
reflexões
que
alunos,
para
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Figura 5. Vale na forma de “U” no médio curso do rio Campo Belo No último trecho da trilha, já na base
“marmitas” (Figura 6a) existente nas rochas e
do pico das Prateleiras, a atenção dos alunos
para a grande massa rochosa diaclasada que
deveria direcionar-se para a formação das
dá nome ao pico (Figura 6b).
Figura 6. a. Marmita formada na base do pico das Prateleiras; b. Vertente do pico das Prateleiras voltada para o vale do Paraíba; c. Caneluras em bloco de matacão formada por processo de erosão diferencial
Sanches, F. O.
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Esclarecimentos sobre a existência de
contrafortes da serra do Mar) pode ser
brechas, juntas e diáclases nas rochas do pico
considerada como uma “Região Natural” –
das Prateleiras se fazem necessários para que
unidade de paisagem proposta por Bertrand
os processos de formação e da dinâmica
(2004). É possível analisar a complexa
interna e externa discutidos em sala possam
dinâmica dos aspectos físicos envolvidos na
ser bem compreendidos. Sua origem remonta
gênese do lugar (descrito por Bertrand como
ao lento resfriamento e à regressão do
potencial ecológico e exploração biológica),
material vulcânico, à formação de planos de
aspectos que se integram e que condicionam
diaclasamento ortogonais, às suas arestas
toda uma relação socioespacial por parte do
sujeitas ao ataque dos agentes intempéricos,
elemento humano (ação antrópica), por meio
etc. (Figura 6b).
da distribuição de seus núcleos urbanos e sua
Convém ressaltar que um dos aspectos
ocupação rural, por exemplo.
que sugeriam a adoção de procedimentos de segurança na escolha dessa trilha diz respeito
2. Reflexões Finais
à possibilidade de ocorrência de formação de
Embora duramente criticada nos anos
nuvens no alto da escarpa da Mantiqueira. A
1960 e 1970, a adoção de atividades práticas
circulação atmosférica peculiar ao vale do
em campo – trabalhos de campo – atualmente
Paraíba permite que, dependendo do sistema
tem sido considerado como excelente recurso
atmosférico em atuação, o aluno possa
didático para promoção de processos de
vislumbrar o deslocamento vertical das
aprendizagem, aperfeiçoamento e formação
nuvens. No entanto, na possibilidade de
dos acadêmicos.
tempo nublado associado a fortes ventos e a
No que diz respeito especificamente à
formação de neblinas de forma repentina, sob
formação acadêmica do geógrafo, sobretudo
o risco de desaparecer da mesma forma,
se considerados os fundamentos, processos e
reforça o caráter de segurança, visto que o
conceitos da geografia física, os trabalhos de
risco de pequenos acidentes (torção de
campo mostram-se extremamente importantes
tornozelos, pequenas quedas e escorregões)
para sua apreensão. Processos intempéricos
torna-se alto.
(físicos, químicos e biológicos), dinâmica
Culminando com a chegada à base do
morfoestrutural e morfoescultural, fenômenos
pico das Prateleiras, há possibilidade de se
atmosféricos, formações vegetais e relações
observar a magnífica paisagem do vale do
biogeográficas e, sobretudo a abordagem dos
Paraíba o alinhamento das elevadas cristas da
problemas socioambientais são amplamente
serra da Mantiqueira e da serra da Bocaina. A
trabalhados além das paredes da sala de aula.
visão de tal conjunto (escarpa de planalto,
Desde uma simples atividade de
vale tectônico – grábem e serraria dos
campo orientada até a mais complexa coleta
Sanches, F. O.
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de dados em sítios experimentais, os trabalhos
Bertrand, G. (2004). Paisagem e geografia
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física global: esboço metodológico. R. RA´E
com o universo dos processos naturais,
GA, Curitiba, n. 8, p. 141-152,
econômicos e sociais.
UFPR.
Editora
A proposta de roteiro no Posto Avançado das Agulhas Negras, no PARNA de Itatiaia, vem com intuito de nortear trabalhos de campo que visem compreender sua
formação,
processos
envolvidos
e
dinâmica geossistêmica. Por caracterizar-se como um local com fortes características naturais,
o
roteiro
proposto
procurou
demonstrar a dinâmica de elementos ligados aos aspectos físicos da geografia (geologia,
Braun, A. M. S. (jan./jun. 2007). Rompendo os muros da sala de aula: o trabalho de campo na aprendizagem em Geografia. Ágora, Santa Cruz do sul: v. 13, n. 1, p. 250-272. Compiani,
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Posto
Perrotta, M. M.; Salvador, E. D.; Lopes, R. C.
Avançado da Agulhas Negras, localizado no
D'agotino, L. Z.; Peruffo, N; Gomes, S. D.;
alto das terras da Mantiqueira, como a própria
Sachs, L. L. B.; Meira, V. T.; Lacerda Filho,
área
numa
J. V. (2005). Mapa Geológico do Estado de
complexa cadeia de relações que ultrapassam
São Paulo, escala 1:750.000. Programa
seus limites político-administrativos.
Levantamentos Geológicos Básicos do Brasil,
do
Parque
tanto
estão
o
inseridos
Porém, longe de esgotar o assunto,
CPRM, São Paulo.
com esta proposta de roteiro busca-se contribuir para o conjunto de trabalhos já desenvolvidos na região desde muito antes da criação do parque, que encanta acadêmicos, aventureiros e amantes de uma das mais belas
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