O trabalho policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul

August 12, 2017 | Autor: Acacia Hagen | Categoria: Policia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

O TRABALHO POLICIAL: ESTUDO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Porto Alegre 2005

ACÁCIA MARIA MADURO HAGEN

O TRABALHO POLICIAL: ESTUDO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Sociologia Orientadora: Professora Doutora Rubini Liedke

Porto Alegre 2005

Elida

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO(CIP) BIBLIOTECÁRIOS RESPONSÁVEIS: Leonardo Ferreira Scaglioni CRB-10/1635 Raquel da Rocha Schimitt CRB-10/1138

H143T

Hagen, Acácia Maria Maduro O trabalho policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul / Acácia Maria Maduro Hagen. – Porto Alegre, 2005. 328 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Porto Alegre, BR-RS, 2005. Orientadora: Profa. Dra. Elida Rubini Liedke. 1. Polícia civil : Rio Grande do Sul; 2. Recrutamento de pessoal; 3. Relações sociais; 4. Relações de gênero; 5. Violência policial; 6. Sociologia. I. Título. CDD 352.2

ACÁCIA MARIA MADURO HAGEN

O TRABALHO POLICIAL: ESTUDO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Sociologia.

Aprovado em 7 de novembro de 2005

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca IFCS/UFRJ

______________________________________________ Profa. Dra. Anita Brumer PPGS/UFRGS

______________________________________________ Prof. Dr. José Carlos dos Anjos PPGS/UFRGS

______________________________________________ Profa. Dra. Tânia Steren IFCH/UFRGS

Para Otto, Maria Rita e Maria Clara

AGRADECIMENTOS A realização desse trabalho só foi possível graças ao apoio de várias pessoas. Gostaria de deixar aqui registrado meu agradecimento a elas. A Professora Doutora Elida Rubini Liedke, além de suas excelentes aulas de Teoria Sociológica Avançada, ajudou-me de maneira inestimável na condição de orientadora. Sempre disponível e atenta, discutiu comigo todos os passos do trabalho, expondo seus pontos de vista com firmeza, mas respeitando minhas idéias. No Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul encontrei um ambiente acolhedor e intelectualmente estimulante, especialmente no contato com as professoras doutoras Naira Lapis, Eva Machado Barbosa Samios e Soraya Maria Vargas Cortes, com quem cursei as disciplinas do Doutorado, e com a professora doutora Clarissa Eckert Baeta Neves, coordenadora do Programa durante a maior parte de minha formação. Um exemplo do apoio concreto do PPGS aos alunos foi o auxílio financeiro que recebi para participar do IV Congresso da Associação Latinoamericana de Sociologia do Trabalho, realizado em Havana, Cuba, em 2003. As servidoras administrativas Denise Farias e Regiane Accorsi, sempre eficientes, tornaram todos os procedimentos da Secretaria muito simples para os alunos. A bibliotecária Raquel Schmitt, da Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, explicou-me pacientemente os detalhes das regras de apresentação do trabalho. Os membros da banca de qualificação do projeto, professores doutores Naira Lapis, Marcos Luiz Bretas e José Carlos dos Anjos, apresentaram críticas, comentários e sugestões que muito me auxiliaram. O professor Bretas, sempre disposto a trocar idéias, indicar fontes de informação e emprestar seus livros,

contribuiu sobremaneira para alargar meus horizontes em relação aos estudos sobre a polícia. Aos membros da banca de defesa da tese, professores doutores Anita Brumer, José Carlos dos Anjos, Marcos Luiz Bretas e Tânia Steren, igualmente agradeço pelas contribuições. Os policiais entrevistados, homens e mulheres, foram generosos o suficiente para compartilhar comigo suas experiências, suas opiniões e seus sentimentos. Embora não possa citá-los nominalmente, por uma questão de ética da pesquisa, gostaria que soubessem que lhes sou imensamente grata. Minha experiência de trabalho na Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul tem sido muito positiva. Conheci pessoas íntegras, esforçadas e bem humoradas, que tornam a convivência diária um prazer. Alguns colegas contribuíram especialmente para a elaboração deste trabalho, seja discutindo questões específicas, fazendo contatos com os entrevistados ou me ajudando a obter informações. Devo muito a eles, especialmente aos seguintes colegas: historiógrafa Rosana Gauer, bibliotecárias Marilda da Cruz Diederichs, Maria Bernadete Tachini Machado e Rosane Lopes, comissários Getúlio Jair Schulz Vieira e Ayres Luiz Ferreira da Silva, escrivães Alaídes Toniazzo, Antônio Risso, José Luiz Alves de Carvalho, Maria Bernardete Corsini Pires, Maria da Graça Ruschel e Silvia Wudarcki, inspetor Alexandre Ortiz Ferreira e investigador Luiz Carlos da Silva. O delegado Adalberto Abreu de Oliveira procurou me ajudar a obter melhores condições de trabalho, através de uma licença específica para estudar; apesar do resultado negativo do pedido, registro aqui seu esforço e boa vontade. Os delegados Carlos Alberto Sperotto, Ênio Gomes de Oliveira e Elisângela de Mello Reghelin, em períodos diversos, também me apoiaram enquanto dirigentes da Academia. Com as

sociólogas Letícia Maria Schabbach e Aida Griza, o inspetor Richardson Santos da Luz e o escrivão Saulo Bueno Marimon, colegas professores da disciplina de Sociologia da Violência, vivi as dificuldades e alegrias de participar do processo de formação profissional dos servidores policiais. Com eles e com a delegada Elisabete Cristina Barreto Müller também compartilhei da condição de estudante de pósgraduação, trocando sugestões de bibliografia e discutindo nossas produções textuais. Todos eles, com sua amizade e solidariedade, tornaram minha vida mais rica. Os inspetores Anelise Nunes Quiroga e Luis Jeronimo Alves Roscoff, do Departamento

de

Informática

Policial,

forneceram

informações

estatísticas

essenciais ao estudo do conjunto do efetivo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Pedro Robertt, meu colega de turma do Doutorado, tornou-se um amigo querido, com quem discuti muitas das questões do trabalho. Claudia Mauch, colega historiadora e amiga, não apenas apresentou-me ao seu orientador, o professor Bretas, como também foi muito generosa ao compartilhar informações e reflexões comigo. Os participantes da Oficina de Estudos e Investigação Social sobre o Trabalho, coordenada pela professora Elida em 2001 e em 2002, discutiram as primeiras versões de meu projeto de pesquisa, apresentando sugestões importantes. José Luiz e Cecy Maduro, meus pais, Gloria Ramirez Portela, minha avó, e Luiz Alcides e Paula Maduro, meu irmão e minha cunhada, contribuíram com seu apoio e incentivo, acreditando em minha capacidade mais do que eu mesma. Otto, meu marido, cuja presença é tão importante em minha vida, contribuiu para esta tese com suas opiniões, comentários e questionamentos, que me levaram a novas formas de ver as questões da masculinidade.

Resumo A tese apresenta um estudo do trabalho policial, tendo por referência empírica a Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. O trabalho policial é analisado a partir das relações sociais no campo de poder jurídico, que engloba, além da Polícia Civil, a Polícia Militar, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Apresenta-se e analisa-se o processo de mudança quanto aos métodos de recrutamento e de formação dos novos policiais. Apresenta-se também uma análise das mudanças ocorridas no perfil sócio-demográfico dos policiais civis ao longo do período entre 1970 e 2004. Detalham-se as atividades desenvolvidas nas delegacias de polícia, apresentando os seguintes setores: o plantão, a investigação, o cartório e a secretaria. Discutem-se as formas através das quais, no desempenho das atividades policiais, ocorrem lutas pela classificação e pelo reconhecimento, que constituem múltiplas oposições, tais como entre "operacional" e "burocrata" e agente e delegado, entre outras. A abordagem das conexões entre trabalho policial e relações de gênero se faz presente ao longo do desenvolvimento da análise. Considera-se que no estudo do trabalho policial civil, as questões de gênero remetem às representações e práticas de violência policial. Em outros termos, argumenta-se acerca da importância das relações de gênero na análise do trabalho policial, especialmente no que diz respeito às concepções de masculinidade, constitutivas classicamente da cultura policial, e às novas formas de expressão dessas relações sociais a partir da crescente presença feminina nos quadros da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. A tese propicia a reflexão sobre as formas que assumem, hoje, as carreiras na Polícia Civil do Rio Grande do Sul, apontando avanços, embora em ritmo que inclui tempos de parada e espera, em direção ao uso de critérios públicos abrangentes na condução de seu agir.

Palavras-chave: Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Trabalho policial. Relações de gênero. Violência policial.

Abstract The thesis presents a study of police work, having for empirical reference the Civil Police of the State of Rio Grande do Sul. Police work is analyzed starting from social relations in the juridical field of power, that includes, beyond the Civil Police, the Military Police, the State Prosecution Service and the Judiciary. The process of change regarding the methods of recruitment and training of the new policemen is presented and analyzed. An analysis of the changes occurred in the sociodemographic profile of the civil police personnel in the period between 1970 and 2004 is also presented. The activities developed in police stations are detailed, presenting the following sectors: 24 hour service ("plantão"), investigation, registrar office ("cartório") and police station office. The forms through, in the performance of police activities, fights for classification and recognition occur, constituting multiple oppositions, such as between "operational" and "bureaucrat", and police officers of different ranks, among others, are discussed. The approach that considers connections between police work and gender relations is present along the development of the analysis. It is considered that in the study of the civil police work, gender issues relate to practices and representations of police violence. In other terms, it is asserted the importance of gender relations to the analysis of police work, especially regarding to concepts of masculinity, classic constituent of police culture, and to new forms of expression of these social relations due to the increasing female presence among the personnel of the Civil Police of the State of Rio Grande do Sul. The thesis afford the reflection on the forms that assume, today, careers in the Civil Police of Rio Grande do Sul, pointing at advances, at a pace, nevertheless, that includes stoppages and waitings, in direction to the use of including public criteria in the conduction of its actions.

Key-words: Civil Police of Rio Grande do Sul. Police work. Gender relations. Police violence.

Lista de tabelas Tabela 1 - Ano de realização, carga horária e duração dos cursos de formação realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, por cargo - 1978/2004 .............................................................................................................118 Tabela 2 – Estrutura curricular dos cursos de formação de delegado, inspetor e escrivão de polícia realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1976 .............................................................................................120 Tabela 3 – Estrutura curricular do curso de formação de investigador de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1980 122 Tabela 4 – Estrutura curricular do curso de formação de escrivão e inspetor de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1994-1995 ...............................................................................................................123 Tabela 5 – Estrutura curricular do curso de formação de escrivão e inspetor de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2003 ........................................................................................................................129 Tabela 6 – Estrutura curricular do curso de formação de delegado de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2004 ................................................................................................................................130 Tabela 7 – Comparação das cargas horárias de disciplinas dos cursos de formação de agentes e de delegados realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2003 e 2004, respectivamente. Disciplinas agrupadas por áreas selecionadas .................................................................................................131 Tabela 8 – Taxas de homicídio doloso, lesão corporal, furto e roubo – Brasil e unidades da Federação selecionadas – 2003 (taxas por 100.000 habitantes) .......143 Tabela 9 – Ocorrências registradas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, por categorias selecionadas – 2000-2003.....................................................................148 Tabela 10 – Ocorrências policiais registradas por categorias selecionadas – Rio Grande do Sul, 2000-2003 ......................................................................................149 Tabela 11 – Comparação entre dados fornecidos pela Secretaria da Justiça e da Segurança e pela Polícia Civil sobre inquéritos policiais instaurados em 2003 – Rio Grande do Sul .........................................................................................................153 Tabela 12 - Termos circunstanciados e processos especiais de apuração de atos infracionais atribuídos a adolescente instaurados pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, segundo categorias selecionadas - 2002-2003................................................153 Tabela 13 – Distribuição dos servidores policiais entre os departamentos da Polícia Civil, por ano e tipo de departamento – Rio Grande do Sul, 2000-2003 .................175 Tabela 14 – Distribuição dos servidores policiais lotados nos órgãos operacionais da Polícia Civil, por setor – Rio Grande do Sul, 2000-2003 .........................................175 Tabela 15 – Número de matrículas de servidores, totais e médias das remunerações mensais por órgãos selecionados do Governo do Estado do Rio Grande do Sul – 2004 ........................................................................................................................196

Tabela 16 – Distribuição das matrículas por faixas de remuneração mensal bruta – Rio Grande do Sul, Poder Executivo, administração direta – janeiro de 2004 ........197 Tabela 17 – Comparação entre exigência de escolaridade e remuneração de cargos selecionados - Rio Grande do Sul - Poder Executivo, Poder Judiciário e Ministério Público - 1998/2005 ................................................................................................198 Tabela 18 – Número de policiais civis do Rio Grande do Sul por cargo, classe e sexo – 2004. ....................................................................................................................200 Tabela 19 – Distribuição dos policiais civis do Rio Grande do Sul segundo o período de ingresso na instituição, por sexo – 2004 ............................................................201 Tabela 20 – Proporção de policiais civis que ocuparam outro cargo na Polícia Civil ou nos órgãos vinculados à Secretaria da Segurança Pública antes do cargo atual – Rio Grande do Sul – 2004 .......................................................................................203 Tabela 21 – Número de sindicâncias analisadas, por cargo e ano - Arquivo da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul ...................................207 Tabela 22 – Médias de idade de inspetores e escrivães, por ano de concurso e sexo – Rio Grande do Sul, 1973/2003 .............................................................................209 Tabela 23 – Aprovados nos concursos da Academia de Polícia Civil, por sexo, segundo cargo e ano do concurso – Rio Grande do Sul, 1973/2003 ......................210 Tabela 24 – Grau de escolaridade dos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil – Rio Grande do Sul – 1975-1976.....................................211 Tabela 25 – Grau de escolaridade dos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil, por sexo – Rio Grande do Sul – 1993-1994 .....................212 Tabela 26 – Distribuição dos candidatos a concurso para inspetor e escrivão da Polícia Civil que possuíam curso Superior, segundo os principais cursos de graduação, por sexo - Rio Grande do Sul, 1994 .....................................................212 Tabela 27 – Distribuição dos candidatos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil, por curso de graduação e sexo - Rio Grande do Sul, 1999 e 2003 ........................................................................................................................214 Tabela 28 – Concluintes de cursos de graduação, segundo os dez cursos com maior número de concluintes - Rio Grande do Sul, 1994 e 1997......................................214 Tabela 29 – Distribuição dos aprovados nos concursos para inspetor e escrivão da Polícia Civil segundo a classificação da ocupação e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1975, 1976 e 1978 ..................................216 Tabela 30 – Distribuição dos aprovados nos concursos para inspetor e escrivão da Polícia Civil segundo a classificação da ocupação anterior ao concurso – Rio Grande do Sul, 1992-1994 ...................................................................................................217 Tabela 31 – Distribuição dos aprovados para os cargos de inspetor e escrivão da Polícia Civil, segundo grau de escolaridade, ocupação anterior e sexo – Rio Grande do Sul, 1993-1994 ...................................................................................................219 Tabela 32 – Distribuição dos candidatos aprovados no concurso para escrivão e inspetor da Polícia Civil, segundo o sexo, a classificação da ocupação anterior e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1999 ...........220

Tabela 33 – Distribuição dos alunos candidatos a inspetores e escrivães da Polícia Civil segundo o sexo, a classificação da ocupação e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 2003........................................................220 Tabela 34 – Aprovados nos concursos para o cargo de delegado da Academia de Polícia Civil, por médias de idade, segundo ano de concurso e sexo - Rio Grande do Sul, 1970/2004 ........................................................................................................221 Tabela 35 – Distribuição dos candidatos aprovados nos concursos para delegado da Polícia Civil segundo o sexo - Rio Grande do Sul, 1986/2004 ................................223 Tabela 36 – Distribuição dos aprovados em concursos para delegado da Polícia Civil segundo a ocupação anterior– Rio Grande do Sul, 1970/1981...............................223 Tabela 37 – Distribuição dos aprovados em concursos para delegado da Polícia Civil, por sexo, segundo a classificação da ocupação anterior e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1998, 2004 ...................224 Tabela 38 – Distribuição do efetivo da Polícia Civil segundo número de anos entre o ingresso no cargo e a promoção para a classe atual, por categorias de cargo, classe e sexo –Rio Grande do Sul, 2004 ...........................................................................229 Tabela 39 – Delegados de quarta classe segundo o tempo decorrido entre o ingresso no cargo e o ingresso na classe – Rio Grande do Sul, anos selecionados ................................................................................................................................231 Tabela 40 – Média de número de anos decorridos para promoção à quarta classe do cargo de delegado da Polícia Civil, segundo ocupação anterior na Polícia Civil – Rio Grande do Sul, 1970/2004 ......................................................................................233 Tabela 41 – Mortos e feridos em confrontos com as polícias civil e militar – São Paulo e Rio Grande do Sul, 2000 a 2004 – Taxas por 100.000 habitantes.............249 Tabela 42 – Razão entre mortos e feridos pelas polícias civil e militar – São Paulo e Rio Grande do Sul – 2000 a 2004 ...........................................................................250 Tabela 43 – Policiais feridos e mortos em serviço – São Paulo e Rio Grande do Sul, 2000 a 2004 – Taxas por 100.000 habitantes .........................................................250 Tabela 44 – Pessoas mortas pelas polícias civil e militar – Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, 2000-2003 – taxas por 100.000 habitantes .......................251 Tabela 45 – Reações previstas por policiais entrevistados segundo a situação apresentada – Venezuela, 2001..............................................................................253 Tabela 46 – Ocorrências criminais registradas na Corregedoria de Polícia Civil por categoria – Rio Grande do Sul, 2001-2003 .............................................................254 Tabela 47 – Inquéritos policiais remetidos à Justiça pela Corregedoria de Polícia Civil por categoria – Rio Grande do Sul, 2001-2003 .......................................................254

Sumário

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................17 1 PROFISSÃO, PROFISSIONALIZAÇÃO E CULTURA POLICIAL ........................30 1.1 Definindo a polícia ............................................................................................................30 1.2 Polícia e profissão, uma discussão em aberto ................................................................40 1.2.1 Os conceitos de profissão ........................................................................................40 1.2.2 Polícia e profissionalização .....................................................................................45 1.3 A cultura policial ..............................................................................................................50 2 POLÍCIA CIVIL, CAMPO JURÍDICO E HABITUS .................................................58 2.1 Polícia civil e campo de poder jurídico...........................................................................58 2.1 Habitus e trabalho policial ...............................................................................................78 3 O PROCESSO DE RECRUTAMENTO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOS POLICIAIS CIVIS NO RIO GRANDE DO SUL .........................................................93 3.1 Evolução da organização policial no Rio Grande do Sul e do processo de recrutamento dos policiais .....................................................................................................94 3.1.1 As provas intelectuais............................................................................................110 3.1.2 As sindicâncias da vida pregressa .........................................................................112 3.2 Os cursos de formação da Academia de Polícia Civil .................................................113 3.3 O sentido das mudanças no processo de seleção dos policiais civis ...........................132 4 A ATIVIDADE POLICIAL CIVIL...........................................................................139 4.1 Registros da atividade policial.......................................................................................142 4.2 A organização do trabalho em uma delegacia de polícia ............................................154 4.2.1 O plantão ...............................................................................................................155 4.2.2 A investigação .......................................................................................................161 4.2.3 O cartório............................................................................................................... 166 4.2.4 O gabinete e a secretaria........................................................................................168 4.3 As classificações do trabalho .........................................................................................170 4.3.1 Agentes e delegados ..............................................................................................171 4.3.2 Trabalho “burocrático” e trabalho “na rua”...........................................................174 4.3.3 A capital e o interior ..............................................................................................183 4.3.4 Trabalho na rua e vida doméstica ..........................................................................186 4.4 O que a polícia deve fazer? ............................................................................................187 5 O PERFIL DOS POLICIAIS CIVIS DO RIO GRANDE DO SUL ..........................196 5.1 Perfil sócio-demográfico do pessoal ingressante na Polícia Civil (1970-2004)..........205 5.1.1 Explicação metodológica.......................................................................................205

5.1.2 Concursos para escrivão e inspetor de polícia...........................................................209 5.1.2.1 Idade e sexo ........................................................................................................209 5.1.2.2 Escolaridade .......................................................................................................211 5.1.2.3 Ocupação anterior...............................................................................................216 5.1.3 Concursos para delegado de polícia ..........................................................................221 5.1.3.1 Idade e sexo ........................................................................................................221 5.1.3.2 Ocupação anterior...............................................................................................223 5.2 Os policiais e as trajetórias possíveis na instituição ....................................................225 5.2.1 As promoções ............................................................................................................227 6 TRABALHO POLICIAL, VIOLÊNCIA E RELAÇÕES DE GÊNERO ...................234 6.1 Os policiais civis e sua imagem......................................................................................235 6.2 A violência policial..........................................................................................................242 6.3 Quantificando a violência policial letal.........................................................................246 6.4 Delitos não-letais cometidos por policiais.....................................................................252 6.4.1 Os limites entre o lícito e o ilícito na atividade policial civil ....................................257 6.5 As relações de gênero na atividade policial ..................................................................263 6.5.1 Homens e mulheres no trabalho policial ...................................................................265 6.5.2 Divisão sexual do trabalho na Polícia Civil...............................................................268 6.5.3 As mulheres no ambiente masculino .........................................................................274 6.5.4 Questões de gênero no uso da arma de fogo .............................................................277 CONCLUSÃO .........................................................................................................286 REFERÊNCIAS.......................................................................................................293 APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA ........................................................309 APÊNDICE B – NÚMERO DE ALUNOS APROVADOS NOS CURSOS DE FORMAÇÃO PARA CARGOS POLICIAIS REALIZADOS PELA ACADEMIA DE POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, POR ANO E CARGO ....................................................................................................................312 APÊNDICE C – ARTIGOS SELECIONADOS DO CÓDIGO PENAL .....................313

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Introdução O projeto da presente tese, aprovado em janeiro de 2003, intitulou-se “A construção da profissão policial: um estudo da Polícia Civil do Rio Grande do Sul”, e teve como objetivo geral “analisar de que modo se constroem as práticas e representações da profissão policial, tomando-se como referência empírica a Polícia Civil do Rio Grande do Sul.” A questão mais geral então colocada foi a seguinte: existe uma profissão policial ou apenas uma ocupação policial? Indagações mais específicas procuraram detectar: (a) se a realização das atividades do trabalho policial estabelece, entre os atores sociais, a emergência de vínculos que propiciam a construção de uma identidade profissional; (b) nesse caso, como se constroem a identidade policial e as representações que lhe correspondem, especialmente considerando a importância, no trabalho policial, do contato direto com a violência; (c) quais são os conhecimentos teóricos e práticos requeridos institucionalmente, bem como as qualidades individuais reconhecidas, entre os policiais, como necessárias ao seu trabalho; (d) de que modo as questões de gênero estabelecem diferenciações sobre as condições, a identidade e as representações do trabalho policial; (e) de que modo as questões mais gerais do mundo do trabalho, como jornada de trabalho, salário, conteúdo e divisão de tarefas afetam o processo de construção de uma identidade profissional entre os policiais civis e (f) de que modo as orientações ideológico-políticas da direção da Polícia Civil, enquanto instituição integrante do Estado, influenciam a construção da identidade profissional policial. As conexões de sentido entre profissão e ocupação encontram-se amplamente debatidas na área da Sociologia das Profissões, a partir de diversos referenciais teóricos. A abordagem clássica, desenvolvida de forma original na Escola de Chicago, consiste em identificar as características de uma dada profissão,

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analisando a seguir as atividades de trabalho a partir dessas características, buscando verificar até que ponto essas correspondem às primeiras. Um enfoque mais recente e reconhecidamente relevante entre os estudiosos nessa área temática tem como referência os conceitos propostos por Pierre Bourdieu, segundo o qual a constituição e aceitação de indivíduos e grupos sociais como profissionais são consideradas a partir de um processo de lutas pelo controle de uma determinada área de atividade, como disputas pelo capital simbólico em um campo de poder. Na presente tese, procurou-se analisar o trabalho realizado pelos policiais civis tanto no que se refere aos conhecimentos que mobilizam e às atividades que executam, quanto às redes de relações sociais de poder de que fazem parte. Buscase identificar e analisar disputas que se estabelecem entre policiais civis e agentes vinculados a outras instituições do campo de poder jurídico, assim como as divisões sociais no interior da Polícia Civil, buscando definir os limites e perspectivas dessa atuação. A Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul é parte da Secretaria da Justiça e da Segurança, assim como a Brigada Militar, integrando o Poder Executivo estadual. O trabalho dos policiais civis tem, ainda, uma relação direta com o Poder Judiciário e com o Ministério Público, na medida em que depende de autorização judicial para alguns atos e pode ser acionado por tais instituições; além disso, o resultado do trabalho da Polícia Civil, como polícia judiciária, é encaminhado ao Poder Judiciário, mediante a intervenção do Ministério Público. Considerou-se que o estudo do trabalho dos policiais civis deveria ser empreendido tendo em vista a posição da Polícia Civil como uma instituição em que, não obstante a existência de divisões e disputas internas, é generalizada a expectativa de conquista de espaço de decisão frente à concorrência pelo controle

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do processo de investigação criminal, travado especialmente em relação à Brigada Militar, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. A diferença entre ocupação e profissão, questão inicialmente colocada no presente estudo, foi repensada, embora não excluída, à luz desse entendimento. Ganhou maior ênfase, no decorrer da investigação, a análise dos processos de construção de identidades entre os policiais civis, assim como do conjunto dessa categoria social frente às demais posições com as que se defrontam no espaço de poder. O presente estudo tem como objetivos específicos: (a) identificar as tarefas desempenhadas pelos policiais civis, distinguindo as qualidades pessoais e os conhecimentos exigidos para realizar essas tarefas; (b) compreender os significados técnico e político da divisão do trabalho entre os ocupantes dos diversos cargos (delegados, comissários, escrivães, inspetores e investigadores); (c) em particular, compreender o significado de determinadas formas de divisão das atividades entre os policiais civis que se expressam em classificações, tais como as que se estabelecem entre “operacionais” e “burocratas”, entre estar na capital e no interior do Estado, e assim por diante; (d) identificar o modo como se expressam as representações dos policiais civis acerca de seu trabalho, especialmente a partir da perspectiva de gênero; e (e) verificar de que modo ocorrem as relações políticoinstitucionais entre a Polícia Civil, vinculada ao Poder Executivo, subordinada diretamente à Secretaria da Justiça e da Segurança, e as demais agências do Estado constitutivas do campo jurídico, quais sejam, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Alguns dos objetivos acima foram elaborados a partir da literatura sobre o trabalho policial, especialmente Bittner (1990), Skolnick (1993, 1994), Muir (1977), Reiner (1992), Young (1991), Reuss-Ianni (1999), Westley (1953, 1970), Monjardet

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(1996), Fielding (1996), Banton (1964), Bretas (1997a, 1997b) e Bretas e Poncioni (1999). Esses autores destacam a importância das questões ligadas ao contato com a violência, às diferenças de gênero e à chamada cultura policial para o estudo da polícia. Os argumentos desses autores corroboram as observações realizadas pela autora da presente tese acerca da centralidade desses temas no estudo do trabalho policial. Essas observações foram realizadas pela autora, desde janeiro de 2000 até a finalização da presente tese, na Academia de Polícia Civil do Rio Grande do Sul, na condição Historiógrafa, integrante do Quadro dos Servidores Técnico-Científicos do Estado. As hipóteses construídas para esta tese referem-se à análise do significado de oposições entre atividades do trabalho policial, tais como a que se detectou entre o trabalho documental e o trabalho operacional, e também refletem a idéia de que está ocorrendo um processo de mudança na instituição policial e na profissão policial. Em uma primeira hipótese, afirma-se que a construção de práticas e representações profissionais, no sentido de conjuntos de representações e de comportamentos desenvolvidos no trabalho e compartilhados por grupos integrantes da categoria profissional apresenta, na Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, diferenciações a partir de dois tipos básicos: o policial “linha de frente” ou operacional, e o policial “burocrata”, que realiza o trabalho documental. O primeiro é o que se expõe ao contato direto com a violência física, investindo seus esforços na atividade de investigação; o segundo dedica-se às funções administrativas e à elaboração

dos

procedimentos

policiais

(inquéritos

policiais

e

termos

circunstanciados). Esses termos fazem parte do jargão policial, sendo utilizados nas disputas por poder e prestígio entre eles.

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No decorrer da presente tese, procurou-se verificar, a partir dessa primeira hipótese, as articulações entre modalidades de tarefas desempenhadas e posições ocupadas na estrutura de poder da instituição policial. Como será apontado ao longo da análise, essas articulações expressam conexões diversas, em termos de alinhamentos políticos e de prestígio social, cujos elos se fazem e refazem segundo os contextos das trajetórias individuais dos policiais civis e da conjuntura política e jurídica da Polícia Civil enquanto instituição estatal. A segunda hipótese relaciona-se às mudanças ocorridas no perfil sóciodemográfico, econômico e, especialmente, quanto à composição, em termos de relações de gênero, dos indivíduos que ingressam na Polícia Civil a partir do início dos anos 1990. Até essa data, a instituição recrutava majoritariamente indivíduos do gênero masculino e oriundos de grupos situados em posições sociais subordinadas. A partir da década de 1990, entretanto, dois fatores passaram a influenciar no sentido de promover um maior equilíbrio quanto à participação de homens e mulheres na Polícia Civil do Rio Grande do Sul; esses fatores também contribuíram decisivamente para atrair e incorporar à Polícia Civil membros das camadas sociais situadas em posições econômica e culturalmente mais elevadas: (a) as mudanças no mercado de trabalho, intensificadas na década de 1990, com o aumento do desemprego e das formas precárias de trabalho, levando a uma crescente valorização do emprego público estável. Nessa nova situação, de maior procura pelas vagas disponibilizadas em concursos públicos da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, passaram a ingressar na instituição indivíduos portadores de escolaridade e poder aquisitivo maiores do que na situação anterior; (b) o processo de democratização da sociedade brasileira, que levou a mudanças do Estado, mais especificamente,

na

instituição

policial.

Embora,

como

é

sabido,

tenham

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permanecido as práticas de violência policial ilegítimas, essas passaram a ser combatidas através de manifestações da sociedade civil, tais como o fizeram diversas organizações não governamentais dedicadas à defesa dos Direitos Humanos, e também através da atuação de agências do Estado, tais como o Ministério Público. No âmbito da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, parcela relevante da categoria passou a expressar a necessidade de mudar a imagem da instituição. A terceira hipótese refere-se às mudanças provocadas pelo ingresso de um grande número de mulheres na carreira policial. Especialmente como delegadas de polícia, as mulheres passaram a assumir posições de poder, questionando assim as práticas e representações relacionadas à divisão do trabalho até então vigente entre homens e mulheres na Polícia Civil. Também como agentes (inspetoras, escrivãs e investigadoras), as mulheres contribuíram para a construção de novas práticas e de novas imagens da atividade policial,considerando-se que o uso, entre elas, de armas de fogo e seu desempenho em funções com risco de vida, são atitudes que não correspondem a uma visão convencional da feminilidade, particularmente na Polícia Civil. O trabalho de observação cotidiana, realizado com vistas à elaboração da presente

tese,

permitiu

reunir

uma

grande

quantidade

de

informações,

especialmente em relação aos aspectos que se revelam nas histórias contadas na hora do café, nos comentários informais sobre os critérios para as promoções e trocas de chefias, nas formas de encaminhamento das questões do dia-a-dia, nas formas de tratamento, ou seja, as “regras do jogo” estabelecidas entre os policiais, às quais não se teria acesso sem uma convivência mais prolongada. O uso de fontes estatísticas, de documentos escritos e o diálogo com outras interpretações

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sobre o trabalho policial na literatura foram os recursos com os quais se procurou controlar, pelo menos em boa medida, os riscos de envolvimento pessoal na análise. É interessante comparar o tipo de experiência vivenciada pela autora da presente tese na Academia de Polícia Civil do Rio Grande do Sul com a ocorrida em outras instituições policiais. Poncioni (2003) realizou seu trabalho de campo nas Academias de Polícia do Rio de Janeiro, Civil e Militar, e relatou que os policiais a aconselhavam a ter cuidados especiais para não ser erroneamente identificada como policial, devido à ocorrência de mortes de policiais civis e militares, em diversos pontos da cidade, com características de execução, o que fazia com que os próprios policiais militares evitassem o uso do uniforme fora de seus locais de trabalho. Esse tipo de receio entre os policiais civis não foi detectado no decorrer das observações realizadas em Porto Alegre, ao longo do presente estudo. Apesar de não haver um uniforme da Polícia Civil, durante o curso de formação de inspetores e escrivães realizado em 2003, os alunos, por vontade própria, mandaram confeccionar abrigos com o logotipo da Academia. Esses abrigos logo começaram a ser usados também pelos funcionários e professores, e no curso de formação seguinte se tornaram obrigatórios para os alunos. Além dessa, várias formas de identificação são usadas pelos policiais civis, como a impressão do brasão da Polícia Civil em camisetas, além do uso de adesivos nos vidros dos carros e de broches pregados nas roupas. Além do referido trabalho de Poncioni (2003), outros estudos foram considerados quando da busca de informações acerca da atividade policial em outros Estados da Federação, como Zaverucha (2003), Mingardi (2000), Muniz (1999), Soares e Musumeci (2005), Costa, A. (2004) e Costa, N. (2004). Em relação

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ao Rio Grande do Sul, os trabalhos de Oliveira (1992), Pereira (2002), Pires (2002) e Marimon (2003) foram elaborados por policiais, civis e militares, que se propuseram a refletir sobre a sua prática a partir de conhecimentos por eles desenvolvidos com base em cursos de graduação e pós-graduação em instituições de ensino superior. Nummer (2005) e Amador (2002) trazem novos olhares, da antropologia e da psicologia, respectivamente, para a análise da Polícia Militar do Rio Grande do Sul. As fontes documentais utilizadas para a elaboração desta tese constam do acervo do Arquivo da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, onde se encontram os registros da atividade da instituição desde seu início, em 1957, até o presente. Cabe salientar que a produção documental não manteve as mesmas características ao longo desse período, variando em quantidade e qualidade. Além disso, de acordo com as normas do Sistema Estadual de Arquivos do Estado do Rio Grande do Sul (SIARQ), há o descarte periódico dos documentos cuja destinação não seja a guarda permanente, de acordo com a Tabela de Temporalidade de Documentos da instituição. As séries analisadas foram as seguintes: – Relatórios anuais – Divisão de Assessoramento Especial, que fornecem uma visão geral das atividades da Academia de Polícia Civil; – Editais de abertura de concurso – Divisão de Recrutamento e Seleção, com informações sobre o número de vagas em cada concurso, as formas de seleção utilizadas e as exigências apresentadas aos candidatos; – Planos, relatórios e conteúdos programáticos – Divisão de Ensino, com informações sobre as grades curriculares dos cursos de formação e os conteúdos programáticos das disciplinas; e

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– Sindicâncias – Divisão de Recrutamento e Seleção, parte integrante do processo seletivo com informações relativas à vida pregressa dos candidatos. Para selecionar os policiais civis a serem entrevistados, utilizou-se procedimento intencional, com vistas a abranger profissionais de ambos os sexos, em diferentes níveis hierárquicos e situações de trabalho. Os entrevistados formam um grupo heterogêneo, tanto em relação a esses critérios, como também em termos de trajetórias de vida, dentro e fora da polícia, sendo constituído por 19 pessoas. No que respeita à análise de práticas policiais ilícitas, um dos poucos estudos que obtiveram informações diretas a partir do interior de uma organização, como membro integrante dessa organização, é o de Guaracy Mingardi (2000), sobre a Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mingardi prestou concurso para investigador, iniciando ao mesmo tempo seu curso de Mestrado e sua carreira como policial, tendo abdicado desta última após obter as informações de que necessitava para concluir o seu trabalho acadêmico (Mingardi, 2000). Na condição de colega, o autor conviveu com policiais civis em bases cotidianas, tendo assim oportunidade de constatar a atuação tanto de policiais corruptos e violentos como daqueles que defendiam práticas lícitas e orientadas pelo respeito aos direitos humanos. Em sua pesquisa, a obtenção de informações ocorreu a partir de conversas, relatos de casos e de entrevistas sem registro gravado, técnicas também utilizadas no presente estudo. Diferentemente da pesquisa de Mingardi (2000), neste estudo os contatos para realizar as entrevistas foram feitos por indicação pessoal. A partir dos indivíduos inicialmente contatados pela pesquisadora, foram sendo indicados outros possíveis entrevistados. A importância do conhecimento pessoal para o estabelecimento de uma relação de confiança que permitisse a realização da entrevista confirmou-se

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mediante o relativo fracasso de uma abordagem diferente, tentada em um dos departamentos da Polícia Civil. Nessa iniciativa, o primeiro contato havia sido feito com o diretor do departamento, através de uma apresentação oficial do diretor da Academia de Polícia Civil. Nesse local, somente os delegados aceitaram ser entrevistados, sendo que uma delegada não permitiu a gravação. Os agentes (escrivães, inspetores e investigadores), em sua maioria negaram-se a participar das entrevistas. Os poucos que concordaram, naquele momento, marcaram dias e horários futuros, por eles mesmos posteriormente cancelados . Quase todas as entrevistas foram realizadas durante o ano de 2003, exceto a primeira (que funcionou como “piloto”), realizada em dezembro de 2002, e a última, realizada em fevereiro de 2005. A pesquisa documental desenvolveu-se a partir de 2002. O trabalho de observação e de participação nas atividades da Polícia Civil foi mantido durante todo o período de elaboração da tese, durante o qual esta pesquisadora se manteve vinculada ao trabalho na Academia de Polícia Civil. Dos 19 policiais entrevistados, 13 são homens e 6 são mulheres. Quanto aos cargos ocupados, os entrevistados distribuíram-se da seguinte forma: dois investigadores, seis inspetores, três escrivães, um comissário e sete delegados. O ano de ingresso dos entrevistados na Polícia Civil variou de 1963 a 2000. As entrevistas foram gravadas, com a exceção de uma, já citada. O conteúdo das fitas foi transcrito pela própria pesquisadora ao longo de 2003 e 2004, resultando em um total de 323 páginas. Procurou-se manter o discurso dos entrevistados em uma forma próxima à original, ou seja, conservou-se o estilo informal da linguagem falada, retirando-se apenas as expressões correntes na língua falada, que na linguagem acadêmica podem adquirir conotações pejorativas. Cada entrevistado assinou um termo de autorização em que permitiu o uso das

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entrevistas para finalidades científicas, desde que mantido o sigilo em relação a informações pessoais. Além de não serem citados no texto da tese nomes de pessoas ou de lugares que possam identificar os entrevistados, optou-se por referenciá-los somente pelo cargo e sexo, sem atribuir números ou letras a cada um deles. Gaskell (2000) explica que os entrevistados em uma pesquisa qualitativa são “selecionados”, não constituindo uma “amostra”. Segundo esse autor, o termo amostra está associado aos estudos quantitativos, que requerem critérios quase impossíveis de cumprir quando se trabalha com entrevistas em profundidade. Gaskell (2000) observa que incluir expressões numéricas vagas, tais como “mais do que a metade dos entrevistados”, não faz sentido, constituindo apenas uma tentativa inadequada de legitimar a generalização dos resultados para a população (Gaskell, 2000, p. 41). Ghiglione e Matalon (1998, p. 50-51) também insistem no mesmo sentido, afirmando que se deve procurar incluir as diversas situações relativas ao tema analisado nas entrevistas, sem a pretensão de estabelecer inferências estatísticas a partir delas. As entrevistas realizadas para a presente tese permitiram esclarecer questões referentes às diversas maneiras como os policiais pensam e sentem a respeito de seu trabalho e da forma como o realizam. Como já referido acima, não foram contempladas nas entrevistas as situações referentes aos policiais envolvidos em delitos graves. Quanto à estrutura do texto da tese, procurou-se partir das questões mais gerais para as mais específicas. No Capítulo 1, “Profissão, profissionalização e cultura policial”, abordam-se as definições de polícia e a relação entre polícia e

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profissionalização, pontos de partida para os temas desenvolvidos ao longo do trabalho. No Capítulo 2, “Polícia, campo jurídico e habitus”, apresenta-se o conceito de campo jurídico, detalhando as relações entre a Polícia Civil e as demais instituições desse espaço de relações políticas inter-institucionais, especialmente a Polícia Militar, o Ministério Público e o Poder Judiciário. As diferentes formas através das quais os policiais civis entrevistados compreendem seu ingresso na Polícia Civil são aqui entendidas como momentos em que realizam uma reflexão, a partir de suas próprias experiências, sobre a relação entre o habitus do agente social, como policial civil, e o campo de poder em que busca ser aceito e valorizado como participante. No Capítulo 3, “O processo de recrutamento e formação profissional dos policiais civis do Rio Grande do Sul”, acompanha-se o processo de mudança quanto aos métodos de recrutamento e de formação dos novos policiais, desde uma situação em que podiam ser escolhidos livremente pelo Chefe de Polícia até a condição atual, em que há um extenso programa de provas e um curso de formação de vários meses para selecioná-los. No Capítulo 4, “A atividade policial”, descrevem-se as atribuições dos policiais civis a partir de sua função de polícia judiciária. São detalhadas as atividades desenvolvidas nas delegacias de polícia, apresentando-se separadamente os setores essenciais: o plantão, a investigação, o cartório e a secretaria, essa última ligada ao gabinete do delegado. Discutem-se as formas através das quais, no desempenho de tais atividades, ocorrem lutas pela classificação e pelo reconhecimento, que constituem múltiplas oposições, tais como entre feminino e masculino, operacional e burocrata, agente e delegado.

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No Capítulo 5, “Perfil dos policiais civis do Rio Grande do Sul”, a partir de informações documentais, apresenta-se uma análise das mudanças ocorridas no perfil sócio-demográfico dos policiais civis ao longo do período entre 1970 e 2004. Agregando-se a esses dados os depoimentos dos policiais entrevistados, busca-se refletir sobre as formas que assumem as carreiras na Polícia Civil do Rio Grande do Sul. O capítulo 6, “Trabalho policial, violência e masculinidade”, aborda questões referentes às representações e práticas da violência policial. Argumenta-se acerca da importância das relações de gênero na análise do trabalho policial, especialmente no que diz respeito às concepções de masculinidade, constitutivas classicamente da cultura policial, e as novas formas de expressão das relações de gênero a partir da crescente presença feminina nos quadros da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Ao final da tese, as conclusões buscam retomar as hipóteses que orientaram o trabalho, à luz de novas informações trazidas pela pesquisa.

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1 Profissão, profissionalização e cultura policial O objetivo deste capítulo é apresentar e discutir os conceitos fundamentais que orientaram o presente estudo, estabelecendo um quadro de referência para a análise do trabalho policial. A primeira seção do texto trata das definições da polícia existentes na literatura. A seguir, apresentam-se dois temas importantes para a área de estudos sobre a polícia: a questão da profissionalização da polícia e a cultura policial. 1.1 Definindo a polícia De acordo com Weber (2004), o Estado moderno reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física, conforme se lê na citação a seguir. A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado – não haja a respeito qualquer dúvida –, mas é seu instrumento específico. Em nossos dias, a relação entre o Estado e a violência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos – a começar pela família – recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal do poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere: o Estado se transforma, portanto, na única fonte do “direito” à violência. (Weber, 2004, p. 56).

Essa concepção tem servido de base para as abordagens que atribuem à polícia o uso legítimo da violência física, das quais a mais conhecida é a que Bittner apresentou em 1970: “A polícia nada mais é do que um mecanismo de distribuição, na sociedade, de força justificada pela situação.” (Bittner, 2003, p. 130). A preocupação do autor era a de construir um conceito o mais abrangente possível, que fosse válido apesar das mudanças pelas quais passou a instituição

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policial ao longo do tempo e entre os diversos países, e que desse conta da diversidade de funções desempenhadas pela polícia. Em suma, o papel da polícia é enfrentar todos os tipos de problemas humanos quando (e na medida em que) suas soluções tenham a possibilidade de exigir (ou fazer) uso da força no momento em que estejam ocorrendo. Isso empresta homogeneidade a procedimentos tão diversos como capturar um criminoso, levar o prefeito para o aeroporto, tirar uma pessoa bêbada de dentro de um bar, direcionar o trânsito, controlar a multidão, cuidar de crianças perdidas, administrar os primeiros socorros médicos e separar brigas de familiares. (Bittner, 2003, p. 136).

O uso da força, efetivo ou potencial, seria para Bittner o ponto comum a todas as atividades policiais. Klockars retomou esse conceito, apresentando-o de forma mais detalhada: “Polícia são as instituições ou indivíduos que recebem do Estado o direito de usar, em geral, a força coercitiva em seu território”. (Klockars, 1985, p. 12) Para distinguir a polícia e o exército, que tem legitimidade para usar a força na defesa do território nacional, Klockars adicionou à definição de Bittner a especificação “dentro do território doméstico”. Em relação a outros agentes autorizados a usar a força apenas em situações determinadas e em relação a pessoas determinadas (lutadores de boxe, jogadores de futebol americano, guardas prisionais em relação aos detentos), a polícia diferencia-se pelo fato de ter autorização para agir em qualquer situação e em relação a qualquer pessoa. Mesmo quando não há necessidade de usar a força, ou seja, na maior parte de suas atividades, o policial sempre tem essa alternativa. A questão da legitimidade da violência estatal é discutida por Adorno (2002), baseando-se na idéia weberiana dos fundamentos legítimos da dominação: tradição, carisma e legalidade. Na sociedade moderna, sendo a legalidade o fundamento da dominação, haveria uma coincidência entre ação legal e ação legítima. O fundamento da legitimidade da violência, na sociedade moderna, repousa na lei e em estatutos legais. Aqueles que estão

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autorizados ao uso da violência o fazem em circunstâncias determinadas em obediência ao império da lei, isto é, aos constrangimentos impostos pelo ordenamento jurídico. Legitimidade identifica-se, por conseguinte, com legalidade. (Adorno, 2002, p. 8).

Para que seja legítimo, o uso da força pelos policiais deve ser feito segundo regras legalmente definidas. Muir (1977) destaca a semelhança entre os meios utilizados pela polícia e por aqueles a quem ela se opõe, sendo a diferença entre eles o respeito às leis. A autoridade do policial consiste em uma autorização legal para coagir outros a absterem-se de usar a coerção ilegítima. A sociedade o autoriza a matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma os não-policiais que iriam ilegalmente matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma aqueles a quem o policial está encarregado de proteger. (Muir, 1977, p. 44, tradução nossa).

O que acontece, entretanto, questiona Adorno (2002), quando o Estado não consegue se estabelecer como o detentor do monopólio da violência, em situações onde o crime organizado passa a competir pelo controle do território e propor outros critérios para a legitimidade da dominação? Em que medida o crescimento da criminalidade no Brasil é resultado desse processo de perda do monopólio estatal da violência legítima? Para esse autor, tais questões ainda estão por ser respondidas, tendo-se apenas iniciado o debate. Monjardet (1996) introduz mais complexidade na questão do uso da força pela polícia, distinguindo três objetivos. A força é um instrumento de dominação que sustenta o poder político, quando não provém de um consentimento unânime ou não se apóia exclusivamente no carisma. É um instrumento de luta contra o desvio deliberado. É um meio de imposição das normas coletivas e de socialização nos valores dominantes. No primeiro caso, a força se mostra, ela é em primeiro lugar dissuasória. No segundo, ela é implementada sistematicamente sob a forma de constrangimento físico, ela é repressão. No terceiro caso, opera essencialmente por instauração, imposição da autoridade. (Monjardet, 1996, p. 271, tradução nossa).

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Segundo esse autor, as três formas de uso da força combinam-se diferentemente de acordo com a situação. Em sociedades onde a legitimidade do Estado é pequena, a ênfase recai na dominação; em sociedade divididas e marcadas por conflitos, a polícia criminal ganha mais destaque, e nas sociedades que denomina de cidadãs, onde a criminalidade é restrita por outros mecanismos e o Estado tem ampla legitimidade, a polícia restringe-se à manutenção da tranqüilidade pública (Monjardet, 1996, p. 271-277). Tal distinção é especialmente importante no caso do Brasil, marcado nos últimos anos pela alternância entre regimes autoritários e formalmente democráticos: após o Estado Novo (1937-1945), seguiu-se um período de funcionamento regular das instituições políticas, interrompido pelo regime militar (1964-1985) e gradualmente recuperado. Bourdieu (1997b) retomou a concepção de Estado como detentor do monopólio do uso legítimo da violência física, acrescentando que a concentração do capital de força física foi acompanhada pela unificação do espaço econômico (criação do mercado nacional) e pela unificação cultural e lingüística, especialmente através da generalização da educação primária durante o século XIX (Bourdieu, 1997b, p.100-107). Segundo o autor, o Estado constituiu um capital simbólico de autoridade reconhecida. O capital simbólico é a forma que qualquer tipo de capital assume quando percebido através de categorias de percepção que reconhecem sua lógica específica, ou, em outros termos, não reconhecem a arbitrariedade de sua posse e acumulação (Bourdieu; Wacquant, 1992, p. 119). O Estado, através do monopólio do poder simbólico do capital estatal, contribui decisivamente para a conformação do senso comum, nos termos a seguir apresentados.

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A construção do Estado se faz acompanhar pela construção de uma espécie de transcendental histórico comum que se torna imanente a todos os seus “sujeitos”, ao cabo de um longo processo de incorporação. Mediante o enquadramento imposto às práticas, o Estado institui e inculca formas simbólicas comuns de pensamento, contextos sociais da percepção, do entendimento ou da memória, formas estatais de classificação, ou melhor, esquemas práticos de percepção, apreciação e ação. [...] Com isso, o Estado cria as condições de uma orquestração imediata dos habitus que constitui, por sua vez, o fundamento de um consenso sobre esse conjunto de evidências partilhadas, capazes de conformar o senso comum. (Bourdieu, 2001c, p. 213)

O monopólio da violência simbólica legítima pelo Estado é o que lhe garante o poder de nomeação, ou seja, a imposição oficial, explícita e pública, da visão legítima do mundo social (Bourdieu, 1989b, p.146). De um lado, está o universo das perspectivas particulares, dos agentes singulares que, a partir do seu ponto de vista particular, da sua posição particular, produzem nomeações – deles mesmos e dos outros – particulares e interessadas [...], e tanto mais ineficazes em se fazerem reconhecer, portanto, em exercer um efeito propriamente simbólico, quanto menos autorizados estão os seus autores, a título pessoal (auctoritas) ou institucional (delegação) e quanto mais interessados estão em fazer reconhecer o ponto de vista que se esforçam por impor. Do outro lado, está o ponto de vista autorizado [...], o ponto de vista legítimo do porta-voz autorizado, do mandatário do Estado, [...] a nomeação oficial. (Bourdieu, 1989b, p. 146-147).

Reiner (2004) colocou a polícia como uma parte fundamental do Estado, e em conseqüência disso tendo um importante papel político. A arte do policiamento bem sucedido é ser capaz de minimizar o uso da força, mas esta permanece como o recurso especializado da polícia, seu papel distintivo na ordem política. Nesse sentido, a polícia está no coração do funcionamento do Estado, e as análises políticas em geral tendem a restringir a importância do policiamento como sendo força e símbolo da qualidade de uma civilização política. (Reiner, 2004, p. 28).

O autor afirma que o policiamento pode não ser político na intenção, mas certamente o é em seu impacto. Sendo a sociedade dividida em classes, etnias, gêneros e outras dimensões de desigualdade, o impacto das leis e de sua aplicação

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reproduzirá estas desigualdades, mesmo que esta não seja a intenção (Reiner, 2004, p. 29). A contribuição da polícia para a manutenção das desigualdades sociais também foi exposta por Bittner (2003), a partir da distribuição desigual dos contingentes policiais e da própria atuação diferenciada segundo as características sociais dos indivíduos, como descrito a seguir. Nas circunstâncias atuais, mesmo o mais imparcial dos policiais, que só leve em conta as probabilidades como ele as conhece, vai se sentir razoavelmente justificado se suspeitar mais de um jovem negro pobre do que de um velho branco rico; e, assim que suspeitar, vai atuar rápida e rigorosamente contra o primeiro e tratar o segundo com reserva e deferência. Pois, ao calcular o risco, o policial sabe que, no primeiro caso, a maior probabilidade de errar está na falta de ação e, no outro caso, em uma ação ilegal. (Bittner, 2003, p. 104).

A polícia não está, segundo esse autor, criando uma forma nova de classificar os grupos sociais, mas simplesmente seguindo um padrão socialmente estabelecido. Colocando-se a questão em outros termos, esse é um exemplo dos efeitos da violência simbólica, que faz com que pareçam naturais as classificações socialmente construídas. O que leva o policial (ou qualquer outra pessoa) a tratar alguém com deferência? Por trás de avaliações aparentemente simples, feitas em qualquer contato entre pessoas, há um conhecimento detalhado de um conjunto de características usadas para a classificação, tais como posturas corporais, formas de falar (escolha do vocabulário, articulação das palavras, tom de voz), formas de vestir (modelo das roupas, tipo de tecido, estado de conservação, uso de jóias) ou cuidados com o corpo (uso de perfumes, aspecto da pele), por exemplo. Esta classificação imediata e quase inconsciente traz como conseqüência a escolha do tratamento “naturalmente” devido à pessoa, ou seja, o tratamento que se aprende a

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dar às pessoas segundo classificações socialmente estabelecidas, de forma que pareça natural que seja assim. Quando se considera o comportamento do policial referido no exemplo acima apenas como uma aplicação simplista das estatísticas (segundo as quais se poderia concluir que há mais jovens negros do que idosos brancos praticando roubos), essa pode parecer natural, fazendo passar despercebido o trabalho social de construção das classificações. Outro aspecto importante quanto à legitimidade da ação policial é colocado por Reiner (2004). Partindo da idéia de que a força é usada necessariamente contra alguém, afirmou que a ação da polícia não precisa ser aceita unanimemente pela população para ser legítima. Na medida em que o policiamento se preocupa principalmente com a solução de conflitos usando os poderes coercitivos da lei criminal, apoiando-se, em última instância, na capacidade de usar a força, na maior parte das ações da polícia existe alguém que, em oposição está sendo policiado. [...] Para o policiamento ser aceito como legítimo, não é necessário que todos os grupos ou indivíduos em uma sociedade concordem com o conteúdo significativo ou com a direção de operações específicas da polícia. Significa apenas que, no mínimo, a maioria da população e possivelmente alguns daqueles que são policiados aceitem a autoridade, o direito legal da polícia de agir da forma que o faz, mesmo que não concordem ou que lamentem algumas ações específicas. (Reiner, 2004, p. 30-31).

Por mais que os policiais procurem resolver situações de maneira conciliadora, sempre há a possibilidade de fracasso na conciliação, tornando-se a polícia então a opositora de uma das partes envolvidas. Além do reforço das desigualdades sociais acima referido, Bittner (2003) destacou outras duas concepções populares sobre o trabalho policial, ou seja, aspectos que fazem parte do modo como a população percebe a polícia. O primeiro é o estigma devido ao contato com o mal, o crime, a perversidade e a desordem, o

Excluído: Após a definição da polícia pelo uso legítimo da força,

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que faz da polícia uma “ocupação corrompida”1 (Bittner, 2003, p. 98). O segundo é a necessidade de agir com presteza, sem condições para refletir demoradamente, em situações que envolvem conflitos humanos, legais e morais profundos e complexos. Estes pontos serão comentados a seguir. Assim como os temas considerados mórbidos provocam ao mesmo tempo repulsa e um certo grau de fascinação, a capacidade dos policiais de conviver com a morte e a transgressão também os torna objetos de percepções e sentimentos contraditórios. A idéia de que seu trabalho implica em usar de violência, mesmo que legalmente justificada, torna-os diferentes das demais pessoas (Bittner, 2003, p. 98). Em seu estudo, Bittner (2003) não se referiu a isto, mas no caso das mulheres policiais há mais um elemento a ser considerado, que é o choque entre o papel feminino valorizado desde uma visão conservadora (a mulher ligada ao lar, aos filhos e à família) e um trabalho que exige o uso da força armada, bem como o contato com a rua, espaço dos papéis femininos desvalorizados nessa acepção. O trabalho do policial coloca-o em contato com problemas sociais e humanos complexos, frente aos quais não pode deixar de responder. Embora Bittner (2003) tenha dado mais destaque ao aspecto de rudeza que isso pode ter como conseqüência, cabe destacar também os limites da ação policial para a resolução de tais problemas. Além de questões familiares ou psicológicas, que exigem recursos diversos para serem devidamente encaminhadas, os policiais sabem que a própria criminalidade não pode ser extinta exclusivamente por eles. Em outras situações, a ênfase é na necessidade de rapidez para uma resposta, especialmente quando há uma escolha entre alternativas possíveis de ação legal. Atirar ou não em um suspeito, por exemplo, pode significar a diferença entre sair vivo ou morto do

1

No original: “tainted occupation”. (Bittner, 1990, p. 94)

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confronto. Ao tomar esta decisão, o policial precisa pesar os vários aspectos envolvidos: há uma alternativa ao tiro? Ele está em risco de vida ou não? Há possibilidade de atirar apenas para ferir? Há possibilidade de ferir alguma pessoa inocente? A decisão poderá ser posteriormente analisada em detalhe, inclusive com o acréscimo de informações não acessíveis ao policial no momento (a presença de um cúmplice na esquina, ou o fato de a arma do suspeito ser de brinquedo), mas a necessidade de agir é instantânea. As considerações até agora apresentadas sobre a polícia referem-se ao conjunto das instituições estatais que desempenham essa função, cuja organização varia de acordo com o país. Na literatura anglo-americana, o modelo de polícia de ingresso unificado é comum a todas as análises: todos passam por um estágio inicial como

patrulheiros

uniformizados,

podendo

posteriormente

seguir

outras

especializações, como a de detetive. Skolnick (1994), ao justificar sua escolha do “cop on the beat”2 como o modelo para suas análises, baseou-se na organização da polícia nos Estados Unidos: A polícia, ao contrário dos militares, não faz uma distinção de casta na socialização, mesmo que a sua ordem de títulos se aproxime da militar. Assim, não se pode ingressar em um departamento local de polícia como tenente, como o faz um egresso de West Point. Todo policial precisa passar por um aprendizado como patrulheiro. Essa característica da organização policial significa que o papel de policial uniformizado é o inicial para todos, e quaisquer que sejam os requisitos especiais para os papéis nas atividades especializadas, são executados com uma experiência prévia comum como patrulheiro. (Skolnick, 1994, p. 43, tradução nossa).

No Brasil, a organização das carreiras policiais é bem diferente. Além da separação entre as atividades de policiamento ostensivo e de polícia judiciária entre as polícias estaduais militares e civis, há formas diferenciadas de ingresso em cada uma das instituições. Na Brigada Militar, são recrutados soldados e capitães, com 2

O patrulheiro, policial uniformizado que está nas ruas.

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requisitos diferentes para o ingresso, treinamento e carreiras totalmente separados, de forma semelhante à que acontece no Exército. Nas polícias civis, da mesma forma, recrutam-se separadamente delegados e agentes (o termo genérico de “agente” corresponde a cargos diferentes, como investigador, detetive, inspetor e escrivão, segundo o Estado da Federação considerado). Assim, não há nenhuma experiência inicial comum em termos de função desempenhada, mas somente a experiência de ocupar a função policial em termos amplos. Outro importante aspecto em que as polícias dos Estados Unidos e do Brasil se diferenciam é sua relação com o sistema de justiça criminal. Nos Estados Unidos, segundo Skolnick (1994), a polícia pode fazer o que se chama de “negociar a culpa”, ou seja, o suspeito de um crime pode assumir sua culpa por um delito de menor gravidade, deixando de ser julgado pelo júri e obtendo uma pena mais leve do que possivelmente receberia pelo crime que cometeu. Dessa forma, a maior parte dos suspeitos não chega a ser formalmente julgado, resolvendo-se os casos na esfera policial3. Enquanto Bittner (2003) e Reiner (1992) analisaram a polícia do ponto de vista de sua função ou do recurso que a caracteriza (o uso da força), Monjardet (1996) dedicou-se ao estudo da instituição policial, percebendo diversos aspectos ao mesmo tempo. Para esse autor, a polícia é, de forma indissociável, um instrumento do poder estatal; um serviço público, suscetível de ser requisitado por qualquer pessoa, e uma profissão, que desenvolve seus próprios interesses. Tripla determinação que não tem nenhuma razão para se fundir em harmonia. Pelo contrário, estas três dimensões podem se opor como lógicas de ação distintas e concorrentes. O funcionamento policial cotidiano é o resultado de permanentes tensões (conflitos, compromissos) entre estas três lógicas, e toda “teoria” da polícia (e não são poucas) que lhe empreste como função Essa característica deu o nome a uma das obras mais conhecidas a respeito do trabalho policial: “Justice without trial” (Justiça sem Julgamento), de Jerome Skolnick (1994).

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ou razão apenas um destes termos é inválida devido à incapacidade de dar conta do conjunto das práticas observadas. (Monjardet, 1996, p. 9, tradução nossa).

Essa abordagem chama a atenção para os próprios policiais, mostrando a necessidade de incluir nas análises da polícia as questões ligadas a seus interesses, sua qualificação e suas disputas. No item a seguir, discute-se o tema da polícia enquanto profissão, enfocado na presente tese. 1.2 Polícia e profissão, uma discussão em aberto Encontram-se na literatura alguns esforços de analisar o trabalho policial do ponto de vista da profissionalização, o que traz à discussão questões como os conhecimentos necessários ao trabalho policial e o reconhecimento social desses trabalhadores. Antes de abordarmos esses temas, entretanto, é importante uma breve revisão da discussão em torno da definição do objeto da sociologia das profissões. Embora iniciado há muito tempo, o debate em torno desta questão ainda não está encerrado, permitindo diferentes classificações do trabalho policial. Apresenta-se a seguir uma parte da discussão sobre o conceito de profissão, selecionada tendo em vista sua pertinência para a análise do trabalho policial.4 1.2.1 Os conceitos de profissão Talvez a mais notável característica do conceito de profissão seja a falta de acordo a seu respeito. Uma primeira diferença já aparece entre os usos do termo em idiomas diferentes, como expõe Dubar (1997). Em francês, o termo “profissão” tem (pelo menos) dois sentidos correspondentes a dois termos ingleses diferentes. Ele designa ao mesmo tempo: o conjunto dos “empregos” (em inglês: occupations) reconhecidos na linguagem administrativa, nomeadamente nas classificações dos recenseamentos do Estado; as “profissões” liberais e sábias (em inglês: professions), isto é, learned professions, nomeadamente os médicos e os juristas. A 4

Para uma revisão abrangente, sugerem-se os trabalhos de Barbosa (1993) e de Bonelli (1999).

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terminologia francesa complica-se mais se introduzirmos um terceiro termo, o de “ofício” (métier). (Dubar, 1997, p. 123).

As análises feitas a partir da experiência dos Estados Unidos fazem referência à legislação daquele país, que prevê para as atividades reconhecidas como profissões a possibilidade de associações profissionais e, para as ocupações, apenas as associações sindicais. No Brasil, as atividades que constituem profissões oficialmente reconhecidas não correspondem necessariamente a profissões socialmente reconhecidas. A profissão de arquivista, por exemplo, reconhecida em 1978, ainda não goza de amplo reconhecimento social enquanto profissão, sendo as suas atribuições muitas vezes delegadas a pessoas sem formação acadêmica específica.5 Becker (1970) afirmou que a dificuldade de se chegar a um consenso reside na duplicidade de sua utilização enquanto conceito científico, ou seja, caracterização de um fenômeno a ser estudado e, ao mesmo tempo, também como um conceito do senso comum. O termo profissão estaria associado a uma valoração moralmente positiva, como uma atividade que atingiu um estágio superior e que deveria servir de modelo às demais. Becker sugeriu que se analisasse o conceito de profissão como um símbolo honorífico. Ao fazer esta análise, não nos preocupamos com as características das organizações ocupacionais reais em si, mas com as crenças convencionais em relação a quais deveriam ser estas características. Em outros termos, queremos saber o que as pessoas têm em mente quando dizem que uma ocupação é uma profissão, que está se tornando mais profissional ou que não é uma profissão. (Becker, 1970, p. 93, tradução nossa).

Desde essa perspectiva, a definição de profissão compreenderia o monopólio de um conhecimento esotérico, importante para a sociedade, adquirido em um

5 A Lei nº 6.546, de 4 de julho de 1978, regulamentou as profissões de arquivista e de técnico de arquivo. A regulamentação da lei foi dada pelo Decreto nº 82.590, de 6 de novembro de 1978.

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processo longo e difícil; a idéia de que a atividade correspondente a esse conhecimento deve ser controlada exclusivamente pelos integrantes do grupo profissional (autonomia) e de que esse grupo mantém motivações altruísticas, seguindo um código de ética com ênfase no bem do cliente. Entende-se, além disso, que exercer uma atividade profissional associa-se a ocupar uma posição social elevada. O autor questionou até que ponto essa definição corresponde a alguma profissão realmente existente, destacando os processos de controle do profissional pelo cliente, ou seja, os aspectos da prática profissional que são influenciados pelo desejo de agradar ao cliente. Exames desagradáveis para o paciente podem deixar de ser feitos, por exemplo (Becker, 1970, p. 98-102). No Brasil, o exemplo mais notável é o toque retal, que nos homens é importante para detectar tumores na próstata. Em outra abordagem, que pode ser tomada como complementar à de Becker (1970), Hughes (1994d) destacou os conceitos de autorização (“license”) e de mandato como importantes para o estudo das profissões (Hughes, 1994d, p. 25). A autorização seria a permissão para realizar atividades específicas, desviando-se do modo comum de proceder. O mandato seria a definição das condutas adequadas em relação aos temas que são objeto do trabalho da ocupação. A partir destes dois conceitos, Hugues (1994d) caracterizou o surgimento de uma profissão. As profissões, talvez mais do que os outros tipos de ocupações, também reclamam um amplo mandato legal, moral e intelectual. Não apenas os praticantes, através da admissão ao círculo encantado da profissão, individualmente exercem uma autorização para fazer coisas que outros não fazem, mas coletivamente presumem dizer à sociedade o que é bom e correto para ela em um amplo e importante aspecto da vida. Na verdade, eles definem os próprios termos de pensar sobre isto. Quando uma tal presunção é garantida como legítima, surge uma profissão em seu sentido completo. (Hughes, 1994d, p. 25-26, tradução nossa).

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Indo à origem do termo profissão, Hughes (1994b) lembra professar no sentido de “professar uma religião”. Os profissionais professam. Eles professam conhecer melhor do que os outros a natureza de alguns assuntos, e saber melhor do que seus clientes o que os aflige ou a seus negócios. Esta é a essência da idéia profissional e da reivindicação profissional. Disto decorrem muitas conseqüências. Os profissionais reclamam o direito exclusivo de praticar, como uma vocação, as artes que professam saber, e dar o tipo de conselho derivado de suas linhas especiais de conhecimento. (Hughes, 1994b, p. 38, tradução nossa).

Assim, Hughes (1994b) não baseou a definição de profissão em alguma característica inerente à atividade em si, mas na capacidade do grupo de praticantes de se estabelecer como profissional frente à sociedade. Este autor aponta que o conhecimento especializado é o argumento utilizado pelos profissionais para justificar o monopólio sobre determinadas áreas de atuação, procurando afastar, dessa forma, todos aqueles que não fazem parte do grupo por eles reconhecido como legítimo. À semelhança de Hugues (1994b), Freidson (1998) descartou a escolha de traços definidores das profissões, afirmando que a única característica em comum a todas as profissões é apenas o fato de serem reconhecidas como tal. O programa teórico que nos leva para além do conceito popular substitui deliberadamente a tarefa de desenvolver uma teoria das profissões pela tarefa de desenvolver uma teoria mais geral e abstrata das ocupações. [...] Uma tal teoria é desenvolvida mediante o reconhecimento de que não existe traço ou característica únicos, verdadeiramente explanatórios – inclusive um candidato recente como o “poder” – que possam enfeixar todas as ocupações chamadas profissões a não ser o fato real de virem a se chamar profissões. Assim, a profissão é tratada como uma entidade empírica sobre a qual há pouco terreno para generalizações como classe homogênea ou categoria conceitual logicamente excludente. (Freidson, 1998, p. 59-60).

O aspecto mais importante para os estudos empíricos seria a influência da luta pelo reconhecimento enquanto profissão na “organização corporativa da

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ocupação” e sobre “sua divisão de trabalho e as posições de seus membros nos ambientes concretos onde trabalham.” (Freidson, 1998, p. 61). Descartando a formulação de um conceito único e globalmente aceito, Freidson apontou a necessidade de que cada autor explicite o conceito de profissão ao qual está se referindo, para que os leitores possam compreender o que se está afirmando e também comparar os trabalhos de autores diversos: Se X pretende referir-se apenas àquelas poucas ocupações que quase todo o mundo reconhece como profissões, que possuem altíssimo prestígio e um verdadeiro monopólio sobre um conjunto de tarefas amplamente requisitadas, enquanto Y, ao chamá-las de profissões, quer referir-se também a ocupações que tentam melhorar seu baixo prestígio e fraca posição econômica, então cada um deles está falando de categorias incomparáveis e tanto os autores quanto seus leitores deveriam estar cientes disso. (Freidson, 1998, p. 62).

Além dos aspectos relativos à falta de rigor do conceito de profissão, Bourdieu e Wacquant (1992) destacaram outro problema em relação ao termo, que é o de ocultar as diferenças, as disputas entre os diversos membros dos grupos reconhecidos como profissionais. “Profession” é um conceito popular que foi contrabandeado de forma acrítica para a linguagem científica e que carrega consigo todo um inconsciente social. É o produto social de um trabalho histórico de construção de um grupo e de uma representação dos grupos que esgueirou-se sub-repticiamente para a ciência deste próprio grupo. [...] A categoria profissão refere-se a realidades que são, em um sentido, “reais demais” para serem verdadeiras, pois abrange ao mesmo tempo uma categoria mental e uma categoria social, socialmente produzidas apenas pela substituição ou eliminação de todos os tipos de diferenças e contradições econômicas, sociais e étnicas que fazem a “profissão” de “advogado”, por exemplo, um espaço de competição e de luta. (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 243).

Segundo esses autores, a alternativa a assumir o conceito de profissão em seu sentido comum seria procurar desvendar o trabalho de agregação e imposição simbólica necessário para produzi-la, tratando-a como um campo, ou seja, um espaço estruturado de forças sociais e de lutas (Bourdieu; Wacquant, 1992, p. 243).

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Essa questão será retomada mais adiante. Na seção a seguir, as referências até aqui apresentadas são retomadas na análise das relações entre trabalho policial e profissão. 1.2.2 Polícia e profissionalização Entre os autores que refletiram sobre o tema da profissionalização da polícia, pode-se citar o de Menke, White e Carey (2003). Os autores propuseram-se a analisar o que denominaram de reivindicação de status profissional pela ocupação policial. O modelo de profissão por eles utilizado como referência é proposto por Pavalko (1971, p. 18-27), especificando oito dimensões, a seguir referidas. (1) Um conjunto generalizado de conhecimentos, teorias e técnicas intelectuais; (2) um período extenso de educação e treinamento, normalmente realizado em um estabelecimento acadêmico; (3) relevância do trabalho para os valores sociais básicos; (4) autonomia; (5) motivação que envolve um sentido de missão; (6) um compromisso superior de dever da ocupação em benefício do cliente; (7) um sentimento de comunidade entre os que a praticam; (8) um código de ética institucionalmente imposto para assegurar submissão a ele. (Menke; White; Carey, 2003, p. 89).

Ao longo do texto, os autores procuram demonstrar que o trabalho policial não envolve as dimensões citadas, e portanto não pode ser considerado uma profissão. O que chama a atenção no texto é a simplificação do tema, como se houvesse um consenso sobre o conceito de profissão. Em relação às atividades que correspondem às características escolhidas para as profissões, os autores adotam um ponto de vista de justificação, como se pode ver no texto a seguir. Em termos mais gerais e ideais, o grupo profissional busca seu trabalho com base em primeiro lugar no interesse da comunidade. Em termos ideais, as motivações altruístas dos profissionais os levam a colocar os interesses e as necessidades do cliente acima dos seus próprios, e, quando o grupo de clientes fica seguro de que seus interesses estão sendo protegidos, desiste de desejar controlar o assunto, passando tal controle para o profissional. (Menke; White; Carey, 2003, p. 105).

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Os autores acima citados aceitam sem discussão os argumentos utilizados pelos grupos organizados como profissões para defender seus privilégios, como o controle do mercado de trabalho ou a autonomia para avaliar os casos de erro na prática profissional. A partir do próprio modelo escolhido, que apresenta características como “relevância do trabalho para os valores sociais básicos”, “motivação que envolve um sentido de missão” e “compromisso superior de dever da ocupação em benefício do cliente”, observa-se que não são questionados os aspectos de defesa dos próprios interesses envolvidos na organização das profissões. Kleinig (1996), igualmente indagando acerca do status profissional da polícia, considerou os seguintes elementos em sua análise: desempenho de um serviço importante para o público, existência de um código de ética, conhecimento especial e expertise, educação de nível superior, autonomia e autoridade discricionária e auto-regulação (Kleinig, 1996, p. 30-41). A partir dessas características, o trabalho policial foi avaliado como sendo importante para o público e dispondo de um código de ética, mas não requerendo um tipo especial de conhecimento adquirido em estudos de nível superior nem dispondo de autonomia e auto-regulação. Em relação ao estudo citado anteriormente, Kleinig realiza uma análise mais complexa da questão da profissionalização, considerada também em seus aspectos morais (Kleinig, 1996, p. 41-46). Até agora não questionei o pressuposto de que o status profissional seja uma coisa boa, ou de que valha a pena para os policiais lutar por maior profissionalização. Se partirmos, entretanto, não do que pode ser chamado de expectativas conceptuais do status profissional – que enfatizam a competência, a conduta ética, o aprendizado e a responsabilidade individual, características que podem nos inclinar a uma visão positiva do status profissional – mas das manifestações sociais do profissionalismo, surge um quadro um tanto diferente, de elitismo, paternalismo, exploração, alienação e discriminação. Conceitualmente, a profissionalização representa a idealização de um fenômeno cujo valor social real é

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consideravelmente mais problemático do que sugere o relato que apresentei. (Kleinig, 1996, p. 41, tradução nossa).

Entre os problemas citados como conseqüência da profissionalização, Kleinig (1996) considera o paternalismo, a alienação e a discriminação como os mais perigosos para a polícia. O paternalismo é definido como a escolha feita exclusivamente pelo profissional do que é melhor para o cliente, sem levar em conta a opinião, os sentimentos ou as condições desse cliente. A alienação é a tendência do profissional de fixar-se nos detalhes do que é chamado a examinar, deixando de observar o quadro mais amplo onde aquele detalhe se insere. A discriminação é uma

conseqüência

da

elevação

do

nível

de

escolaridade

exigido

pela

profissionalização, excluindo da ocupação as pessoas sem os certificados escolares reconhecidos segundo os novos critérios que passam a vigorar. Esses novos critérios expressam mudanças nas relações de poder no interior de um determinado grupo profissional, implicando no re-ordenamento das suas classificações. Como alternativa à busca do status de profissão, com todos os riscos apontados acima, o autor indica a possibilidade de exercer um profissionalismo sem profissão, ou seja, o desenvolvimento de uma postura de comprometimento com o bom desempenho no trabalho, mas sem procurar a autonomia e a auto-regulação. Niederhoffer (1969) trouxe à discussão sobre os problemas relacionados à profissionalização da polícia uma situação específica ocorrida em Nova York na época da Depressão. Nesse período, jovens do sexo masculino oriundos da classe média, com nível de educação superior, ingressaram na carreira policial devido à falta de outras oportunidades de emprego (Niederhoffer, 1969, p. 16-17). Em 1940, mais da metade dos recrutas tinham instrução universitária; nos anos seguintes, entretanto, a retomada da economia fez com que essa situação excepcional desaparecesse, voltando-se aos níveis habituais de menos de 5% de recrutas com

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nível universitário. O que aconteceu, entretanto, foi que o grupo instruído que havia ingressado tornou-se uma elite policial, esforçando-se por profissionalizar a ocupação. Profissionalização, neste caso, era equivalente a atingir os padrões tidos como profissionais: altos padrões de exigência para o ingresso, um corpo específico de conhecimento e teoria, altruísmo e dedicação a um ideal de serviço, longo período de treinamento, código de ética, diplomação dos membros, controle autônomo, orgulho pela profissão, prestígio e status publicamente reconhecidos (Niederhoffer, 1969, p. 19). Os maiores obstáculos a esse projeto foram, segundo o autor, o baixo status tradicional da ocupação, a baixa escolaridade da maioria dos policiais e a oposição da máquina política, interessada em manter a polícia sob seu controle direto (Niederhoffer, 1969, p. 21-33). Manning (1997) fez uma análise do tema da profissionalização partindo de outros pressupostos teóricos. Não se propôs a comparar o trabalho policial com algum modelo de profissão, mas destacou o uso da profissionalização como um recurso na luta por poder e prestígio. Referindo-se à polícia dos Estados Unidos, afirmou que ela usa a retórica do profissionalismo para justificar-se. A retórica do profissionalismo é a estratégia mais importante usada pela polícia para defender seu mandato e assim desenvolver auto-estima, autonomia organizacional e solidariedade ou coesão ocupacional (Manning, 1997, p. 120, tradução nossa).

A idéia de profissionalismo, para esse autor, está ligada à de ideologia, no sentido de constituir um discurso que valoriza e justifica a posição do grupo, marcando sua diferença em relação à clientela e unificando as diferenças internas. Um exemplo de disputa entre grupos que faziam parte da instituição policial utilizando-se da questão profissional é o processo de autonomização dos peritos criminalísticos no Rio Grande do Sul, descrito em detalhe por Griza (1999).

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Um dos primeiros elementos dos quais os peritos criminais lançaram mão nesta tentativa de tornarem-se independentes em relação à polícia consistiu no emprego do vocábulo “criminalística”, alternativamente aos termos “polícia científica”, “polícia técnica”. Desde o final dos anos 40, o uso deste termo passa a ser defendido (Griza, 1999, p. 147).

E, mais adiante, a autora complementa: Os peritos empenharam-se na desvinculação da polícia com vistas a uma maior valorização profissional, no sentido de que seu trabalho fosse “notado”, obtendo um “lugar à parte” correspondente à sua tarefa de fazerem “ciência”, sem permanecerem “atrelados a uma organização” da qual não poderiam ser “o cabeça” (Griza, 1999, p. 150).

A idéia de utilizar a ciência na investigação criminal seria oposta à de trabalho policial comum, “não científico” e “não profissional”. Este argumento foi utilizado para obter autonomia em termos de organização, permitindo que os peritos ocupassem posições de chefia, das quais estavam afastados enquanto fizessem parte da Polícia Civil.6 Poncioni (2003), em um estudo sobre a construção da identidade profissional dos policiais no Rio de Janeiro, optou por considerar a polícia como uma profissão a partir dos seguintes elementos: [...] A atividade profissional é exercida por um grupo social específico, que compartilha um sentimento de pertencimento e identificação com sua atividade, partilhando idéias, valores e crenças comuns baseados numa concepção do que é ser policial. Considerase, ainda, a polícia como uma “profissão” pelos conhecimentos produzidos por este grupo ocupacional sobre o trabalho policial – o conjunto de atividades atribuídas pelo estado à organização policial para a aplicação da lei e a manutenção da ordem pública – , como também os meios utilizados por este grupo ocupacional para validar o trabalho da polícia como “profissão”. (Poncioni, 2003, p. 68).

Dessa forma, a autora valorizou a dimensão simbólica do conceito de profissão, não no sentido de obtenção de uma posição social elevada, mas no sentido da construção de valores e crenças comuns. Mesmo reconhecendo as 6 Os peritos criminalísticos conseguiram sua autonomia quando se desvinculou, em 1989, o Instituto Geral de Perícias da Polícia Civil.

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diferenças em termos de posturas e práticas entre os policiais de diversos níveis hierárquicos e das duas organizações analisadas (Polícia Civil e Polícia Militar), Poncioni defendeu a existência de uma certa coesão em torno de representações partilhadas do mundo social e do mundo policial (2003, p. 68-69). Na presente tese, considera-se importante o tema da profissionalização do trabalho policial, compreendido como a constituição de formas de trabalho que levem a maior autonomia em relação ao poder político, em um movimento que poderia ser descrito como o de constituição de uma burocracia legal, nos termos weberianos, ou seja, o estabelecimento de normas legais como norteadoras da prática policial. Além da questão da autonomia em relação à política, outro elemento diz respeito às representações da polícia como uma atividade vinculada à masculinidade (ou melhor, a um conceito específico de masculinidade) e à violência. A discussão do conceito de cultura policial, a seguir, trará mais elementos para a compreensão desse aspecto. 1.3 A cultura policial Uma característica que se destaca na produção acadêmica a respeito da polícia é a discussão sobre a existência de uma cultura policial. Quase todos os autores referem-se a este conceito, seja para negá-lo, seja para aceitá-lo e desenvolvê-lo. Monjardet (1996) colocou a questão nos termos transcritos a seguir. A análise da cultura profissional dos policiais é o calcanhar de Aquiles de toda a pesquisa sobre polícia. O exercício é obrigatório, como a revisão da literatura o comprova. Qualquer que seja o objeto inicial da pesquisa e a precisão de sua delimitação [...], o relatório da pesquisa sempre traz uma exposição sobre a cultura profissional (Monjardet, 1996, p.155, tradução nossa).

Apesar da existência de inúmeros modelos de organização das polícias em todo o mundo, bem como da diversidade de condições sociais, econômicas e

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políticas nas quais os policiais atuam, algumas características aparentemente seriam comuns a todos os policiais. A origem do termo é atribuída a Skolnick (1994), que apresentou a questão em 1966 da seguinte forma: Um tema recorrente da sociologia das ocupações é o efeito do trabalho das pessoas sobre a sua visão de mundo. [...] Iremos nos concentrar em analisar alguns elementos proeminentes no meio policial – perigo, autoridade e eficiência – à medida em que se combinam para gerar respostas cognitivas e comportamentais distintivas: uma “personalidade de trabalho”. (Skolnick, 1994, p.41, tradução nossa).

O processo de desenvolvimento da personalidade de trabalho do policial seria o seguinte: o elemento de perigo torna o policial especialmente atento aos sinais que indicam a possibilidade de violência, passando a suspeitar das pessoas em geral. Além disso, tem dificuldade para fazer amizades com pessoas de fora da polícia, na medida em que as normas da amizade poderiam implicar em problemas com as normas de seu trabalho. A necessidade de impor o respeito às normas de um comportamento puritano que muitas vezes não cumpre (tais como não beber em demasia, por exemplo) é outro fator que leva ao isolamento social e ao desenvolvimento da solidariedade interna ao grupo de trabalho. Esta concepção da cultura policial foi reformulada por Skolnick (1993) em alguns aspectos, sendo apresentada alguns anos mais tarde como algo não ligado de uma forma tão simples aos elementos de perigo e autoridade: Como uma tribo ou um grupo étnico, cada grupo ocupacional desenvolve regras, costumes, percepções e interpretações sobre o que vêem, reconhecíveis e distintivos, bem como os conseqüentes juízos morais. Mesmo que alguns reconhecimentos e prescrições sejam compartilhados com todos os demais – nós todos vivemos na mesma sociedade – outros são mandatos particulares e apreciados apenas pelos membros do ofício ou profissão. Neste sentido, um mundo específico de trabalho é como um jogo: deve-se saber as regras para jogar adequadamente. (Skolnick, 1993, p.90, tradução nossa).

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As características desta personalidade de trabalho seriam, para Skolnick, a desconfiança em relação aos não-policiais, a solidariedade interna ao grupo, um sentido de missão em relação ao trabalho, conservadorismo moral e político, machismo e ceticismo (Skolnick, 1993, p.90-98). Kleinig (1996), ao mesmo tempo em que destaca as diferenças entre os policiais que desempenham funções diversas (patrulhamento e administração, por exemplo) e até mesmo entre os policiais de países diferentes, também afirma que existem características compartilhadas por todos os policiais. Sua análise enfatiza o aspecto da lealdade e da solidariedade entre os policiais, decorrente basicamente da dificuldade que encontram no convívio com as demais pessoas fora do trabalho (Kleinig, 1996, p.68-71). Reiner (1992) apresenta como características fundamentais da cultura policial os seguintes elementos: sentido de missão, valorização da ação, cinismo, pessimismo, suspeita, isolamento/solidariedade, conservadorismo político e moral, machismo, racismo e pragmatismo (Reiner, 1992, p.107-137). A partir dessas características, Reiner propõe quatro tipos de orientações policiais: o “bobby”, policial que aplica a lei baseado no senso comum, procurando manter a ordem pública; o “uniform carrier7”, cínico e desiludido, que procura trabalhar o menos possível; o “novo centurião”, dedicado a uma cruzada contra o crime e a desordem, valorizando especialmente o trabalho de investigação, e o “profissional”, ambicioso e preocupado com sua carreira, que avalia de forma equilibrada todas as tarefas do policiamento, desde combater o crime até varrer o chão da delegacia (Reiner, 1992, p. 130-131).

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Literalmente, “carregador de uniforme” (também usado no mesmo sentido, “clothes hanger”, cabide de roupas).

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Monjardet (1996), que segundo Bretas e Poncioni (1999) é o autor a fazer a crítica mais sistemática ao conceito de cultura policial de Skolnick, afirma que esse conceito de cultura policial não é adequado por duas razões. Em primeiro lugar, há situações de trabalho policial muito diversas: nem todas envolvem perigo, e o tipo de autoridade requerida nas diversas atividades é muito diferente. Em segundo lugar, a própria percepção dos policiais a respeito de suas situações também seria heterogênea. Em relação ao perigo, por exemplo: para quem se torna policial em busca principalmente de um emprego estável, a sensação de perigo pode ser muito grande; por outro lado, para os policiais que valorizam o envolvimento pessoal com os riscos dessa atividade, o trabalho pode ser percebido como burocrático e monótono. Opondo-se à idéia de Skolnick de que exista algo comum a todos os policiais, Monjardet procurou a diversidade dentro da cultura policial. A partir de pesquisas com policiais franceses8, Monjardet estabeleceu seis tipos de culturas profissionais, de acordo com a distribuição em torno de dois eixos: a relação com o outro e a relação com a lei (Monjardet, 1996, p. 159-173). O “outro” são as demais agências do Estado (escolas, serviços sociais, poder judiciário) e a população em geral: a relação pode ser aberta, ou seja, procura-se um diálogo e uma colaboração com os demais, ou fechada, quando não se considera importante este contato. Quanto à relação com a lei, Monjardet identificou três grupos: a) a lei é algo arbitrário, visto como um constrangimento e freqüentemente um obstáculo à eficácia; b) a lei é necessária à sociedade, devendo ser rigorosamente seguida; c) a lei é um contrato, exprimindo os valores de uma sociedade, e sua observação está ligada à adesão

Questionários fechados aplicados pelo Instituto Interface a 70.000 dos 110.000 policiais em 1982 (Hauser et al., 1983, apud Monjardet, 1996) e pesquisa longitudinal realizada com uma turma de policiais (gardiens de la paix) desde 1992 (Monjardet e Gorgeon, 1992, apud Monjardet, 1996).

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aos valores que exprime. Os tipos de culturas, segundo tal classificação, estão expostos no Quadro 1. Quadro 1 – Dimensões da cultura policial, segundo Monjardet. Relação com a lei Constrangimento Contrato Imperativo Relação com o outro - aberta I II III - fechada IV V VI Fonte: Monjardet, 1996, p.165-173. A cada um destes tipos correspondem visões diferentes do papel da polícia, das expectativas de carreira na instituição e da sociedade em geral. O tipo III é o dos defensores de uma polícia comunitária, que respeita escrupulosamente a lei e coloca-se em uma relação estreita com a população. O tipo VI corresponde aos que imaginam como ideal uma polícia da ordem, eficiente, estritamente dentro da lei e afastada da população. O tipo IV é o dos que pensam que a polícia tem como missão prioritária o combate à criminalidade: deve provocar “medo nos delinqüentes”, e a lei é muitas vezes um obstáculo em seu trabalho. Os classificados como do tipo I têm uma relação distante com a lei, vista como um constrangimento, mas são abertos em relação à comunidade. Investem pouco na carreira, não são agressivos, não gostam de usar uniforme e ressentem-se do peso da hierarquia. Sua postura seria caracterizada por procurar não chamar a atenção sobre si, apenas cumprindo as tarefas. Os policiais dos tipos II e V, intermediários no quadro, são também intermediários por definição. São legalistas, mas a lei não constitui uma dimensão essencial, seja em termos negativos ou positivos, em sua visão do trabalho. São os mais vocacionados, procurando desenvolver uma concepção profissional de gardien de la paix, mais do que de polícia em geral. A diferença entre eles é que os do tipo II procuram a legitimação junto ao público, e os do tipo V referem-se ao próprio grupo profissional.

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Após detalhar cada um dos tipos, Monjardet coloca: O pluralismo da cultura profissional policial não aparece assim apenas como o efeito da existência de conjuntos de atitudes e sistemas de valores distintos, em um campo balizado pelas dimensões cruciais do ofício. Esta acepção é certamente um progresso em relação ao postulado de uma “personalidade policial”, identificável por traços universalmente compartilhados, mas é insuficiente. O pluralismo cultural distribui os policiais em três espaços distintos, cada um caracterizado por disputas próprias: – o do abandono ou do investimento em relação ao ofício; – o das formas e critérios do profissionalismo policial, que se disputa no lugar acordado ao outro (público, população, outros profissionais), integrado ou mantido à distância; – o das missões da polícia, da função atribuída à (ou reivindicada pela) instituição, e que implica em uma recusa de sua instrumentalidade ou, caso se prefira, no sentido mais original do termo, uma politização (Monjardet, 1996, p.172-173, tradução nossa).

O posicionamento acima resumido coloca o elemento de heterogeneidade e de disputa no conceito de cultura policial, reforçando a idéia de concepções diversas sobre o que a polícia deve fazer, sobre a forma que devem tomar as relações com os demais agentes com os quais a polícia se relaciona e sobre o grau de comprometimento dos policiais com sua qualificação profissional. Uma outra visão do conceito de cultura policial é o de Reuss-Ianni (1999). Observando a atuação de policiais em Nova Iorque, Estados Unidos, a autora identificou duas culturas, a do policial de rua (“street cop”) e a do policial que ocupa funções administrativas (“management cop”). Como seu estudo foi realizado basicamente junto aos policiais em delegacias, ela reconhece ter recebido mais informações sobre a cultura do policial de rua. A concepção muito difundida dos “bons velhos tempos” do policiamento é o ethos que organiza a cultura do policial de rua [...]. Nos bons velhos tempos, o público valorizava e respeitava o policial, podia-se contar com os colegas, e os “chefes”, ou policiais em cargos mais elevados, eram uma parte integrante da família policial. Os policiais não apenas tinham o respeito do público e o sentimento de segurança de pertencer a uma organização coesa e interdependente, mas eram tratados como profissionais que conheciam seu trabalho e como realizá-lo bem. Um público agradecido e uma Câmara

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Municipal compreensiva raramente perguntavam como. Todos, dizem os policiais, sabiam quem eram os bons e quem eram os maus, e o sistema político e a comunidade que representavam concordavam com suas definições (Reuss-Ianni, 1999, p. 1, tradução nossa).

As mudanças na forma de administrar a cidade, entretanto, fizeram com que os diversos departamentos tivessem de competir por recursos, introduzindo-se gradualmente novos princípios de administração. A necessidade de mostrar produtividade e de responder publicamente por suas ações, numa nova situação de respeito aos direitos das minorias (incluindo ações afirmativas de recrutamento de integrantes destas minorias), fez surgir uma outra cultura policial, que seria a do policial administrador. Devido à estrutura da polícia dos Estados Unidos, onde há uma única forma de ingresso, cria-se uma situação curiosa, onde os “chefes” devem ter conhecimentos especializados de administração e ao mesmo tempo justificar suas posições elevadas por seu passado de policial de rua: Apesar de seu novo treinamento e orientação, entretanto, eles devem continuar a justificar suas posições no departamento não por sua nova capacidade ou especialização, mas porque eles já foram policiais de rua. Os regulamentos exigem que continuem a mostrar os dois símbolos mais importantes da antiga cultura, a insígnia e a arma. (Reuss-Ianni, 1999, p. 2-3, tradução nossa).

Reuss-Ianni refere-se às culturas policiais, mas não compartilha da idéia de uma personalidade profissional, criticando as generalizações sobre características de personalidade dos policiais: Cínico, autoritário, conformista, preconceituoso, de classe média baixa, freqüentemente brutal – a imagem oferecida tanto na imprensa popular quanto na pesquisa social não é sempre atraente. Entretanto, qualquer um que se arrisque a fazer generalizações a respeito da personalidade de 400.000 policiais americanos está sujeito a contestação devido às evidências inconclusivas. (ReussIanni, 1999, p. 21, tradução nossa).

Referir-se à “personalidade” coloca a análise em um nível individual, tornando difícil estabelecer generalizações para toda uma categoria de trabalhadores. O termo

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“cultura”, por outro lado, já não tem este caráter, referindo-se necessariamente a questões que envolvem grupos sociais. O conceito de cultura policial, conforme o próprio Skolnick afirma, foi inspirado nos estudos sobre culturas ocupacionais desenvolvidos dentro da perspectiva do interacionismo simbólico.9 Pode-se dizer que é um conceito que descreve as características encontradas entre os policiais, mas não dá elementos para a busca de uma explicação para estas características que vá além dos limites do próprio trabalho policial. O problema desse tipo de explicação é deixar de lado outros aspectos importantes. Tomando-se como foco da análise apenas a situação de trabalho, perdem-se os elementos explicativos ligados à situação mais ampla na qual se insere este trabalho (as lutas no campo de poder estatal, a posição da instituição policial no campo de poder jurídico, os diversos interesses dos agentes dentro da própria instituição policial), assim como os aspectos ligados às condições sociais dos policiais, especialmente suas trajetórias sociais anteriores ao ingresso na polícia. Na presente tese, considera-se que as diversas maneiras através das quais os policiais compreendem e explicam a sua realidade, bem como as diversas maneiras de se expressar e de agir, podem ser melhor estudadas recorrendo-se ao conceito de habitus. Esse ponto será retomado em detalhe mais adiante, no próximo capítulo.

9 Ele cita como contribuições anteriores à mesma área, entre outros, os trabalhos de Ely Chinoy (Automobile workers and the american dream, 1955), Everett C. Hughes (Men and their work, 1958), Harold Wilensky (Intellectuals in Labor Unions: organizational pressures on professional roles, 1956) e Howard S. Becker e Anselm L. Strauss (“Careers, personality, and adult socialization”, American Journal of Sociology, 1956).

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2 Polícia Civil, campo jurídico e habitus Apresentam-se neste capítulo os elementos para compreender a instituição policial como integrante do campo jurídico, aspecto fundamental para a presente tese. A análise da relação entre habitus e campo será feita a partir dos depoimentos dos policiais entrevistados, especialmente quando expuseram seus motivos para o ingresso na Polícia Civil. 2.1 Polícia civil e campo de poder jurídico O conceito de campo ora referido foi desenvolvido por Pierre Bourdieu, que assim descreveu sua importância para a construção do objeto de pesquisa: A noção de campo é, em certo sentido, uma estenografia conceptual de um modo de construção do objeto que vai comandar – ou orientar – todas as opções práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades. (Bourdieu, 1989c, p.27).

O limite do campo pode ser bastante amplo, sendo definido por Bourdieu como “o limite dos seus efeitos ou, em outro sentido, um agente ou uma instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele os produz.” (Bourdieu, 1989c, p. 31). A idéia de campo permite a análise das relações entre posições, procurando desvendar o que está sendo disputado entre os agentes. Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede, ou uma configuração, de relações objetivas entre posições. Estas posições são objetivamente definidas, em sua existência e nas determinações que impõem sobre seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) presente e potencial na estrutura da distribuição da espécie de poder (ou capital) cuja posse dá acesso aos benefícios específicos que estão em disputa no campo, bem como através de suas relações objetivas com outras posições

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(dominação, subordinação, homologia, etc.) (Bourdieu;Wacquant, 1992, p. 97, tradução nossa).

Uma primeira aproximação ao estudo da polícia civil poderia ser a de incluí-la no campo jurídico, devido à sua função de polícia judiciária. Bourdieu referiu-se ao campo jurídico nos termos a seguir. Um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física (Bourdieu, 1989a, p. 211).

Atuando no campo jurídico, agentes investidos de competência social e técnica disputam o “direito de dizer o direito” (Bourdieu, 1989a, p. 212). Uma grande divisão do campo ocorre entre duas posições assimétricas dinamicamente relacionadas: de um lado, os teóricos, os professores e outros pensadores do direito, e, de outro lado, aqueles ligados a uma aplicação prática, imediata do saber jurídico, ligados por uma “cadeia de legitimidade que subtrai os seus atos ao estatuto de violência arbitrária” (Bourdieu, 1989a, p.220). O ingresso no campo jurídico é controlado pelos profissionais detentores da competência jurídica, que lhes dá o poder de selecionar as questões passíveis de serem tratadas no campo. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar nele e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer o trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz. (Bourdieu, 1989a, p. 233).

Os profissionais dotados de competência jurídica, e portanto aptos a participar das disputas do campo, distinguem-se entre si pela quantidade global e pela composição de seu capital, ocupando posições diferentes nesse campo a partir do

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reconhecimento destes recursos. A aquisição dos certificados escolares em instituições de maior ou menor prestígio, por exemplo, bem como as diferentes origens familiares, agregam aos agentes quantidades diversas de recursos reconhecidos pelos que estão envolvidos no campo jurídico. Importantes diferenças também decorrem do acesso às posições que dispõem do poder estatal de nomeação, especialmente a magistratura, que profere a verdade oficial, o veredito, como explica Bourdieu (1989a). O veredito do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos atos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica. (Bourdieu, 1989a, p. 236)

No presente estudo, considera-se que a análise do campo jurídico nos termos de Bourdieu (1989a) pode servir como uma aproximação à abordagem do tema ora enfocado, consideradas as diferenças entre as formações sociais francesa e brasileira. Uma delas é a relativa debilidade do monopólio estatal da violência simbólica, pois as classificações oficiais nem sempre obtêm o reconhecimento social. Em relação ao estado civil, por exemplo, amplas camadas da população dispensam a certidão de casamento para que um casal seja reconhecido como tal, chegando-se ao ponto de a própria legislação ser modificada para reconhecer as situações de união estável como equivalentes aos casamentos oficialmente registrados. Em relação ao campo jurídico, sabe-se que freqüentemente é desconsiderado como instância privilegiada para a resolução de conflitos. Devido a fatores como a longa duração dos processos e os gastos envolvidos na contratação de advogados, muitas questões são resolvidas informalmente, até mesmo as da área criminal. A

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legislação procurou adaptar-se à situação através da criação dos Juizados Especiais10, em que os procedimentos devem ser orientados pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Outra característica do campo jurídico no Brasil é sua relativa falta de autonomia, na medida em que na própria estrutura do Poder Judiciário existem posições ocupadas por critérios políticos. Os ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, devem ser pessoas “com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada”, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado (Constituição Federal, art. 101). Em todos os demais tribunais que constituem o Poder Judiciário (Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais do Trabalho, Tribunais Eleitorais, Tribunais Militares e Tribunais dos Estados e do Distrito Federal) também há, em menor medida, margem de escolha de alguns de seus membros pelo Poder Executivo (BRASIL, 2002, p. 5871). O trabalho da polícia civil consiste basicamente na produção do inquérito policial, remetido à Justiça e submetido à apreciação do Ministério Público, que pode utilizá-lo para dar início ao processo penal, arquivá-lo ou devolvê-lo à origem, requisitando novas diligências. Ao longo de todo o processo de pesquisa para a elaboração da presente tese, seja nas entrevistas, nas conversas informais ou na observação de atividades cotidianas, identificaram-se freqüentes referências dos policiais civis à Brigada Militar, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Seja como aliadas no combate à criminalidade, seja como obstáculos à ação dos policiais civis, percebe-se que essas instituições estabelecem importantes relações com a Polícia Civil, sendo a

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Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (BRASIL, 1995).

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compreensão destas relações parte constitutiva da compreensão da posição e do significado da própria Polícia Civil. O esquema abaixo apresenta graficamente essas relações, que serão analisadas a seguir11. MP

PJ

cartório – trabalho documental – conhecimento jurídico

investigação – trabalho na rua – conhecimento operacional

BM

Poder Executivo

PC

Figura 1– Representação gráfica das relações entre a Polícia Civil e outras instituições Legenda: MP= Ministério Público Estadual; PJ= Poder Judiciário; BM= Brigada Militar; PC= Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul Enquanto posições no campo de poder, Polícia Civil (PC) e Brigada Militar (BM) ocupam posições subordinadas, colocando-se o Ministério Público (MP) e o Poder Judiciário (PJ) no pólo dominante; ao mesmo tempo, as polícias também são parte do Poder Executivo, especificamente vinculadas à Secretaria da Justiça e da Segurança. No centro do esquema, a elipse envolve os dois focos do trabalho policial, sendo cada um deles ligado a um perfil de policial: os assim chamados, no jargão policial, “operacionais” e “burocratas”. Os dois pólos internos da instituição relacionam-se também em desigualdade, com domínio dos chamados burocratas, detentores de maior acesso aos recursos de poder.

11 Apresentam-se as instituições do Rio Grande do Sul, onde se desenvolveu a pesquisa, mas a semelhança no ordenamento legal em todos os demais Estados da Federação autoriza a generalização, ao menos como hipótese.

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O conhecimento jurídico é o que permite aos delegados o diálogo formalmente igualitário com juízes e promotores: toda a condução do inquérito policial deve ser feita de acordo com procedimentos legalmente instituídos, e a conclusão deve ser fundamentada juridicamente. Apesar de procurarem se apresentar como iguais, os delegados estão submetidos aos juízes e promotores na medida em que seu trabalho pode ser determinado por esses, e o inverso não é verdadeiro. Ainda no processo de investigação, certos atos dependem de autorização dos juízes, como as prisões em flagrante e os mandados de busca e apreensão; os promotores podem solicitar diligências à polícia ou considerar que o indiciamento feito por um delegado não é correto, não dando início à ação penal a partir de um inquérito policial. No pólo dominado da Polícia Civil está o trabalho de rua, envolvendo um tipo de conhecimento que pode ser chamado de operacional: saber investigar, saber relacionar-se com os infratores e com os informantes, dominar as técnicas de uso da força física e da arma de fogo. Sendo muito grande a distância do pólo dominante, a estratégia é a de negá-lo, valorizando o conhecimento ao qual se tem acesso. Afirmações de que o “verdadeiro trabalho policial” se dá na rua, no enfrentamento armado, são características desse esforço. Os policiais militares apresentam-se como os possíveis rivais dos policiais civis nesse tipo de ação, pois sua atuação fundamental é exatamente na rua; usam armas, têm um efetivo maior e encarnam, da mesma forma que os “operacionais”, um modelo de masculinidade com ênfase na força física e na agressividade. A partir desse quadro, duas novas fontes de disputa surgiram nos últimos cinco anos (representadas no esquema pela linhas pontilhadas que unem Brigada Militar e cartório, e Ministério Público e investigação): a possibilidade de lavratura

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dos termos circunstanciados pelos policiais militares e o debate em relação às investigações criminais realizadas diretamente pelo Ministério Público. Quando a Secretaria da Justiça e da Segurança do Rio Grande do Sul autorizou os policiais militares a lavrarem termos circunstanciados, através da Portaria nº 172/2000, houve demonstrações de contrariedade por parte dos policiais civis. O texto divulgado pela Associação dos Delegados do Rio Grande do Sul (ASDEP-RS) como sua posição oficial12 expressa as críticas formuladas a esse procedimento. Além de argumentar que a autoridade policial definida na Constituição Federal e no Código de Processo Penal como responsável por todos os atos de polícia judiciária é apenas o delegado de polícia, o autor também apresenta dúvidas em relação às qualificações dos policiais militares, no que diz respeito às competências jurídicas necessárias. Com efeito, o dia-a-dia da polícia judiciária apresenta os mais variados fatos que demandam, de imediato, avaliações e valorações e, conseqüentemente, decisões sobre as medidas a adotar. Daí, tendo-se presente tal realidade, e, sem menoscabo qualquer, conhecendo-se a formação intelectual que, de regra, as corporações policiais militares exigem para aqueles que desejam incorporar-se à instituição como homens de frente, ou seja, como soldado PM, pululam alguns questionamentos, a saber: (i) quais são as condições de um patrulheiro policial militar para dar a definição jurídica de uma infração penal que lhe é apresentada; (ii) teria as condições necessárias para, de plano, constatar se se trata de infração de rito comum ou especial, se é da competência do Juizado Comum ou do Juizado Criminal Especial, isto é, se se trata de infração de menor potencial ofensivo, ou não? (iii) estaria preparado e teria competência para fazer a requisição, de próprio punho, dos exames necessários (art. 69), formulando, inclusive, quesitos a serem respondidos pelos peritos? (iv) teria o soldado PM condições de examinar a eventual existência de crimes conexos, modificadores da competência? Ou simplesmente de constatar se é caso de crime doloso ou culposo, lesões corporais ou tentativa de homicídio? (v) estaria em condições de avaliar se é caso de prisão em flagrante ou de sua dispensa, em razão desta nova política criminal? (Euzébio, 2003).

12 O texto encontra-se no site da ASDEP/RS (www.asdep.com.br), sendo acessado a partir do link “Posição oficial da ASDEP/RS em torno da lavratura de Termos Circunstanciados”.

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Antes da publicação da Portaria SJS nº 172/2000 (RIO GRANDE DO SUL, 2000), os policiais militares eram obrigados a acompanhar até uma delegacia de polícia as pessoas envolvidas em qualquer ocorrência, por mais simples que fosse (troca de ofensas entre vizinhos ou ameaças, por exemplo), desde que houvesse o desejo de se fazer um registro. Assim, essa Portaria liberou-os (e à população em geral) de um procedimento muitas vezes demorado, e liberou os próprios policiais civis de um atendimento considerado banal, deixando-os com mais tempo para os delitos de maior gravidade. O que poderia ser encarado como uma medida positiva, trazendo agilidade ao atendimento à população, foi percebido pelos policiais civis como uma invasão de sua esfera de competência pelos policiais militares e, em conseqüência disso, duramente criticado. Outras questões também opõem os policiais civis aos militares. A Brigada Militar tem um efetivo superior ao da Polícia Civil, chegando a ser quase cinco vezes maior.13 Além da diferença em número de integrantes, a própria estrutura física da Brigada é muito maior do que a da Polícia Civil. Apenas para citar um exemplo, enquanto Academia de Polícia Civil funciona em um prédio alugado, a Academia de Polícia Militar localiza-se em uma área própria, com muito mais recursos. O ressentimento dos policiais civis em relação a essa diferença é muito evidente, como colocou um inspetor entrevistado, nos termos que seguem. Ainda tem muita competição, a Brigada esconde muito o jogo da gente, e acho isso ruim. [...] A Brigada tem alguns privilégios que a Polícia Civil não tem, e a gente fica meio magoado. [...] O governo passado tentou fazer aquele centro integrado de segurança dentro da APM [Academia de Polícia Militar], e aí colocou todo o material lá. Material, material, material, mais duas linhas de tiro, mais uma linha de tiro inteligente, aquela virtual. E para a Polícia Civil nada. Aí terminou o governo, terminou o centro integrado, a Brigada tem tudo e a Polícia Civil não tem nada. E eu acho que a Brigada deveria ter o mínimo de sensibilidade de chegar, não, o governo investiu no 13 Enquanto o efetivo da Polícia Civil do Rio Grande do Sul tem oscilado em torno de 5000 a 6000 servidores, o da Brigada Militar varia entre 23000 e 24000.

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policial, não interessa qual a instituição, então vamos abrir. Na verdade até está aberto, mas entre aspas. Se a gente vai lá pedir uma linha de tiro para dar tiro o dia inteiro, eles vão fornecer, só que se tiver um coronel da Brigada que quer dar tiro naquele dia eles vão dar para o coronel da Brigada, entendeu? (Entrevista de pesquisa com inspetor).

É um assunto freqüente nas conversas dos policiais civis, especialmente dos delegados, a superioridade da Brigada Militar quanto à capacidade de fazer articulações políticas e conseguir benefícios dos governos, independentemente do partido no poder. Frente aos vários aspectos que os levam a sentir-se inferiores em relação à Polícia Militar, constatou-se que é comum, entre os policiais civis, criar para si uma imagem mais positiva: os policiais militares seriam “bitolados”, “ignorantes”, sujeitos a uma disciplina férrea e sem sentido, enquanto os policiais civis, ao contrário, seriam “malandros”, “espertos” e seguiriam uma disciplina menos impositiva. Em relação ao Ministério Público, a posição da Polícia Civil é mais defensiva. A disputa em torno da investigação criminal com o Ministério Público é algo que atinge o que os policiais civis definem como sua atividade exclusiva, sendo um enfrentamento travado muito mais pelos delegados, enquanto representantes da instituição, do que pelos agentes. Enquanto os policiais civis, individualmente ou representados por suas associações, argumentam que a Constituição Federal reserva a atividade de investigação criminal às polícias civis, os integrantes do Ministério Público procuram mostrar falhas nesta interpretação. O argumento principal é o que se transcreve a seguir. Resulta evidente, portanto, que se é facultado ao Ministério Público oferecer denúncia prescindindo do inquérito policial, lastreado em peças de informação contendo provas coletadas diretamente pela pessoa (física ou jurídica) representante, nada mais natural que se lhe conceda, igualmente, a oportunidade de investigar, em procedimento interno, a suficiência daquele acervo informativo para subsidiar, eventualmente, uma acusação penal, assegurando, a um só tempo, o não oferecimento de peça acusatória açodada e

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temerária, assim como a inocorrência de provável "eternização" da apuração dos fatos pela Polícia Judiciária. (Silva; Araújo; Corrêa, 2004).

Ao mesmo tempo em que recorrem à lógica jurídica para defender seu ponto de vista, os autores (que são Procuradores da República no Rio de Janeiro) introduzem uma referência negativa à atuação da Polícia Civil, que “eternizaria” a apuração dos fatos. O texto encerra-se com mais críticas à Polícia: Calar o Ministério Público, negando-lhe necessários poderes de investigação, é negar o pacto estabelecido na Constituição da República, sem consulta aos destinatários finais da atuação institucional, que é a própria sociedade. Nesse passo, espera-se que o Poder Judiciário [...] não dê guarida a tamanho despropósito, sob pena de os integrantes do Ministério Público, de agentes políticos, transformarem-se em meros espectadores da atuação, nem sempre eficiente e isenta, da Polícia Judiciária. (Silva; Araújo; Corrêa, 2004)

Dessa forma, apresenta-se uma dupla justificativa: o Ministério Público tem capacidade legal para investigar, é eficiente e isento, e deve investigar porque a Polícia Civil nem sempre é eficiente. Em entrevistas concedidas por membros do Ministério Público e em debates públicos freqüentemente são citadas as deficiências da Polícia Civil como argumento para que o Ministério Público assuma as funções de polícia judiciária. Deve-se lembrar que a proposta de extinção do inquérito policial faz parte da discussão em curso sobre possíveis alterações no sistema de justiça criminal brasileiro.14 Um outro ponto importante de atrito entre as duas instituições é a atribuição que tem o Ministério Público de controle externo da Polícia Civil. Nas entrevistas realizadas, as disputas com as instituições citadas foram relatadas por quase todos os delegados. Uma delegada entrevistada afirmou que um dos problemas que encontra em seu trabalho é a interferência de outras instituições, conforme se depreende de seu depoimento a seguir apresentado.

14 Nesta discussão, destaca-se a proposta de projeto de emenda constitucional lançada pelo Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia em 1999.

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Uma disputa das instituições com a Polícia Civil, principalmente em relação a uma área que só nós detemos, que é a questão da investigação. O Ministério Público tenta investigar, a Brigada Militar tenta tomar o lugar da Polícia Civil, e assim por diante. Isso há, com certeza. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Outra delegada afirmou, respondendo a uma pergunta sobre sentir medo em situações de confronto armado, que tinha mais medo de perder seu poder devido à ação do Ministério Público. Segundo essa delegada, “o promotor quer a cadeira do delegado”. Embora esta seja a posição majoritária dos delegados entrevistados, nem todos pensam assim. Alguns, ao contrário, procuram uma posição vantajosa na integração, como colocou outra delegada entrevistada. Eu não sei, alguns acham que não é importante isso, muito pelo contrário, querem brigas, com Ministério Público, Brigada, achando que as instituições são inimigas, e eu acho que pelo contrário, o cidadão não tem culpa de brigas de beleza, então nós somos pagos, como servidores públicos, para servir a essa comunidade, então tem que ter essa integração, então eu sempre buscava isso no meu trabalho, a integração. Sem subserviência, porque a gente não é nenhum empregadinho do Ministério Público, a gente sabe, mas eles nos respeitam, acho que se pudesse ter ações integradas, sempre tentei fazer, e isso era bem visto pela comunidade, porque surtia efeitos. [...] E outros colegas adotam também essa linha, de ter essa integração. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Nota-se que há disputas (como na frase “a gente não é nenhum empregadinho do Ministério Público”), mas, conforme o depoimento acima, a delegada expressa o desejo de superá-las produtivamente. Postura semelhante foi revelada por outro delegado, que também afirmou procurar o trabalho conjunto, embora não aceite requisições do promotor. Eu ia na posse deles, ia na despedida, promotores fizeram festa para o pessoal da delegacia na despedida deles da comarca, nós tivemos promotores que jogavam futebol de salão no nosso time, no time da delegacia [...]. Então é muito mais fácil ele levantar o telefone e ligar para o delegado: “Olha, [Fulano],está tendo tal problema, o que tu pode fazer?” Do que ele requisitar. Isso eu sempre deixava claro: eu não aceito requisição. [...] Eu sempre deixava claro, logo no início do relacionamento: “tu precisa de mim também.” Quando ele precisava chamar alguém no interior, qual era

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a opção? Telefona para o [Fulano], na delegacia, preciso que tu me faça uma gentileza, me chama Fulano de Tal. [...] Eu acho que tem que ser mais pessoal, a coisa tem que ser pessoal. Ele explica o que é, o que não é, e assim por diante. Todas essas circunstâncias, esse entrosamento, essas arestas terminam. Então tu continua, digamos, prestando favores, ou se relacionando, só que o relacionamento é mais harmonioso, é mais fácil, é mais fluido, e mais eficiente. [...] Eu sempre considerei a requisição como uma forma de autoritarismo. Eu não sou funcionário do Ministério Público, eu não sou funcionário do Judiciário, então... (Entrevista de pesquisa com delegado).

Em relação ao Judiciário repetiu-se a mesma concepção de relacionamento, conforme se detecta no depoimento abaixo. Tu pede uma preventiva, aí o juiz analisa o teu pedido. É muito mais fácil ligar: “Olha, [Fulano], eu estou analisando teu pedido mas não tem embasamento. O que tu tem mais?” [...] Muitas vezes tu não pode colocar junto ao pedido porque, se o advogado vê, estraga tua investigação. [...] Para evitar esse tipo de coisa, normalmente eu levava direto ao juiz, e falava: “Eu tenho mais isso.” Ou quando ele pedia: “Eu tenho mais isso, só não queria juntar.” (Entrevista de pesquisa com delegado).

As estratégias para tentar reverter a subordinação são variadas. Duas delas foram expressas pelos entrevistados citados acima. O primeiro recorre a suas habilidades pessoais, procurando levar as questões para um terreno que domina como bom negociador. A melhor forma de evitar atrito é quando tu conhece a pessoa com quem tu está lidando. [...] Não é “o Promotor”, mas o Fulano de Tal, não é “o Juiz”, mas é o Fulano de Tal, isso tradicionalmente eu sempre tive no interior. Até porque o teu círculo acaba se restringindo. Então, juiz e promotor sempre foram na minha casa e eu fui na casa deles, no interior. Eu era muitas vezes o fiel da balança, o papelão entre os dois quando eles brigavam. Entrava um numa porta enquanto o outro saía pela outra [risos]. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Colocando as relações institucionais em termos de relacionamento pessoal, esse delegado procurava se comunicar com os promotores e os juízes independentemente de suas posições de maior poder. Em nível pessoal, considerava que seus recursos eram maiores, envolvendo estabilidade emocional, capacidade de compreender pontos de vista diferentes e prestígio junto à

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comunidade. Outro aspecto utilizado para diminuir o poder dos juízes e dos promotores era mediar as disputas entre eles (“eu era muitas vezes o fiel da balança”), transformando essas relações em questões pessoais. A delegada, por sua vez, procura uma saída para a posição subalterna da Polícia Civil através do acúmulo de conhecimento jurídico, tanto em nível individual como de todo o grupo. Ela defende o retorno periódico ao mundo acadêmico em busca de títulos. Porque sempre se tem uma visão ou de promotor ou de juiz sobre o Direito, e raramente tem algum delegado ou agente policial dando aula. Só na Academia [de Polícia Civil], que é um reduto policial. [...] A idéia é incentivar outros colegas a fazerem isso, porque a gente precisa se atualizar, senão fica muito aquela idéia do policial burro, sabe, que não faz mais nada. É encarado como o que não passou nos outros concursos. Tem que quebrar essa imagem. São pessoas muito boas que estão entrando na polícia. Na minha época mesmo já tinha gente que tinha Ajuris, MP15. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Enquanto os delegados, como os acima citados, procuram um relacionamento mais equilibrado com juízes e promotores, os agentes muitas vezes vêem o Judiciário como um problema, um obstáculo para a realização de seu trabalho, como referiu um inspetor entrevistado, conforme se verifica a seguir. Tem a Justiça que não te ajuda... Agora mesmo, quando a gente pediu a prisão de um cara, reconhecido por um roubo, por seqüestro-relâmpago, reconhecido em fotografia pela vítima, os caras dizem que não... Então, é difícil trabalhar. O negócio é intimar o cara, o cara vai dizer que não e pronto, é fechado o inquérito, o delegado manda para o Fórum, daqui a duzentos anos intimam o cara lá. Agora a gente podia prender. [...] Cabeça de juiz... A mesma coisa, para um juiz e para outro, um dá e o outro não dá. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Frente a uma instância superior à sua, que pode negar seus pedidos sem uma razão que ele considere clara (“a mesma coisa, para um juiz e para outro, um dá e o outro não dá”), o referido inspetor abandona sua atitude de buscar o 15 Referência aos cursos de preparação aos concursos para juiz e promotor, realizados pela Associação dos Juízes dos Rio Grande do Sul (AJURIS) e pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, respectivamente.

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esclarecimento dos delitos e procura colocar a responsabilidade do resultado negativo na decisão do juiz. Em seu entender, se a decisão tivesse sido outra, o resultado seria imediato: “Agora a gente podia prender.” É sabido que a tradução de um conflito em uma questão juridicamente válida é controlada pelos profissionais que se situam em situações dominantes no campo de poder. Nesse processo, a posição da polícia civil é subordinada, pois embora sua função seja a de receber informações sobre possíveis delitos e verificar se os fatos podem ser enquadrados em categorias jurídicas, suas conclusões não implicam em reconhecimento imediato no campo jurídico. O inquérito policial é um procedimento administrativo, e não judicial, não produzindo nenhum efeito se o promotor considerar que não há elementos suficientes para apresentar a denúncia do indiciado ou se a vítima, nos casos de ação penal privada, não quiser dar continuidade ao processo. Além disso, o Ministério Público pode dar início à ação penal sem a elaboração prévia de inquérito policial, desde que o promotor considere suficientes as informações de que dispõe sobre um determinado fato delituoso. Assim, não se pode dizer que a polícia civil controla o ingresso do fato contido em um inquérito policial no campo jurídico, mesmo que se considere apenas a área criminal: ela opera uma seleção, mas de forma subordinada e não-exclusiva. A população leva à polícia civil uma variedade de situações, sendo que algumas podem vir a se constituir em categorias reconhecidas como delitos e outras, não. Sob este aspecto, há uma coincidência entre as atribuições das polícias civil e militar, pois os policiais militares também são obrigados a estabelecer uma distinção entre eventos passíveis de solução jurídica e eventos que devem ser resolvidos de outras formas, como o encaminhamento a instituições de serviço social, por exemplo. No primeiro caso, os policiais militares só podem atuar diretamente nos

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delitos de menor potencial ofensivo16, devendo conduzir à Polícia Civil os envolvidos nos demais delitos. Considerando o que foi exposto, pode-se afirmar que a Polícia Civil ocupa uma posição na periferia do campo jurídico, assim como a Polícia Militar. Embora seja um órgão do Estado e sua atuação envolva o conhecimento jurídico (atributo mais fortemente associado aos delegados), seu poder de nomeação é baixo, não produzindo efeitos importantes no campo jurídico, pois o indiciamento não leva necessariamente a uma condenação. O resultado do trabalho policial, materializado no inquérito policial, precisa ser validado pelo promotor para que seja constituída uma questão jurídica. Kant de Lima (1997) referiu-se a esta característica do sistema judiciário brasileiro como o uso de diversas lógicas de produção da verdade, produzindo a progressiva desqualificação de uma sobre a outra. Além do inquérito policial e do processo judicial, Kant de Lima (1997) analisou também os julgamentos do tribunal do júri, reservados aos crimes intencionais contra a vida. O inquérito policial é um procedimento inquisitorial (sem contraditório); no processo judicial, o réu é inquirido pelo juiz, que decide de acordo com seu livre convencimento, fundado no conteúdo dos autos; no tribunal do júri, apresenta-se um debate quase teatral entre acusação e defesa, sendo a decisão tomada pelos membros do júri sem comunicação entre si, baseados em suas consciências individuais. Para o autor, essa competição entre formas de produzir a verdade leva a que os agentes terminem por desqualificar-se mutuamente, sendo um exemplo disto os rótulos que os advogados aplicam-se reciprocamente, como “advogados de porta de cadeia” (especialistas em negociação com a polícia), “advogados de foro” (especialistas nos procedimentos informais dos 16 No Rio Grande do Sul, os policiais militares podem lavrar Termos Circunstanciados apenas nas comarcas onde tenha sido feito acordo entre Ministério Público e Poder Judiciário.

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cartórios do foro) ou “advogados de júri” (treinados na representação e na mentira pública). A posição inferior nesse quadro competitivo é ocupada pela polícia. Mais dramática, no entanto, é a situação da polícia: encarregada de descobrir a verdade além de qualquer dúvida, expressa na confissão, vê suas descobertas, validadas pela forma da inquirição a que está submetida, serem derrubadas quando submetidas, posteriormente, aos critérios do processo judicial, ou do júri. Situada no lugar mais inferior deste sistema hierárquico, sua verdade também é a que menos vale. (Kant de Lima, 1997, p. 181).

As posições ocupadas pelas polícias civil e militar no espaço jurídico apresentam diferenças, pois a primeira detém maior poder de designar pessoas como sendo passíveis de ingresso no campo jurídico, através do indiciamento em inquérito policial. A polícia militar só pode encaminhar diretamente aos juizados especiais criminais os casos relativos a delitos de pequeno potencial ofensivo. Além das influências sobre a Polícia Civil, como instituição, das disputas com outras instituições, ainda existem as disputas entre os próprios policiais civis. A partir de diferenças entre os recursos de que dispõem, os policiais civis lutam pelo acesso às posições formais de maior poder, através das promoções e do controle dos cargos de chefia, assim como lutam pelo poder simbólico, através da imposição de comportamentos e de atributos que sejam aceitos como legítimos, no sentido de constituírem o padrão de "bom policial". Bonelli (2003) fez uma análise da categoria dos delegados de polícia utilizando como referência o campo jurídico, sem no entanto definir os limites desse campo. Os dominantes são os profissionais com acúmulo de capital social e cultural, que construíram o poder e a autonomia de instituições como a Magistratura e mais recentemente o Ministério Público. As principais lutas concorrenciais se dão entre os promotores e os delegados de polícia. (Bonelli, 2003, p. 55).

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Embora concordando com a autora, ao identificar a posição dos delegados de polícia como inferior à dos promotores e magistrados, considera-se, no presente estudo, que essa abordagem formula um recorte estreito do campo jurídico, tomando apenas algumas categorias profissionais, e não as instituições em seu conjunto, além de apresentar explicações que não ultrapassam o discurso corrente no próprio campo. A autora refere-se ao desprestígio do Direito Penal no meio acadêmico como um dos motivos para a inferiorização dos delegados, conforme se constata no trecho a seguir. Todo o universo que circunda o mundo do crime recebe a mesma depreciação social, seja a especialização criminal, os profissionais que trabalham com ela e os grupos sociais envolvidos. (Bonelli, 2003, p. 57).

No entanto, pergunta-se: se fosse apenas o envolvimento com a área penal o motivo para a posição inferior dos delegados, os promotores e juízes da área criminal não seriam igualmente atingidos? Além disso, pergunta-se, quais são os grupos sociais envolvidos com o crime? Sabe-se que os crimes são cometidos e sofridos por pessoas de todas as classes sociais, gêneros e etnias, mas que nem todos implicam em depreciação social. Além disso, o fato de os delegados, em geral, obterem seus títulos escolares em instituições de menor prestígio do que aquelas freqüentadas por juízes e promotores17 não explica a posição da polícia, mas é uma conseqüência do seu desprestígio: considerando-se que os egressos de instituições de ensino de elite obtêm melhores chances de colocar-se profissionalmente em carreiras também de elite, restam aos demais os postos em posições menos prestigiadas. A questão então passa a ser explicar por que a Polícia Civil se situa socialmente em posição inferior ao Ministério Público e ao Judiciário, ou seja, a partir

17 Tal afirmação apóia-se nos dados elaborados por Dantas (2003), que utilizou os conceitos obtidos pelas instituições de ensino superior na avaliação do Ministério da Educação (“provão”).

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de que diferenças objetivas, e também subjetivamente incorporadas, se estruturam suas relações. Uma outra abordagem é proposta por Medeiros (2004). Baseando-se no conceito de campo institucional, esse autor afirmou: No Brasil, a institucionalização do campo policial não se completou. Em termos de mitos, atores relevantes e organizações institucionalizantes, as polícias tiveram de responder a demandas vindas de outros campos, notadamente o da Justiça e o da Defesa, localizadas na periferia destes, e não no centro de um campo institucional policial. (Medeiros, 2004, p. 275-276).

Segundo este autor, a separação institucional entre Polícia Civil e Justiça, assim como entre Polícia Militar e Exército, seria a condição necessária para a constituição de um campo institucional propriamente policial, em que as polícias civil e militar trabalhariam de uma forma mais coordenada do que atualmente ocorre. Esse ponto de vista chama a atenção para aspectos de aproximação das polícias, tanto entre si como em relação a outras instituições. Polícia Militar e Exército compartilham a organização militar, o que tem reflexos em elementos como a valorização da hierarquia, uso de armas de fogo e um tipo específico de convivência com os colegas de farda. A Polícia Civil, por sua vez, aproxima-se da Polícia Militar no sentido de ambas lidarem diretamente com a população, buscando formalizar eventos avaliados como delitivos perante a esfera jurídica. Apesar da inegável importância do exercício da força física na atividade policial, tanto dos policiais civis como dos militares, há outros elementos igualmente relevantes a serem considerados em sua atuação. Especificamente na polícia civil, a competência jurídica é fundamental para o desempenho das tarefas cotidianas. Essa competência é obrigatória para os delegados, mas os agentes também dela necessitam, o que tem contribuído para que muitos deles obtenham a graduação em Direito. De fato, desde o primeiro contato com a notícia de um suposto delito, no

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momento de elaborar um boletim de ocorrência, até que o inquérito policial esteja completo, é o conjunto de regras e de categorias jurídicas que orienta as atividades policiais. Classificar o ocorrido em uma das categorias do Código Penal, registrar o que vítimas, testemunhas e indiciados declaram, responder aos advogados envolvidos nos casos, entregar intimações para que alguém vá à delegacia, justificar as conclusões que constam do relatório final, tudo isto requer competência jurídica. O que coloca a polícia civil, e mais ainda a polícia militar, em uma posição inferior em relação às demais instituições do campo jurídico é a exposição direta a situações que envolvem violência física, o que exige um tipo de recurso desvalorizado entre os grupos dominantes, que é o domínio das técnicas e das disposições necessárias ao exercício da coerção física. O magistrado que autoriza uma prisão através de uma assinatura e o policial que efetua a prisão mediante o uso de força física estão agindo de acordo com as mesmas leis, mas o primeiro aparece como que isolado de uma realidade desagradável e violenta, na qual o segundo está imerso. Dispondo de um poder de nomeação relativamente baixo frente às demais instituições do campo jurídico, a polícia dispõe de um recurso associado às posições inferiores no espaço social de classificação, que é a violência física. Desenvolver o autocontrole necessário para a resolução de conflitos sem recurso à violência física passou a constituir um dos sinais da boa educação, associado às posições sociais elevadas. Elias e Scotson (2000) apontaram algumas diferenças entre os comportamentos das pessoas consideradas “superiores” e “inferiores”. Num ambiente relativamente estável, o código de conduta mais sofisticado e o maior grau de autocontrole costumam associarse a um grau mais elevado de disciplina, circunspecção, previdência e coesão grupal. Isso oferece recompensas sob a forma de status e poder, para contrabalançar a frustração das limitações impostas e da relativa perda de espontaneidade. [...] As pessoas “inferiores” tendem

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a romper tabus que as “superiores” são treinadas a respeitar desde a infância. O desrespeito a esses tabus, portanto, é um sinal de inferioridade social. Com freqüência, fere profundamente o sentimento de bom gosto, decência e moral das pessoas “superiores” – em suma, seu sentimento dos valores afetivamente arraigados. (Elias; Scotson, 2000, p. 171).

No caso da violência física, mesmo o seu uso legítimo constitui-se em algo socialmente degradante, pois envolve disposições que os grupos dominantes aprendem a ocultar, exercitando-as apenas em situações privadas (violência doméstica, por exemplo) ou em casos avaliados como de “descontrole”, como os casos de pessoas com patologias psíquicas ou sob efeito de drogas. Bittner (1990) também faz afirmações nesse mesmo sentido, como se observa no trecho a seguir. Os sobreviventes vestigiais dos padrões de violência interpessoal são percebidos como indicação de imaturidade pessoal ou como características de cultura de "classe inferior". Como se não estivéssemos completamente satisfeitos com a exclusão do uso privado da força do campo da respeitabilidade, nossos cânones do bom gosto [...] exigem que nós não evitemos apenas a beligerância, mas a "corporeidade" em geral. (Bittner, 1990, p. 107, tradução nossa).

A função policial remete, a todo instante, ao corpo: a partir de um concurso que inclui uma prova de capacidade física, o policial civil trabalha em constante risco de envolver-se em confrontos violentos.18 Assim, os policiais civis situam-se em uma posição onde concentram-se exigências diversas: conhecimento jurídico, na medida em que seu trabalho deve ser aceito pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário com base em critérios jurídicos, e disposições ligadas ao desempenho de atividades físicas, envolvendo o uso da força.

18 Nummer apresenta, especialmente no Capítulo "A corporação incorporada", uma análise da importância desse aspecto no trabalho dos policiais militares (Nummer, 2005, p. 95-106).

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2.1 Habitus e trabalho policial A decisão de ingressar na Polícia Civil foi apresentada das mais diversas formas pelos policiais entrevistados, bem como por aqueles que foram consultados informalmente, no decorrer das atividades de observação desenvolvidas na pesquisa. Para que se possa compreender as explicações que as pessoas apresentam quando questionadas sobre suas ações, considera-se necessário recorrer à idéia de “interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade”, conforme Bourdieu (1983) referiu-se ao explicar o conceito de habitus, definido por ele nos termos transcritos a seguir. As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (Bourdieu, 1983, p. 60-1).

Este “princípio gerador e estruturador das práticas e das representações” é subjetivo mas não individual, na medida em que é comum a todos os membros de um grupo ou classe. Frases como “isto não é para mim” são exemplos de classificações e de expectativas conformadas pelo habitus, que define o “lugar” de cada um, até onde se pode chegar em termos de emprego ou escolaridade, por exemplo. Essas previsões são feitas de forma inconsciente, baseando-se nas condições sociais objetivas, procurando fazer “da necessidade virtude”, ou seja, adequando as expectativas subjetivas às possibilidades objetivas. Conforme colocou Bourdieu (2001b),

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Sendo o produto de uma classe determinada de regularidades objetivas (aquelas que, por exemplo, caracterizam uma condição de classe e que a ciência apreende através das regularidades construídas, tais como as probabilidades objetivas), essas disposições gerais e transponíveis tendem, então, a engendrar todas as práticas “razoáveis” que são possíveis dentro dos limites dessas regularidades e somente aquelas, excluindo as “loucuras”, isto é, as condutas votadas a serem negativamente sancionadas por serem incompatíveis com as exigências objetivas. (Bourdieu, 2001b, p. 8586).

Embora o habitus vá se constituindo ao longo de toda a vida, as primeiras experiências, vividas no ambiente familiar, têm um peso maior do que as posteriores, pois estabelecem as formas de pensar e de compreender tais experiências. Bourdieu (2000) afirmou a esse propósito: Ao contrário das estimativas eruditas, que se corrigem após cada experiência segundo as regras rigorosas do cálculo, as estimativas práticas conferem um peso desmesurado às primeiras experiências, na medida em que são as estruturas características de um tipo determinado de condições de existência que, através da necessidade econômica e social que elas colocam no universo relativamente autônomo das relações familiares, ou melhor, atravessando as manifestações propriamente familiares desta necessidade externa (proibições, preocupações, lições de moral, conflitos, gostos, etc.), produzem as estruturas do habitus que são, por sua vez, o princípio da percepção e da apreciação de toda experiência ulterior. (Bourdieu, 2000, p. 260, tradução nossa).

Ao fazer uma opção por um emprego determinado, por exemplo, surgem para o indivíduo algumas escolhas que parecem “naturais”, “adequadas”, bem como outras sobre as quais nem chega a refletir, por serem consideradas “acima” ou “abaixo” de suas expectativas, ou inadequadas por qualquer outra razão. O prestígio social de uma ocupação, o tipo de tarefa que se espera desempenhar, a familiaridade com o ambiente de trabalho, o nível de remuneração, diversos fatores são analisados à luz dos esquemas de percepção e de classificação dados pelo habitus, fazendo parecer inatas tanto as aversões quanto as vocações para determinadas atividades.

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Ao serem questionadas sobre os motivos que as levaram a seguir a carreira policial, as pessoas entrevistadas na presente pesquisa responderam de formas as mais diversas, tais como: “sempre tive o desejo de ser policial”, “entrei na polícia por acaso”, “nunca tinha pensado em ser policial” ou “quis fazer um concurso no qual eu fosse aprovada”. Bourdieu (2001c) chamou a atenção para o longo processo de preparação para qualquer atividade profissional, apontando como são difíceis, quase impossíveis, mudanças súbitas, o que não exclui, entretanto, a existência de provas, testes físicos ou morais a serem enfrentados. O processo de transformação pelo qual alguém se torna mineiro, camponês, padre, músico, professor ou patrão, é prolongado, contínuo, insensível e, mesmo quando sancionado por ritos de instituição (no caso da nobreza escolar, a longa separação preparatória e a prova mágica do concurso), exclui, salvo alguma exceção, as conversões repentinas e radicais: começa desde a infância, quiçá antes mesmo do nascimento [...]; e prossegue, a maior parte do tempo sem crises nem conflitos – o que não o torna isento de todo tipo de sofrimentos morais ou físicos os quais, enquanto provas, fazem parte das condições de desenvolvimento da illusio. (Bourdieu, 2001c, p. 200-201).

Em alguns casos, os entrevistados referiram-se à sua atividade profissional como algo ligado ao ambiente familiar, a uma convivência de toda uma vida, como a inspetora citada a seguir. Para mim nunca teve muita diferença entre a vida particular, a vida assim em relação às outras pessoas. Como eu vivi a minha vida toda dentro de uma delegacia de polícia, eu nasci dentro de uma delegacia de polícia, eu morava... Teve uma cidade em que meu pai teve que demolir o xadrez para nós fazermos a cozinha da casa! Na frente era a delegacia, atrás era o xadrez e mais uma peça, uma peça ficou como nosso quarto, ele construiu uma peça para ele e para a mãe, e o xadrez ele teve que desmontar e fazer a cozinha. Os presos a gente levava para uma cidade mais perto... [risos] A gente ia aos bailes da cidade no jipe da polícia, preto e branco! (Entrevista de pesquisa com inspetora).

Nesse relato, o trabalho policial e a vida familiar aparecem entrelaçados, não se compreendendo um sem o outro. Experiência semelhante foi vivida por outro

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inspetor entrevistado, com intenso contato com a atividade do pai, o que o marcou profundamente. Eu tinha uma vivência dentro da polícia, porque meu pai foi delegado de polícia quando eu tinha doze ou treze anos, em [X]. Então, ali eu vivi muito o dia-a-dia de uma delegacia, porque nós morávamos numa casa muito próxima da delegacia, e eu passava o dia inteiro no prédio da delegacia. E eu ia lá, e via as instalações, via as pessoas trabalharem, tinha os colegas dele. Inclusive meu pai, quando naquele tempo fazia as famosas batidas nos bares, uma vez ele me levou, eu sentei atrás no jipe, ele foi com mais dois inspetores e eu sentei atrás, ali, e do jipe eu vi tudo como era. Então ele entrou no bar, mandou todo mundo encostar na parede, revistou todo mundo, trouxe um ou dois com arma, aquela coisa toda... Então eu mais ou menos vivi isso na pele quando ainda jovem, criança ainda. O pai tinha arma, ele me mostrava, mostrava a arma, dava tiro. No interior tem muito campo, então ele deu tiro perto de mim, assim para eu ver como é que era. Então eu tinha essa questão muito na mente. [...] Ele me mostrava fotos de locais de crime, fotos de pessoas mortas. Tinha uma foto que ele mostrou, que até hoje eu tenho na memória, de uma pessoa que, segundo ele, tinha dormido nos trilhos do trem, encostou ali para dormir e o trem passou por cima, sobrou mal e mal cabeça e dois braços, o resto era um... Então aquela foto ficou muito gravada em mim, outras fotos que ele me mostrava, acidentes de carro... (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Esse inspetor começou a trabalhar ainda jovem como comerciário, passando por vários empregos diferentes, sem conseguir fixar-se em nenhum. Em um determinado momento, entretanto, poucos anos após a morte do pai, começou a pensar em seguir uma carreira policial. Está na Polícia Civil há cerca de 10 anos e, apesar de declarar-se insatisfeito em relação ao salário, afirma gostar muito de sua atividade. Uma história de estímulo paterno às disposições necessárias ao trabalho policial foi contada por outro entrevistado, um escrivão cujo pai era policial militar. Quando pequeno, seu pai nunca lhe deu nenhuma bola de futebol nem o ensinou a jogar, mas instalou no quintal de casa uma barra de ferro para fazer exercícios. Os presentes que recebia do pai eram, quase sempre, armas de brinquedo. Na escola, o futuro escrivão sentia-se diferente dos outros meninos por não jogar futebol, mas

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descobriu que podia impressionar as meninas fazendo muito mais flexões na barra do que os colegas. Durante a entrevista, quando questionado sobre o que mais o atraía no trabalho policial, respondeu o seguinte: Olha, na verdade o que me atrai no trabalho policial... Não tem como te dizer o que me atrai, porque eu me sinto em casa, me sinto bem, não tem como dizer o que me atrai no trabalho policial. Eu trabalho nisso há tanto tempo... (Entrevista de pesquisa com escrivão).

A sensação de “sentir-se em casa” é a melhor expressão do trabalho exitoso de inculcação das disposições necessárias à atividade policial, freqüentemente vivenciada como uma ocupação em tempo integral, ou seja, da qual o indivíduo não se afasta nunca. Sair da delegacia e ir para casa não significa, necessariamente, poder descansar, na medida em que os policiais estão constantemente portando suas armas e atentos aos sinais de possam indicar ameaça. Dessa forma, sentir-se em casa durante o trabalho e sentir-se trabalhando durante a folga podem ser consideradas, em vários casos, duas expressões do sentir-se policial. O escrivão acima citado, que foi policial militar antes de ingressar na Polícia Civil, também é exemplo da formação de um ethos guerreiro, compartilhado com outros policiais civis. Comparando os cursos de formação da Polícia Civil e da Brigada Militar, o entrevistado usou os termos a seguir transcritos. Esse curso, na verdade, o curso da Academia de Polícia Civil para mim foi uma colônia de férias. Eu estava acostumado com o ritmo militar que era bem diferenciado. [...] Bem mais puxado. Nosso curso na Brigada Militar, na época que eu entrei, eram oito meses, e dois meses tu ficava interno. Tu ia para casa no fim de semana, eventualmente. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

O fato de comparar o curso da polícia civil a uma colônia de férias encerra, em parte, o desejo de marcar uma diferença, fazer uma distinção entre ele mesmo e os demais policiais civis. O duro processo de formação do guerreiro militar, entretanto, não se repete na Polícia Civil, onde a disciplina militar é considerada,

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pelo que se depreendeu nesta pesquisa, como algo negativo, que restringe a atuação individual. Entre os policiais civis que têm uma afinidade especial com o uso das armas de fogo e das técnicas de defesa pessoal, valorizam-se no treinamento militar seus aspectos de auto-disciplina e de espírito de grupo. O relato de um inspetor, citado a seguir, ilustra o repúdio às regras da disciplina militar. Meu pai era brigadiano, eu trabalhei na Academia de Polícia da Brigada, o atual Comandante Geral da Brigada foi meu chefe imediato quando eu trabalhava na Academia: ele comprou o manual de inscrição para o curso de oficiais e me deu, e se propôs a pagar a minha inscrição, que ele queria me ver oficial da Brigada, e eu disse para ele "não, eu agradeço". Eu tinha 18 anos. [...] Naquela época19, a disciplina era extremamente rígida na Brigada. [...] Conhecia o funcionamento da Brigada por dentro por causa do pai, que era brigadiano, e em razão de trabalhar na Brigada. [...] Eu senti na pele o que aqueles alunos daquela época passaram, eram quatro anos de quase um regime de internato, aula de manhã e de tarde, e o problema era aquele, que o aluno e o cachorro eram a mesma coisa. Isso eu vi lá, isso eu vi, e então isso te empurra para fora. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

A familiaridade com a atividade policial foi importante a ponto de mantê-lo nessa área de atuação, mas na condição de policial civil, pois na Brigada Militar, segundo seus próprios termos, "o aluno e o cachorro eram a mesma coisa". É interessante observar, em todos os casos citados, como o relato de uma situação passada permite a construção de uma história, onde os eventos se encadeiam logicamente, em direção a um futuro desejado. As dúvidas e os caminhos alternativos que surgiram e foram descartados não são lembrados, bem como os cálculos inconscientes sobre as chances de sucesso nessas opções descartadas. O concurso para oficial da Brigada Militar, por exemplo, pode ter sido avaliado como muito difícil, e a opção possível tenha sido feita entre a carreira de soldado da Brigada, com remuneração baixa, e a de inspetor de polícia, em um nível

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Final da década de 1970.

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de remuneração mais elevado. Assim, de uma certa forma a carreira do pai policial militar foi repetida e superada ao mesmo tempo. A propósito das formas de transmissão das intenções e das carreiras familiares, Bourdieu (2001a) afirmou o que segue. A herança bem-sucedida é um assassinato do pai consumado a partir de sua própria injunção, uma superação dele destinada a conservá-lo, manter seu “projeto” de superação que, enquanto tal, está na ordem das sucessões. A identificação do filho com o desejo do pai como desejo de ser continuado faz o herdeiro sem história. (Bourdieu, 2001a, p. 232).

Uma carreira que se desenvolveu como continuação e superação da carreira paterna é a de um delegado, filho de um guarda de trânsito da antiga Guarda Civil. Em entrevista, ele explicou os motivos para o ingresso na Polícia Civil como algo ligado à sua história familiar, ao meio em que se desenvolveu. Meu pai era policial, era da antiga Guarda Civil. Ele era motociclista, da parte de trânsito. Nasci e convivi no meio de policiais, parecia uma coisa muito comum para mim. Tenho parentes que estão na Brigada Militar, tenho outros que são comissários de polícia, estão aposentados, mas era o meio, meu meio era o meio policial. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Após ingressar como inspetor, obteve a graduação em Direito e fez concurso para delegado, chegando rapidamente à quarta classe do cargo e ocupando posições de destaque na instituição. Preocupa-se com a construção de uma representação positiva, tanto dele mesmo quanto da Polícia Civil, e participa ativamente dessa construção. Em relação à entrevista, por exemplo, concordou de imediato

em

concedê-la,

respondendo

às

questões

com

desenvoltura

e

apresentando suas opiniões de modo firme, procurando mostrar argumentos para defendê-las. Assim, a partir de uma família ligada à atividade policial, mas em posições mais modestas, o entrevistado chegou ao topo da carreira, não apenas em

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termos de cargo e classe, mas também no sentido de reconhecimento entre seus pares. Além dos filhos de policiais, também integram a Polícia Civil pessoas sem contatos prévios com a instituição, que muitas vezes referem a estranheza que sua decisão provocou entre amigos e familiares. Quando as condições objetivas nas quais o habitus se formou se alteram, é necessário alterar também o habitus, sob pena de se tornar um obstáculo ao agente social. Assim, determinadas escolhas que poderiam aparecer como absurdas em uma dada situação, passam a ser consideradas como adequadas em outra. A crescente precarização do emprego, fazendo com que os empregos públicos se tornem mais valorizados, aliada à formação, no país, de uma esfera pública mais democrática, em que o debate acerca da atuação da polícia vem ganhando espaço, levou à mudança do conceito sobre a possibilidade de ser policial civil entre indivíduos situados em posições intermediárias no espaço social de poder, no que respeita às suas expectativas profissionais, assim como econômico-sociais e familiares. Um exemplo desta mudança é o relato de uma delegada, que colocou a opção pela Polícia Civil como algo possível apenas após a isonomia salarial com os promotores obtida em 199220. Então, para mim tanto fazia, fazer o concurso para promotor ou para delegado, e ali eu já quebrei os meus preconceitos. [...] Os meus preconceitos de achar que realmente o delegado era inferior na hierarquia dentro do Direito, e com a isonomia a gente abriu esse horizonte, porque os delegados passaram a freqüentar os mesmos ambientes, freqüentar os mesmos cursos, então isso, com certeza, te dá um respaldo maior. (Entrevista de pesquisa com delegada).

A elevação do nível de remuneração dos delegados decorrente da isonomia com os promotores de justiça foi mais um dos fatores a estimular o ingresso de

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Lei nº 9.696/92 (RIO GRANDE DO SUL, 1992).

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jovens recém-formados, oriundos de famílias que dispunham de recursos econômicos e culturais suficientes para que pudessem se dedicar exclusivamente aos estudos, aumentando suas chances de aprovação em concursos públicos. A delegada citada a seguir, assim como sua colega anteriormente referida, enquadram-se nesse perfil. Quando eu resolvi fazer Direito, eu sempre tive essa idéia de fazer concurso público, até por uma questão assim de ter vivenciado na minha família a minha mãe como funcionária pública e o meu pai como profissional liberal, e de enxergar que às vezes era mais seguro e tranqüilo economicamente a pessoa que tivesse um salário fixo. Então, esse foi sempre o meu entendimento. Pelas minhas características pessoais, eu sempre me identifiquei mais com as carreiras como Ministério Público e delegado de polícia, tive um tio, irmão do meu pai, que foi delegado de polícia. Eu não acompanhei muito o trabalho dele, mas cresci sempre ouvindo sobre essa situação de trabalho na Polícia. [...] E, logo que eu me formei [...] abriu concurso para delegado de polícia, e as matérias eram bem aquelas que eu gostava de estudar. [...] Bem pelo estilo assim de gostar da área penal, área processual penal, e as outras carreiras jurídicas exigem um conhecimento de todas as áreas, e eu tenho mais vontade de estudar aquilo que eu gosto, que efetivamente é a área penal. (Entrevista de pesquisa com delegada).

A entrevistada, de uma família que se considera de classe média alta, afirmou que seus pais aprovaram sua escolha profissional, embora a mãe não tenha ficado satisfeita com o fato de que a filha precisasse portar uma arma de fogo. Entre as famílias para as quais ser policial aparece como algo estranho, fora do esperado, o ingresso no cargo de inspetor ou escrivão é ainda mais desviante em relação ao percurso profissional valorizado, especialmente devido à remuneração, menor do que a recebida pelos delegados. Um inspetor entrevistado, ex-professor que assumiu seu cargo atual aos 36 anos, relatou que o desejo de tornar-se policial era antigo, mas sempre adiado. Oriundo de uma família cujos recursos econômicos são baixos, em contraste com seu elevado nível cultural, a opção que lhe parecia natural era a carreira docente, iniciada aos 18 anos. Foi necessário um longo

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período de crescente insatisfação no trabalho para que ele se sentisse justificado a assumir a opção pela atividade policial, como se observa no relato a seguir. Eu sempre tive atração pela função policial, só que, como eu me formei muito cedo, me formei com 20 anos, e eu já exercia a profissão... Na função de professor eu comecei muito cedo, com 18 anos, e como eu estava me dando bem na profissão, aí eu fui continuando a formação. Sempre tive atração por ser policial, mas como eu já estava em outra profissão, eu fui seguindo, não queria interromper uma coisa que estava dando certo. Uma vez, eu fui até me inscrever para a Polícia Federal, mas não tinha idade suficiente, na época. Aí, as coisas foram passando, eu sempre com aquela vontade de ser polícia, mas nunca fazia concurso, nunca... Ah, vou deixar para lá... Aí eu comecei a ficar muito insatisfeito com a função de professor, não agüentava mais dar aula no colégio, não agüentava mais. Quando abriu o concurso, uniu o útil ao agradável: realizar um sonho que eu sempre tive e me livrar da área que eu não agüentava mais, dar aula para criança. E aí fiz o concurso e passei. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

O entrevistado incorporou alguns termos do jargão policial ao seu vocabulário, mas observou-se ao longo da entrevista o domínio das regras da linguagem culta que se adquire no meio familiar, utilizada de modo natural, sem esforço. Ao contrário do inspetor citado, um delegado entrevistado afirmou ter ingressado na polícia "por acaso": contou que sua inscrição no concurso foi feita por um conhecido, um policial que morava na mesma cidade e que estava interessado em conseguir companhia para vir de carro a Porto Alegre para fazer as provas. Todo o relato da decisão de participar do concurso para delegado de polícia foi feito como se ele não estivesse investindo suas energias, algo que foi acontecendo sem planejamento. Entrei na polícia por acaso.[...] Pois eu nunca na vida pensei em ser delegado; [...] Na advocacia eu tinha um certo limite, tinha entrado com ações de abuso de autoridade, habeas corpus, contra funcionários policiais. Não é que eu tivesse restrições à atividade, mas... (Entrevista de pesquisa com delegado).

Em outros momentos da entrevista, entretanto, houve referência às dificuldades enfrentadas na condição de advogado, como os custos de manter um

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escritório, a elevada carga de trabalho e os rendimentos abaixo do desejado. Assim, a opção pelo concurso público, mesmo para um cargo pelo qual não sentia uma atração especial, representava uma opção pela segurança e estabilidade financeira. Os delegados entrevistados que ingressaram no cargo nas décadas de 1980 e 1990 relataram a difícil convivência, especialmente nos primeiros meses, com os colegas de curso de formação que já eram policiais. Eu era o estranho no ninho que não deveria estar ocupando a vaga de algum policial. Essa foi a primeira reação que eu senti quando começou o curso. Depois não, na medida em que foi passando, até pelo contrário, me aceitaram bem. [...] Mas outra dificuldade que eu tinha é que eu não conhecia nada, os assuntos de conversa deles eram totalmente diferentes dos meus! [...] A conversa deles era... polícia, polícia, polícia! Eu não sabia nada de polícia. [...] Então eles passavam o dia inteiro falando de polícia, e eu não entendia nada, nada, nada. Então, para mim, foi totalmente estranho. (Entrevista de pesquisa com delegado).

A delegada anteriormente citada, sem nenhum contato anterior com o trabalho policial, citou sua condição de mulher jovem e solteira como mais um obstáculo à aceitação pelo grupo. Era uma disputa muito acirrada, e muito preconceito com os que não eram policiais. Na minha turma um grande número já era policial, então a gente sofria bastante, bastante mesmo. [...] A gente formou o grupo dos não-policiais, então, para se proteger. Mas no final do curso o pessoal já respeitava, mesmo porque eu fiquei entre os primeiros lugares. Mas o preconceito já começou dentro da Academia. E eu tive vários fatores complicantes, porque eu tinha 25 anos só, mulher, solteira. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Nos dois casos, observa-se uma certa dificuldade inicial na relação com o grupo, os colegas do curso de formação de delegados que já eram policiais, que já compartilhavam de formas de pensar e de valores comuns. Para estes colegas, o “lugar” de uma mulher jovem e solteira não era entre os delegados de polícia. Ela atribui a mudança positiva em sua posição no grupo devido à superioridade de seu desempenho no curso. O que Bourdieu (2001c) afirmou em relação às exigências

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para o ingresso em um campo aplica-se à situação em análise, pois a socialização inicial na carreira é um momento em que as diferenças devidas às origens sociais são compatibilizadas, permitindo que os novos integrantes do grupo sejam aceitos. Na realidade, em lugar do habitus tácita ou explicitamente exigido, o novo postulante deve trazer para o jogo um habitus praticamente compatível, ou suficientemente próximo, e acima de tudo maleável e suscetível de ser convertido em habitus ajustado, em suma congruente e dócil, ou seja, aberto à possibilidade de uma reestruturação. É a razão pela qual as operações de cooptação prestam atenção aos sinais de competência e ainda mais aos indícios quase imperceptíveis, quase sempre corporais, postura, compostura, maneiras, disposições de ser e sobretudo de vir a ser, quer se trate de escolher um jogador de rúgbi, um professor, um alto funcionário ou um policial. (Bourdieu, 2001c, p. 121).

A

compatibilização

dos

agentes

sociais

portadores

de

disposições

heterogêneas não significa que as origens sociais sejam esquecidas, especialmente na modalidade de trajetória, menos freqüente, em que o indivíduo parte de uma posição socialmente inferior e alcança a almejada ascensão. Essa condição pode ser entendida a partir da análise de Bourdieu (2001b), que afirma acerca das classes e indivíduos em ascensão, em que isso ocorre devido muito mais à sua determinação pessoal em ascender do que a um acúmulo prévio de capital. As práticas da fração ascendente da pequena burguesia (e, de modo mais geral, das classes e indivíduos em ascensão) não se deixam compreender completamente a partir do conhecimento das chances sincronicamente medidas ou, em outras palavras, distinguem-se sistematicamente do que deveriam ser teoricamente se dependessem apenas do capital econômico e/ou do capital cultural. (Bourdieu, 2001b, p. 98).

Mais adiante, no mesmo texto, o autor acrescenta: Os pequeno-burgueses ascendentes são propriamente definidos pelo fato de se determinarem em função de chances objetivas que não teriam se não tivessem a pretensão de obtê-las e se não acrescentassem, por conseguinte, aos seus recursos em capital econômico e cultural, recursos morais. (Bourdieu, 2001b, p. 100).

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Um exemplo observado na pesquisa é a ascensão lenta, penosa, através de cargos e posições que se relata a seguir. Um dos entrevistados ingressou na Polícia como investigador, no início dos anos 1970, com a escolaridade mínima exigida para o cargo (curso primário). Era o filho mais novo de uma família muito pobre, tendo o seu pai falecido quando ele ainda era criança. O contato com a atividade policial deu-se através do irmão mais velho, membro da Guarda Civil. Como investigador, voltou a estudar, completando o equivalente ao Ensino Fundamental e Ensino Médio. Depois de alguns anos, fez concurso para escrivão, sendo aprovado. Continuou os estudos até obter a graduação em Direito, com muitas dificuldades para conseguir pagar a faculdade e sustentar a família, pois já estava casado e tinha filhos. A esposa também trabalhava para contribuir para o sustento da casa. Além das dificuldades financeiras, relatou os obstáculos criados por chefias que não davam apoio aos funcionários, a falta de tempo e o próprio esforço para o estudo, tendo tantas outras responsabilidades. Depois de formado, foi aprovado em concurso para delegado, obtendo posteriormente promoções até a quarta classe com relativa rapidez, e chegando a ocupar posições importantes na instituição. Apesar dessas conquistas, relatou em entrevista sentir-se discriminado por alguns colegas devido à sua origem social, considerada como inferior. Entre os policiais mais antigos, que ingressaram na Polícia Civil quando as exigências de escolaridade eram menores, aqueles que vieram de famílias pobres afirmam que o fato de ser policial civil era visto positivamente. Além da segurança em termos econômicos, a condição de policial opunha-se ao risco de uma carreira criminosa, ameaça constante sobre os jovens muito pobres devido à possibilidade de obter rendimentos mais elevados do que através das atividades lícitas acessíveis

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aos indivíduos com baixa escolaridade. Um comissário, já aposentado, relatou em entrevista a reação de seu padrasto quando ele ingressou na Guarda Civil: Arma de fogo eu uso desde os 16 anos de idade, e o meu padrasto era anti-belicista. [...] Eu escondia. Quando era brinquedo eu escondia embaixo da casa, porque se ele encontrava ele quebrava e botava fora. [Quando era arma] eu deixava na casa dos outros para ele não ver. [...] Ele não gostava de arma, dizia que eu ia me tornar um bandido, que a arma era um mal, era guerra, e eu tinha uma outra visão disso tudo. Ele estava hospitalizado no Hospital Lazarotto, onde morreu, com câncer. No dia em que eu cheguei fardado lá, ele se abraçou em mim, chorando, nós dois choramos junto, porque ele não queria que eu fosse um ladrão, um bandido, e a expectativa dele estava realizada. Meu padrasto era um homem simples, mas o pouco que eu sou hoje eu devo a ele. (Entrevista de pesquisa com comissário).

A importância da influência do padrasto é reconhecida pelo comissário na frase final da citação, pois o risco objetivo de que um jovem pobre e já habituado ao uso de armas de fogo se envolvesse em atividades criminosas era grande. Os valores transmitidos ao jovem pelo padrasto, referência masculina em sua formação (o pai morreu quando ele era pequeno), foram os que estimularam seu desenvolvimento posterior como policial que se orgulha de ser honesto. A importância dos valores e das referências aprendidas na convivência familiar é, algumas vezes, relatada com humor, como no caso de um inspetor entrevistado ao responder sobre os motivos para o ingresso na Polícia Civil. Minha mãe tinha o sonho de que todos os filhos dela fossem funcionários públicos. [...] Apareceu o concurso para a polícia. Me inscrevi e tudo, mas no dia do concurso, era num domingo, e eu estava na festa. Cheguei em casa sei lá, às seis da manhã, e a minha mãe me chutou de casa: vai fazer o concurso! E eu saí sem dormir, tinha tomado uns vinhos, era inverno... (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Nesse caso, o humor é uma forma de apresentar o desejo de obter a estabilidade econômica e os benefícios simbólicos decorrentes da posição de funcionário público como sendo um desejo da mãe, e não do próprio entrevistado. A

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estabilidade, objetivo característico dos grupos que ascenderam socialmente em relação à sua origem, mas que ainda não estão seguros em sua nova posição, apareceu em muitas das explicações sobre a decisão de se tornar policial entre aqueles que não tinham contato anterior com a instituição, como a escrivã citada a seguir. Eu sempre quis fazer concurso público, isso é uma coisa que vem de casa, meu pai e minha mãe eram funcionários públicos, eles são aposentados. [...] Então eu sempre quis fazer concurso público. A princípio, eu queria fazer para Juiz do Trabalho, mas houve uma decepção muito grande, porque eu cheguei na terceira fase do concurso e rodei por meio ponto. Fiz recurso mas mesmo assim, aí faltou menos, aí foi mais frustrante ainda. Aí eu acabei desistindo, e eu desisti de fazer qualquer tipo de concurso. [...] Aí eu comecei a advogar. Fiquei um ano advogando, e nesse meio tempo, enquanto eu estava advogando, abriu concurso para a polícia, para escrivão, em nível superior. Aí eu pensei: bom, vou fazer, até para lavar minha alma, para passar em um concurso. [...] Vou fazer para lavar minha alma, pelo menos em um concurso que exige nível superior eu vou passar. Só que aí eu comecei a ter contato com policiais, [...] e acabei gostando, no decorrer do concurso. Aí já estava até com a intenção de fazer para delegado. E foi indo, eu passei, fui aprovada. (Entrevista de pesquisa com escrivã).

A opção pela situação de servidora pública é colocada logo de início, marcando a idéia de busca por segurança e estabilidade, seguindo o modelo dos pais. A reprovação em um concurso muito difícil (Justiça do Trabalho) foi sentido como um golpe nas expectativas, o que abalou a confiança da entrevistada (“desisti de fazer qualquer tipo de concurso”). O concurso para escrivão de polícia, considerado mais fácil, foi encarado como uma oportunidade de superação do sentimento de fracasso (“vou fazer para lavar minha alma”), e ao final ocorreu uma conciliação entre expectativas e possibilidades de realização, ou seja, o “sonho” tornou-se “possível”.

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3 O processo de recrutamento e formação profissional dos policiais civis no Rio Grande do Sul Todos os policiais civis do Estado do Rio Grande do Sul passam por um curso de formação na Academia de Polícia Civil ao ingressar na instituição. Isto acontece desde 1957, quando começou efetivamente a funcionar a então denominada Escola de Polícia.21 A duração do curso e seus conteúdos, assim como os procedimentos e critérios para a seleção dos candidatos, passaram por várias alterações ao longo do tempo, tendo sido a tendência a de elevação da carga horária dos cursos e do nível de exigência dos concursos, como será visto adiante. A realização de concursos para os cargos policiais não segue uma periodicidade regular22. Como os demais concursos para a admissão de servidores estaduais, há necessidade de autorização do Governador do Estado, que determina também o número de vagas em cada concurso. Dessa forma, as questões políticas e econômicas refletem-se no número de servidores: as demandas por segurança e combate à criminalidade, por exemplo, tenderiam a tornar os concursos mais freqüentes, enquanto as restrições ao gasto com pessoal exercem o efeito contrário. Em relação à Polícia Civil, o efetivo legal, ou seja, o número de policiais que poderiam ser nomeados, tem sido há décadas superior ao efetivo provido. O texto desse capítulo é organizado em três seções: na primeira, apresentase a evolução da organização da Polícia Civil no Rio Grande do Sul e do processo de recrutamento dos policiais; na segunda seção são analisados os cursos de

21 A alteração do nome ocorreu em 1989, quando se estabeleceu, no art. 134 da Constituição Estadual, que o órgão responsável pelo recrutamento, seleção, formação e especialização do pessoal da Polícia Civil seria a Academia de Polícia Civil (RIO GRANDE DO SUL, 2002). 22 O Apêndice B traz o número alunos aprovados nos cursos da Academia de Polícia Civil desde 1957, por ano e cargo, mostrando a grande variação.

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formação realizados pela Academia de Polícia Civil, e na terceira é apresentada uma reflexão sobre o conteúdo e o sentido destas mudanças ao longo do tempo. 3.1 Evolução da organização policial no Rio Grande do Sul e do processo de recrutamento dos policiais No período republicano, a primeira organização policial no Rio Grande do Sul foi estabelecida pela Lei nº 11, de 4 de janeiro de 1896 (RIO GRANDE DO SUL, 1922). Estabeleceu-se uma divisão entre a polícia administrativa, de caráter preventivo e de âmbito municipal, e a polícia judiciária, de caráter repressivo e de âmbito estadual. A polícia judiciária era administrada por um Chefe de Polícia, ao qual se subordinavam Subchefes de Polícia em nível regional, Delegados de Polícia nos municípios e Subdelegados nos distritos dos municípios. O quadro funcional não era especificado, havendo apenas referências gerais, como nos dois artigos apresentados a seguir, que se referiam à secretaria geral da Chefatura de Polícia. Art. 50 – Esta será constituída por um secretário e demais funcionários que exigir a sua organização. Art. 52 – As atribuições e deveres dos empregados da secretaria geral serão consolidados em regimento aprovado pelo chefe de polícia. (RIO GRANDE DO SUL, 1922).

Mais adiante, nas Disposições Gerais, constavam mais referências aos servidores: Art. 73 – Para o expediente da polícia e escrituração dos negócios a seu cargo, poderão ter o subchefes e delegados amanuenses de sua escolha, cujo número e vencimentos serão fixados pelo governo. Art. 74 – Para os autos de corpo de delito, prisão, exames e buscas, servir-se-ão as autoridades policiais de escrivães de sua escolha, ou na falta, dos do juízo distrital. (RIO GRANDE DO SUL, 1922).

Além dos servidores referidos, a Chefatura de Polícia deveria ter dois ou mais médicos para o Serviço Médico-Legal, que incluía o atendimento aos detentos.

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Estabelecia-se que as primeiras nomeações para os cargos seriam feitas livremente, independentemente de quaisquer condições, sem referência às normas para as nomeações subseqüentes. As competências da polícia judiciária eram as seguintes: Art. 9º - Na esfera de competência da polícia judiciária compreendem-se: 1º - as diligências necessárias para a verificação da existência de algum crime ou contravenção, descobrimento de todas as suas circunstâncias e dos delinqüentes, tais como: a) corpo de delito direto; b) exames e buscas para apreensão de documentos e instrumentos; c) a obtenção de outras quaisquer provas e esclarecimentos; 2º - as diligências que forem requisitadas pela autoridade judiciária ou requeridas pelo promotor público; 3º - a prisão em flagrante delito, bem como daqueles contra quem constar notoriamente a expedição de mandado de autoridade competente; 4º - a representação à autoridade judiciária acerca da necessidade ou conveniência da prisão preventiva de indiciado em crime inafiançável; 5º - a concessão da fiança provisória, nos termos da legislação em vigor; 6º - a inspeção das prisões do Estado. (RIO GRANDE DO SUL, 1922).

Em 1937, o Interventor Federal no Estado alterou a organização policial através do Decreto nº 6.880, de 7 de dezembro, que organizou a Polícia de Carreira do Estado (RIO GRANDE DO SUL, 1938). Criou-se a Repartição Central de Polícia, constituída pelos seguintes órgãos: I – Diretoria da Repartição Central de Polícia II – Gabinete do Chefe de Polícia III – Delegacia de Ordem Pública e Social IV – Delegacias de Polícia, divididas em cinco categorias V – Postos Policiais

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VI – Serviços Externos VII – Diretoria de Investigações e Serviços Preventivos, dividida em a) Seções especializadas (Fichário de Crimes e Criminosos; Vigilância e Capturas; Atentados à Propriedade; Polícia de Costumes; Segurança Pessoal) b) Seções Técnicas e Científicas (Gabinete de Medicina Legal; Gabinete de Identificação e de Estatística Criminal; Laboratório de Polícia; Escola de Polícia) VIII – Serviços de policiamento a) Guarda Civil (logradouros públicos e tráfego) b) Guardas Noturnas c) Destacamentos da Brigada Militar IX – Presídios e anexos. (RIO GRANDE DO SUL, 1938). Para o provimento dos cargos iniciais estabeleceu-se a necessidade de concurso público, sendo os cargos imediatamente superiores providos por promoções. A exceção era o cargo de Chefe de Polícia, considerado de livre nomeação e demissão pelo Governador do Estado. Para ser promovido (por antigüidade ou por merecimento), o servidor deveria passar por cursos na Escola de Polícia. As primeiras nomeações para os cargos criados pelo decreto deveriam ser feitas aproveitando-se, em caráter efetivo, os servidores da Chefatura de Polícia com mais de dez anos de serviço, e em caráter provisório aqueles que tivessem menos de dez anos de serviço. As matérias abordadas nos concursos deveriam ser as seguintes:

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a) Para o cargo de delegado – português, redação e análise lógica; noções adiantadas de direito processual, penal, civil e constitucional; noções de medicina legal; noções de técnica policial; datiloscopia; organização policial e judiciária; b) Para os cargos de inspetor, escrevente e datiloscopista – português, redação e análise gramatical; aritmética, operações fundamentais e frações; datilografia (apenas para escrevente); noções preliminares de geografia do Brasil; organização policial; noções de técnica policial; noções de datiloscopia; educação moral e cívica. (RIO GRANDE DO SUL, 1938). Os cursos da Escola de Polícia seriam os seguintes: Art. 145 – A Escola de Polícia compreenderá dois cursos: um, prático preliminar, destinado aos funcionários da Guarda Civil, soldados e graduados da Brigada Militar, inspetores de 3a classe e qualquer funcionário da Polícia não compreendido na carreira; outro superior, destinado aos Delegados da 3a, 4a e 5a categorias e aos inspetores que tenham sido aprovados no curso prático, bem como a todo funcionário da Repartição Central de Polícia que requerer, sempre que houver matrícula. Parágrafo único – A Escola de Polícia manterá também o curso profissional indispensável ao pessoal da Guarda Civil com o programa adotado pelo Regulamento daquela milícia. (RIO GRANDE DO SUL, 1938).

Embora o Decreto trouxesse uma descrição pormenorizada da estrutura e do funcionamento da Escola de Polícia, inclusive com os conteúdos a serem abordados nos cursos, não há registro de seu funcionamento efetivo. Logo no ano seguinte, 1938, o Decreto nº 7.601 deu nova organização à Polícia, mantendo a estrutura básica mas criando novos órgãos: Delegacia de Entrada, Permanência e Saída de Estrangeiros, Delegacia de Trânsito e Acidentes, Instituto de Identificação e Instituto Médico Legal (RIO GRANDE DO SUL, 1939). A Escola de Polícia manteve-se subordinada à Divisão de Investigações e Serviços Preventivos, reafirmando-se a necessidade de aprovação em seus cursos para as promoções em cada carreira. Há

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indícios de que a Escola tenha funcionado por algum tempo, mas até o momento não foram localizadas fontes documentais que confirmem esta informação23. Uma nova organização da Polícia no Rio Grande do Sul implementou-se em 1953, através da Lei nº 2.027 (RIO GRANDE DO SUL, 1953). No ano anterior haviam sido aprovados os Estatutos do Funcionário Público Civil (RIO GRANDE DO SUL, 1978), dos Servidores da Polícia Civil (RIO GRANDE DO SUL, 1960a) e da Brigada Militar (RIO GRANDE DO SUL, 1960b). A Repartição Central de Polícia passou a denominar-se Departamento de Polícia Civil, subordinado à Secretaria do Interior e Justiça e tendo a seguinte estrutura: I – Chefia de Polícia II – Subchefia de Polícia III – Conselho Superior de Polícia IV – Divisão de Administração V – Divisão de Investigação VI – Divisão de Ordem Social VII – Divisão de Trânsito VIII – Divisão da Guarda Civil IX – Divisão de Rádio Patrulha X – Divisão de Rádio Comunicações XI – Escola de Polícia XII – Instituto de Identificação XIII – Instituto Médico Legal XIV – Instituto de Polícia Técnica XV – Delegacias Regionais de Polícia 23 Há referências às atividades da Escola de Polícia em vários números da revista Vida policial, nos anos de 1938 (números 1 e 5) e 1939 (números 7, 12, 13, 14 e 15).

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XVI – Delegacias de Polícia XVII – Subdelegacias de Polícia (RIO GRANDE DO SUL, 1953). Os cargos de carreira passaram a ser os seguintes: delegado de polícia, comissário de polícia, inspetor de polícia, escrivão de polícia, fiscal chefe, fiscal de policiamento, fiscal de trânsito, inspetor auxiliar, motorista policial, guarda civil e guarda de trânsito. A mudança mais significativa nesse aspecto foi a integração de cargos com a Guarda Civil, anteriormente em quadro separado. Criaram-se cargos específicos para a área de trânsito (fiscal de trânsito e guarda de trânsito), a serem ocupados por integrantes da Guarda Civil. Os ocupantes do antigo cargo de auxiliar de polícia foram reclassificados da seguinte forma: os homens passaram a ser inspetores auxiliares, e as mulheres tornaram-se auxiliares de administração, do quadro dos cargos administrativos. Criaram-se diversos cargos específicos para o Instituto

de

Polícia

Técnica

(papiloscopista,

fotógrafo

criminalístico,

perito

criminalístico, perito criminalístico engenheiro e perito criminalístico químico), para o Instituto Médico Legal (médico legista, auxiliar de necrópsia e auxiliar de laboratório), para o Instituto de Identificação (datiloscopista), para a Divisão de Administração, para a Divisão de Trânsito e para a Divisão de Rádio Comunicações (RIO GRANDE DO SUL, 1953). A Diretoria de Presídios e Anexos (da qual faziam parte a Casa de Correção, a Colônia Penal e Agrícola General Daltro Filho, o Manicômio Judiciário Dr. Maurício Cardoso, o Instituto Feminino de Readaptação Social e os presídios municipais) foi desvinculada do Departamento de Polícia Civil, integrando-se diretamente à Secretaria do Interior e Justiça. (RIO GRANDE DO SUL, 1953). À Escola de Polícia cabiam os seguintes objetivos: Art. 33 – A Escola de Polícia é destinada a aperfeiçoar os conhecimentos técnicos, bem como a elevação do nível intelectual e

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moral dos servidores, necessários ao bom desempenho das funções policiais. (RIO GRANDE DO SUL, 1953).

Os cursos classificavam-se em superiores (para delegados, comissários e peritos), secundários (para inspetores, escrivães, fiscais, telegrafistas e inspetores auxiliares) e elementares (para motoristas, guardas civis e de trânsito). Apesar das referências à Escola de Polícia na Lei nº 2.027, não há registros de seu funcionamento antes de 1957. De fato, em 1952, o artigo 50 da Lei nº 1.752 estabeleceu o prazo de 180 dias para que o Poder Executivo providenciasse “sobre a criação, organização e instalação da Escola de Polícia” (RIO GRANDE DO SUL, 1960a). Em 1956, a Lei nº 3.013, de 10 de dezembro, regulou o ingresso nas diversas carreiras do Departamento de Polícia Civil, colocando como condição a aprovação nos cursos da Escola de Polícia (RIO GRANDE DO SUL, 1957b). Também estabeleceu que o Chefe de Polícia nomearia uma comissão para elaborar o regimento da Escola de Polícia em um prazo de 30 dias. Em 19 de fevereiro de 1957, através do Decreto nº 7.657 (RIO GRANDE DO SUL, 1957a), foi aprovado o regulamento, e em 31 de agosto do mesmo ano ocorreu a aula inaugural da Escola. Assim, cerca de 20 anos após a primeira referência à Escola de Polícia no decreto que instituiu a Polícia de Carreira, começou efetivamente a funcionar o centro de formação policial. A Secretaria da Segurança Pública, criada em 195824, foi reorganizada em 1966, sendo então constituída pelos seguintes órgãos: Gabinete, Conselho Superior de Segurança Pública, Conselho Superior de Polícia, Conselho Regional de Trânsito, Escola de Polícia, Corregedoria Policial, Departamento de Ordem Política e Social, Divisão de Telecomunicações, Serviço de Estatística, Direção Geral de

24

Lei nº 3.602, de 1º de dezembro de 1958 (RIO GRANDE DO SUL, 1958, p. 3).

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Administração e Superintendência dos Serviços Policiais (RIO GRANDE DO SUL, 1966a, p. 49-72). Em 1967 ocorreu uma importante mudança na estrutura dos serviços públicos de policiamento do Estado do Rio Grande do Sul, com a extinção da Guarda Civil25. Seus servidores foram distribuídos entre os demais órgãos da Secretaria da Segurança Pública, devendo aguardar lotação definitiva. Apenas em 196926 foram estabelecidas as normas para o reaproveitamento dos antigos integrantes da Guarda Civil. Foram extintos todos os cargos da antiga Guarda Civil, e na Polícia Civil foi criado o cargo de investigador de polícia, com 2.125 vagas. Estabeleceu-se que até 5% das vagas desse cargo poderiam ser ocupadas por mulheres, embora a Guarda Civil tivesse sido exclusivamente masculina27. Passaram a ocupar o cargo de investigador os guardas de trânsito e os guardas civis; os fiscais chefes de policiamento e os fiscais chefes de trânsito passaram ao cargo de comissário de polícia, e os fiscais de policiamento e os fiscais de trânsito puderam optar entre os cargos de inspetor e de escrivão de polícia. Os motoristas policiais de primeira classe passaram a ocupar o cargo de investigador, enquanto os ocupantes das classes segunda, terceira e quarta passaram ao cargo de inspetor de polícia, nas classes primeira, segunda e terceira, respectivamente. Os antigos membros da Guarda Civil (fiscais chefes de policiamento, fiscais chefes de trânsito, fiscais de policiamento e fiscais de trânsito) que optaram pela Brigada Militar foram enquadrados em um Quadro Especial, nos postos de capitão, tenente e subtenente,

Decreto nº 18.501, de 2 de maio de 1967 (RIO GRANDE DO SUL, 1967a). Lei nº 5.950, de 31 de dezembro de 1969 (RIO GRANDE DO SUL, 1969b, p. 215-223). 27 As mulheres realmente ocuparam esse espaço: embora na primeira turma de investigadores só houvesse homens, na segunda turma (sem o limite de 5%), formada em dezembro de 1970, 9 mulheres encontravam-se entre os 10 primeiros classificados. Ao todo, as mulheres constituíam 17,31% da turma de 208 investigadores. Em 1971, as mulheres eram 26,80% do total de 250 investigadores (Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Ensino, Série Editais de final de curso de formação). 25 26

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conforme o cargo.28 Todos os servidores enquadrados em novos cargos deveriam freqüentar cursos de atualização na Escola de Polícia. Os guardas civis e de trânsito que tivessem o grau de escolaridade ginasial (correspondente ao atual Ensino Fundamental) poderiam matricular-se nos cursos de formação de inspetor e escrivão de polícia sem necessidade de prestar concurso (o nível de escolaridade exigido para o cargo de investigador era o antigo primário, que na época correspondia aos primeiros cinco anos de ensino). A extinção da Guarda Civil no Rio Grande do Sul foi um dos efeitos de uma alteração mais ampla na situação política nacional, decorrência do golpe militar de 1964. Em todo o Brasil houve um reforço do papel das polícias militares nas atividades de policiamento ostensivo, que até então era feito pelas Guardas Civis. Enquanto essas últimas eram não-militarizadas e controladas localmente, as polícias militares eram consideradas forças auxiliares do Exército, segundo definição que constava na Constituição de 1946. Um exemplo das mudanças no sentido de aumentar o papel repressivo das polícias e de passar para um segundo plano os direitos dos cidadãos é a diferença entre o Compromisso Policial do Estatuto do Servidor Policial de 1952 e o de 1971, como se observa nos trechos transcritos a seguir. Prometo observar e fazer observar rigorosa obediência às leis, desempenhar minhas funções com desprendimento e probidade; usar de energia sem violência e considerar como inerente à minha pessoa a reputação e a honorabilidade do departamento policial que agora passo a servir. (RIO GRANDE DO SUL, 1960a). Prometo observar e fazer observar rigorosa obediência às leis, desempenhar minhas funções com desprendimento e probidade e considerar como inerentes à minha pessoa a reputação e honorabilidade do órgão policial, que agora passo a servir. (RIO GRANDE DO SUL, 1971).

28 Este quadro veio a ser estabelecido efetivamente tão somente em 1973, através da Lei nº 6.596, de 18 de setembro (RIO GRANDE DO SUL, 1973).

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Considerando-se que o compromisso é feito pelos policiais civis na cerimônia de sua posse, quando recebem também a arma e a insígnia em um evento público, pode-se depreender o seu forte significado como investidura de autoridade. A eliminação, em 1971, da parte do texto do compromisso referente a “usar de energia sem violência” expressa simbolicamente o poder do Estado em uma conjuntura em que os mecanismos repressivos se impunham claramente sobre os direitos e liberdades individuais. Durante todo o período do regime militar houve um incentivo ao recrutamento dos delegados, escrivães e inspetores a partir dos quadros da própria instituição, sendo uma das formas privilegiadas de ingresso os concursos internos29, realizados regularmente. Outra forma de progressão na carreira foi estabelecida pela Lei nº 5.422/67, que autorizou os escrivães, inspetores e comissários com mais de cinco anos de serviço, desde que tivessem escolaridade de nível superior ou que houvessem respondido por delegacias de polícia do interior do Estado por mais de noventa dias, a matricular-se no curso de delegado da Escola de Polícia sem submeter-se a concurso, até o limite de 20% das vagas do curso (RIO GRANDE DO SUL, 1967b). A Lei nº 6.674/74 permitiu aos investigadores que tivessem o curso ginasial

matricular-se

nos

cursos

de

formação

de

inspetor

e

escrivão,

independentemente de concurso (RIO GRANDE DO SUL, 1974). O estímulo à ocupação dos cargos de escrivão, inspetor e delegado por indivíduos que já fossem policiais reforçava o espírito de corpo da instituição, valorizando a experiência de trabalho policial em detrimento do domínio dos conhecimentos exigidos nos concursos públicos.

29 Concursos nos quais podiam inscrever-se somente servidores policiais, constituídos por uma prova de habilitação, procedimento mais simples do que o concurso público.

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Em 1969, a Lei nº 5.600 consolidou a legislação que regulava o ingresso nas carreiras e quadros especializados na Secretaria da Segurança Pública (RIO GRANDE DO SUL, 1969a). Foram definidos como cursos de formação de nível superior os de delegado de polícia, perito criminalístico, perito criminalístico engenheiro, perito criminalístico químico, médico legista, químico toxicologista e perito médico examinador. Os cursos classificados como de nível secundário foram os de escrivão e inspetor de polícia, papiloscopista e datiloscopista, fotógrafo criminalístico e radiotelegrafista, e como cursos elementares os de motorista policial, auxiliar de necrópsia, guarda civil e guarda de trânsito. Para o curso de delegado poderiam candidatar-se indivíduos com escolaridade equivalente ao atual Ensino Médio; para os cursos secundários, a exigência era o curso ginasial (correspondente hoje ao Ensino Fundamental), e para os cursos elementares, o curso primário. Os cursos superiores de formação para os cargos da área pericial exigiam diploma universitário específico (Medicina, Engenharia ou Química), sendo o curso de delegado o único classificado como de nível superior sem essa exigência. Os candidatos a delegado de polícia com diploma de Direito poderiam fazer um curso especial, com carga horária menor do que o regular. A Direção da Escola de Polícia era autorizada, desde que ouvida a Secretaria da Segurança Pública, a estabelecer a duração dos cursos e a programação dos concursos (RIO GRANDE DO SUL, 1969a). O Estatuto dos Servidores da Polícia Civil, publicado em 1971, estabeleceu novas regras para o ingresso na instituição, conforme segue. Art. 4º - O ingresso nos cargos de provimento efetivo, da Polícia Civil, far-se-á mediante aprovação nos respectivos Cursos da Escola de Polícia, observada a ordem de classificação, equivalente a conclusão destes a concurso público.

105

Art. 5º - A seleção para ingresso nos cursos aludidos no artigo anterior será feita exclusivamente pela Escola de Polícia, nos termos da legislação específica. Parágrafo único - São requisitos para inscrição nos concursos de seleção de que trata este artigo, além de outros que a legislação estabelecer, os seguintes: I - Para o Curso de Formação de Delegado de Polícia, no caso do parágrafo único do artigo 125 da Constituição do Estado, ser acadêmico de Direito, do 4º ou 5º ano, regularmente matriculado no respectivo curso; II - Para os Cursos de Formação de Inspetor e Escrivão de Polícia, Inspetor de Diversões Públicas e Radiotelegrafista Policial, ser possuidor de certificado de conclusão do primeiro ciclo do curso secundário; III - Para os Cursos de Formação de Investigador e Mecânico de Polícia, ser portador de certificado de conclusão do curso primário. Art. 6º - A seleção para ingresso nos cargos técnicocientíficos e especializados, lotados na Polícia Civil, será feita exclusivamente pela Escola de Polícia, de acordo com a legislação própria. (RIO GRANDE DO SUL, 1971)

A exigência de escolaridade para os candidatos ao cargo de delegado foi alterada em 197630, passando a ser necessário a partir de então o título de Bacharel ou Doutor em Direito. Estabelecia-se, entretanto, uma ressalva: Se o número de candidatos aprovados no concurso de seleção para ingresso no Curso de Formação de Delegado de Polícia for inferior ao de vagas correspondente, poderá ser realizado novo concurso, a cuja prestação serão admitidos também estudantes de Direito do último ano ou de um dos dois últimos semestres. (RIO GRANDE DO SUL, 1976)

O Estatuto dos Servidores da Polícia Civil de 1980 manteve o acesso privilegiado dos servidores policiais ao cargo de delegado de polícia, ao qual poderiam candidatar-se independente de concurso público, submetendo-se apenas a uma prova de habilitação. Art. 5º - Os Comissários, Inspetores, Escrivães e Investigadores de Polícia, bacharéis em Direito, com mais de cinco anos de efetivo serviço policial e boa conduta funcional, mediante prova de habilitação, terão matrícula assegurada no curso superior de formação de Delegado de Polícia, até o limite de 50% (cinqüenta por cento) do total de vagas previstas para o curso. (RIO GRANDE DO SUL, 1980) 30

Lei nº 7.059, de 31 de dezembro de 1976 (RIO GRANDE DO SUL, 1976).

106

Este procedimento só veio a ser extinto em 1989, devido às regras estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 (art. 37, inc. II), que estabeleceu a obrigatoriedade de concurso público para a investidura em cargo ou emprego público (BRASIL, 2002, p. 29). A Lei nº 8.835/89 proibiu, como se observa no artigo transcrito a seguir, a realização de processos seletivos restritos aos membros da corporação. Art. 2º- A admissão aos cursos da Escola de Polícia, para efeito de ingresso na Polícia Civil, dar-se-á exclusivamente por Concurso Público, vedada qualquer privilegiação de servidor do Estado com relação às provas exigidas. (RIO GRANDE DO SUL, 1989b)

Importante modificação foi a exigência de escolaridade em nível de Segundo Grau (atual Ensino Médio) para os candidatos aos cargos de inspetor, escrivão e investigador de polícia, mantendo-se a exigência de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais para os candidatos ao cargo de delegado. Ficou estabelecido que os candidatos seriam avaliados em relação à capacitação intelectual, física, vocacional e moral (RIO GRANDE DO SUL, 1989b). A prova de capacitação intelectual, realizada em uma única vez, deveria consistir em questões, em partes iguais, sobre as seguintes matérias: I – Legislação Constitucional e Penal, para os cargos policiais; II – Conhecimentos específicos, para os outros cargos com lotação privativa na Polícia Civil; III – Português; IV – Legislação Estatutária; e V – Conhecimentos gerais. (RIO GRANDE DO SUL, 1989b).

A prova de capacitação vocacional seria aplicada por profissionais das áreas de Psicologia e Psiquiatria, em avaliações separadas, mas com resultado conjunto. A avaliação da capacitação moral seria realizada pelo Conselho Superior de Polícia, baseando-se na investigação da vida pregressa do candidato (RIO GRANDE DO SUL, 1989b).

107

A forma de operacionalização da prova vocacional representou importante mudança, pois até então era realizada através de uma entrevista, método que abria ampla margem para que critérios subjetivos e individuais fossem utilizados. Não havia nenhum tipo de teste com base científica para embasar as decisões, das quais não havia recurso possível. Conforme depoimentos obtidos em entrevistas, os critérios adotados para a seleção dos candidatos envolviam características como posição política, laços de amizade ou parentesco, aparência pessoal, gênero ou etnia. A Constituição Estadual de 1989 deu nova organização à área da segurança pública, desvinculando a Instituição Geral de Perícias31 da Polícia Civil. Assim, a Academia de Polícia Civil passou a ser responsável pela seleção e treinamento apenas dos servidores policiais civis. Diversos

policiais

entrevistados

relataram

que

havia

indícios

de

irregularidades na realização dos concursos na década de 1980, embora nunca tenham sido apresentadas provas disto. Em 1993, entretanto, realizou-se um concurso para delegado em que uma das candidatas denunciou publicamente a entrega prévia dos gabaritos das provas intelectuais a algumas pessoas, envolvendo delegados e agentes policiais colocados em posições de destaque na Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. O governador do Estado determinou a instauração de uma comissão de sindicância para esclarecer as denúncias, e realmente foi constatada a existência de fraude. Com base nesta conclusão foi anulada a prova de capacitação intelectual e revogado o concurso em sua totalidade.32 A comissão de sindicância recomendou, entre outras providências:

31 Através da Emenda Constitucional nº 19/97, passou a denominar-se Instituto Geral de Perícias (RIO GRANDE DO SUL, 2002). 32 Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Sul de 13 de junho de 1994, p. 2.

108

d) A revisão dos regulamentos da Academia de Polícia Civil, em ordem a suprir deficiências constatadas no controle da regularidade dos atos e procedimentos administrativos dos concursos públicos cuja realização, por força de norma constitucional local, repousa em sua competência privativa, com a inclusão de cautelas efetivamente asseguradoras do sigilo; e e) Remessa ao Senhor Chefe de Polícia de cópia reprográfica do presente Relatório e das peças probatórias, para as providências cabíveis em sua alçada de competência, inclusive visando à ação disciplinar determinada pela falta de atendimento às requisições deste Órgão por parte de servidor policial.

Depois desse episódio, as normas para a realização de concursos na Polícia Civil foram alteradas através da Lei nº 10.728/96 (RIO GRANDE DO SUL, 1996). Uma das principais alterações introduzidas foi a divisão do concurso em três fases: preliminar, intermediária e final, sendo esta última constituída de Curso de Formação Profissional, com avaliação de desempenho. Assim, até o final do curso de formação os candidatos ainda poderiam ser eliminados em função de seu aproveitamento. A fase intermediária constituía-se de prova de capacitação física, e a fase preliminar era diferente segundo o cargo: para os candidatos a delegado de polícia, provas escritas aplicadas em duas etapas (uma com questões objetivas e outra dissertativa), provas orais e prova de títulos; para os candidatos a inspetor e escrivão de polícia, apenas uma prova escrita dividida em três partes. Outra alteração importante no processo seletivo introduzida pela Lei nº 10.728/96 foi a possibilidade de contratação de empresa ou pessoas para a realização das provas da parte preliminar, sempre sob a supervisão da Comissão de Concurso: Art. 13 – As provas da fase preliminar dos concursos poderão ser organizadas, aplicadas e corrigidas por professores ou entidade especializada, idônea e conceituada, contratada pela Polícia Civil, mediante indicação da Comissão de Concurso. (RIO GRANDE DO SUL, 1996)

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Tendo como base o que estabeleceu esta lei, o Decreto nº 37.419/97 (RIO GRANDE DO SUL, 1997a) aprovou o Regulamento do Concurso Público para ingresso nas carreiras de delegado, escrivão e inspetor de polícia, tendo sido modificado posteriormente pelos Decretos nº 38.092/98 e nº 39.062/98 (RIO GRANDE DO SUL, 1998a, 1998b). Esse último introduziu a exigência de escolaridade de nível superior (sem especificação de curso) para os candidatos aos cargos de inspetor e escrivão de polícia. A partir de 1997, quando houve novo concurso para o cargo de delegado, os concursos para ingresso na Polícia Civil passaram a ser organizados por instituições especializadas. Até o concurso para o cargo de delegado aberto em 2002, a responsável foi Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS), sendo os concursos abertos em 2005 (escrivão e inspetor) realizados pela Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH). Para a prova de capacitação física, realizada pela Academia de Polícia Civil, adotaram-se procedimentos especiais para garantir a transparência do processo, especialmente a filmagem do desempenho de todos os candidatos. Com o aumento do número de etapas em cada concurso, sua duração também aumentou, chegando a quase dois anos. Atualmente, os candidatos freqüentemente apresentam recursos administrativos e recorrem à Justiça para discutir diversos aspectos do concurso, fazendo com que os prazos tenham que ser amplos. Mesmo durante a realização dos cursos de formação ocorrem entradas e saídas de candidatos, à medida em que conseguem amparo de medidas liminares ou têm suas ações julgadas improcedentes. Em relação à prova de capacitação física, por exemplo, há candidatos reprovados que obtêm amparo judicial para continuar no concurso e refazer a prova. Freqüentam o curso de formação,

110

participam das aulas de Educação Física e, depois de bem condicionados fisicamente, submetem-se novamente à mesma prova na qual seus colegas haviam sido aprovados meses antes. Em relação às avaliações da vida pregressa, para as quais não cabem recursos administrativos, os candidatos têm a oportunidade de apresentar,

por

escrito,

explicações

para

eventuais

fatos

considerados

desabonadores. Quanto aos exames de sanidade física, psíquica e de aptidão psicológica, os candidatos reprovados também recorrem freqüentemente à Justiça. Para uma melhor compreensão do processo seletivo, apresentam-se nas duas subseções a seguir características específicas das provas de conhecimentos e das sindicâncias de vida pregressa. 3.1.1 As provas intelectuais Nos primeiros concursos realizados pela então Escola de Polícia, em 1957, as provas de conhecimentos eram divididas em eliminatórias (de seleção) e classificatórias (de habilitação). Para o cargo de delegado, a prova eliminatória era a de português, constituindo-se em uma redação de no máximo duas folhas manuscritas sobre um dos temas seguintes: a posição do Brasil na América; o problema do menor delinqüente; problemas da vida urbana de Porto Alegre; a Escola de Polícia; o funcionário público; relações entre o professor e o aluno; vantagens e desvantagens do cinema na educação dos jovens; motivos que induziram o candidato a ingressar na carreira policial; o regime democrático; a língua portuguesa.33 As provas classificatórias eram as de Direito Penal e Direito Processual Penal, Legislação aplicada à função pública e línguas. Esta última prova era facultativa, consistindo em conversação durante dez minutos com a banca examinadora em uma língua estrangeira (inglês, francês, espanhol, italiano ou Edital de abertura de inscrições ao curso de delegado da Escola de Polícia. 1957. Arquivo da Academia de Polícia Civil, fundo Divisão de Recrutamento e Seleção, série Editais de Abertura de Inscrições.

33

111

alemão). Para o cargo de escrivão, as provas eliminatórias eram as de português (igual à prova para o cargo de delegado) e de datilografia. As provas classificatórias eram as mesmas enfrentadas pelos candidatos a delegado, inclusive com o mesmo conteúdo, havendo ainda uma prova facultativa de taquigrafia.34 O que chama a atenção em relação a essas provas é que os conteúdos para ambos os cargos eram iguais, sendo que os candidatos a escrivão tinham uma prova eliminatória a mais (datilografia) e outra opcional a mais (taquigrafia). Alguns anos mais tarde, os requisitos das provas de conhecimentos para os cargos de escrivão e inspetor haviam sido drasticamente reduzidos: em 1971, por exemplo, havia apenas uma prova eliminatória de português e uma prova classificatória de matemática. A Lei nº 8.835/89, entre outras alterações no processo seletivo dos policiais civis, determinou o conteúdo da prova de capacitação intelectual, que deveria ser realizada em uma única vez e ter questões, em partes iguais, a respeito das seguintes matérias: I – Legislação Constitucional e Penal, para os cargos policiais; II – Conhecimentos específicos, para os outros cargos com lotação privativa na Polícia Civil; III – Português; IV – Legislação Estatutária; e V – Conhecimentos gerais (RIO GRANDE DO SUL, 1989b). Uma nova definição dos conteúdos da prova foi feita em 1997, pelo Decreto nº 37.419, complementada por nova legislação nos anos seguintes, mantendo-se até o presente (RIO GRANDE DO SUL, 1997a).35 Cada edital determina aspectos específicos do programa, mas os conteúdos e a forma de aplicação das provas são definidos em lei. A prova de títulos também tem seus critérios definidos na legislação. 34 Edital de abertura de inscrições ao curso de escrivão da Escola de Polícia. 1957. Arquivo da Academia de Polícia Civil, Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção, Série Editais de abertura de inscrições. 35 Decreto nº 38.092/98 e Decreto nº 39.062/98 (RIO GRANDE DO SUL, 1998a, 1998b).

112

Para o cargo de delegado, determinou-se a aplicação inicial de provas escritas, uma objetiva e outra dissertativa, sendo os candidatos aprovados nestas provas então submetidos a provas orais. Os conteúdos da prova objetiva são: língua portuguesa (vinte questões) e matérias jurídicas, sendo dez questões de cada uma das

áreas

selecionadas

(Direito

Penal,

Direito

Processual

Penal,

Direito

Constitucional, Direito Administrativo, Legislação Estatutária, Direito da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e Parte Geral do Código Civil). A prova dissertativa constitui-se de questões sobre Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Constitucional e Direito Administrativo, mesmo conteúdo das provas orais. Para os cargos de escrivão e inspetor de polícia, a prova escrita organiza-se da seguinte forma: a) uma primeira parte para a avaliação de conhecimentos de língua portuguesa, constituída de uma redação e de questões objetivas; b) uma segunda parte para a avaliação de conhecimentos básicos de Direito Penal, Direito Processual, Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direitos Humanos, com questões objetivas; e c) uma terceira parte, também com questões objetivas, para avaliação de conteúdos de informática e de conhecimentos gerais. 3.1.2 As sindicâncias da vida pregressa Durante as décadas de 70 e 80, o candidato respondia a um pequeno questionário, onde constavam perguntas sobre seu local de moradia, de estudo e/ou de trabalho, apresentando apenas documentos de identidade e de comprovação de escolaridade. No início dos anos 70 havia questões sobre a filiação a partido político e sobre a realização de viagens ao exterior, posteriormente retiradas. A investigação

113

realizada pela Academia de Polícia Civil se fazia no sentido de verificar se o candidato tinha algum antecedente policial ou judicial, bem como problemas relacionados à inadimplência de dívidas. Através de correspondência enviada às escolas, também era verificada a autenticidade dos diplomas apresentados. A partir do final dos anos 80, introduziu-se um modelo de questionário ampliado, que foi mantido com pequenas alterações até o presente. Além das perguntas

anteriores,

foram

acrescentados

itens

para

detalhamento

das

informações. Sobre a família, passou-se a perguntar o nome dos pais, irmãos e cônjuge, suas profissões e envolvimento em questões policiais ou judiciais. O candidato deve também informar o nome das escolas onde completou cada um dos níveis de ensino, sua atividade profissional no momento da inscrição ao concurso (local, função e salário) e as três atividades profissionais anteriores a esta (locais, funções, salários e os motivos para a troca por outra). Uma parte do questionário envolve aspectos referentes a atividades de lazer preferidas pelo candidato, conhecimentos ou habilidades específicas (uso de armas, por exemplo), motivação para ingressar na carreira policial e a existência de amigos ou parentes na instituição. 3.2 Os cursos de formação da Academia de Polícia Civil Acompanhando as mudanças no processo de seleção dos novos policiais, os cursos de formação também tiveram sua duração, conteúdos e organização modificados. Alguns aspectos, entretanto, mantiveram-se estáveis ao longo de todo o período, como a ausência de um quadro fixo de professores. Ainda hoje, a cada curso realizado pela Academia de Polícia Civil são designados os professores de cada disciplina, e a designação só é válida para aquele curso específico. Quando o professor designado é servidor estadual, mesmo que seja integrante do poder

114

Legislativo ou Judiciário, o procedimento administrativo é simples, havendo uma remuneração por hora-aula ministrada. Estes professores não se desligam de suas outras atividades profissionais, apenas acrescentando à sua carga horária normal de trabalho as horas dedicadas à atividade docente. Assim, vão à Academia apenas para ministrar aulas e, mais raramente, para participar de reuniões. A remuneração não inclui a participação em reuniões, preparação de aulas e correção de provas, nem repouso semanal remunerado, férias ou décimo-terceiro salário. Quando necessário, podem ser contratados professores que não sejam servidores estaduais, mas isto não é muito freqüente devido ao longo e complicado processo administrativo a ser seguido, que normalmente leva o professor a receber sua remuneração muito tempo após o encerramento do curso. A partir dessa situação, não é surpresa que, atualmente, a maioria dos professores designados sejam integrantes da Polícia Civil, sendo alguns lotados na própria Academia. A seleção do corpo docente é realizada pela direção da Academia de Polícia Civil, sujeita à interferência da Chefia de Polícia e da Secretaria da Justiça e da Segurança. O critério oficialmente utilizado é o da análise do curriculum vitae, o que na prática não garante objetividade: fatores políticos ou de relacionamento pessoal podem pesar mais do que títulos acadêmicos ou de trabalho especializado. Outro problema relativo ao corpo docente é a falta de qualificação em termos pedagógicos, pois a maioria dos professores não tem preparo específico para lecionar. A idéia de que basta o conhecimento da prática policial para ser um bom professor é bastante aceita ainda hoje. Nos últimos anos têm-se desenvolvido esforços no sentido de fazer com que todos os professores participem de seminários de preparação à docência, mas ainda há obstáculos como o fato de a participação

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em seminários não ser remunerada e a pouca importância que alguns professores dão aos aspectos pedagógicos de seu trabalho. Ressalta-se o fato de que no corpo docente dos cursos de formação policial predominam os delegados. Nos cursos de formação de delegados, até mesmo o que se realizou em 2004, os inspetores, escrivães e investigadores não podem ser professores. A exceção sempre foi a disciplina de Educação Física, para a qual não existem delegados habilitados. As disciplinas da área da Psicologia foram ministradas por escrivães e inspetores com formação específica, e Sociologia da Violência por servidores do quadro dos Técnicos Científicos. Nos cursos de formação de inspetores e escrivães, os coordenadores de disciplinas quase sempre são delegados. As características apontadas em relação à seleção do corpo docente da Academia de Polícia Civil decorrem da situação de subordinação da área de ensino às disputas mais gerais da Polícia Civil, que por sua vez não tem autonomia frente ao campo político. Os recursos como certificados escolares (seja de cursos de especialização, mestrado e doutorado ou de títulos específicos das áreas de uso de armas de fogo, artes marciais e técnicas de defesa pessoal) não têm o valor esperado segundo as regras do campo acadêmico, sendo desvalorizados frente ao capital político. Uma indicação do Chefe de Polícia, por exemplo, garante a posição de professor da Academia de Polícia Civil, independentemente de qualquer outro atributo ou qualificação do indicado. Um aspecto importante de todos os cursos de formação da Academia de Polícia Civil, desde o início de seu funcionamento, é o fato de os alunos receberem, durante o período do curso, uma bolsa de estudos correspondente à metade do vencimento básico do cargo para o qual se preparam. No caso dos servidores

116

estaduais, pode ser feita a opção por continuar a perceber os vencimentos do cargo que ocupam, garantindo-se o retorno à posição anterior se houver reprovação ou desistência do curso. A elaboração do currículo e dos conteúdos programáticos dos cursos de formação sofreram mudanças ao longo do tempo. Quando a Escola de Polícia iniciou suas atividades, havia duas instâncias responsáveis por este processo: a Congregação e o Conselho Técnico. A Congregação era constituída por todos os professores dos cursos superiores, um do curso secundário e outro do curso elementar. Os alunos tinham um representante, escolhido por seus pares. O Conselho Técnico era constituído pelos diretores de Divisão do Departamento de Polícia Civil (Administração, Investigação, Ordem Social, Trânsito, Guarda Civil, Rádio Patrulha e Rádio Comunicações), Instituto de Identificação, Instituto Médico Legal, Instituto de Polícia Técnica e pelo delegado da 1a Região Policial, sendo responsável especialmente pela discussão dos programas e métodos de ensino.36 O novo regulamento da Escola de Polícia instituído em 1962 substituiu o Conselho Técnico por dois órgãos, o Conselho Coordenador e a Assistência Técnica de Ensino. O primeiro, com a mesma constituição do Conselho Técnico, ficou incumbido de indicar as necessidades do serviço policial, às quais o ensino deveria se adequar; a segunda ficou incumbida das questões de planejamento e acompanhamento da execução dos cursos.37 O novo Regulamento da Academia de Polícia Civil aprovado em 199738 instituiu o Conselho Técnico-Educacional, presidido pelo Diretor Geral e integrado pelos três diretores de divisão da Academia (Assessoramento Especial; Ensino; Recrutamento e Seleção) e no mínimo um membro de cada área curricular (art. 12). Regulamento da Escola de Polícia. Decreto nº 7.657, de 19 de fevereiro de 1957. Arts. 17, 18 e 19. Regulamento da Escola de Polícia a que se refere o Decreto nº 14.457, de 6 de dezembro de 1962. Arts. 9º, 10 e 11. 38 Decreto nº 37.489, de 10 de junho de 1997. 36 37

117

Mais adiante, o art. 39 especificava as áreas que organizavam o currículo: jurídica, técnico-científica, técnico-operacional e administrativa. A este conselho foi atribuída a competência de elaborar os programas e conteúdos dos cursos de formação, que deveriam ser submetidos à aprovação do Chefe de Polícia. Em relação à estrutura curricular e aos conteúdos programáticos das disciplinas dos cursos de formação, há muitos problemas na documentação, havendo poucos períodos com registros completos e outros sem registro algum. Há no Arquivo da Academia de Polícia algumas relações de disciplinas e de conteúdos sem data, bem como relatórios de cursos onde constam apenas os títulos das disciplinas, sem descrição dos conteúdos. Os dados mais antigos localizados na pesquisa referem-se ao primeiro curso de formação de delegados de polícia, iniciado em 1957 na então Escola de Polícia. Na ata nº 1 do Conselho Técnico, realizada em 20 de março de 1957, aprovaram-se as designações dos diversos professores que exerceriam atividades neste curso. As disciplinas eram as seguintes: História da Polícia e Organização Policial; Estática e Dinâmica dos Serviços Administrativos; Criminologia; Técnica do Crime e da Investigação; Criminalística; Técnica do Policiamento; Polícia Política e Social; Medicina Legal; Direito Penal; Processo Penal; Institutos do Direito Público; Institutos do Direito Privado; Legislação Usual na Função Pública; Propedêutica Penal; Português; Armamento e Tiro; Educação Física e Contabilidade.39 O curso teve início em 2 de setembro de 1957, encerrando-se em 27 de dezembro de 1958, com a formatura de 46 alunos. Não foram encontradas informações quanto à carga horária ou conteúdos programáticos deste curso, assim como quanto aos cursos de formação de inspetores e escrivães realizados na mesma época. 39 Atas do Conselho Técnico. Escola de Polícia. Livro nº 1. f. 2f e 2v. Arquivo da Academia de Polícia. Série Livros. Caixa 51-001.

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Realizando-se com intervalos regulares, as reuniões registradas nas atas do Conselho Técnico foram interrompidas em 1966, sendo retomadas apenas em 1975, quando planejavam-se as atividades de 1976.40 No período entre 1957 e 1966 houve várias discussões a respeito de mudanças no currículo, com sugestões como a implantação das disciplinas de Socorros de Urgência, Organização Social e Política Brasileira, Estatística, Relações Humanas e Trânsito. Não ficou registrado, entretanto, se estas alterações foram feitas ou não. Para o período de 1976 a 1986 existem registros mais detalhados dos cursos de formação, especialmente os planos de ensino. Embora a carga horária total de cada curso não esteja explicitada, constam dos planos de ensino as disciplinas e as datas de início e encerramento das atividades. O conteúdo programático das disciplinas também não está disponível. Os dados obtidos em relação à carga horária e à duração dos cursos de formação realizados estão resumidos na Tabela 1, a seguir, onde constam também as informações dos cursos mais recentes, com documentação mais completa. Tabela 1 - Ano de realização, carga horária e duração dos cursos de formação realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, por cargo - 1978/2004 Cargo

Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado Delegado

Ano

1978 1979 1980 1981 1982 1982 1983 1984 1987 1990 1998 2004

Carga horária (horasaula)

780 704 696 728 816 1.026 1.596 960 663 804 900 950

Duração (semanas)

15 13 12 14 16 18 28 24 16 12 21 16

40 A ata nº 21 é de 23 de junho de 1966, e a de nº 22 de15 de dezembro de 1975. Encerrando o livro, a Ata nº 23 tem a data de 5 de junho de 1984.

119

Inspetor e 1978 escrivão Inspetor e 1979 escrivão Inspetor e 1980 escrivão Inspetor e 1981 escrivão Inspetor e 1982 escrivão Inspetor e 1982 escrivão Inspetor e 1983 escrivão Inspetor e 1984 escrivão Inspetor e 1995 escrivão Inspetor e 2000-2001 escrivão Inspetor e 2003 escrivão Investigador 1980 Investigador 1981 Investigador 1982 Investigador 1983 Investigador 1984 Investigador 1985 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Série Planos e Relatórios; Fundo Divisão de Série Projetos.

765

15

640

13

612

12

756

14

944

16

1.116

18

1.736

28

1.134

27

1.178

38

1.330

41

1.220

28

369 658 225 1.344 1.134 1.026 Fundo Divisão de Ensino, Assessoramento Especial,

9 14 9 28 27 27

Pode-se observar a amplitude da variação da carga horária dos cursos. O caso mais notável devido à baixa carga horária foi o curso de formação de investigadores realizado em 1982, com apenas 225 horas-aula. Segundo informações de entrevistas, o curso foi reduzido devido à realização de eleições naquele ano, o que implicava em uma data limite para nomeação de servidores. Como interessava ao governo nomear os investigadores antes desse prazo, optouse por reduzir o curso, em mais uma demonstração da influência de fatores políticos sobre a organização policial. Logo em seguida, os cursos realizados no segundo semestre de 1982 e em 1983, para todos os cargos, apresentaram as maiores

120

cargas horárias. A amplitude de variação de carga horária foi limitada pela Lei nº 8.835/89, que determinou a carga horária mínima de 800 horas-aula para todos os cursos de formação para os cargos policiais, bem como um limite de 10 horas-aula por dia (RIO GRANDE DO SUL, 1989b). A mesma lei também especificou uma estrutura curricular obrigatória, organizando as disciplinas em áreas: – área técnica e administrativa – Armamento e Tiro, Informações, Técnica de Investigações,

Trânsito,

Informática,

Comunicações,

Administração

Policial,

Procedimentos Policiais, Inquérito Policial e outras – carga horária mínima de 35% do total; – área jurídica e social – Direito do Menor, Direito Constitucional, Defesa Civil, Noções de Direito Civil, Direitos Humanos e outras – carga horária mínima de 30% do total; – área científica – Medicina Legal, Toxicologia, Perícias e outras – carga horária mínima de 10% do total, e – área física – Educação Física – carga horária mínima de 5% do total. (RIO GRANDE DO SUL, 1989b). Com o objetivo de permitir a observação de algumas características do ensino da Academia de Polícia Civil, apresenta-se a seguir a estrutura curricular dos cursos de formação de delegados, inspetores e escrivães de 1976. Tabela 2 – Estrutura curricular dos cursos de formação de delegado, inspetor e escrivão de polícia realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1976 Disciplinas

Administração policial Armamento e tiro Chefia e liderança Criminalística Criminologia Direito Penal

Carga horária semanal (horas-aula) Delegado Inspetor e escrivão

03 03 03 02 04

03 03 02 03 04

121

Direito usual na função pública 03 03 Educação Física 04 04 Educação Moral e Cívica 02 Estudos de Problemas 02 Brasileiros Medicina Legal 03 03 Polícia política e social 03 04 Português 03 04 Processo Penal 04 04 Relações Humanas 02 02 Técnica da investigação 04 04 criminal Técnica do policiamento 03 02 Trânsito 03 04 Total 49 51 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Ensino, Série Planos e Relatórios. Plano nº 1/76. O curso para escrivães e inspetores tinha uma estrutura muito semelhante, diferindo em pequenas variações na carga horária e em duas disciplinas ministradas apenas aos futuros delegados (Criminologia e Estudos de Problemas Brasileiros) e outras duas ministradas apenas aos futuros inspetores e escrivães (Chefia e liderança e Educação moral e cívica). Como não se dispõe dos conteúdos programáticos, não há condições de verificar se o enfoque dado às disciplinas era diferente. Como os requisitos de escolaridade eram diferentes, bem como as funções que os alunos desempenhariam, presume-se que os conteúdos dos cursos de formação não poderiam ser iguais para agentes e delegados, embora esta seja uma queixa dos alunos até hoje. Aqueles que passam pela formação de delegado já tendo passado anteriormente pela formação de inspetor ou escrivão afirmam que os cursos são praticamente iguais, o que seria uma falha importante. Este tema será retomado mais adiante neste capítulo. Pode-se observar que algumas das sugestões apresentadas em anos anteriores foram incorporadas, como a introdução das disciplinas de Trânsito e de Relações Humanas.

122

Em relação ao curso de formação de investigador de polícia, a mais antiga grade curricular localizada refere-se ao ano de 1980, sendo apresentada na tabela a seguir. Tabela 3 – Estrutura curricular do curso de formação de investigador de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1980 Disciplina

Carga horária semanal (horas-aula)

Noções de técnica de policiamento, da investigação 04 criminal e da segurança física de prédios Noções de trânsito 02 Noções de legislação penal 02 Socorros de urgência 02 Administração policial e legislação estatutária 04 Português 03 Conhecimentos gerais 02 Educação Moral e Cívica e Relações Humanas 06 Educação Física 08 Armamento e tiro 08 Total 41 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Ensino, Série Planos e Relatórios. Curso de formação de investigador de polícia. Plano nº 20/79. As disciplinas com maior peso eram as de Educação Física e Armamento e Tiro, evidenciando o perfil desejado para o cargo, mais operacional do que administrativo. É importante ressaltar que a disciplina de Educação Física, em todos os cursos, sempre teve conteúdos basicamente ligados à defesa pessoal, sendo recente a inclusão de conteúdos de atividade física e saúde. Ao longo dos anos seguintes os cursos mantiveram-se quase sem alterações. Disciplinas como Direção Defensiva e Socorros de Urgência, por exemplo, estiveram presentes em alguns cursos e ausentes em outros. Apenas em 1986 surgiram duas novidades importantes, que viriam a se tornar permanentes: as disciplinas de Relações e Direitos Humanos e de Introdução à Informática. A disciplina de Relações Humanas já constava há muitos anos do currículo, e seus conteúdos podiam

envolver

conceitos

como

chefia

e

liderança,

relações

públicas,

123

conhecimentos gerais de psicologia e até mesmo cerimonial e protocolo. O título Relações e Direitos Humanos aparentemente foi uma forma provisória para o título definitivo de Direitos Humanos, que o substituiu nos anos seguintes. Esse foi um dos primeiros reflexos das mudanças na situação política e social brasileira no processo de formação dos policiais civis, em um momento em que os direitos humanos constituíam-se como tema de discussão, envolvendo especialmente a atuação da polícia. A disciplina de Introdução à Informática indicava um processo de mudança de ordem tecnológica, com a utilização cada vez mais importante dos computadores na atividade policial. O último curso de formação de inspetores e escrivães de nível médio de escolaridade realizou-se entre 1994 e 1995, envolvendo um número excepcional de alunos, pois destinava-se a preencher 1.400 vagas. Devido à falta de espaço físico, metade da turma foi destinada a fazer um estágio em delegacias de polícia enquanto a

outra

metade

estava

freqüentando

aulas

na

Academia,

invertendo-se

posteriormente a situação. Entrevistados que participaram deste curso relatam que a experiência foi negativa para muitos dos alunos que não eram policiais (muitos alunos já eram policiais militares ou investigadores de polícia), pois foram colocados em contato com o cotidiano de uma delegacia sem nenhuma informação sobre o que seriam os procedimentos corretos. Assim, acabaram aprendendo com os policiais mais antigos algumas condutas inadequadas. A estrutura curricular do curso está exposta na Tabela 4. Tabela 4 – Estrutura curricular do curso de formação de escrivão e inspetor de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul – 1994-1995 Disciplinas

Adestramento físico Administração policial Armamento e tiro

Carga horária (horas-aula)

114 76 152

124

Criminalística 38 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 38 História da Polícia Civil 38 Medicina Legal 38 Noções de Direito Constitucional 38 Noções de Direito Penal 114 Noções de Direitos Humanos 38 Noções de Processo Penal 114 Operações especiais 76 Prática cartorária 114 Redação policial 38 Relações Humanas e Ética Policial 38 Socorros de urgência 38 Técnica de investigação criminal 114 Telemática 38 Trânsito 76 Total 1.178(1) Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Ensino, Série Planos e Relatórios. Curso de escrivão e inspetor de Polícia Civil 1995. Nota: (1) A soma da coluna corresponde a 1.330, mas o número que consta do documento é 1.178. Pode-se observar a importância atribuída às questões da prática, com disciplinas como Operações Especiais (voltada ao treinamento de ações policiais com enfrentamento armado), Prática Cartorária (elaboração de inquéritos policiais), Técnica de Investigação Criminal e Armamento e Tiro, somando 456 horas-aula, pouco mais de um terço da carga horária total. Em 1997, o novo Regulamento da Academia de Polícia estabeleceu algumas diretrizes para os cursos de formação. Confirmou-se a carga horária mínima de 800 horas-aula, sendo de 40 minutos a duração de cada hora-aula e a carga horária máxima diária de 10 horas-aula (RIO GRANDE DO SUL, 1997b). As disciplinas deveriam ser desenvolvidas nas áreas jurídica, técnico-científica, técnico-operacional e administrativa, constando obrigatoriamente dos programas as disciplinas de Direitos Humanos, Delegacia Experimental, Armamento e Tiro, Prática de Operações Policiais, Medicina Legal, Toxicologia, Criminalística, Direito Penal,

125

Direito Processual Penal, Direito Administrativo e Direito Constitucional (RIO GRANDE DO SUL, 1997b). Depois do curso de 1995, novo edital de abertura de concurso para escrivão e inspetor foi lançado ao final de 1998, sendo os cursos realizados em 2000 e 2001.41 O curso de formação de escrivão de polícia iniciado em 16 de maio de 2000 (encerrado em 3 de março de 2001) foi o marco de uma nova estrutura para os cursos de formação, que passaram a ser realizados de forma integrada com a Brigada Militar e a Superintendência dos Serviços Penitenciários, sob o controle direto da Secretaria da Justiça e da Segurança. Na primeira parte do curso, denominada básica, faziam parte de uma mesma turma os alunos candidatos aos cargos de escrivão de polícia, os soldados da Brigada Militar (já aprovados em concurso) e os servidores da Superintendência de Serviços Penitenciários (agentes, monitores e auxiliares penitenciários). O nível mínimo de escolaridade dos alunos da Polícia Civil era o superior e dos policiais militares, o ensino médio; os monitores penitenciários tinham escolaridade superior, os agentes penitenciários, nível médio e os auxiliares penitenciários, nível fundamental. Na segunda parte, específica, cada instituição assumia o ensino de seus próprios alunos. Essa modificação causou grande impacto, introduzindo ao mesmo tempo vários elementos novos no processo de formação. O primeiro deles foi a centralização de todas as decisões importantes pela Secretaria da Justiça e da Segurança, que passou a determinar os currículos e conteúdos programáticos, selecionar o corpo docente e controlar todo o desenvolvimento dos cursos. Alunos de todas as instituições passaram a ter aulas nos quatro centros de formação: Academia de Polícia Militar, Academia de Polícia Civil, Escola de Bombeiros e

41

Edital nº 029/98, publicado no D.O.E. de 14 de dezembro de 1998, p. 38-42.

126

Escola Técnica de Polícia Militar, esta última localizada na cidade de Montenegro. Em cada um dos centros constituiu-se uma coordenação com representantes das três instituições. Os professores desenvolviam suas atividades em qualquer um dos centros de formação, independente de sua vinculação, ou seja, policiais militares poderiam estar dando aulas na Academia de Polícia Civil e policiais civis na Academia de Polícia Militar. Além disso, foram contratados professores para algumas disciplinas através de um convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em sua maioria jovens e sem qualquer vivência dentro das instituições nas quais foram trabalhar. A nova estrutura implantada em 2000 fazia parte da diretriz do governo Olívio Dutra (1999-2002), que defendia a unificação das polícias civil e militar. O Secretário de Justiça e Segurança, José Paulo Bisol, fazia publicamente duras críticas aos policiais, especialmente aos delegados de polícia e aos oficiais da Brigada Militar, e era coerente com esta orientação a tentativa de diminuir seu poder em todas as áreas, especialmente na formação dos novos policiais. Para que o novo modelo fosse valorizado, procurava-se apresentar o passado de maneira negativa, como demonstra o texto a seguir, escrito pelo coordenador do primeiro curso integrado na Academia de Polícia Militar. O processo iniciou-se de maneira inédita, gerando notícias na imprensa local e nacional, pois ensinar aos servidores da segurança, Sociologia, Direitos Humanos, Psicologia, Ética e Cidadania, entre outras disciplinas, causava surpresa ao público, acostumado a ouvir e comentar que a polícia só aprendia a atirar e agredir. (Pereira, 2002, p. 26).

Ao não explicitar como se chegou à conclusão de que o público comentava que “a polícia só aprendia a atirar e agredir”, o autor procura passar a idéia de que os cursos de formação anteriores realmente eram pobres em conteúdos intelectuais e estimulavam a brutalidade. A disciplina de Direitos Humanos, por exemplo, já

127

constava nos currículos da Academia de Polícia Civil desde 1986, mas isto não foi referido, pois não se encaixava na imagem que se procurava construir da prática de ensino anteriormente existente. Podemos ver que o controle utilizado nas corporações fazia com que as pessoas que integravam seus quadros de alunos fossem tratados [sic] de forma a obedecerem regras sem contestá-las, pois assim estava escrito, sempre foi assim e não se deveria mudar o que existia. (Pereira, 2002, p. 18).

Partindo-se deste tipo de avaliação da realidade, todas as reações negativas provocadas pela implantação dos cursos integrados foram classificadas como sendo devidas ao “corporativismo exacerbado” das instituições policiais. O autoritarismo com que esta grande mudança foi feita, as dificuldades inerentes a qualquer alteração radical de procedimentos no serviço público e as características específicas do trabalho policial são elementos que devem ser considerados na análise dos problemas ocorridos no período entre 1999 e 2002. Ao criticar publicamente a polícia como um todo, o Secretário da Justiça e da Segurança não conseguiu obter o apoio dos policiais, pois até mesmo os que eram favoráveis a mudanças nas instituições (Polícia Civil e Brigada Militar) opunham-se a tais generalizações. Outro aspecto que dificultou a adesão dos policiais civis ao novo projeto de formação profissional foi a exclusão dos servidores de carreira do processo de mudança. A centralização de todas as decisões pelo Departamento de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria da Justiça e da Segurança (DDRH-SJS), especialmente nas mãos de funcionários em cargos de confiança, relegou a Academia de Polícia Civil à condição de mera executora de um projeto pronto. O conjunto dos policiais civis não teve participação ativa na escolha dos novos rumos do processo de formação, assim como também não vinha tendo nos governos anteriores. Ao contrário destes, no entanto, o governo Olívio Dutra

128

apresentava-se como mais democrático, aberto à participação popular, criando assim uma expectativa que não foi cumprida em relação aos policiais civis. Ainda no governo Olívio Dutra, realizou-se de 20 de novembro de 2000 a 16 de setembro de 2001 o curso de formação de inspetores de polícia, parte do concurso público aberto pelo edital 029/98. O próximo curso de formação ocorreu em 2003, já no governo Germano Rigotto, que desenvolveu em relação aos servidores da segurança pública um discurso enfatizando o “desenvolvimento da auto-estima”, procurando contrapor-se às críticas aos policiais feitas pelo exSecretário Bisol e anunciando o retorno à situação anterior ao governo petista. Mesmo nessa nova conjuntura, certas mudanças não puderam ser desfeitas, como as alterações nos currículos dos cursos de formação, pois os cursos realizados em 2003 (inspetores e escrivães) e 2004 (delegados) eram regidos por editais publicados ainda em 2002, seguindo as orientações do governo anterior.42 Ambos os editais previam a realização de Cursos de Formação Integrada, executados pela Academia de Polícia Civil e supervisionados pelo Departamento de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria da Justiça e da Segurança. Determinava-se que os cursos consistiriam em uma primeira etapa integrada, com carga horária mínima de 530 horas-aula, e uma segunda etapa específica com carga horária mínima de 800 horas-aula, fazendo-se referência inclusive à possibilidade de haver aulas nos Centros de Formação Integrada dos Servidores da Secretaria da Justiça e da Segurança, denominação que era dada aos locais de ensino (Academias de Polícia Civil e Militar e Escolas Técnicas de Polícia Militar).43 Assim, os cursos de

42 Edital nº 002/2002, publicado no D.O.E. de 29 de maio de 2002 e edital nº 003/2002, publicado no D.O.E. de 24 de junho de 2002, respectivamente. 43 A Portaria SJS nº 232/2002, publicada no Diário Oficial do Estado de 31 de dezembro de 2002 (último dia do governo Olívio Dutra), criou o Centro Avançado de Ensino Integrado em Segurança Pública da Secretaria da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul, que deveria reunir todos os setores ligados ao ensino das quatro instituições da Secretaria, mas não chegou a ser implantado na prática.

129

formação de inspetor e escrivão realizaram-se com uma parte básica e uma específica, mas sendo as duas desenvolvidas na Academia de Polícia Civil. A Brigada Militar, a Superintendência dos Serviços Penitenciários e o Instituto Geral de Perícias igualmente responsabilizaram-se por seus próprios cursos de formação. Reuniões dos coordenadores de disciplinas para a definição dos conteúdos comuns foram o momento mais próximo de uma integração, sendo que os alunos nunca chegaram a se encontrar. Observa-se que as instituições da segurança pública voltaram sem maiores problemas à situação de isolamento em que se encontravam anteriormente, o que lhes proporciona maior liberdade para as disputas internas e diminui a necessidade de justificar publicamente as decisões. Apresentam-se nas Tabelas 5, 6 e 7 as estruturas curriculares dos cursos realizados em 2003 e 2004. Tabela 5 – Estrutura curricular do curso de formação de escrivão e inspetor de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2003 Parte básica

Abordagem sócio-psicológica da violência Criminalística Defesa pessoal Direito Administrativo da Segurança Pública Direito Constitucional Direito Penal Direitos Humanos Introdução ao estudo do Direito Medicina Legal Pronto socorrismo Saúde física Saúde mental Sociologia da violência e da criminalidade Uso da força e da arma de fogo Total da parte básica

Carga horária

30 30 30 30 30 30 30 30 30 30 30 30 30 30 420

Parte específica

Escrivão

Inspetor

Armamento e tiro (uso da arma de fogo) Estágio e palestras Direito Constitucional Direitos Humanos

90 90 10 10

90 90 10 10

130

Ética policial 15 15 Criminalística 20 20 Direito Administrativo-disciplinar 20 20 Direito da Criança e do Adolescente 20 20 Medicina Legal 20 20 Psicologia aplicada à função policial 20 20 Telecomunicações 20 20 Toxicologia 20 20 Redação policial 40 30 Direito Penal 40 40 Informática policial 40 40 Direito Processual Penal 70 60 Prática de operações policiais 40 60 Técnica de investigação criminal 60 60 Delegacia experimental 75 75 Educação física e defesa pessoal 80 80 Total da parte específica 800 800 Total geral 1220 1220 Fonte: Academia de Polícia Civil. Divisão de Assessoramento Especial. Relatório anual da Academia de Polícia Civil 2003. Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Assessoramento Especial. Série relatórios. A Tabela 6 traz as informações referentes ao curso de formação de delegados, realizado em 2004. Tabela 6 – Estrutura curricular do curso de formação de delegado de polícia realizado pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2004 Disciplina

Administração policial Armamento e tiro Criminalística Criminologia Delegacia experimental Direito Administrativo-Disciplinar Direito Constitucional Direito da Criança e do Adolescente Direito Penal Direito Processual Penal Direitos Humanos Estágio Ética policial Expressão oral e escrita Informática policial Inteligência Investigação policial Medicina Legal Prática de operações policiais

Carga horária

15 100 40 15 80 40 15 15 30 40 40 50 20 30 40 40 60 40 60

131

Psicologia aplicada à função policial 15 Saúde física e defesa pessoal 80 Sociologia da violência 15 Telecomunicações 20 Toxicologia 20 Palestras 30 Avaliações 100 Total 1050 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Assessoramento Especial. Série Projetos. Projeto 24/2003/DAE. Curso superior de formação de delegados de polícia – 2004. Para que se possa fazer uma comparação entre os cursos de agentes e de delegados, somaram-se as cargas horárias das disciplinas com conteúdos relacionados, fazendo-se a seguir o cálculo do percentual que representavam na carga horária total (excluíram-se as horas dedicadas a palestras, estágios e avaliações, obtendo-se o total de 870 horas-aula para o curso de formação de delegados e 1130 para os de agentes).44 Tabela 7 – Comparação das cargas horárias de disciplinas dos cursos de formação de agentes e de delegados realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 2003 e 2004, respectivamente. Disciplinas agrupadas por áreas selecionadas Área Delegado

Cursos Escrivão

Jurídicas

140 (16%) 280 (25%) Operacionais (Armamento e Tiro, Defesa 240 (28%) 330 Pessoal, Prática de Operações Policiais) (29%) Técnicas (Criminalística, Medicina Legal, 100 (11%) 120 Toxicologia) (11%) Sociais (Direitos Humanos, Ética, Sociologia, 105 (12%) 165 Psicologia, Criminologia(1) (15%) Fonte: Cálculos elaborados pela autora a partir das Tabelas 5 e 6. Nota: (1) Apenas no curso de formação de delegados.

Inspetor

270 (24%) 350 (31%) 120 (11%) 165 (15%)

Pode-se observar que a carga horária maior nos cursos para agentes é obtida principalmente devido às diferenças nas disciplinas jurídicas e operacionais. Se for aceito o fato de que todos os delegados serem obrigatoriamente graduados em

44

A classificação dos grupos não seguiu os critérios utilizados pela Academia de Polícia Civil.

132

Direito justifica uma carga horária menor nas disciplinas jurídicas, o que justifica menos preparo na área operacional? O fato de disciplinas como Inteligência e Criminologia serem ministradas apenas aos futuros delegados faz parte de um mesmo objetivo, que é o de prepará-los para coordenar e planejar, deixando aos agentes a execução das atividades. As mudanças na orientação pelas quais passou a formação dos policiais civis no Rio Grande do Sul permite que se observe a diferença, apontada por Monjardet (1996), entre o que o governo determina à polícia e o que os integrantes da instituição realmente fazem, a “opacidade” da instituição policial. Os interesses e valores dos policiais, as disputas travadas entre as posições no interior da própria instituição e também no campo político, tudo isso faz com que o controle sobre o treinamento dos policiais civis não seja completo. Exemplo do espírito corporativo é o surgimento de professores policiais para as novas disciplinas como Sociologia da Violência e Abordagem Sócio-Psicológica da Violência. Isto não ocorreu nos cursos de formação, mas nos cursos de atualização ministrados no interior do Estado, nos quais não é considerado necessário ter formação específica em Ciências Sociais ou Psicologia para ministrar esses conteúdos45. Sob o pretexto da escassez de recursos, o mesmo professor ministra conteúdos que exigem formações acadêmicas diferentes, indicando um processo de desvalorização desses conhecimentos e sua substituição por noções do senso comum. 3.3 O sentido das mudanças no processo de seleção dos policiais civis A análise até aqui realizada permite afirmar que foi profunda a evolução do processo de seleção e treinamento dos policiais civis do Rio Grande do Sul, desde 1896, quando a lei permitia a livre escolha dos servidores policiais pelos 45

Na Brigada Militar, essas disciplinas são ministradas até por professores que cursaram apenas o Ensino Médio.

133

governantes, até 2004, quando os candidatos ao ingresso nos quadros policiais passaram a ser amplamente examinados do ponto de vista de conhecimentos específicos, currículo profissional, condicionamento físico, perfil psicológico, saúde física e mental e retrospecto pessoal. Particularmente nas últimas três décadas, aumentou a transparência do processo de seleção e diminuiu o poder pessoal de escolha dos que serão admitidos na instituição. Hoje, a Polícia Civil define o perfil desejado para os novos policiais e os indivíduos são selecionados por um processo controlado por regras publicamente conhecidas. Pensando em termos dos conceitos desenvolvidos na teoria sociológica de Weber, caminhou-se em direção a uma forma de dominação legal-burocrática. São características do funcionário deste tipo de organização, conforme apontado por Weber (1986): Sua administração é trabalho profissional em virtude do dever objetivo do cargo. Seu ideal é: proceder sine ira et studio, ou seja, sem a menor influência de motivos pessoais e sem influências sentimentais de espécie alguma, livre de arbítrio e capricho e, particularmente, sem consideração da pessoa, de modo estritamente formal segundo regras racionais ou, quando elas falham, segundo pontos de vista de conveniência objetiva. (Weber, 1986, p. 129).

As regras dos concursos para o ingresso dos policiais civis desenvolveram-se no sentido de diminuir as influências pessoais, as relações clientelísticas, estabelecendo critérios que buscam objetividade e clareza. Os cursos de formação também mudaram, incorporando novos conhecimentos e procurando aumentar a qualificação dos policiais, dando-lhes recursos para analisar novas situações. As mudanças verificadas no processo seletivo da Polícia Civil não ocorreram de forma isolada, podendo-se associá-las ao movimento mais amplo ocorrido na sociedade brasileira, que desde o final da década de 1970 passou a desenvolver o que se pode considerar, em termos aproximados, como uma forma de expressão da

134

esfera pública, considerados os limites em relação ao modo como Habermas a conceituou, nos termos transcritos a seguir. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana. (Habermas, 1997, p. 92).

A complexidade da esfera pública é explicada por Habermas mais adiante, no mesmo texto, como segue. Em sociedades complexas, a esfera pública forma uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções, de outro lado. Ela representa uma rede super-complexa que se ramifica espacialmente num sem número de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e subculturais, que se sobrepõem umas às outras; essa rede se articula objetivamente de acordo com pontos de vista funcionais, temas, círculos políticos, etc., assumindo a forma de esferas públicas mais ou menos especializadas, porém, ainda acessíveis a um público de leigos (por exemplo, em esferas públicas literárias, eclesiásticas, artísticas, feministas, ou ainda, esferas públicas “alternativas” da política de saúde, da ciência e de outras). (Habermas, 1997, p. 107).

Habermas apontou três tipos de esfera pública: episódica (bares, cafés, encontros na rua), da presença organizada (encontros de pais, público que freqüenta o teatro, reuniões de partidos) e abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes de rádio, telespectadores) (Habermas, 1997, p. 107). Durante o regime militar, as condições para o pleno funcionamento da esfera pública não estavam presentes: as restrições às atividades dos partidos políticos, dos sindicatos e associações, a censura à imprensa e à produção artística (músicas, livros, filmes, peças de teatro, telenovelas), para citar apenas algumas, dificultavam o acesso das pessoas a informações e impediam a constituição de fóruns de

135

discussão. A expressão da opinião política em encontros informais da esfera pública episódica era dificultada, pois as medidas repressivas tornavam as pessoas temerosas de expressar suas opiniões sobre política, economia e outros aspectos da vida social. À medida em que sindicatos, associações de moradores, grupos religiosos, de mulheres e estudantes, entre outros, foram se organizando e contribuindo para a construção de uma esfera pública, questões de ordem sóciopolítica começaram a se constituir como temas de debate, inclusive as referentes à atuação da Polícia Civil. A seleção dos novos policiais e as ações dos policiais já em atividade passaram a ser submetidas, cada vez mais, a normas públicas. Hoje, os concursos não podem mais ser conduzidos de forma privatista, oferecendo privilégios a integrantes

da

instituição.

No

entanto,

considerando-se

o

avanço

dos

questionamentos referentes à democratização dos procedimentos nas diversas esferas de atuação do Estado, a área policial foi uma das que se manteve por mais tempo em relativo isolamento. O episódio da fraude no concurso para delegado de polícia realizado em 1993, com grande repercussão na imprensa, envolvendo políticos de destaque, constituiu-se em um marco neste processo de abertura. As investigações promovidas pela administração estadual e as discussões provocadas pelo fato levaram a modificações importantes, como a diminuição da participação da Polícia Civil no processo seletivo através da contratação de uma empresa ligada a uma universidade pública para essa função. Aspecto relevante que tem envolvido os concursos para ingresso na Polícia Civil é o grande número de candidatos que recorrem ao Poder Judiciário, nas diversas etapas do concurso, com o objetivo de questionar resultados. A concessão e a cassação de medidas liminares têm como conseqüência a freqüente entrada e

136

saída de candidatos ao longo do desenvolvimento dos cursos de formação, provocando transtornos para o grupo de alunos e para os professores. Um problema bem mais grave tem sido o questionamento judicial dos testes psicotécnicos, fazendo com que pessoas com perfil psicológico distinto do demandado tenham acesso à carreira policial.46 O estabelecimento de uma estrutura adequada para a polícia, bem como de um processo de seleção e formação de policiais, ainda é tema de discussão, sem uma solução aceita por todos os envolvidos. Beato Filho (1999) afirmou a esse respeito: Nossa ignorância a respeito do funcionamento das polícias estaduais, bem como das organizações do sistema de justiça criminal, e a forma mistificada do enfoque dado ao problema policial pode estar na origem de algumas prescrições freqüentemente propostas para a reforma das polícias. A primeira delas consiste na idéia de que existe uma estrutura ideal de organização policial, e que a atual estrutura não se coaduna com este modelo. (Beato Filho, 1999, p. 18).

O que se tentou fazer no Rio Grande do Sul no governo de Olívio Dutra (1999-2002) foi a imposição de uma unificação das polícias, modelo então eleito, pelo Poder Executivo estadual como ideal, sem no entanto ocorrer um debate democrático que permitisse o confronto de todos os argumentos existentes. Dessa forma, não se conseguiu maior adesão dos participantes que, em boa parte, resistiram e retornaram à situação anterior assim que foi possível. Na Polícia Civil e na Brigada Militar, em especial, não ocorreu um questionamento suficientemente amplo das visões corporativas, que continuam sendo a referência mais aceita.

46 No âmbito da Brigada Militar, devido à sua maior presença nas ruas, essa questão tem se destacado mais, tendo havido nos últimos anos alguns episódios de grande repercussão envolvendo homicídios cometidos por policiais militares reprovados nos testes psicotécnicos e mantidos nos cargos por medidas judiciais. Podem ser citados como exemplos as mortes de Thomás Engel, de 16 anos, ocorrida em 2 de setembro de 2001 em São Leopoldo, e do promotor público Marcelo Dario Munõz Küfner, de 33 anos, em 14 de maio de 2004, em Santa Rosa. Em ambos os casos, os responsáveis haviam sido reprovados em testes psicotécnicos e mantidos na função pela Justiça.

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Os grupos que ocupam posições de poder dentro da instituição policial lutam para manter sua autonomia, procurando a adesão do conjunto dos policiais e até mesmo da população. Algumas medidas adotadas no período em destaque foram utilizadas com essa finalidade, como uma Instrução Normativa do Chefe de Polícia, transcrita a seguir, que tratava dos termos utilizados pelos policiais. O [...] Chefe de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul [...], considerando que é dever do servidor público tratar a todos com urbanidade e respeito; considerando que certas expressões lingüísticas violam a presunção de inocência assegurada pela Constituição Federal; considerando que nosso idioma permite descrever pessoas e condutas com rara precisão e riqueza vocabular sem que se tenha que usar expressões pejorativas; considerando que ao longo de entrevistas ou declarações à Mídia e nos Inquéritos Policiais é perfeitamente possível aos policiais civis dispensarem as palavras meliante, bandido, vagabundo, marginal, elemento, etc., substituindo-as por outras, de maior rigor técnico, como acusado, indiciado, infrator e similares; Resolve: recomendar aos policiais civis em geral e aos Delegados de Polícia em especial que passem, doravante, a utilizar linguagem compatível com sua condição de servidores públicos e de concidadãos de modo a ilustrarem, a cada passo, o aspecto intelectual e de sociabilidade que há de enriquecer progressivamente a imagem a Polícia Civil. (RIO GRANDE DO SUL, 1999b).

Publicada em maio de 1999, essa instrução ilustra aspectos importantes da luta política, como a desqualificação dos policiais civis que utilizam uma linguagem considerada incompatível com sua condição de servidores públicos. O uso de termos depreciativos é parte de uma forma de perceber e organizar a realidade: os policiais que se referem aos "vagabundos", "marginais" ou "bandidos" estão, ao mesmo tempo, categorizando negativamente os infratores e se constituindo como o seu oposto positivo. Um dos fatores relevantes para que a mudança dos termos usados venha a ocorrer, de forma duradoura, é a construção, democraticamente, através de condições objetivas e subjetivas, de uma visão em que a atividade policial envolva conhecimentos e práticas específicos, essas claramente regulamentadas,

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propiciando o desenvolvimento, entre os policiais, de uma outra forma de considerar os infratores que não através do senso comum.

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4 A atividade policial civil A atividade da polícia civil é a de polícia judiciária, conforme define o Código de Processo Penal: Art. 4º: A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria. (BRASIL, 1941).

A polícia militar realiza a atividade de policiamento ostensivo e, em relação às atividades ilícitas, sua função vai até o momento em que a pessoa aparentemente responsável pelo delito é levada à polícia civil. Um caso especial é dos delitos de menor potencial ofensivo, para os quais elabora-se um termo circunstanciado em lugar do inquérito policial. Os termos circunstanciados foram criados pela lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que estabeleceu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (BRASIL, 1995)47. Consideravam-se infrações penais de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não fosse superior a um ano, excetuados os casos em que a lei previsse procedimento especial. A Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001 (BRASIL, 2001), que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, considerou como infrações de menor potencial ofensivo os crimes cuja pena máxima não fosse superior a dois anos ou multa, definição que passou a valer igualmente para todos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A Secretaria da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul autorizou os próprios policiais militares que atenderem uma ocorrência deste tipo a lavrarem o termo circunstanciado, ainda

47

Para uma análise da implantação dos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre, ver Azevedo, 2000.

140

que apenas nas Comarcas em que houver acordo sobre o tema entre a Polícia Civil e o Ministério Público.48 A atividade específica da polícia desenvolve-se em grande parte nas delegacias, onde a população faz o primeiro contato com a instituição. Após apresentar o motivo que a levou a procurar a polícia, a pessoa pode ser instruída a procurar outra instituição, mais adequada à sua necessidade, ou preencher um boletim de ocorrência, documento que inicia os procedimentos policiais posteriores. Os boletins de ocorrência são elaborados a partir dos dados apresentados ao policial, que nesse primeiro momento faz apenas o registro, transcrevendo da forma mais objetiva possível as informações que recebe. A pessoa que fornece as informações pode ser a vítima de algum delito, o policial49 (civil ou militar) que fez o primeiro atendimento à situação ou uma testemunha do fato. Após a elaboração do boletim de ocorrência (referido também como BO), há alguns procedimentos possíveis, conforme o caso: a) encaminhamento a outra delegacia distrital, para os delitos que aconteceram fora da circunscrição da delegacia onde o fato foi registrado; b) encaminhamento a uma delegacia especializada (Homicídios, por exemplo); c) encaminhamento à equipe de investigação da própria delegacia; d) encaminhamento ao cartório da delegacia para instauração de inquérito policial (IP) ou termo circunstanciado (TC); e) quando se constata não se tratar de delito, o boletim fica na secretaria da delegacia, não dando origem a nenhuma outra atividade.

48 49

Portaria SJS no 172, de 16/11/ 2000. O policial que comparece à delegacia nessa situação é referido no boletim de ocorrência como "condutor".

141

Quando a pessoa apontada como responsável pelo ato infracional for criança (menor de 12 anos) ou adolescente (entre 12 e 18 anos incompletos), há procedimentos diferenciados, estabelecidos através do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Para as crianças, é feito o encaminhamento ao Conselho Tutelar, juiz de Direito ou representante do Ministério Público; para os adolescentes, o procedimento é semelhante ao inquérito policial, denominando-se procedimento de apuração de ato infracional atribuído a adolescente (chamado freqüentemente de processo especial de adolescente). Quando há flagrante, elabora-se um auto de apreensão. Quando o fato registrado em um boletim de ocorrência apresenta as características necessárias para a instauração de inquérito policial, isto é feito através de uma portaria do delegado de polícia. Além desta, há outras duas formas para se instaurar um inquérito policial: a) pelo auto de prisão em flagrante e b) por despacho ordenatório, nos casos de requerimentos, representações criminais e requisições de Juiz de Direito ou membro do Ministério Público.50 Durante o inquérito, devem-se colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato, ouvir o ofendido e o indiciado, proceder a reconhecimento de coisas e pessoas e a acareações, averiguar a vida pregressa do indiciado, determinar exames de corpo de delito e outras perícias necessárias, apreender objetos que tenham relação com o fato e proceder à identificação do indiciado (Código de Processo Penal, artigo 6º). Pode-se também realizar uma reprodução simulada dos fatos, para verificar a possibilidade de terem ocorrido de determinado modo (Código de Processo Penal, artigo 7º). Depois de concluído o inquérito policial, o delegado elabora um relatório e envia todos os documentos ao juiz. O Ministério

50

Portaria nº 44/98 – Gabinete da Chefia de Polícia. Dá nova redação à Instrução Normativa nº 1/95.

142

Público faz então uma avaliação, podendo solicitar novas diligências à polícia, apresentar denúncia imediatamente ou pedir ao juiz o arquivamento do inquérito, se concluir que não cabe denúncia. Com o objetivo de apreender os diversos aspectos do trabalho desenvolvido pelos servidores da Polícia Civil, apresentam-se a seguir dados quantitativos; na seqüência, abordam-se as atividades realizadas nas delegacias de polícia, destacando-se ao final as características consideradas mais importantes para a presente análise. 4.1 Registros da atividade policial Para que se possa melhor compreender a atividade dos policiais civis do Estado do Rio Grande do Sul, serão apresentadas nesta seção informações relativas aos números e tipos de boletins de ocorrência, indicando os motivos que levam a população a procurar a polícia. Serão apresentados também os números dos denominados procedimentos policiais, ou seja, os documentos que registram as atividades desenvolvidas pelos policiais a partir dos registros iniciais. Antes disso, entretanto, apresentam-se alguns dados que permitem a comparação da situação dos registros da criminalidade do Rio Grande do Sul com outros Estados e com a média nacional, com o objetivo de destacar a especificidade de cada região e ao mesmo tempo formar uma idéia do conjunto do país. Uma primeira observação a ser feita é a respeito da dificuldade de estabelecer comparações em nível nacional, pois os Estados apresentam grandes diferenças em relação à qualidade de seus registros policiais, bem como utilizam categorias diferentes para a apresentação dos dados. Uma fonte de referência atualmente é a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça, que reúne informações de todas as secretarias estaduais de segurança

143

pública e produz quadros comparativos, disponibilizados pela internet51. A Tabela 8 mostra os índices relativos aos registros de quatro delitos: homicídio doloso, lesão corporal dolosa, furto e roubo.52 Destacaram-se as médias nacionais e os Estados das regiões Sul e Sudeste, por serem suas condições sociais e econômicas mais aproximadas entre si do que em relação aos Estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste. Tabela 8 – Taxas de homicídio doloso, lesão corporal, furto e roubo – Brasil e unidades da Federação selecionadas – 2003 (taxas por 100.000 habitantes) Homicídio doloso Lesão corporal

Furto

Roubo

Brasil 23,00 349,50 1201,20 483,90 Rio Grande do Sul 12,93 768,00 2444,10 660,13 Santa Catarina 9,70 524,50 2356,80 169,50 São Paulo 28,29 495,80 1667,60 857,40 Paraná 16,30 227,90 1321,20 348,40 Minas Gerais 15,70 322,50 1028,90 277,80 Rio de Janeiro 43,60 434,30 804,88 799,72 Espírito Santo 57,10 267,70 642,00 276,30 Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Nota: Minas Gerais e Rio Grande do Sul apresentam dados agregados de homicídios dolosos e culposos. Observa-se que as taxas relativas ao Rio Grande do Sul situam-se abaixo da média nacional no caso do homicídio, e acima da média nas lesões corporais, roubos e furtos. Conforme destacou Kahn (2002, p. 55-71), quando as unidades da Federação são classificadas em termos de nível de criminalidade de acordo com o índice de homicídios, o Rio Grande do Sul aparece como um Estado de baixa criminalidade; se os índices de outros delitos, tais como lesões corporais, furto e roubo são considerados, a situação se inverte, colocando-se o Estado entre aqueles com altos índices de criminalidade. Na discussão desses dados, Kahn (2002) parte

Disponível em: Crime doloso é aquele em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, e culposo é decorrente de imprudência, imperícia ou negligência do agente. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente (artigo 18 do Código Penal). 51 52

144

de diversas pesquisas que associam o aumento dos delitos contra o patrimônio e a diminuição dos homicídios ao desenvolvimento econômico dos países. No caso brasileiro, entretanto, isto se verifica parcialmente, pois há Estados como São Paulo e Rio de Janeiro, com alto desenvolvimento e taxas elevadas de homicídios. Segundo este autor, os indicadores de qualidade de vida avaliados pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH53) explicam as baixas taxas de homicídios no Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, que apresentam os maiores IDH do país, mas não explicam a situação do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Por outro lado, Estados nordestinos com baixos IDH têm também baixas taxas de homicídio. O que é importante destacar na abordagem de Kahn (2002), para esse trabalho, é a necessidade de analisar os níveis de criminalidade baseando-se em delitos contra a pessoa e contra o patrimônio, e não apenas considerando os homicídios. Outro aspecto a ser considerado em qualquer análise de registros criminais é a possibilidade da sub-notificação, ou seja, o fato de que nem todas as vítimas procuram as instituições policiais, pelas mais diversas razões. Uma pesquisa de vitimização realizada em Belo Horizonte (CRISP, 2002), por exemplo, observou que apenas 29% dos entrevistados que haviam sido vítimas de furto acionaram a polícia (civil ou militar). O percentual foi de 27,4% entre as vítimas de roubo, 25,7% entre as vítimas de agressão física e 14,5% entre as vítimas de agressão sexual. As razões apontadas para não procurar a polícia foram as seguintes, em freqüências diferentes de acordo com o delito: a polícia não poderia ajudar; o incidente não era importante a ponto de chamar a polícia; as pessoas não queriam a polícia envolvida; para não haver vingança (essa última foi citada somente nos casos de agressão sexual).

O IDH, criado pela ONU no início da década de noventa, mede o nível de desenvolvimento humano dos países a partir de indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (expectativa de vida ao nascer) e renda (PIB per capita).

53

145

A partir dessas considerações, pode-se afirmar que a relação entre a taxa de criminalidade real e as taxas divulgadas pelas instituições policiais é mediada por elementos como o nível de confiança da população na polícia, a capacidade da polícia de processar os registros e até mesmo os conceitos associados a cada tipo de delito. Um aumento do número de estupros registrados, por exemplo, pode corresponder a um aumento efetivo do número de mulheres estupradas, como também pode ser o resultado de uma mudança na forma de encarar este tipo de violência, estimulando as vítimas a procurar ajuda para si e punição para os estupradores. O elevado grau de registros de furtos e roubos no Rio Grande do Sul, observado na Tabela 9, pode ser explicado por diversos fatores atuando simultaneamente, entre os quais citam-se a existência de bens de alto valor a serem roubados ou furtados (quanto maior o valor do bem, maior a tendência a registrar roubo ou furto), confiança na polícia, presença de uma população familiarizada com procedimentos administrativos (registros de nascimento e casamento, contratos de aluguel, compra e venda de bens) e até mesmo o alto grau de alfabetização da população. O número elevado de casos de lesões corporais, que aparentemente indica alta ocorrência de confrontos inter-pessoais violentos, pode ser também o reflexo do hábito de procurar a intervenção estatal para a resolução dos conflitos. Não se sabe, em relação a Estados com um número baixo de registros de lesão corporal, se isto é conseqüência de uma população menos agressiva ou mais afastada dos procedimentos legais formais. Consideradas as especificidades do Rio Grande do Sul em relação às demais unidades da Federação, passa-se a abordar os números de ocorrências e de procedimentos policiais elaborados pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Uma

146

primeira observação é sobre o aumento do número de ocorrências: entre 1993 e 2003, a população do Rio Grande do Sul passou de 9.369.646 para 10.512.283 habitantes, aumentando em cerca de 12,2%; no mesmo período, o número de ocorrências registradas anualmente pela Polícia Civil elevou-se em cerca de 54,2% (de 672.429 para 1.036.772). Apesar da elevação do número de ocorrências registradas, o efetivo policial não aumentou, oscilando entre 6.257 (em 1996) e 5.225 (em 2003), segundo informações fornecidas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul em seus Relatórios Anuais. A proporção entre efetivo policial e população diminuiu, de 57,72 policiais civis por 100.000 habitantes em 1993 para 49,70 em 2003. Ressalte-se que esses valores chegaram a 64,94 em 1996 e 74,98 em 198554. Para melhor compreensão do tipo de atendimento que os policiais são solicitados a dar à população, serão analisados a seguir em maior detalhe os boletins de ocorrência e procedimentos instaurados. O registro das informações pela polícia civil baseia-se principalmente nas categorias definidas no Código Penal e na Lei das Contravenções Penais. Assim, nos boletins de ocorrência, além dos dados relativos às pessoas envolvidas (vítima, testemunha, indiciado e condutor), local do acontecimento e providências tomadas, registra-se o que é denominado “fato”, ou seja, a classificação legal que corresponde ao evento descrito pelas pessoas.55 Após a especificação do fato, registra-se também se foi consumado ou tentado e o modus operandi, ou seja, a forma através da qual se consumou ou tentou o delito.56 No item “histórico”, transcreve-se um resumo do relato dos acontecimentos. Existem ainda os

Cálculos realizados a partir de informações sobre o efetivo policial civil obtidas em documentos da Polícia Civil e dados populacionais fornecidos pela Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul. 55 No Apêndice C, nesta tese, apresentam-se os artigos do Código Penal mais freqüentemente observados nos registros policiais. 56 Para essa classificação, os termos são os mesmos utilizados na gíria policial, tais como “mão grande” (subtrair o objeto furtado de forma direta, simplesmente tirando-o da vítima), “descuido” (furto praticado em momento de distração da vítima, que deixa objetos de valor expostos ou em locais de fácil acesso), “punga” (furto de algum objeto que está junto ao corpo da vítima, como carteira ou telefone celular, sem que ela perceba) ou “chuca” (quando o objeto é retirado através de um corte na bolsa). 54

147

fatos que não correspondem a delitos ou contravenções, mas a atividades realizadas pela polícia (como “recuperação de veículo” ou “localização de pessoa”), acidentes e outros fatos não criminais (como “afogamento”, “desaparecimento de pessoa” ou “perda de documentos”). Até 1999, a única fonte das estatísticas policiais eram os relatórios produzidos pela própria Polícia Civil, baseados nos relatórios mensais de atividades enviados pelas delegacias. Segundo as entrevistas realizadas com policiais sobre o tema, tais relatórios mensais eram produzidos sem muito rigor em relação aos dados sobre ocorrências e procedimentos policiais. Com o objetivo de aperfeiçoar o sistema de estatística policial, a partir de 1999 começou a se organizar uma outra fonte, coordenada pela Secretaria da Justiça e da Segurança com base no sistema informatizado de registro (Sistema de Informações Policiais – SIP), ou seja, dos dados efetivamente registrados no sistema57. O Sistema de Informações Policiais (SIP) reúne os dados que constam nos boletins de ocorrência. Inicialmente, as ocorrências registradas em papel deviam ser cadastradas no sistema, com a digitação de todas as informações. Nas delegacias, geralmente com pouco pessoal, essa tarefa adicional tendia a não ser considerada importante, sendo muitas vezes realizada por estagiários, com grande atraso e com erros na transcrição dos dados. As próprias ocorrências muitas vezes eram preenchidas de forma equivocada ou incompleta, impedindo seu cadastramento. No ano de 2000, quando ainda estava sendo implantado o sistema de informação da Secretaria da Justiça e da Segurança, foram convocados servidores de vários departamentos da Polícia Civil (inclusive da Academia de Polícia) para trabalhar no Palácio da Polícia na correção destas ocorrências. Encontravam-se registros onde o 57 Os dados estatísticos reunidos pela SJS são publicados semestralmente no Diário Oficial do Estado, seguindo o que é determinado pela Lei nº 11.343, de 8 de julho de 1999 (RIO GRANDE DO SUL, 1999a).

148

fato não coincidia com o histórico, ou seja, a descrição do que havia acontecido; havia também a falta de identificação dos locais e das pessoas envolvidas. Alguns problemas dependiam de alterações nos códigos do sistema, como a falta de códigos para muitas ruas em áreas de moradia irregulares, mas a maioria dos casos devia-se à falta de cuidado e/ou conhecimento por parte do policial responsável. Mais recentemente, com a informatização dos registros de ocorrência, a tarefa é realizada só uma vez, permitindo o cadastramento imediato no sistema. Além disso, o registro informatizado facilita o preenchimento de vários campos, pois faz-se a consulta ao banco de dados. Com o nome de uma pessoa, por exemplo, já aparecem na tela todos as informações registradas sobre ela no sistema. Mesmo com estas alterações, os dados fornecidos pela Polícia Civil e pela Secretaria da Justiça e da Segurança ainda não coincidem, como se pode ver nas tabelas a seguir. A Tabela 9 apresenta os números relativos aos boletins de ocorrência de 2000 a 2003, extraídos dos relatórios anuais da Polícia Civil, especificando-se alguns tipos de registro. Tabela 9 – Ocorrências registradas pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, por categorias selecionadas – 2000-2003 2000 Furtos Contra liberdade individual Lesões corporais Roubos Trânsito com morte Estelionato Contravenções Homicídio Outras infrações penais Total criminais Perda de documentos Outras não criminais Total não criminais

2001

2002

2003

202.024

21,13

215.567

21,87

234.787

23,42

266.208

25,68

31.400

3,28

54.833

5,56

73.976

7,38

74.844

7,22

71.746 48.799 1.576 13.606 8.435 1.357

7,50 5,10 0,16 1,42 0,88 0,14

73.631 56.535 1.311 13.172 11.641 1.521

7,47 5,74 0,13 1,34 1,18 0,15

72.123 61.303 1.502 14.594 14.102 1.616

7,19 6,11 0,15 1,46 1,41 0,16

74.019 65.259 1.478 15.978 14.538 1.531

7,14 6,29 0,14 1,54 1,40 0,15

253.509

26,51

237.947

24,15

224.175

22,36

225.604

21,76

632.487

66,15

666.167

67,60

701.188

69,94

739.426

71,32

168.089

17,58

159.939

16,23

141.360

14,10

129.597

12,50

102.689

10,74

112.637

11,43

122.212

12,19

133.433

12,87

323.653

33,85

319.287

32,40

304.376

30,36

297.346

28,68

149

2000 Totais

956.140

2001 100,00

985.454

2002

2003

100,00 1.002.556 100,00 1.036.772 100,00

Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatórios Anuais 2000-2003. Entre as ocorrências criminais, observa-se o crescimento da proporção de furtos e de roubos, chegando em 2003 a 25,68% e 6,29% do total, respectivamente. Os homicídios constituem uma proporção muito pequena das ocorrências, em torno de 0,15% do total. Observa-se também que uma parte significativa do trabalho envolve os registros de ocorrências não criminais, como perda de documentos e acidentes de trânsito apenas com danos materiais (sem lesões corporais nem mortes), atividade que não implica em nenhuma providência posterior por parte da polícia. A proporção da categoria “contra a liberdade individual” apresenta grande crescimento, passando de 3,28% em 2000 para 7,22% em 2003. Considerando-se que o número de ocorrências também aumentou, passando de 956.140 em 2000 para 1.036.772 em 2003, tal diferença é digna de nota, e será discutida após a apresentação da Tabela 10, a seguir, com dados fornecidos pelo sistema estatístico da Secretaria da Justiça e da Segurança. Tabela 10 – Ocorrências policiais registradas por categorias selecionadas – Rio Grande do Sul, 2000-2003 2000 Total % Furto consumado Contra liberdade pessoal consumado Lesão corporal consumada Roubo consumado Lesão corporal direção veículo consumada Dano consumado Crimes contra a honra consumado Furto tentado Homicídio tentado

2001 Total %

2002 Total %

2003 Total %

198.399

32,31

209.949

29,50

212.861

27,05 261.572

28,25

-

-

-

-

96.004

12,20 111.295

12,02

73.379

11,95

42.346

5,95

71.373

9,07

82.129

8,87

48.817

7,95

55.939

7,86

58.389

7,42

69.351

7,49

28.430

4,63

25.052

3,52

28.644

3,64

29.166

3,15

-

-

-

-

22.585

2,87

28.240

3,05

-

-

-

-

18.965

2,41

22.129

2,39

2.579

0,42

2.562

0,36

8.656 2.361

1,10 0,30

11.852 3.056

1,28 0,33

150

Homicídio consumado Total crimes consumados Total crimes tentados Total crimes Fato, em tese, atípico Outros fatos (não criminais) Totais

1.412

0,23

1.352

0,19

1.259

1.389

0,15

-

-

-

-

-

0,16

- 689.624

74,48

-

-

-

-

65.708

- 22.592 - 712.216 8,35 63.055

2,44 76,92 6,81

-

-

-

-

-

- 150.739

16,28

614.047

100,00

711.693

100,00

786.917 100,00 925.918 100,00

Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais. Nota: (-) dado não disponível. Segundo essa outra fonte (Secretaria da Justiça e da Segurança), os crimes contra a liberdade pessoal constituem cerca de 12% das ocorrências, tendo passado, em números absolutos, de 96.044 em 2002 para 111.295 em 2003. Pode ser visto nesse caso um dos problemas para a comparação de dados, que é o uso de categorias diferentes. Os crimes contra a liberdade individual, que constituem o capítulo VI do Código Penal, dividem-se em três tipos: contra a liberdade pessoal (constrangimento ilegal, ameaça, seqüestro e cárcere privado e redução a condição análoga à de escravo), contra a inviolabilidade do domicílio e contra a inviolabilidade de correspondência. Quando há dados desagregados, o delito de ameaça aparece com freqüência bem mais elevada do que os demais. Quando os dados são divulgados pelas categorias mais agregadas, pode-se apenas presumir que as ameaças constituam a maior parte do número total. Seu aumento pode indicar que a população está recorrendo ao registro policial em maior proporção. Procura-se fazer um registro oficial de uma ameaça para tornar público um conflito até então privado, tentando buscar a proteção do Estado para fortalecer-se frente àquele que ameaça. Este tipo de delito, juntamente com os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), uma parcela das lesões corporais e alguns tipos de contravenções, como perturbação do sossego e vias de fato, não implicam na instauração de inquérito policial, sendo na maioria das vezes encaminhados através de termo

151

circunstanciado, se houver vontade expressa da vítima, como nos exemplos a seguir, citados por um inspetor entrevistado. Tem mais residências na área onde está a Xa delegacia, então realmente a gente registrava bastante ameaça. Mas a ameaça, geralmente, ela está ligada a desentendimento entre marido e mulher, desentendimento entre parentes, vizinhos. [...] Então a gente atende normalmente, daí pergunta se a pessoa quer representar, quer levar para a Justiça. A pessoa opta por representar ou não. Se ela opta por não representar, ela fica ciente de que tem seis meses ou 180 dias para mudar de idéia. Aí, por enquanto, a ocorrência fica arquivada. Se ela opta pela representação, a gente manda para o cartório, o cartório faz o TC e manda para a Justiça. Aí o resto é com a Justiça. [...] A maioria diz assim: “Eu quero me prevenir, porque se acontecer alguma coisa foi aquela pessoa.” Outras dizem: “Já que ele registrou contra mim, eu vou registrar contra ele também.” [E o que mais acontece?] Ameaça e o que a gente chamava de “bronca de condomínio”, que é tipo o vizinho fica cuidando da vida da vizinha, por exemplo, tem um cachorro que late todo dia, tem alguém que vai e joga lixo na frente da porta, tem muita coisa desse tipo assim. Perturbação do sossego alheio tem bastante também, porque o cara às vezes ultrapassa a hora do silêncio com o som ligado, faz ajuntamento de pessoas no apartamento, festas, batendo no assoalho, dá no teto no vizinho de baixo, não deixa dormir, daí... Às vezes é um bar que funciona até altas horas da madrugada, a pessoa não consegue dormir. Então, são essas coisas assim da convivência social que atrapalham, que as pessoas não se adaptam. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Um registro que deve ser explicado é o de “fato, em tese, atípico”. O fato atípico é aquele que não se caracteriza como crime ou contravenção, sendo classificado entre os “outros fatos” nas estatísticas mais gerais. Não gera nenhum tipo de investigação ou encaminhamento pela polícia, sendo feito geralmente devido à insistência da pessoa que procura a delegacia com um problema fora da esfera policial, como desentendimentos familiares. Um inspetor entrevistado deu um exemplo, apresentado a seguir. Do tipo assim, já apareceu uma senhora lá, querendo fazer um registro contra a própria filha, porque a filha está morando nos fundos da casa dela, e ela queria registrar apenas que a filha tinha tirado uma cortina da sala dela e colocado no quarto da filha. [...] Então, “fato, em tese, atípico”, que a filha chamou ela de relaxada, tá, tá, tá, e tirou a cortina de uma das janelas, colocando na janela de sua própria residência. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

152

É interessante notar que estes registros, embora em ligeiro declínio, constituem ainda uma parte importante do total de ocorrências (6,36% em 2004), indicando o atendimento pelas delegacias de uma ordem de conflitos sem relação alguma com a atividade policial. Esses registros não desencadeiam nenhuma atividade por parte da Polícia Civil, pois não envolvem nenhum delito. Para a pessoa que solicita esse tipo de registro, o fato de sair da delegacia levando um documento pode dar a ilusão de que seu problema tornou-se “oficial”. São evidência da importância do capital simbólico da polícia, enquanto parte do Estado, pois o documento oficial, com carimbos, assinaturas e símbolos do Estado, é algo que de certa forma “oficializa” o relato individual. Na verdade, um boletim de ocorrência só comprova que a pessoa esteve em uma delegacia e afirmou que determinados fatos aconteceram. Determinadas instituições reforçam a idéia de que o registro policial comprova alguma coisa, exigindo a apresentação de um boletim de ocorrência como pré-requisito para sustar cheques ou registrar a perda de um documento. No Estado de Goiás, o registro de fatos não criminais chegou a ser proibido pelo Conselho Superior da Polícia Civil, com base na argumentação transcrita a seguir. A ocorrência [...] não é obrigatória para fins de sustar cheque, perda de documentos, abertura de processo para recebimento de seguro e outras situações que fogem por completo aos fins constitucionais da Polícia Civil, que deve se envolver apenas com fatos que constituem infrações penais. [...] O diretor geral da Polícia Civil afirma que bancos, seguradoras e outras instituições que costumeiramente exigem a ocorrência registrada na Polícia Civil para a execução de serviços reclamados devem abolir essa prática. (GOIÁS, 2004).

Em relação ao número de inquéritos segundo o tipo de delito, a Tabela 11 apresenta os números da Polícia Civil e da Secretaria da Justiça e da Segurança para o ano de 2003.

153

Tabela 11 – Comparação entre dados fornecidos pela Secretaria da Justiça e da Segurança e pela Polícia Civil sobre inquéritos policiais instaurados em 2003 – Rio Grande do Sul SJS Total

PC %

Total

%

Furto consumado 249.694 61,81 249.475 61,81 Furto tentado 4.894 1,21 4.829 1,20 Homicídio 1.751 0,43 1.747 0,43 Homicídio tentado 3.154 0,78 3.147 0,78 Roubos consumados 60.772 15,04 57.406 14,22 Lesões corporais 1.991 0,49 1.991 0,49 Tóxicos: tráfico 1.786 0,44 1.784 0,44 Estelionato 14.831 3,67 14.840 3,68 Outros 65.129 16,12 68.398 16,95 Total inquéritos instaurados 404.002 100,00 403.617 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais; Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatório Anual 2003. Observa-se que os números praticamente coincidem, confirmando a afirmação de que as diferenças nos números das ocorrências devem-se a problemas na comunicação das informações entre Polícia Civil e Brigada Militar, o que não ocorre em relação aos inquéritos policiais, elaborados exclusivamente pela Polícia Civil. Os roubos e furtos constituem a grande maioria dos inquéritos (78,06% segundo a Polícia Civil), revelando a importância dos delitos contra o patrimônio, especialmente os cometidos sem o recurso à violência (furtos), na atividade da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Em relação aos procedimentos policiais que envolvem os delitos de menor potencial ofensivo e aqueles cometidos por adolescentes, apresentam-se na Tabela 12, a seguir, os dados fornecidos pela Polícia Civil. Tabela 12 - Termos circunstanciados e processos especiais de apuração de atos infracionais atribuídos a adolescente instaurados pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, segundo categorias selecionadas - 2002-2003 Termos circunstanciados

2002

2003

Processos especiais de apuração de atos infracionais atribuídos a adolescente 2002 2003

154

Categoria

Total

Lesões corporais Contra a liberdade individual Contravenções Trânsito: dirigir sem habilitação Porte ilegal de arma Tóxico: posse Furtos Roubos Outras infrações penais Total

53.893 23,39 51.927 23,40 4.019 17,82 4.381 17,27 44.788 19,44 46.889 21,13 1.269 5,63 1.540 6,07 14.676 5.646 4.423

%

Total

%

Total

%

Total

%

6,37 13.444 2,45 3.569

6,06 840 1,61 1.035

3,73 844 4,59 1.087

3,33 4,28

1,92

1,56

2,62

2,19

3.471

591

556

4.792 2,08 3.278 1,48 1.028 4,56 843 105 0,05 29 0,01 5.920 26,26 7.318 22 0,01 6 0,00 1.493 6,62 2.003 102.05 44,29 99.320 44,75 6.353 28,18 6.797 1 230.39 100,0 221.93 100,0 22.54 100,0 25.36 6 0 3 0 8 0 9 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento Coordenação. Relatórios Anuais 2002-2003.

3,32 28,85 7,90 26,79 100,0 0 e

Observa-se que os crimes contra a pessoa (representados pelas categorias lesões corporais, crimes contra a liberdade individual e outros contra a pessoa) representam a maior proporção dos termos circunstanciados, indicando os conflitos inter-pessoais violentos, muitas vezes envolvendo indivíduos sem nenhuma outra ligação com atividades delitivas. Quantos aos crimes cometidos por adolescentes, destacam-se os roubos e os furtos, além das lesões corporais. 4.2 A organização do trabalho em uma delegacia de polícia Com vistas à compreensão do trabalho desenvolvido nas delegacias de polícia, apresentam-se a seguir as diversas atividades, por setor. Essa divisão corresponde à estrutura organizacional das delegacias. Faz-se necessário esclarecer que em muitos locais, especialmente nas pequenas cidades do interior do Estado, a falta de efetivo obriga os servidores a desempenharem atividades nos vários setores ao mesmo tempo. Assim, a mesma pessoa que faz o registro de um boletim de ocorrência pode posteriormente investigar o delito e elaborar o inquérito policial, atuando em todas as fases do trabalho policial.

155

4.2.1 O plantão O primeiro atendimento à população é feito através do plantão. Este setor das delegacias é ocupado predominantemente por homens, sendo a opinião corrente entre os entrevistados a de que as mulheres, devido aos compromissos familiares, preferem não trabalhar à noite58. O regime de trabalho é de 24 horas de atividade, seguidas por 72 horas de folga, o que parece vantajoso para muitos policiais. Um ponto positivo para quem escolhe trabalhar no plantão é a possibilidade de dedicar-se a outras atividades durante os três dias de folga, como o trabalho remunerado ou o estudo. Além disso, há um distanciamento das preocupações do cotidiano da delegacia: encerrado o plantão, encerra-se o envolvimento do policial com os fatos que ele registrou, pois ele não participa da investigação ou de qualquer outra atividade posterior ao registro. Além de fazer o registro das ocorrências, que é relativamente rápido, o plantonista também atua nos casos de prisão em flagrante, em que a pessoa é levada à Polícia Civil imediatamente após cometer uma infração penal. Este procedimento costuma ser demorado, pois todos os envolvidos (indiciados, vítimas e condutores) devem ser ouvidos, e seus depoimentos registrados cuidadosamente, com o objetivo de evitar que o flagrante seja posteriormente negado pelo juiz. Quando o flagrante tem início ao final do plantão, a equipe que o iniciou deve trabalhar até encerrá-lo, não podendo ser substituída pela outra equipe. A função do plantonista é receber todas as pessoas que procuram a delegacia para fazer algum registro. Assim, o público é bem diversificado, incluindo desde vítimas de crimes graves e violentos até pessoas que desejam registrar fatos considerados corriqueiros, como discussões entre vizinhos. Aparecem também 58 Essa perspectiva, assim como outras na mesma linha, expressa a prevalência de divisões segundo categorias de gênero. A relevância dessa questão para o presente estudo será analisada mais adiante nesta mesma tese.

156

indivíduos com problemas psíquicos, sofrendo de alucinações e manias diversas, bem como aqueles que desejam apenas conversar, contar suas dificuldades para alguém. Um inspetor que trabalhou alguns anos no plantão descreve o atendimento a uma pessoa classificada como portadora de problemas psicológicos, nos termos que seguem. Eu já atendi Deus, eu já atendi pessoas que têm contato com extraterrestres, pessoas que ouvem vozes... [...] E o que a gente faz? A gente ouve primeiro a pessoa falar: “Pois não, senhora, o que a senhora deseja?” "Ah, está acontecendo isso". Aí quando a pessoa fala de determinada coisa que está fora da realidade, tu já começa a concluir que ela... Porque ela vem com aquela história, estão me perseguindo, estão filmando, filmaram as minhas sobrinhas tomando banho, eu ouvi eles dizerem que iam filmar as minhas sobrinhas e iam vender a imagem na internet, e eu quero que vocês tomem uma providência. E aí a gente começa a fazer de conta que está levando a sério e pegar mais informações para, enfim, se for alguma coisa. Pode ser que seja uma informação, sei lá, verdadeira [...] Mas normalmente, o que a gente faz? Das duas, uma: ou a gente diz que não é com a gente esse tipo de problema. Aí, normalmente ela até conversa, até confessa que sobrinhos, ou tios ou filhos a internaram num hospital, no caso dessa senhora, “É, me internaram no hospital dizendo que eu sou louca, mas eu não sou louca, eu estou ouvindo, eu juro para o senhor, agora eles estão falando para mim, aqui.” Então são pessoas realmente perturbadas, então o que a gente diz: ou diz que não é com a gente esse tipo de problema ou faz um registro, normal, ali, “fato em tese atípico”, o comunicante comparece a essa DP informando que está ouvindo vozes, entrega o papel para ela, a pessoa vira as costas e sai, satisfeita. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Como já referido anteriormente, o registro de “fato, em tese, atípico” não é investigado e não dá origem a nenhuma ação por parte dos policiais, ficando arquivado na delegacia. No relato acima citado, observa-se o trabalho de classificação que o inspetor vai realizando a partir do primeiro contato com a pessoa que chega à delegacia, ouvindo o que ela diz e selecionando os indícios que o levam a decidir sobre a condução do registro. Se a pessoa é classificada por ele como estando "fora da realidade", ou seja, trazendo informações que não lhe parecem verossímeis, seu procedimento será no sentido de acalmar essa pessoa, fazendo o que ela solicita e fornecendo-lhe o registro de ocorrência. Se, ao contrário,

157

a

situação

apresenta

as

características

identificadas

como

adequadas,

correspondendo à esfera de atividade policial, o inspetor entrevistado lhe dá prioridade. O atendimento considerado típico por esse policial foi descrito como segue. Faço uma análise física da pessoa, com certeza. O modo como a pessoa está se portando, como ela está vestida, uma pessoa bêbada eu reconheço a vinte metros de distância. Antes de sentir o bafo, ao subir a escada, e até ao gesticular, eu reconheço que a pessoa está bêbada. Faço essa análise física, tudo bem, deixo a pessoa entrar, se é bêbado...de cara já não atende, pede para a pessoa retornar mais tarde, livre dos efeitos do álcool. [...] Passou a primeira etapa, a pessoa não está bêbada. Então, “Pois não, que houve, o que houve com você?” “Ah, eu fui assaltado. Me levaram todos meus documentos, meu celular.” “Pois não, o senhor tem algum documento de identificação?” “Não, não tenho, levaram tudo.” Abre o programa, “qual é o seu nome?” “Fulano de Tal”. Confirma ali com o nome da mãe. “O nome da sua mãe?” “Fulana de Tal”. Confirmou, abriu. Normalmente é assim: “Fui assaltado, levaram todos os meus documentos e o meu celular.” Aí tu avança, porque o programa, o OCR59, ele já te dá todos os dados da pessoa, precisa às vezes confirmar telefone e endereço. Confirma isso, vai para o histórico. “Quantos eram?” “Ah, eram três caras.” Relata o comunicante que foi abordado por três indivíduos... “Eles estavam armados?” “Não, só um tinha...” ...Um deles armado. "E como é que eles eram?" "Ah, eram dois negros e um branco"."E como é que eles estavam vestidos?" "Estavam vestidos assim, de abrigo, calça, não sei quê". Relata isso, "e o que eles levaram?" “Ah, meu RG, carteira de trabalho, meu CPF. "Celular, que número?" "Ah, celular tal", imprime a ocorrência, dá para ele assinar, ele assina, vira as costas e vai embora. Esse é o típico assim, a pessoa que realmente está precisando da polícia naquele momento. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

A classificação do que deve ser considerado atribuição da polícia varia de acordo com os esquemas de percepção de cada policial, pois não há um consenso a respeito disso na instituição. Os casos de violência doméstica, por exemplo, são tratados por alguns policiais como questões privadas, que não devem ser objeto de intervenção policial. Assim, procuram dissuadir as mulheres vítimas de violência doméstica de registrar ocorrências, às vezes até de forma agressiva, procurando ridicularizar suas queixas ou responsabilizá-las pela vitimização. "Vai para casa e 59

Programa de computação utilizado para o registro automatizado das ocorrências policiais.

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toma um chazinho que passa" é uma das expressões citadas em entrevistas como exemplo do que alguns policiais falam para as vítimas. A criação de delegacias específicas para o atendimento a mulheres, onde todas as servidoras são mulheres, além de mudanças na legislação60, são tentativas de alterar esse quadro. Um outro aspecto do trabalho no plantão é o contato com pessoas que declaram problemas que a polícia não pode resolver, mas que simplesmente precisam falar e ser ouvidas, querem a atenção de alguém. Até o próprio registro de ocorrências às vezes não é objetivo por causa disso, porque a pessoa faz um discurso, conta da vida dela, da tristeza, da amargura, e simplesmente tu tem que ouvir, esperar ela parar de falar, para voltar para a ocorrência para poder colocar a termo, porque a ocorrência, como se sabe, são umas 10, 15 linhas. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

A atividade no plantão pode ser muito desgastante em termos emocionais, especialmente por colocar o policial como ouvinte e espectador de todas as situações dramáticas que são levadas à delegacia. O relato a seguir, de um escrivão que trabalha nesse setor em uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre, com altos índices de criminalidade e de pobreza, é ilustrativo. Às vezes tu está estressado pela carga de serviço. E dizer isso trabalhando no plantão pode parecer estranho, porque tu trabalha um dia, 24 horas, e folga três. Mas às vezes tu trabalha num dia em que tu faz quarenta ocorrências, então quando chega na trigésima, tu está com a cabeça... [...] Tu fica com a cabeça zonza, porque o que te incomoda não é o trabalho físico, o que te incomoda é ter que elaborar os problemas de várias pessoas e ter que dar uma certa solução para eles, imediata, ou dizer para eles, pelo menos: olha, isso vai ter um encaminhamento, vai ser resolvido, ou vai ser resolvido na Justiça. [...] Existe desgaste emocional porque não tem como tu ouvir um problema de uma pessoa sem ter uma certa dose de empatia com ela. Não tem como tu ouvir uma história das mais desgraçadas sem, de certa forma, te colocar um pouco no lugar da vítima. (Entrevista de pesquisa com escrivão). 60 Lei

nº 10.886, de 17 de junho de 2004. Acrescenta parágrafos ao art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, criando o tipo especial denominado "Violência Doméstica" (BRASIL, 2004). O artigo 129 refere-se ao delito de lesão corporal (ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem). O texto do parágrafo acrescentado é o seguinte: Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

159

Além dos sentimentos provocados pela identificação com a vítima, esse policial coloca também a sua angústia por não poder agir como se fosse, de fato, a vítima, sendo obrigado a manter-se imparcial, distante. As situações que lhe são apresentadas serão, na melhor das hipóteses, levadas à Justiça, não lhe cabendo outro papel além de fazer o registro, “ouvir a história de cada um”. E tu não pode também te colocar no lugar da vítima, tendendo a te vingar do infrator. Porque tu está de fora, tu tem que entender uma coisa: tu é um pássaro, tu está só observando o que está acontecendo, tu não pode pender para um lado nem para outro. Se tu conseguir impedir que o delito aconteça, ótimo. Se tu pegou o delito já pronto, e as pessoas já presas, vítima separada do infrator, tu tem que deixar a coisa correr naturalmente, fazer o teu serviço. Tomar os depoimentos, ouvir a história de cada um. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

Nem todos os policiais aderem a essa postura de imparcialidade. Há casos em que o plantonista se coloca na posição de dar conselhos, encaminhar para alguma igreja ou até mesmo criticar a pessoa que realiza a queixa, tentando mostrar que a responsabilidade pela situação é dela mesma. Essas alternativas, não estando previstas legalmente, podem expressar a tomada de uma posição de poder no exercício da função policial. Por outro lado, podem também ser expressão de uma atitude pragmática dos policiais, na tentativa de “fazer alguma coisa” frente a situações em que consideram que a ação judicial não será suficiente ou adequada. O trabalho no plantão é considerado algo de menor prestígio entre as atividades desenvolvidas pelos policiais, sendo encarado como uma atividade que não requer nenhuma habilidade especial, conforme depoimentos obtidos em entrevistas. Assim, o plantão só é valorizado positivamente quando a pessoa tem uma justificativa considerada válida para escolhê-lo, como estar cursando uma faculdade, por exemplo. O plantão também pode ser uma espécie de refúgio nas situações vistas como confusas, quando o policial não consegue identificar

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claramente as diretrizes institucionais, como nos períodos de mudanças nos cargos de direção da área da segurança pública. Nesses momentos são redefinidos os critérios de avaliação das atitudes e procedimentos, o que faz com que alguns servidores procurem o que é considerado um certo afastamento do trabalho considerado propriamente policial. Por essa mesma razão, a designação para o plantão também pode ser um castigo, como coloca um delegado no depoimento a seguir transcrito. O plantão sempre foi considerado, isso aí se apurou ali, que o plantão era castigo! Quando tu não serve para alguma coisa, o primeiro passo era botar no plantão, quando na verdade o plantão é um dos pontos mais importantes que nós temos. Não do ponto de vista interno, mas do ponto de vista externo. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Por ser o primeiro contato da população com a polícia, o plantão é visto pelo entrevistado como um setor importante para a imagem da instituição, pois um atendimento inadequado nesse momento deixa uma impressão duradoura na pessoa que foi mal atendida. Além disso, para que a investigação possa ser mais eficiente, a obtenção dos dados realizada no momento do registro da ocorrência deve ser a mais completa possível. Às vezes, a própria atitude do plantonista pode colaborar para a solução de um problema, como revela o relato a seguir. Aparece um cara lá, "me roubaram meu carro agora mesmo, os caras me apontaram uma arma ali na esquina". "Que carro é?" Tal, já vai pro rádio e já dá um alerta geral, já faz a ocorrência, já passa para o DINP [Departamento de Informática Policial]. [...] Porque ainda tem a possibilidade de recuperar esse carro, esse carro está rodando aí, em algum lugar, tem viaturas da Brigada Militar em toda Porto Alegre, então tem a possibilidade de satisfazer aquela pessoa no sentido de recuperar o patrimônio dela. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Frente à referida posição desvalorizada do trabalho no plantão, entretanto, observa-se que não há um estímulo a esse tipo de atuação do plantonista, preocupando-se em ser eficiente e prestar um serviço qualificado ao cidadão.

161

4.2.2 A investigação O trabalho de investigação consiste em verificar a autoria dos diversos delitos, bem como esclarecer a forma como aconteceram. Essa é a atividade fundamental da polícia civil, e de alguma forma todos os policiais em uma delegacia estão envolvidos nela. O trabalho de investigação envolve uma série de tarefas diferentes, como ir aos locais à procura de evidências, procurar pessoas que possam dar esclarecimentos, ouvir pessoas na delegacia (fazer perguntas e registrar corretamente o que foi dito), verificar informações recebidas e articular explicações para o conjunto de fatos ligados a cada delito. Além disso, o setor de investigação também é responsável por entregar intimações aos indivíduos que devem comparecer à delegacia para prestar depoimentos. Em termos mais gerais, o trabalho de investigação é identificado como o trabalho “de rua”, opondo-se ao trabalho cartorário, considerado “burocrático”, “de papel”. Essa oposição será analisada mais adiante, na seção 4.3.4. A decisão de investigar ou não um delito depende de fatores como a gravidade da ocorrência, a quantidade de delitos semelhantes na mesma área e a probabilidade de sucesso na investigação. Se não há um mínimo de informações disponíveis, a investigação não pode ser iniciada. Além disso, leva-se em conta a possibilidade de conseguir as provas necessárias: não basta chegar ao conhecimento de quem são os responsáveis por um delito, é preciso poder comprovar este conhecimento. Um inspetor comentou os problemas para a investigação de um dos delitos mais comuns, o furto, nos termos que seguem. O crime de furto, por exemplo, é um crime dificílimo de investigar. O cara entra na tua casa de noite, leva tudo. Vai lá perícia, local, se tu não tiver uma informação que foi Fulano que furtou, e mesmo que tiver a informação, tu ainda tem que dar sorte de chegar lá e ainda ter as coisas, senão... O crime de furto, realmente, é um crime difícil de elucidar. [...] Vamos dizer assim, tu consegue um

162

mandado de busca e apreensão na casa do Fulano, chega lá não tem mais nada, e aí? Aí não dá nada, não tem o que fazer. Às vezes, até, a população não entende: “Ah, Fulano, que rouba e furta, está lá agora”, e avisa para nós. Mas não tem o que fazer. Se não for pego em flagrante e não tiver mandado de busca [...] ou se não estiver já com uma prisão decretada, não tem o que fazer. Vai investigar, pode intimar. Intimar o suspeito de furto é chover no molhado. Tu vai intimar , ele vai chegar aqui e vai dizer o quê? “Não, não fui eu que roubei”. E tu não pode fazer nada, só vai tomar o depoimento dele. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

O delito de roubo, segundo o mesmo inspetor, apresenta melhores possibilidades para a investigação, pois há a possibilidade de que a vítima reconheça o autor. No roubo sim, tu pode ter reconhecimento, a vítima pode reconhecer, tu mostra o álbum de fotografias, ela reconhece, aí tu faz um auto de reconhecimento de fotografia, de repente tu pode pedir a prisão dele, esse tipo de coisa, pode pedir a prisão dele. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Questionado sobre como se dá a investigação, um comissário fez uma descrição do processo relativo ao delito de abigeato, a título de exemplo, conforme segue. Como é que se trabalha num serviço de investigação? Nós chamamos isso de informação e inteligência. [Passa a dar o exemplo do abigeato]Tu começa a mapear, através das ocorrências policiais, que é uma estatística que não é bem real... Sabe que as estatísticas nossas não são fidedignas, mas nos dão um esboço geral. Então o primeiro que tu faz, serviço de inteligência, informação: tu levanta as ocorrências policiais para ver qual é a localidade. O fator local é muito importante nisso, tu faz esse levantamento. Olha, está acontecendo abigeato, o furto ou roubo de gado nessas regiões. Então tu mapeia as regiões, faz o levantamento técnico. Como é feito, porque as quadrilhas agem diferente. Como faz cada tipo de quadrilha? Uma corta o arame e leva o cavalo, que é para ir de noite arrebanhar [...] Tem uma quadrilha que usa o visor noturno, para ver onde é que estão as vacas de noite, são quadrilhas especializadas, outros fazem o que nós chamamos abigeato formiguinha, mata de uma a duas vacas por semana, para vender no seu açougue. Então cada tipo de quadrilha tem um que a gente chama de modus operandi. [...] Aí então tu começa a ver que as quadrilhas são diferenciadas, e começa a notar as quadrilhas. Aí tu começa a busca de informações do nome, e tu sempre consegue levantar. Fulano de Tal, aqui, Fulano de Tal. [...] A partir do nome da pessoa, a gente começa a fazer aquele trabalho de ir buscar a informação. Nós vamos ver conta telefônica, nós vamos ver na CEEE, conta de luz,

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vamos buscar a residência, vamos começar a fazer uma aproximação... Até nós chegarmos na escuta telefônica [...] Pega através do telefone da pessoa. [...] Claro que isso tudo mediante uma ordem judicial. Não se faz nada sem ordem judicial. Para pedir isso aí eu tenho que ter o que a gente chama fundadas razões. Eu tenho que saber que a pessoa já tem uma ficha. [...] Se eu não tiver fundadas razões, a pessoa já foi presa por isso, já respondeu por isso, eu tenho que dar alguma coisa, nós estamos investigando, senão o juiz não dá. [...] Então através disso a gente começa a fazer a aproximação, e começa a pegar o quê, através das escutas, as coisas que estão acontecendo. Aí o que acontece? Eles começam a marcar o roubo, o furto. E aí a gente sabe a hora, o local e o dia! Aí então basicamente é o que acontece com a maioria do trabalho de inteligência: a gente chega na hora, no lugar certo e na hora certa e bem armado e consegue prender as quadrilhas. (Entrevista de pesquisa com comissário).

Essa descrição, mostrando um processo eficiente e baseado somente em recursos legais, não corresponde necessariamente ao padrão rotineiro da investigação policial. O mesmo comissário citado acima refere o uso de informações recebidas de pessoas alheias à instituição, prática classificada por ele como "uma coisa antiga", como se observa no trecho transcrito a seguir. Tem uma segunda técnica que é a do informante, que é uma coisa antiga mas que funciona ainda. Tem que ter certos cuidados... a informação, o informante, que a gente chama. As pessoas que vêm a ti, até não sei os motivos, até porque não gostam de outra, mas vêm a ti para dizer: “Olha, está chegando aí 50 quilos de cocaína do Fulano de Tal”, porque ele teve uma briga com o cara, o cara mandou ele para fora, não deu dinheiro para ele, ele vai na polícia, vai lá, “tenho uma informação para te dar”. Ou o disque-denúncia, que não precisa te identificar, também funciona muito bem. (Entrevista de pesquisa com comissário).

Outro policial entrevistado colocou a informação oferecida por fontes ligadas aos investigados como sendo fundamental para o trabalho de investigação. Isso aí, eu te digo: noventa e nove por cento da investigação policial é baseada em informação. Isso aí em qualquer coisa, nós tivemos um exemplo agora, a CIA, os Estados Unidos, só descobriram onde é que estava o filho do Sadam Hussein porque alguém entregou. [...] Todos os crimes... O Collor, por que o Collor foi desmascarado? Porque o irmão denunciou! Crime, não adianta, ninguém descobre as coisas do nada, é alguma informação. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

164

A forma de obter as informações durante o processo de investigação é o aspecto que varia, podendo-se recorrer a métodos mais sofisticados em termos de recursos tecnológicos e intelectuais (interceptação de comunicações por telefone, pesquisas através da internet, elaboração de bancos de dados com características de criminosos já identificados) ou basear-se em contatos com os chamados informantes, indivíduos geralmente envolvidos em atividades ilegais. Fielding (1996), escrevendo sobre o Reino Unido, procura desfazer a idéia de que a investigação policial assemelhe-se ao trabalho dos detetives apresentados na literatura, citando o uso de procedimentos mais rudimentares. Os detetives continuam sendo o segmento menos estudado da polícia. O que se sabe é que os detetives formam um grupo coeso que reluta em colaborar com os policiais uniformizados, [...] e que seus métodos de trabalho incluem mais a aplicação de pressão de vários modos sobre os que têm informações do que as clássicas deduções intelectuais de um Sherlock Holmes. (Fielding, 1996, p. 57, tradução nossa).

Procurando contrapor-se à idéia de que a investigação envolve atos ilegais, alguns policiais entrevistados enfatizam os procedimentos técnicos, impessoais, dentro dos limites da legalidade. O controle das atividades realizadas fora das delegacias é uma forma de dificultar a prática de condutas inadequadas, e ao mesmo tempo organizar o trabalho, como se observa no relato de um delegado entrevistado, transcrito a seguir. O pessoal tinha mania, “Nós vamos à rua”. Não, não, só um pouquinho, que vai fazer na rua? “Nós vamos ver um contato aí com um informante nosso”. Mas quem é o informante? Bate pneu61 o dia inteiro, tu não sabe o que fez, não é? Estou só usando o jargão... Mas na verdade é isso aí, tu saía para a rua, ficava rodando o carro, tu não sabia onde é que ele andava. Tu perguntava “onde é que está a viatura tal?” “Olha, não sei onde é que foi a viatura”. Tu não sabia onde é que ela andava, para onde ela ia. (Entrevista de pesquisa com delegado).

61 “Bater pneu” significa sair com uma viatura sem uma ordem de serviço específica, e portanto sem controle sobre o itinerário percorrido, tempo gasto e atividades realizadas.

165

Importante forma de promover uma investigação dentro dos padrões legais se dá através da construção de bancos de dados, em que constam informações sobre indivíduos já investigados e indiciados, permitindo a identificação de quadrilhas e de suas diversas formas de atuação. Um delegado apresenta uma comparação entre o método de trabalho que considera antigo e o novo, que defende, no trecho a seguir. O mais fácil, de repente, é, como se dizia na gíria, tu apertar o preso e ele te dar62. Só que esse método já está superado, tu tem que buscar outras formas alternativas, porque agora teu cargo está em risco, tu não vai te expor dessa forma, então é importante que tu saiba coletar aqueles dados, e é o que nós fazemos hoje. Hoje nós temos um banco de dados aqui, que está bem longe daquilo que eu quero, que se quer, que se projetou para o departamento, mas já passo para a área operacional um relatório de inteligência, de tudo que pode ser explorado em termos de recurso técnico. (Entrevista de pesquisa com delegado).

A partir das entrevistas citadas, observa-se que existe, pelo menos entre uma parte dos policiais, uma preocupação em desenvolver novas práticas de investigação. Agir dentro dos limites legais aparece como uma garantia para o próprio policial, na medida em que ele pode justificar seus atos frente a qualquer questionamento vindo dos órgãos de controle (Corregedoria da Polícia Civil, Ouvidoria da Secretaria da Justiça e da Segurança, Ministério Público). Além disso, as evidências obtidas através de procedimentos sem base legal não podem servir como fundamento para a elaboração de inquéritos policiais, que são o resultado final de todo o trabalho da Polícia Civil. Por outro lado, a própria defesa de novos métodos também indica a prática dos métodos considerados antigos, baseados em contatos com informantes ligados aos criminosos e no recurso a diversas formas de pressão sobre os suspeitos.

62

“Dar”, neste uso, significa confessar ou delatar outras pessoas.

166

4.2.3 O cartório Cada delegacia tem seus cartórios, que são os setores responsáveis por elaborar os procedimentos policiais: inquérito policial, termo circunstanciado e processo especial de adolescente. As atividades desenvolvidas nos cartórios e na investigação são complementares, pois todos os setores da delegacia têm como finalidade a elaboração destes dossiês, sendo os funcionários do cartório responsáveis pelo correto ordenamento dos documentos e pela elaboração de alguns deles. O Regimento Interno da Polícia Civil estabelece as competências dos cartórios, conforme exposição a seguir. Art. 37 - Aos Cartórios compete: I - realizar os serviços cartorários relativos aos inquéritos policiais e processos sumários de competência da Delegacia; II - ter sempre em perfeita ordem e devidamente escriturados os livros e documentos próprios; III - efetuar o arquivamento das cópias de inquéritos policiais e processos sumários elaborados e manter sob sua guarda a legislação processual vigente e a coletânea dos órgãos superiores de correição; IV - cumprir cartas precatórias e outras solicitações; V - executar outras tarefas correlatas. (RIO GRANDE DO SUL, 1979b).

Observa-se que o controle do fluxo documental da delegacia depende em grande parte do cartório, responsável pela elaboração e arquivamento dos inquéritos policiais, termos circunstanciados e procedimentos especiais de adolescentes. A atividade cartorária que envolve contato com o ambiente externo à delegacia é a tomada de depoimentos de vítimas, indiciados e testemunhas, seja em função de inquéritos da própria delegacia ou de inquéritos que estão em andamento em outros locais, quando há uma solicitação através de carta precatória. Embora a atividade de tomar depoimentos seja atribuição dos delegados, freqüentemente é realizada por um agente, levando apenas a assinatura do delegado. Essa situação apresenta, segundo apontou um inspetor entrevistado, vantagens e desvantagens para o

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agente: por um lado, ele está desempenhando uma função que não é sua, ou seja, está trabalhando mais porque seu superior não está cumprindo seu papel; por outro lado, está assumindo uma posição de mais poder, o que pode inclusive permitir atitudes ilícitas. O escrivão pode registrar as coisas de maneiras muito diferentes, de acordo com seus interesses. Não precisa ser um oferecimento de dinheiro, direto, mas entram coisas como conhecimento, parentesco ou até simpatia. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Quando a troca de informações entre os setores de investigação e cartório não acontece, aumentam as probabilidades de haver problemas para a elaboração dos inquéritos, como se depreende do depoimento a seguir. O bom investigador que prende, ele tem que acompanhar, até para dar dicas ali para o escrivão. O pessoal faz tudo certinho, prende, mas não fomenta de informações o escrivão, e acontece aquilo que nós vemos que o Judiciário reclama muito, e o Ministério Público: inquéritos mal feitos. [...] [Se não se faz a parte cartorária] bem feita, tudo aquilo que tu perdeu, todo aquele tempo, que às vezes tu demora um ano, dois anos para prender uma quadrilha, tudo aquilo ali, às vezes, por não ter botado no papel, fica prejudicado todo aquele trabalho. Vai por água abaixo, aí soltam a pessoa, e começa a cometer crimes de novo. (Entrevista de pesquisa com comissário).

O cartório é o local com maior participação de servidoras, tidas como mais detalhistas, mais atentas aos prazos e aos procedimentos corretos para a elaboração dos inquéritos policiais. Outros aspectos tornam os cartórios um local atrativo para as mulheres, como os horários de trabalho regulares, o menor contato com situações de risco e a valorização que recebem por usar habilidades consideradas de natureza feminina, como a capacidade de extrair informações com sutileza, sem ameaçar ou confrontar os depoentes.

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4.2.4 O gabinete e a secretaria Na função de coordenação do trabalho realizado nas delegacias deve estar um ocupante do cargo de delegado de polícia. Pode ser substituído parcialmente por um comissário, embora na prática existam delegacias chefiadas por inspetores ou escrivães, devido ao número de delegados ser inferior ao número de delegacias. Uma escrivã comentou sobre a importância da figura do delegado para o estabelecimento de um estilo, um modo de trabalhar na delegacia: Conforme o delegado, é a delegacia. [...] Já experimentei seis delegados. Muda, e eu não sei o quê. Eu procuro ter sempre a mesma postura e trabalhar da mesma forma, já não acontece com os outros colegas. Eu sinto diferença no trabalho dos colegas com delegados e delegados. É conforme o delegado. (Entrevista de pesquisa com escrivã).

Um delegado entrevistado criticou a postura de muitos de seus colegas, que não cumprem seus deveres com o zelo necessário. Enquanto ele mesmo apresentase como uma pessoa dedicada ao trabalho, o que deveria ser “uma coisa normal”, considera que esses colegas não têm um compromisso com o cotidiano da delegacia, o que os impede de ter uma posição de liderança, de formarem referências positivas. Eu vejo assim que é o delegado é que tem o primeiro embate, ou a coordenação, a fiscalização. Tu vai me encontrar aqui de manhã, e tu vai me encontrar aqui quando encerra o expediente, sempre vou estar aqui. Se eu não estiver aqui, estiver numa missão, mas eu vou estar em contato com aqui. Tu não me vê saindo cedo daqui indo para casa. Eu venho para cá [...] oito e meia, quinze para as nove, no máximo, eu estou aqui. Saio, faço, cumpro os compromissos, saio para almoçar, retorno, mas tu nunca vai me achar ausente do departamento por falta de interesse. [...] Só que [...] foi difícil conseguir esse tipo de comportamento, quando devia ser uma coisa normal. [...] Chega em delegacias, por exemplo, para fazer uma visita. Pode chegar às nove horas, vai ser difícil tu encontrar delegados, são poucos os delegados que vão estar na delegacia. Então tu imagina, como é que a máquina Polícia Civil vai adotar um referencial se a pessoa que deveria ser o referencial no ponto não comparece àquilo ali. (Entrevista de pesquisa com delegado).

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Comentários nesse mesmo sentido, apontando a falta de participação dos delegados no cotidiano das delegacias, são freqüentes entre os agentes, mas raramente são proferidos por delegados. A declaração acima citada indica um posicionamento de crítica a um perfil específico de delegado, ao qual o entrevistado se contrapõe na disputa por estabelecer-se como o padrão de atuação considerado legítimo na instituição. As funções atribuídas à secretaria de uma delegacia são comuns à maioria das organizações, públicas ou privadas. Expõem-se a seguir tais atribuições, conforme determina o Regimento da Polícia Civil. Art. 11 - À Secretaria compete: I - elaborar os boletins de efetividade, lotação, requisição para etapa de alimentação, requisição para horas-extras, escala de plantão e planilhas de estatística do órgão; II - elaborar os boletins de efetividade dos estagiários do órgão; III - manter atualizados os dados cadastrais dos funcionários do órgão, como endereços, telefones, férias, licenças, e outros; IV- manter atualizado o tombamento patrimonial do órgão; V- supervisionar o serviço de limpeza e higiene do órgão; VI - supervisionar as instalações do órgão, indicando ao titular os reparos necessários ao bom funcionamento do serviço; VII - manter estoque de material de expediente necessário ao bom andamento do serviço em todo o órgão, providenciando na sua reposição; VIII - efetuar o controle das condições de funcionamento, da quilometragem e de combustível das viaturas do órgão; IX- acessar os sistemas informatizados para execução de suas tarefas; X- dar a entrada, a saída e a movimentação de ocorrências de outros órgãos (número interno - NI) no livro de ocorrências e no sistema informatizado - SIP; XI- ter acesso e dar movimentação aos expedientes no Sistema de Protocolo Integrado - SPI - da Polícia Civil; XII - receber e protocolar expedientes e objetos; XIII - elaborar despachos e ofícios determinados pelo titular do órgão;

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XIV- distribuir os expedientes conforme orientação da chefia superior; XV- elaborar ordens e instruções de serviço, bem como portarias de competência da Secretaria; XVI - prestar informações aos interessados com referência aos expedientes em andamento, e, se for necessário, fazer o encaminhamento das partes ao titular do órgão ou ao chefe de serviço; XVII - realizar serviços de remessa, busca e entrega dentro e fora do prédio; XVIII - realizar outras tarefas correlatas. (RIO GRANDE DO SUL, 1979b).

Assim como no cartório, a participação feminina é valorizada na secretaria, pelas mesmas razões já citadas, embora existam homens trabalhando em ambos os setores. Em cada um dos setores de uma delegacia existe um cargo de chefia, e o servidor que o ocupa, escolhido pelo delegado, recebe o que se denomina “função gratificada”, ou “FG”.63 Uma prática que sofreu restrições durante o governo Olívio Dutra (1999-2002) era a formação de uma equipe que acompanhava o mesmo delegado em suas várias lotações, normalmente ocupando as chefias do cartório, da investigação e da secretaria. Assim, formava-se uma aliança entre o delegado, que contava com servidores de sua confiança pessoal para as posições essenciais da delegacia, e os agentes, beneficiados com a gratificação e com uma parcela de poder sobre seus colegas. O relacionamento entre agentes e delegados, em termos de disputas pelo poder, será abordado a seguir, na seção 4.3.1 deste capítulo. 4.3 As classificações do trabalho São apresentadas a seguir as principais oposições que articulam, do ponto de vista técnico, a atividade policial: agentes e delegados, trabalho de rua e trabalho burocrático, capital e interior e a casa e a rua. São níveis diferentes de relação, 63 A função gratificada existe em todo o serviço público, mas na Polícia Civil recebe a denominação de “função gratificada policial”, só podendo ser atribuída a integrante do quadro dos policiais civis.

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envolvendo posições distintas de acesso ao poder, disposições necessárias ao trabalho, posição social do policial na comunidade em que atua e formas de proteger a intimidade frente ao mundo do trabalho. 4.3.1 Agentes e delegados O delegado é definido legalmente como a autoridade policial, sendo portanto o responsável pelos atos de seus subordinados, definidos como agentes da autoridade. Essa divisão atribui ao delegado uma grande carga de responsabilidade e um grande poder sobre os agentes. A estrutura das carreiras cria situações diferenciadas para agentes e delegados. Após o curso de formação, os novos delegados já assumem posições de chefia reservadas ao cargo, enquanto os novos escrivães e inspetores, na maioria dos casos, vão trabalhar junto a colegas mais antigos, podendo se beneficiar da experiência deles. Os novos delegados, sem conhecimento anterior nem vivência dentro da instituição, passam a comandar servidores já experientes. Na polícia militar ou no exército, por exemplo, os oficiais passam por um treinamento bem mais longo (quatro anos para os oficiais do Exército e dois anos para os oficiais da Brigada Militar64), e iniciam seu trabalho efetivo sob o comando de oficiais mais graduados. Na Polícia Civil, na grande maioria das delegacias existe apenas uma vaga para delegado, sendo que no interior são poucas as cidades com mais de uma delegacia, o que dificulta aos novatos o contato com colegas mais antigos. Assim, os delegados aprendem a desempenhar suas funções em uma posição de comando, sem a presença de iguais ou de superiores que estejam autorizados a criticá-los. Quanto ao nível de vencimentos, a desigualdade entre agentes e delegados é grande, pois o salário inicial de um delegado de polícia é quase cinco vezes maior 64 Até 2003, os futuros oficiais da Brigada Militar faziam um curso de quatro anos de duração, mas a exigência de escolaridade era o Ensino Médio. Desde 2003, a exigência passou a ser de graduação em Direito.

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do que o salário inicial de um escrivão ou inspetor de polícia. Além disso, existem formas pelas quais um delegado pode aumentar seus rendimentos (além dos adicionais por tempo de serviço recebidos por todos os servidores) como a gratificação de substituição, que recebe quando responde por outra delegacia além da sua por um período superior a trinta dias.65 Tanto os agentes quanto os delegados, considerados enquanto integrantes da Polícia Civil, estão envolvidos nas mesmas disputas por posições de poder na instituição, embora os delegados tenham acesso a recursos formais dos quais os agentes são desprovidos. Um exemplo disso é o poder que os delegados detêm de "apresentar" um agente que lhe esteja subordinado, ou seja, mandar um ofício à Chefia de Polícia apresentando o agente com a finalidade de ser lotado (designado para trabalhar) em outro local. Não é necessário que o agente tenha cometido alguma falta, e nem que concorde em sair de onde está trabalhando. Por outro lado, o agente pode dispor de outro tipo de recurso que limite a capacidade do delegado de "apresentá-lo", como ligações familiares ou afetivas com integrantes de grupos no poder, dentro ou fora da Polícia Civil, conhecimentos específicos que sejam essenciais à área onde atua ou grande reconhecimento entre seus colegas. O poder dos delegados sobre os agentes pode ser observado claramente em algumas situações, como o acesso aos cursos de aperfeiçoamento. O processo é o seguinte: a Academia de Polícia Civil envia ofícios aos órgãos para os quais cada curso é oferecido, com a informação do número de vagas, e os delegados respondem indicando os servidores que participarão dos cursos; caso não haja interesse pelo curso ou o delegado avalie que o trabalho será prejudicado pela ausência de servidores, ninguém é indicado. Dessa forma, o processo de 65 Essa gratificação é um dos motivos que levam alguns delegados a permanecerem no serviço ativo, mesmo já tendo direito de se aposentarem. Ela foi criada em 1986, através da Lei nº 8.183. Em 1997, uma ordem de serviço do governador do Estado vetou a percepção simultânea de mais de uma gratificação).

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qualificação dos agentes fica na dependência dos critérios dos delegados que os chefiam. Uma investigadora que desejava participar do curso de atualização intitulado “Uso da força e da arma de fogo”, por exemplo, foi preterida em favor de um colega homem, pois o delegado considerava que aquele não era um curso para mulheres. Nesse caso, o conceito pessoal do delegado a respeito das divisões de gênero sobrepôs-se ao projeto mais amplo da instituição de qualificar todos os policiais no que respeita ao uso da força e da arma de fogo. Entre os delegados, as disputas envolvem o acesso aos cargos de chefia e às posições consideradas como de maior prestígio. Tanto agentes quanto delegados buscam também ser promovidos o mais rapidamente possível de uma classe para outra na carreira, sendo as promoções pelo critério de merecimento uma expressão de reconhecimento.66 Uma disputa que ocorre em um nível menos visível se dá em torno do estabelecimento do modelo legítimo de policial, o que inclui características como o gênero, títulos apresentados, como os escolares, e posicionamentos frente a temas como o uso da força, o respeito às normas legais e o relacionamento com outras instituições. Tal disputa, mesmo influenciada pelas mudanças conjunturais relacionadas ao campo político, também se desenvolve em relação com os movimentos ocorridos na esfera pública em nível mais amplo. No caso da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, isso tem se traduzido em um processo de gradual rejeição ao abuso da força e de abertura, igualmente gradual, ao gênero feminino e a uma hierarquia menos rígida.

66

As promoções serão analisadas em detalhe no capítulo 5, item 5.2.1, nesta tese.

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4.3.2 Trabalho “burocrático” e trabalho “na rua” Uma diferença importante para o trabalho policial ocorre entre os órgãos chamados “de ponta” e os centrais. Os órgãos definidos como de execução, chamados também de operacionais, são aqueles vinculados ao atendimento direto à população, tendo em sua estrutura um número maior ou menor de delegacias: Departamento Estadual para a Criança e o Adolescente (DECA), Departamento Estadual

de

Investigações

Criminais

(DEIC),

Departamento

Estadual

de

Investigações do Narcotráfico (DENARC), Departamento de Polícia do Interior (DPI), Departamento de Polícia Metropolitana (DPM), Departamento Estadual de Polícia Judiciária de Trânsito (DPTRAN) e COGEPOL (Corregedoria Geral de Polícia). Os demais departamentos são responsáveis pelas atividades administrativas e de apoio técnico, bem como pela formação profissional: Chefia de Polícia, Academia de Polícia Civil (ACADEPOL), Conselho Superior de Polícia (CSP), Departamento de Administração Policial (DAP), Departamento Estadual de Telecomunicações (DETEL) e Departamento Estadual de Informática Policial (DINP). Além das atividades específicas de polícia civil, vinculadas à investigação de delitos, há policiais desempenhando tarefas comuns a qualquer órgão público, como manutenção de prédios e equipamentos ou a administração rotineira de pessoal (controle de efetividade, por exemplo). Ocorrem também situações como a do Serviço de Assistência Social do Departamento de Administração Policial (SAS/DAP), por exemplo, onde encontram-se servidores policiais, com formação acadêmica específica, trabalhando como psicólogos, assistentes sociais, médicos e odontólogos. Isto explica-se em parte devido à falta de servidores do quadro dos Técnicos Científicos do Estado, que seriam os ocupantes indicados para estas

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funções, mas também é indicador do corporativismo que leva a ocultar eventuais problemas sociais e psicológicos nos limites da instituição.67 A Tabela 13 apresenta os dados relativos à proporção de servidores policiais lotados nos órgãos administrativos e de execução. Tabela 13 – Distribuição dos servidores policiais entre os departamentos da Polícia Civil, por ano e tipo de departamento – Rio Grande do Sul, 2000-2003 2000

2001

2002

2003

Órgãos administrativos1 21,14 16,76 16,37 15,94 Órgãos de execução2 78,86 83,24 83,63 84,06 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatórios anuais 2000-2003. Notas: (1) Chefia de Polícia, ACADEPOL, CSP, DAP, DETEL e DINP; (2) COGEPOL, DECA, DEIC, DENARC, DPI, DPM, DPTRAN. A Tabela 14 mostra a proporção dos policiais lotados nos serviços de cartório, investigação e plantão, que caracterizam os órgãos operacionais. Tabela 14 – Distribuição dos servidores policiais lotados nos órgãos operacionais da Polícia Civil, por setor – Rio Grande do Sul, 2000-2003 2000

2001

2002

2003

Cartório 33,79 34,29 33,78 34,45 Investigação 25,62 23,76 24,30 24,73 Plantão 18,99 23,29 23,05 22,65 Secretaria 7,05 6,24 5,88 5,81 Outros setores 14,55 12,42 12,99 12,36 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatórios anuais 2000-2003. Trabalhar em delegacia e trabalhar no Palácio da Polícia, onde se localizam a Chefia de Polícia, DAP, DETEL e DINP, são experiências muito diferentes. Um inspetor que sempre trabalhou em delegacias e foi designado para um departamento no Palácio da Polícia comentou em entrevista: É muito diferente! É muito diferente, porque a delegacia, mesmo tendo uma competição, todo mundo ajuda todo mundo. Tu 67 Ocorre também um certo grau de uso da estrutura pública para fins privados, como na Creche Mamãe Coruja, destinada a atender filhos de policiais, onde trabalham várias servidoras policiais em evidente desvio de função.

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tem que fazer o troço acontecer, tu tem que andar, tu tem que fazer o inquérito e tu precisa da ajuda do outro para intimar uma pessoa para ser ouvida, daqui a pouco tu vai pro cara da investigação: cara, se eu não fizer isso aqui vai terminar o prazo. Então todo mundo, um ajuda o outro. Agora, no Palácio, Deus o livre. [...] Lá é uma disputa de beleza, disputa de quem tem o carguinho melhor, disputa se o diretor gosta de mim ou não, sabe, e ninguém se importa com o trabalho. [...] Então eu acho que tem gente demais trabalhando no Palácio no setor burocrático, deveria estar trabalhando em delegacia, fazendo inquérito policial. [...] O DAP tem duzentos e poucos funcionários. Duzentos e poucos funcionários para o DAP? Só um pouquinho... [Na delegacia], na verdade tu está fazendo a função fim da polícia, que é o inquérito policial. Então tem que andar, não importa de que forma, ela tem que andar, aquilo ali tu tem que fazer. Tu perdeu o prazo, tu pode até responder por prevaricação, o delegado vai responder e o delegado vai te cobrar, então são cobranças, cobranças internas em função de uma coisa, que é o inquérito policial. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Mesmo com todos os problemas, na delegacia a situação faz com que haja uma idéia de trabalho coletivo, segundo o mesmo entrevistado, como se observa no trecho a seguir. Os puxa-sacos, aqueles que não fazem [coisa] nenhuma dentro da delegacia, que sempre tem, ou o cara que só quer tomar trago, ou o cara que quer sair para a zona, isso tem, tem. Hoje eu acho que mudou um pouco, está um pouco diferente, até por causa das turmas que entraram depois. Mas tem ainda essa competição e essa coisa, mas todo mundo pega junto, até porque é um número menor de pessoas. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Para os servidores que sempre desenvolveram suas atividades no Palácio, por outro lado, as delegacias são vistas como locais onde as condições são mais precárias e as dificuldades são maiores. Uma investigadora que nunca trabalhou em delegacia respondeu por que não gostaria de ir para uma delas, no texto transcrito a seguir. Primeiro porque eu acho que as delegacias são muito mal estruturadas, elas não têm o apoio necessário, nem material e nem humano, para funcionar direito. [...] O pessoal das delegacias reclama disso aí, tu não tem estrutura, não tem material e não tem apoio para fazer o serviço direito. [...] E eu acho que o teu serviço fica desvalorizado, tu fica desmotivada, porque tu não tem apoio realmente para melhorar aquilo que está fazendo, e o que tu precisaria para melhorar tu não recebe, então... (Entrevista de pesquisa com investigadora).

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Pode-se observar na comparação destes dois posicionamentos que as trajetórias dentro da instituição podem ser muito diferentes, levando a posições opostas em relação ao que é importante: para um, o trabalho coletivo tendo como fim o inquérito policial; para outra, as boas condições de trabalho, a excelência no desempenho. Se existe uma unanimidade em relação ao trabalho nas delegacias, essa se dá no que respeita às grandes dificuldades enfrentadas, não apenas pela falta de recursos materiais mas pelo próprio tipo de trabalho, exigindo contato com situações desagradáveis e emocionalmente exigentes, como coloca um inspetor com vários anos de trabalho. Acho que a convivência do pessoal, principalmente de linha de frente, ou do plantão, que está ali na vitrine, tem que ter uma estrutura psicológica bem preparada, porque tu convive com a desgraça do mundo, na verdade. Só vai numa delegacia quem foi assaltado, que mataram o pai, que mataram isso, que mataram aquilo, então eu acho que, na polícia, tu tem que te preparar é para ter a estrutura suficiente para poder suportar esse tipo de coisa. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Em contraste com este tipo de relato, que faz parte da imagem difundida entre os próprios policiais, a estatística da criminalidade registrada no Rio Grande do Sul, apresentada na primeira parte deste capítulo, mostra um quadro diverso. Nos boletins de ocorrência, os números mais elevados devem-se aos furtos, ameaças, lesões corporais e roubos, sendo o número de homicídios inferior a 0,2% do total. Assim, a idéia de que os homicídios são muito freqüentes não tem base estatística, devendo-se buscar a explicação para este tipo de afirmação nas representações que os policiais fazem de sua atividade. Em primeiro lugar, há que se considerar a intensidade emocional do contato com a morte, mesmo que tais eventos não sejam freqüentes, fazendo com que sejam mais lembrados do que os pequenos furtos e outros delitos que acontecem

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cotidianamente. Outro aspecto a provocar o desgaste emocional são as condições de vida de muitas das pessoas com as quais os policiais se defrontam em seu cotidiano, passando por problemas graves para os quais a ação policial é inútil, tais como doenças, desemprego ou desagregação familiar. O trabalho de investigação, considerado como a função específica da polícia civil, é também referido como uma atividade desgastante e moralmente arriscada, onde o policial pode facilmente ultrapassar os limites da legalidade e adotar comportamentos que prejudicam sua vida pessoal e familiar. Um comissário faz uma análise dos problemas do trabalho de rua nos termos que seguem. Nós estamos perdendo os policiais da ponta. Por que? Porque esses policiais, primeiro lugar, são mal vistos, que executam esse trabalho. Ah, está fazendo isso aqui porque ele está se corrompendo, está mordendo68. [...] Uma pessoa que trabalha dentro de um gabinete a vida toda, ela é mais rapidamente promovida do que um policial que está na rua. Porque ele estando na rua, se deparando com a criminalidade de frente, ele está sujeito a responder processos administrativos. É de praxe! Abuso de autoridade, um excesso, uma lesão corporal, um homicídio, uma condescendência criminosa, uma prevaricação, são crimes que existem aí e que ele responde, porque ele está na rua! Ele enfrenta o crime! E aquele policial que está sentado atrás de um computador, nada contra, porque tem pessoas que têm que ficar, aquele suporte logístico tem que ter. Todo grupo que está na rua, que são essa parte operativa, tem que ter um grupo logístico, para dar aquele apoio para aquele pessoal. Mas há um excesso de pessoas nesse trabalho. E eles são promovidos primeiramente, porque eles não têm bronca! Eles não respondem processo! Então olha lá, não, o Fulano não vai ser promovido porque está respondendo aqui um PAD69 de um abuso de autoridade. Então isso aí tranca quatro ou cinco anos um processo, até vir a sentença esse policial não é promovido. [...] E ele ganha a mesma coisa que o outro policial. Então o que acontece? O policial começa a se esconder. Ele não quer trabalhar na rua. “Não, não quero me incomodar”. Para buscar informação na rua é um trabalho desgastante, eu trabalho e eu sei disso. Tu enfrenta o crime frente a frente, tu tem que sacar uma arma... Eu já recebi tiros, graças a Deus não pegou nenhum em mim. Mas é um trabalho desgastante, as pessoas começam a ter problemas, inclusive, que isso aí há levantamento do SAS-DAP, que isso aí dá problemas psicológicos, as pessoas começam a beber, se viciar. Porque enfrenta a criminalidade, começa a trabalhar no meio, não sabe, não tem uma estrutura social e de conhecimento, que diga não, espera 68 69

“Morder” refere-se aos delitos que envolvem receber dinheiro na atividade policial. Processo Administrativo Disciplinar.

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aí, isso aqui é errado e eu não vou fazer. E eles começam a trabalhar, e eles começam a traficar, começam a beber... Esse problema de bebida alcoólica na polícia aí, e de tóxico, é grande! Dito pelo SAS-DAP! Então as pessoas que lidam com o crime diretamente, começam a se afastar por esse motivo também, de doença, bebedeiras, temos vários casos. Então eu penso assim, eu acho que a polícia tem que começar a pensar, valorizar mais esse pessoal de rua, criando um... até já teve um trabalho, chama verba de gratificação operacional. Diferenciar esse policial. Se ele está na rua, diferenciar, dar 20% a mais, uma verba de gratificação, como um incentivo, até para que ele não pegue dinheiro na rua, que ele não morda, que ele tenha um incentivo... Porque esse serviço está terminando. (Entrevista de pesquisa com comissário).

O entrevistado fez referência a algo que é encarado como uma verdade indiscutível pela maioria dos policiais, segundo depoimentos obtidos nas entrevistas: quem trabalha na investigação acaba sendo acusado da prática de atos ilícitos, ou seja, acaba tendo “broncas” (acusações apuradas através de sindicância, inquérito policial ou processo administrativo-disciplinar, bem como ações penais). Uma condenação, mesmo com uma pena que não chegue a provocar a demissão, leva à opção por não trabalhar mais na rua. É o que aconteceu com um inspetor entrevistado, que relata sua experiência no trecho a seguir. No início da profissão, o que mais te atrai é a linha de frente. Tu gosta mesmo é de estar lá na ponta, correndo atrás, investigando, eu te diria assim o início da profissão. Depois, com o conhecimento e tudo, e com o desgaste que tu vai sofrendo, claro que uns mais, outros menos. Eu passei por experiências negativas em relação ao trabalho, o trabalho que tu faz, tu vê avaliado duma forma negativa, então isso te decepciona. Um processo que eu respondi em função do trabalho, o trabalho que na realidade foi bem feito e que foi mal interpretado, respondi uma 489870, que é abuso de autoridade, que foi uma coisa que realmente não foi praticada, que em outras épocas havia muito, mas na época que eu respondi não havia, não houve naquele fato específico, não houve, e eu acabei sendo condenado, isso me decepcionou, sabe. Depende, eu acho, de cada um. A minha opção de me resguardar um pouco mais foi em função disso, a partir daí eu comecei a, digamos assim, a tirar meu time de campo naquela área de linha de frente. [...] Deixar de fazer para evitar de se incomodar? Com certeza, com certeza. Eu mesmo, por várias vezes acabei, depois, não digo que prevaricando, deixando de fazer o dever de função, mas pensando duas vezes antes de começar a agir

70 Lei nº 4.898/65, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal nos casos de abuso de autoridade.

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em relação a certos fatos. Acaba te gerando uma insegurança, até para o trabalho. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Percebida pelo policial como injusta, a condenação levou-o a sentir-se desalentado, pois ressentiu-se de ter sido colocado na mesma posição dos indivíduos que, em sua opinião, haviam realmente cometido abuso de autoridade, e com os quais não se identificava. Um inspetor há poucos anos na função expressou satisfação com seu trabalho, mas coloca a possibilidade de vir a mudar devido ao desgaste. Sempre trabalhei na rua. Talvez mais tarde tu canse um pouco dessa função e a gente procure outra coisa, um plantão, um cartório, um pouco mais tranqüilo, mas agora, atualmente eu estou na função. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

O mundo da rua é descrito freqüentemente como “sujo”, e essa “sujeira” às vezes é identificada de um modo concreto, físico, assumindo também um significado oposto ao de dignidade do trabalho policial, que necessita ser resgatada. Há cerca de três semanas atrás mandei fazer inspeção nos carros todos. Então parei todos os carros aqui, e desci com luva, um papel em branco, um rolo de papel toalha, subi nos carros. Abre o motor, todos. Os delegados juntos. Passava um pano no painel, vinha com o pano sujo: “Isso aqui não é viatura de policial." [...] Passava na direção, saía aquela mancha preta. “Isso aqui também não é. Então eu quero esse carro limpo. Esse carro volta, e volta limpo aqui. Eu quero passar um pano e não sair nada aqui.” Por que? É uma questão de dignidade. Acho que é o seguinte: tu tem que trabalhar num ambiente limpo, tu tem que estar te sentindo, tu tem que estar limpo, tu tem que te descaracterizar. O fato de fazer contato com informantes, ter que fazer um contato numa vila, não quer dizer que tu tenha que adotar no teu procedimento um procedimento bandido. Tu pode até, para uma caracterização, usar a mesma linguagem, usar a mesma roupa, mas no momento em que tu retorna, nós temos que resgatar esse homem. Eu tive experiência na polícia de verificar muitas vezes que nós caminhamos num limite muito, muito... muito perigoso. Nosso caminho entre o crime... ele é muito próximo. Tu caminhas muito no fio da navalha entre o ilícito e o lícito. Nossas funções se confundem muito. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Outra característica da descrição acima sobre o mundo "da rua" é a localização “na vila”, ou seja, nos bairros pobres. A separação entre os mundos,

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para o entrevistado, deve ser completa, apesar de reconhecer que os policiais vivem em "um limite muito perigoso". Ele constrói duas imagens estereotípicas, opondo o policial, honesto, limpo, que usa uma linguagem culta e mora em um bairro com boa estrutura urbana, e o bandido, sujo, usando uma gíria específica e morando na vila. Tal divisão rígida remete ao movimento que Bourdieu (2001b) descreve como característico das frações ascendentes da pequena-burguesia, que procuram romper seus laços anteriores e assumir um estilo "estrito e sóbrio, discreto e severo, em sua maneira não só de vestir, mas também de falar – essa linguagem hipercorreta pelo excesso de vigilância e prudência". (Bourdieu, 2001b, p. 108) A atividade mais arriscada que ocorre na rua é o enfrentamento armado, situação limite que expõe aspectos muitas vezes inesperados da personalidade do policial. Uma delegada descreve o que acontece: A minha preparação foi boa, na Academia, isso eu não posso reclamar, mas tem pessoas que teriam que ter um acompanhamento, eu acho, psicológico depois que saem. Que não estão preparadas para isso. E eu convivi com esse tipo de pessoa assim, são pessoas que no dia a dia são super calmas, e quando chega nesse momento de estresse ficam fora de si, de ter que chamar essa pessoa, tirar para fora, sabe, dar umas sacudidas. De outras instituições também, então eu acho que teria que ter um acompanhamento depois de ver o estado de estresse da pessoa. A gente nunca sabe como é que a pessoa vai reagir também nessa situação. [...] Acho que muitas vezes o momento que a pessoa está vivendo também, se está num grau elevado de estresse, aí chega lá vai fazer uma bobagem. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Um comissário com muita experiência nesse tipo de situação apresenta um quadro dramático, bem diferente da imagem difundida em filmes de ação, onde ações heróicas e gestos calculados costumam caracterizar os policiais. Por mais que tu treine, tu pode repetir uma ação mil vezes, tu vai fazer uma situação real, tu vai ver que ela é diferente daquela que tu treinou. Mas o treinamento te dá o quê? Te dá a luz necessária para que tu tome as decisões corretas, em frações de segundo. Mas é uma coisa assim horrível, é horrível. Eu já participei de situações com policiais feridos, é uma correria, um grito, que nem todo mundo tem o mesmo treinamento, é gente que cristaliza, não sabe o que

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fazer... Fica parado, um policial sangrando e ele não atina a prestar um socorro, o primeiro socorro que tem que dar, pegar aquele colega, tirar da situação, levar... pedir um socorro, ele simplesmente fica olhando uma situação! Acontece de tudo: policiais ferindo policiais pelo nervosismo, acontece muito isso na hora do risco. Pega uma arma e vê aquele... todo mundo correndo, não há planejamento, daí a pouco um colega vê um vulto e atira, é o próprio colega que está ali... Porque ele fica cego. Cria o que nós chamamos de visão de túnel, uma visão que a gente olha só à frente, e esquece o lado. A gente não vê nada, vê aquilo ali e tu vai para resolver aquela situação, não enxerga nem o rosto da pessoa. É como se... como se fosse capotar... já capotei duas vezes de carro, então eu posso te dizer. Tu está ali naquela situação, vira, aquilo fica preto. Quem desmaia, também, é a mesma situação de quem desmaia, tu está numa situação que tu vai desmaiar, daqui a pouquinho tu vê um branco, tu vê, aquilo ficou tudo preto, quando tu vê tu acorda, "o que aconteceu, que aconteceu", tu nem sabe o que aconteceu. (Entrevista de pesquisa com comissário).

Assim como os policiais ficam nervosos e cometem erros, os adversários também são avaliados da mesma forma: Pegou policial com um cano71 na cabeça: não tem o que o policial fazer. Tem que ficar calmo, não esboça nenhuma reação, faça tudo que ele pedir, se tu criar uma situação que te oportunize uma reação, que possa pegar uma arma, uma coisa, faça, mas tu tem que estar convicto daquilo que tu vai fazer. Se tu não tiver a técnica, não faz nada, que é pior. Porque às vezes a pessoa, o delinqüente, ele aperta o gatilho... O mesmo erro que o policial comete ele comete, por medo, por susto! [...] Pavor! Está ali, assaltando, então ele está ali, está chapado, ele está com medo, e aí a pessoa esboça às vezes um gesto de histeria, ele vai e pim, ele dá um tiro. (Entrevista de pesquisa com comissário).

As ações de enfrentamento armado não são tão freqüentes quanto se possa imaginar, levando em conta observações acerca de conversas entre policiais, mas são eventos dramáticos, cujas conseqüências podem ser graves para os policiais, seja por danos a eles mesmos (morte ou ferimentos incapacitantes) ou a outras pessoas. Matar ou ferir alguém é algo psicologicamente importante, exigindo muitas vezes um acompanhamento especializado nem sempre disponível para o policial.

71

“Cano” é uma das gírias para arma de fogo.

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4.3.3 A capital e o interior Entre os órgãos policiais localizados na capital do Estado e no interior existem várias diferenças. A principal delas é a falta de pessoal e de recursos, mais grave no interior, obrigando os funcionários a desempenharem funções que não seriam próprias de seus cargos, como ilustra a citação a seguir, feita por um inspetor. No interior, eu ia juntar “presunto”, que a gente diz os mortos, lá no interior, e eu juntava eles, não era o perito do IML, eu juntava de mão limpa, não tinha luva, não tinha nada, não tinha estrutura. Eu cansei de pegar e juntar e cair a pele na minha mão, então isso tudo acaba te tornando frio, essas situações, a polícia te deixa frio. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Outro inspetor relatou a falta de peritos e de fotógrafos criminalísticos, substituídos por pessoas de fora da instituição, sem o hábito de trabalhar nas situações com as quais os policiais estariam mais familiarizados. A gente tinha muito caso de morte por acidente, por exemplo. Tinha o que eles chamavam de perito, lá, eram pessoas da cidade, nomeadas. Tinha um que era fotógrafo que sempre era chamado, só que muitas vezes ele ficava nervoso, não conseguia fotografar, eram mortes, pessoas lá todas esquartejadas por acidente, alguma coisa assim. Aí eu “tá, me dá aqui”, às vezes eu ia na casa dele, pegava a máquina fotográfica. (Entrevista de pesquisa).

Importante dificuldade do trabalho policial nas delegacias do interior do Estado ocorre devido ao baixo efetivo, levando ao acúmulo das funções policiais. No interior tu é pau para toda obra, tu faz clínica geral no interior. [...] Esse que é o problema. Então assim, o efetivo é pequeno e tu tem que apoiar os colegas, independente do setor em que tu trabalha. Muitas vezes tu trabalha lá na secretaria, não tem nada a ver com o serviço de investigação, e o problema, tem dois na investigação e o caso requer dez, e aí vai todo mundo que está, é cartório, é secretaria, não interessa, é polícia. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

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Essa falta de condições adequadas para o trabalho pode tornar-se mais dramática em algumas situações, quando acontecem eventos simultâneos exigindo a intervenção imediata da polícia, como relatou um investigador. No interior, por exemplo, no interior onde eu trabalhei, é na boa vontade, é na força de vontade, é na luta, é uma luta árdua. Tinha uma época, praticamente era eu e mais seis no município, o resto tinha dado problema. Eu estava no plantão, investigação e cartório, mais um outro colega naquela noite e naquele fim de semana. Naquela noite, no centro da cidade tinha dado um homicídio de trânsito, muito violento, tinha dado um homicídio com prisão em flagrante a 70 quilômetros, mais para o interior do município, e tinha dado um assalto do outro lado da cidade, e eu tinha que escolher qual deles eu ia atender. Como era flagrante de homicídio, eu fui para o homicídio, e aí distribuí o pessoal da Brigada [...] para segurar os outros para eu poder fazer aquilo lá, depois voltar e atender os outros. Aí tu vê a falta de estrutura. (Entrevista de pesquisa com investigador).

Um aspecto positivo apontado por alguns policiais a respeito das condições de trabalho no interior é o tipo de relacionamento que se estabelece com a comunidade, compreendida geralmente como o conjunto das organizações e da população que têm contato com cada uma das delegacias. Nas pequenas cidades do interior, a comunidade organiza-se de um modo diferente do que ocorre em Porto Alegre, conforme observou um delegado entrevistado. A comunidade busca muito mais as suas soluções, há muito mais solidariedade dentro, entre o grupo do que na cidade grande. O hospital é comunitário, as igrejas são fortes, as próprias festas nas comunidades de interior do município, elas [as comunidades] sempre tinham as comissões de ordem. Eu tive presos que me foram trazidos na delegacia, amarrados por cordas, que a comunidade prendeu. Eu fazia as reuniões com eles no início de ano, avisava as comunidades, tal dia eu quero uma reunião com todos os membros das comissões de ordem das comunidades, e dava as explicações. Toda pessoa pode prender, a autoridade policial e seus agentes devem prender, eu começava aí. Se vocês prenderem alguém, me tragam na delegacia e eu vou lavrar o auto de prisão em flagrante. Vocês podem prender. E isso para eles foi uma grande coisa. (Entrevista de pesquisa com delegado).

A posição deste delegado chama a atenção, pois ao mesmo tempo em que de certa forma parecia abrir mão do monopólio do uso legítimo da coerção,

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afirmando que qualquer pessoa pode efetuar uma prisão, estava envolvendo a comunidade e reforçando o seu poder, pois a legitimidade à prisão era dada por ele, ao lavrar o flagrante. Este mesmo delegado apontou outras vantagens do relacionamento estreito com a comunidade, ainda que prejudicando a privacidade dos policiais. Eles vigiam todo teu comportamento. Aí os próprios eventuais deslizes funcionais são mais difíceis de acontecer. Porque, como a comunidade conhece o delegado, conhece os demais servidores, então automaticamente, se alguém fizer alguma coisa errada, alguém fica sabendo, a delegacia fica sabendo. [Se um agente] vai na zona do meretrício e enche a cara, por exemplo, no outro dia ou na mesma noite o delegado está sabendo. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Esse tipo de relação dos moradores de um local com os policiais que também vivem na comunidade normalmente não ocorre em Porto Alegre ou em cidades maiores, por uma série de razões. Além de questões como as constantes transferências de delegacias, fazendo com que seus locais de moradia sejam os mesmos do trabalho apenas por acaso, o aspecto mais importante é o maior prestígio da polícia nas cidades do interior, onde há um número menor de representantes do poder do Estado. Investidos de um poder relativamente mais raro, os delegados aproximam-se da posição de juízes e promotores. Junto com o prefeito e a autoridade religiosa (padre ou pastor, conforme a religião predominante), constituem o grupo de “autoridades” do local, agentes capacitados a conferir legitimidade a situações, tais como uma família que se forma pelo casamento ou alguém que se constitui em “ladrão” depois de ser preso, julgado e condenado por furto. Assim, mesmo que os recursos materiais e humanos sejam mais escassos do que em Porto Alegre, a posição social mais elevada atribuída aos policiais contribui

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para reforçar sua auto-estima, pois colocam-se em posições de prestígio das quais não desfrutam nas grandes cidades. 4.3.4 Trabalho na rua e vida doméstica São muitas as referências dos policiais aos problemas na vida pessoal decorrentes do trabalho de rua, tais como desgaste provocado pelos horários irregulares, estresse emocional e falta de tempo para outras atividades. Um investigador relatou sua experiência na forma que segue. Vou te dizer uma coisa agora. Teve uma época em que eu trabalhei tanto nessa parte assim de frente, que eu via tanta gente morta, tanta coisa, que quando eu chegava na delegacia eu sentia uma coceira nas mãos, assim, tinha vontade de quebrar a máquina e jogar nas pessoas que chegavam, de tão estressado. Isso aí é comum acontecer. Os caras ficam muito sobrecarregados e eles descarregam de diversas formas. Aí que eu fiz? Logo que deu para sair fora um pouco disso eu saí. Saí fora, porque realmente eu estava muito estressado. (Entrevista de pesquisa com investigador).

Outro entrevistado, um inspetor que passou pelo mesmo tipo de situação, destacou a diferença entre o início de sua carreira e os anos seguintes, quando mudanças na vida pessoal passaram a exigir mais tempo disponível. O desgaste da investigação é que, pelo menos no meu caso, a gente é novo, tu não tem família, tu não tem responsabilidades com ninguém, então tu tem todo o tempo do mundo para te dedicar à tua profissão, mas à medida em que tu vai formando uma família, tendo outros objetivos paralelos... [...] Então, a linha de frente não te possibilita isso, porque tu está sempre à disposição. Diferente de uma atividade burocrática que tu tenha numa delegacia, onde tu tem o teu horário específico, e dentro daquele horário tu te programa para exercer outra atividade ou procurar outros objetivos em outro horário. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Além do aspecto da carga horária do trabalho, a rua também é vista por alguns policiais como o lugar da vida desregrada, do envolvimento com prostitutas, como relata um inspetor nos termos a seguir. Acho que o pessoal que está na linha de frente está mais vulnerável a isso, e se envolve mais, precisa de estar lá no barzinho,

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na noite, na boate, na danceteria, contato com muita gente diferente... Eu acho que o pessoal que trabalha na linha de frente se envolve mais, realmente. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

O mesmo inspetor acima citado relatou que pediu à namorada que o acompanhasse em sua primeira lotação, em parte devido ao tipo de vida que poderia adotar se continuasse solteiro. Levei, casei, disse ó, vem prá cá porque... senão ia cair num mundão lá, de festa e zoeira. Solteiro, ia ficar complicado. O que eu ia te dizer é que eu adotei, a partir da minha vida em [cidade X], seis anos que eu estive lá e começaram a surgir os conflitos familiares em relação ao trabalho, casa, o trabalho começou a afetar de alguma forma o relacionamento familiar, e eu vim embora, então adotei aquilo como experiência e dividi a minha vida assim: o meu trabalho é o meu trabalho, a minha casa é minha casa. Então dificilmente eu sequer comento algum problema funcional em casa. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Nessa concepção, não há espaço para policiais mulheres trabalhando na rua, pois a freqüência aos mesmos lugares que profissionais do sexo seria um encontro impensável entre dois mundos, o das mulheres "honestas" e das "não-honestas". Mesmo entre os policiais que não compartilham dessa visão sobre o mundo da rua como sinônimo de desregramento, o tema da separação entre casa e trabalho é recorrente nas conversas informais e nas entrevistas. O hábito de não comentar assuntos do trabalho em casa tem origem também na necessidade de manter o sigilo, pois há o risco de que os familiares, inadvertidamente, divulguem informações sobre investigações em curso. 4.4 O que a polícia deve fazer? Os policiais têm várias idéias sobre como deveria ser o seu trabalho. Há questões muito gerais, como a necessidade de melhores salários e melhores condições de trabalho, que não são específicas da polícia, comuns aos servidores

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estaduais e até mesmo ao conjunto dos trabalhadores. Há outros pontos, entretanto, que indicam os modelos ideais de atuação policial. Uma referência constante entre os policiais entrevistados é a necessidade de uma atitude de prontidão para o trabalho. Em várias ocasiões apresentou-se o agente ideal como aquele que trabalha em qualquer função, que está sempre disposto a aprender, como colocam dois inspetores nos trechos transcritos a seguir. Se tu vai ser policial, tu tem que saber tudo da função policial, e não simplesmente entrar e dizer: “Eu não sei bater ocorrência.” Como, não sabe bater ocorrência? [...] Já trabalhei em várias funções, nunca me neguei a nada, e já me aconteceu várias vezes de pegarem, “olha, tu vai fazer tal coisa”. Nunca fiz isso. Mas eu vou estar me negando? Está escrito lá no meu regulamento que aquilo ali é minha função, o que eu vou dizer? Eu trabalho em qualquer lugar da polícia, qualquer lugar. Se me tirarem daqui agora e me mandarem lá na Finanças, por exemplo, que eu não sei nada de finanças, eu não vou me negar. Vou sentar lá, vou perguntar para um como é isso, como é aquilo, e vou fazer, e talvez até melhor que outros. Ou melhor ou pior, mas eu vou fazer, não vou me negar a fazer. [...] Quando tu faz um concurso, está escrito na descrição de inspetor de polícia: tal, tal, tal, tal. Escrivão de polícia: tal, tal, tal. Então não tem como tu te negar a fazer uma coisa dentro da função, a menos que seja uma coisa fora da tua função, uma coisa absurda. Mas se está dentro da tua função... Eu digo que o cara não poderia não só se negar, mas não poderia nem dizer “eu não sei fazer.” Tu pode dizer “eu nunca fiz”. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

O entrevistado citado a seguir, assim como o anteriormente citado, ingressou na atividade policial com a escolaridade mínima exigida na época (equivalente ao Ensino Médio), adquirindo posteriormente o nível Superior. Desde que eu entrei para a Polícia, eu trabalhei com todas as áreas. Desde plantão, secretaria foi a última área que eu trabalhei, mas trabalhei. [...] Plantão, investigação, cartório, divisão de habilitação, trabalhei em todos esses locais. Um cartório de acidentes de trânsito, onde se faziam inquéritos e processos, inclusive no tempo do processo eu trabalhei, o processo iniciava na delegacia, [...] trabalhei com isso também. Então passei assim, posso até dizer que acho que passei por todos lugares da Polícia Civil. [...] Dentro da necessidade de serviço, foi uma opção minha em passar por todas as áreas, eu acho que a gente deve somar conhecimentos, talvez isso é que tenha me aberto as portas para muitas outras coisas. Então, nunca tive problemas de ter, como a gente diz, tem emprego em todo lugar. Vários convites eu tive, pelo conhecimento.

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[...] Eu atuo tanto na linha de frente quanto no cartório, quanto no mais burocrático que tiver. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Tal capacidade de atuar em diversas funções indica a importância atribuída à atitude, a disposição para cumprir ordens e aprender novos procedimentos, para os quais o único pré-requisito é a boa vontade. Outro aspecto ligado ao modelo de atuação policial ideal é a crítica à exigência de nível superior para os agentes, manifestada tanto nas entrevistas como também em conversas informais. Os grupos que aparentam maior discordância em relação a tal exigência são os agentes com escolaridade de nível médio e uma parte dos delegados. Os agentes recrutados já sob esta regra, bem como aqueles que obtiveram a titulação posteriormente ao ingresso na carreira, em geral manifestaramse muito brevemente sobre o tema. Dois escrivães, um homem e uma mulher, ambos bacharéis em Direito, foram os únicos entrevistados a expressar sua decepção por estarem utilizando muito pouco seus conhecimentos jurídicos, pois o desempenho de suas atribuições requeria apenas um conhecimento que consideravam básico. Os dois continuavam a prestar concursos para outras carreiras na área jurídica, uma evidência de que consideram sua posição atual inferior à que seu capital escolar lhes possibilita. Um exemplo do tipo de comentário feito pelos policiais que dispõem de baixo capital escolar é o que se transcreve a seguir, obtido em entrevista com um investigador. Eu não vejo vantagem nenhuma no nível superior, vou ser muito franco para ti! Nenhuma vantagem! Pelo contrário, pelo contrário, eu acho que o nível secundário, nível técnico, de primeiro grau, saía o pessoal... Porque não é tanto a questão cultural, veja bem, a questão cultural é uma coisa, o problema é a questão técnica e emocional. O pessoal que está no morro está acostumado a uma vida dura, o pessoal que está na periferia está acostumado a uma vida dura, a uma vida de batalha, de luta. Ele entra aqui, se o cara tem uma boa estrutura, ele entra, ele vai dar conta, e te digo mais, no passado teve grandes policiais, com nível primário, com nível

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secundário, mas foram grandes, grandes, grandes policiais! Eu trabalhei com muitos. [...] O cara vai para uma faculdade... É diferente de eu estar na Polícia, se entrar com nível secundário na Polícia e for fazer alguma coisa dentro da Polícia. Eu estou dentro da minha profissão, eu tenho a minha profissão e vou fazer alguma coisa para acrescentar na minha profissão. Agora, eu entro aqui com uma profissão já, escolhida... Desenvolver isso é outra coisa bem diferente. O cara entra com outras idéias, com outra visão, e ele vai demorar muito a assimilar a Polícia. (Entrevista de pesquisa com investigador).

Seu modelo ideal é de uma época passada, quando o novo policial tinha como objetivo “pegar o revólver, a carteira e ir para rua”, ao contrário do que aconteceria atualmente: O pessoal queria era investigação, queria era fazer serviço de polícia! Era a coisa mais engraçada que tinha, isso, é coisa que a gente nota visivelmente a diferença daquela época para essa época. O pessoal entrava assim, olha, “eu quero ser polícia!” A coisa que ele mais queria era pegar o revólver, a carteira e ir para rua! Hoje tu não vê isso. [...] Eu não vejo mais, como esse pessoal que entrou comigo e até eu mesmo, o cara se doar, ir à luta. [...] O cara que entrava aqui, ele entrava e gostava ou entrava e ia embora! Aí ele ia entrar num ritmo, e o ritmo dos outros era um ritmo forte, e o cara entrava no ritmo! E se gostava ele ia em frente. Isso é uma coisa que está assim dentro de cada um, está na pele, não adianta. (Entrevista de pesquisa com investigador).

Na visão do entrevistado, apresenta-se uma contradição entre o policial antigo, acostumado a dificuldades e envolvendo-se profundamente com o trabalho, e o policial de hoje, portador de maiores recursos econômicos e escolares, que não deseja “fazer trabalho de polícia”, encarado como sinônimo de “pegar uma arma e ir para a rua”. Não por coincidência, entre os policiais atuais há um grande número de mulheres. Assim, observa-se que a oposição entre o policial do passado e o atual é também uma oposição entre uma imagem idealmente masculina da atividade, caracterizada pela força, pelo gosto pelo risco, pela rua, contrapondo-se a outra imagem, onde aparecem os componentes como o maior capital escolar, a posição social mais elevada e a valorização da atividade de cartório, ligada mais ao

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conhecimento jurídico do que ao uso da arma. Se a primeira era reservada aos homens, a segunda está aberta a homens e mulheres. A formação escolar de nível superior, apesar de mais comum do que há algumas décadas, ainda abre outras possibilidades de emprego, e o trabalho na Polícia Civil não é mais encarado como algo definitivo. Tendo a possibilidade de outras escolhas, este agente mais qualificado só permanecerá na instituição enquanto estiver satisfeito e/ou enquanto não encontrar outra colocação. Considerando os salários relativamente baixos e os riscos da atividade, estas pessoas não valorizam o trabalho policial da mesma forma que os agentes com menos capital, para os quais a posição atual é uma das mais elevadas às quais poderiam aspirar. O fato de procurarem outras alternativas fora da Polícia é criticado por agentes e delegados, quase sempre fazendo referência a termos como “trampolim” ou “escada”, como nas falas de uma delegada e de um escrivão, transcritas a seguir. Porque muitas vezes a gente percebe que pessoas que entraram agora, a partir dessa última formação de agentes com nível superior, estão se utilizando da polícia apenas como um trampolim para seguir outras carreiras.[...] E daí não há aquela dedicação de pessoas que entravam na polícia porque queriam exercer a atividade policial. (Entrevista de pesquisa com delegada).

O escrivão citado a seguir falava a respeito de uma moça que conhecia e que havia ingressado recentemente na Polícia Civil, constituindo-se em exemplo de uma situação que ele criticava. O próprio escrivão é também bacharel em Direito, mas afirma que só deixaria de ser escrivão para ser delegado ou para seguir outra carreira policial, como na Polícia Federal. Ela não entra por amor à profissão. Ela é formada em Direito, ela chegou a advogar num período, só que o mercado está muito difícil, então advogando assim, não tendo um escritório fixo e não podendo te dedicar inteiramente a esse tipo de coisa, a clientela é fraca, é uma série de fatores. Então ela viu a polícia como opção

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para poder financiar estudos para outras atividades, ela vai tentar fazer para Juiz de Direito ou alguma coisa correlata. [...] A maioria dos policiais que entram hoje com curso superior entram visualizando a polícia como um degrau. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

Outra dimensão do ideal de trabalho policial é melhorar a imagem da instituição. Uma delegada entrevistada reforçou a idéia de dar respostas à população como uma forma de melhorar essa imagem: Dar atenção a cada caso, nunca deixar a vítima achando que a polícia não fez nada, porque na verdade a gente fica um bom tempo investigando um fato e não se consegue chegar à autoria. Só que a vítima acha que a polícia não fez nada, então a gente fazia mala direta, mandava cartinha para as vítimas, ou chamava até a delegacia para explicar todos os passos, e isso satisfazia a população, porque eles viam que a gente trabalhava. (Entrevista de pesquisa com delegada).

De uma forma que não é incompatível com essa, mas reforça outro aspecto do trabalho, um delegado entrevistado destaca a questão do controle e do planejamento das ações policiais, como se observa no trecho a seguir. Planejamento operacional: nenhuma equipe hoje sai para a rua, não deve sair para a rua, sem que ela tenha uma ordem de serviço. Vamos supor, numa agenda diária, ele tem cinco ou seis ordens de serviço que ele vai cumprir. Então não sai a bater pneu por aí, desorientado. Tem um coordenador, tem um delegado que assiste, e acompanha cada investigação. Isso dá confiança ao trabalho, dá qualidade ao trabalho, e dá segurança ao agente. O agente não vai fazer um contato sem que o delegado saiba. O informante, aquele que se chamava “o meu informante”, “o meu preso”, isso não existe mais hoje. O informante é da polícia, o preso é da polícia, não se discute isso. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Dentro da idéia de trabalho mais qualificado há também um dos pontos mais importantes em todas as referências ao que faltaria para a Polícia: a necessidade de treinamento dirigido às atividades especificamente policiais. Para poderem construir uma idéia de si mesmos como trabalhadores qualificados, o acesso ao ensino superior não é suficiente, sendo importante o conhecimento específico das técnicas policiais. Um inspetor descreve seu “sonho” em relação a isso, transcrito a seguir.

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Meu pensamento é de que a Academia de Polícia deveria ser um local tipo uma universidade, onde o policial chegasse para fazer um treinamento e ele tivesse toda a estrutura, tivesse uma biblioteca enorme, tivesse um local de treinamento, uma pista atlética... É um sonho... O cara chega aqui, “olha, faz um ano que eu não dou tiro”. Então passa ali no estande de tiro, fala ali com o Fulano que é o responsável, o cara vai lá, dá uma série de tiros. Ou então, “faz tempo que eu não dou tiro, estou saindo de uma função burocrática e estou indo para uma delegacia, e eu gostaria de me reciclar”. Tudo bem, tem um curso agora que inicia tal dia, então tu vai fazer Educação Física, defesa pessoal, vai fazer a parte de armamento e tiro, vai fazer a parte do POP [Prática de Operações Policiais], e vai fazer uma parte toda de legislação sobre prática cartorária e prática investigativa, e mesmo nesse meio tempo tu vai entrar na função da delegacia e começar a trabalhar. É o ideal. E aí teria um local de planejamento, com pessoas fazendo projetos a todo instante, e uma DEN [Divisão de Ensino] executando todos os projetos, com vários cursos, quinhentas salas de aula para ter cursos para Polícia Civil, para Brigada, para SUSEPE, para Polícia Federal, sei eu, para quem viesse. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Mesmo que não tenham chegado a uma descrição tão detalhada como a do inspetor citado acima, todos os policiais ouvidos, tanto em entrevistas como em conversas, referiram-se em algum momento à necessidade de qualificação. Tanto agentes quanto delegados estão em uma atividade que requer conhecimentos tão diversos como Direito Penal, Direito Processual Penal, defesa pessoal, uso da arma de fogo, técnicas de investigação, Sociologia, Psicologia e primeiros socorros, além de uma boa condição física. Tudo isso requer a prática constante de exercícios e a freqüente atualização de conhecimentos, o que normalmente só ocorre por iniciativa do próprio policial, sem apoio da instituição. O nível salarial dos agentes é inferior ao de quase todos os cargos do Poder Executivo com o mesmo nível de exigência de escolaridade, e os delegados têm vencimentos inferiores aos das demais carreiras jurídicas públicas. Assim, a permanência na atividade policial, especialmente para os indivíduos que se preocupam com seus aspectos éticos e com a qualificação profissional, torna-se uma luta constante pela manutenção de tais padrões. As oposições referidas nesta seção, destacadas como eixos em torno dos quais se organizam classificações entre os policiais civis do Rio Grande do Sul,

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relacionam-se à luta pela definição do “verdadeiro trabalho policial”, bem como do “verdadeiro policial”. Trata-se de uma luta pelo poder simbólico, ou seja, pela capacidade de legitimar, impondo como superior aos demais, um tipo de atividade e um perfil de policial habilitado a realizá-la. Observa-se que a definição do “verdadeiro trabalho policial” não é unívoca, existindo manifestações diferentes a esse respeito. Muitos policiais, homens e mulheres, avaliam que a elaboração de inquéritos policiais cujas conclusões sejam aceitas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, depende muito mais do conhecimento jurídico e do respeito aos procedimentos legais do que de ações espetaculares e arriscadas, que muitas vezes não resultam na coleta de provas concretas. Para esses policiais, o “verdadeiro trabalho” é independente do instrumento, ou seja, usa-se a força quando necessário, sem considerar as atividades de caráter apenas intelectual como menores. Por outro lado, os policiais cujos recursos são mais ligados ao corpo (especialmente a força física), cuja noção de masculinidade inclui mais elementos de agressividade, tendem a considerar o trabalho feito na rua como o “verdadeiro” trabalho policial. Observouse durante a pesquisa o recurso a termos de ordem biológica, como “adrenalina” ou “testosterona”, para referir este tipo de atividade e os policiais que gostam de executá-las: “É uma coisa de testosterona”, ou “Fulano é muito bom, é um cara adrenalina”. A disputa entre os policiais civis, entretanto, não se dá em um espaço isolado, sendo permeada pelas demais disputas que ocorrem ao mesmo tempo no campo de poder político mais amplo. As determinações do Poder Executivo são especialmente importantes, manifestando-se através da escolha dos ocupantes de funções como as de titular da Secretaria da Justiça e da Segurança e da Chefia de Polícia e do

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estabelecimento da linha de atuação mais geral que se deseja imprimir ao serviço público estadual. Adorno (2002) aponta as dificuldades, na situação atual do Brasil, para que se definam tais linhas de atuação para as polícias. A partir da baixa eficiência das polícias militares e civis em relação à prevenção e à investigação dos delitos, bem como do segmento judicial em relação à punição dos agressores, esse autor observa um estímulo à adoção de soluções privadas para os conflitos, como os linchamentos e execuções. Paradoxalmente, parte dos cidadãos – especialmente procedentes de setores conservadores das classes médias e altas como também de segmentos das classes trabalhadoras – reage a estes problemas recusando políticas públicas identificadas com a proteção dos direitos humanos. Em contrapartida, reclama por mais e maior punição, mesmo que, para garanti-la, seja necessário conferir maior liberdade de ação às agências e aos agentes encarregados da manutenção da ordem pública, independentemente de constrangimentos legais. Não sem razão, vimos assistindo nas duas últimas décadas manifestações coletivas de obsessivo desejo punitivo que contemplam punição sem julgamento, pena de morte, violência institucional, leis draconianas de controle da violência e do crime. Em outras palavras, em nome da lei e da ordem, propõem-se justamente controle social carente de legalidade. (Adorno, 2002, p. 29).

O maior desafio para a construção de um modelo de atuação policial, considerando as dificuldades acima apontadas, é obter aprovação, nas discussões que ocorrem nas diversas arenas da esfera pública, à idéia de que eficiência e respeito aos direitos humanos não são incompatíveis. Ao contrário, uma atuação policial que leve à elucidação de delitos e à captura dos responsáveis através de procedimentos violentos e abusivos está, ao mesmo tempo, contribuindo para o estímulo à criminalidade, na medida em que reforça, frente à população, a valorização dos procedimentos ilícitos. Ao usar a força de maneira adequada, evidenciam-se os limites legais para todos os cidadãos, democraticamente.

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5 O perfil dos policiais civis do Rio Grande do Sul O Estado do Rio Grande do Sul contava, em março de 2004, com um total de 177.397 matrículas de servidores públicos nos órgãos da administração direta, incluindo-se os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário (RIO GRANDE DO SUL, 2004b, p. 7). Cada matrícula corresponde a um cargo, mas não necessariamente a um servidor: para os cargos com carga horária de vinte horas semanais, o mesmo indivíduo pode ter duas ou até três matrículas, o que ocorre especialmente entre os professores. Para que se tenha uma idéia do nível salarial dos servidores do Estado, apresentam-se a seguir dados divulgados pelo estudo acima referido da Secretaria da Fazenda (RIO GRANDE DO SUL, 2004b). Na Tabela 15 listam-se diversas entidades da administração pública, com o número de matrículas e o total gasto em remuneração bruta, excluindo-se encargos, diárias, ajudas de custo, décimo terceiro salário e folhas complementares. A partir destes dados, calculou-se a média salarial para cada entidade listada. Tabela 15 – Número de matrículas de servidores, totais e médias das remunerações mensais por órgãos selecionados do Governo do Estado do Rio Grande do Sul – 2004 Órgão

Total do Estado Secretaria da Educação Brigada Militar Secretaria Saúde Secretaria da Justiça e da Segurança Secretaria da Administração Assembléia Legislativa Secretaria da Fazenda Procuradoria Geral Poder Judiciário Tribunal de Contas Defensoria Pública Ministério Público

Matrículas

Valor (R$1,00)

Média (R$)

177.397 113.500 25.658 6.210 10.206

265.363.928 96.468.290 34.449.461 9.358.043 22.025.502

1.495,88 849,94 1.342,64 1.506,93 2.158,09

2.024 1.583 1.917 517 7.808 860 303 2.064

4.586.305 7.629.026 10.116.116 2.868.014 45.576.329 5.791.403 2.164.925 16.664.350

2.265,96 4.819,35 5.277,06 5.547,42 5.837,13 6.734,19 7.144,97 8.073,81

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Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Fazenda. Boletim Informativo de Pessoal, n. 63, mar. 2004. Nota: A Brigada Militar faz parte da Secretaria da Justiça e da Segurança, embora conste em separado. As médias salariais propiciam uma visualização a respeito dos níveis mais baixos dos proventos dos servidores da educação, da saúde e da segurança pública, se comparados aos recebidos pelos servidores do Ministério Público, Tribunal de Contas, Defensoria Pública, Assembléia Legislativa, Procuradoria Geral e Poder Judiciário. Deve-se, no entanto, considerar que a média pode estar encobrindo grandes diferenças, pois incluem-se todos os níveis hierárquicos em cada entidade considerada. Importante aspecto a ser considerado é a crescente terceirização dos serviços de limpeza e segurança nos órgãos públicos, o que tem diminuído o número de servidores com baixa qualificação e, portanto, menores ganhos. Para que se possa ter uma idéia mais aproximada sobre o significado dessas médias, no que se refere ao âmbito da Polícia Civil, apresenta-se a seguir, na Tabela 16, a distribuição dos servidores do Poder Executivo em faixas de remuneração mensal. Tabela 16 – Distribuição das matrículas por faixas de remuneração mensal bruta – Rio Grande do Sul, Poder Executivo, administração direta – janeiro de 2004 Faixas de remuneração (R$)

%

Até 600,00 28,74 600,01 a 1.200,00 48,91 1.200,01 a 2.400,00 16,45 2.400,01 a 4.800,00 4,45 4.800,01 a 7.000,00 0,67 Mais de 7.000,00 0,78 Total 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Fazenda. Boletim Informativo de Pessoal, n. 63, mar. 2004. Pode-se observar que a maioria desses servidores estaduais (77,65%) recebe uma remuneração bruta de até R$1.200,00, evidenciando assim a distância entre eles e alguns segmentos com melhor remuneração, dos quais se destacam as áreas

198

jurídicas (Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradoria Geral e Poder Judiciário) e o Poder Legislativo. Para que se possa ter uma idéia das diferenças entre as remunerações percebidas pelos servidores dos diversos poderes do Estado do Rio Grande do Sul, apresentam-se na Tabela 17, a seguir, dados constantes dos editais mais recentes de abertura de concurso para diversos cargos. Todos eles estabelecem uma carga horária de 40 horas semanais. Tabela 17 – Comparação entre exigência de escolaridade e remuneração de cargos selecionados - Rio Grande do Sul - Poder Executivo, Poder Judiciário e Ministério Público - 1998/2005 Órgão

Nº edital Cargo

Escolaridade

Brigada Militar Tribunal de Justiça

01/2005 Soldado 17/2005 Auxiliar de serviço

Ministério Público

185/2003 Motorista

Susepe

01/2004 Monitor penitenciário: Médico psiquiatra

Polícia Civil Polícia Civil Brigada Militar

001/2005 Escrivão 002/2005 Inspetor 02/2002 Capitão

Ministério Público

211/2001 Secretário de diligências 20/2004 Arquivista

Ensino médio 4a série do Ensino fundamental Ensino fundamental Superior (Medicina) e registro de especialidade Superior Superior Superior (Direito) Ensino médio

Assembléia Legislativa Ministério Público

465/2002 Biólogo

Polícia Civil 003/2002 Procuradoria Geral do sem nº Estado (2005) Assembléia 21/2004 Legislativa Tribunal de Contas 484/1998

Delegado Procurador do Estado Procurador Adjunto de Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas

Superior (Arquivologia) Superior (Biologia) Superior Superior (Direito) Superior (Direito) Superior (Direito)

Salário (R$)

661,39 994,71

1.113,67 1.204,44

1.247,42 1.247,42 1.882,04 (1) 2.327,01 2.544,24 3.891,53 4.800,00 5.484,71 6.137,31 6.262,59

199

Tribunal de Justiça

01/2003 Juiz de Direito Superior 7.993,82 substituto (Direito) Fonte: FAURGS; Tribunal de Justiça do Estado Rio Grande do Sul; Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul; Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos. Nota: (1) Exigência de dedicação exclusiva. O cargo de auxiliar de serviço do Tribunal de Justiça, que tem como

atribuições “conservar a limpeza e a boa ordem das dependências do Tribunal de Justiça, promover a circulação interna de papéis e prestar serviços de copa” (RIO GRANDE DO SUL, 2005, p. 1), exigindo escolaridade de Ensino Fundamental incompleto, tem remuneração superior à do cargo de soldado da Brigada Militar, com exigência de nível médio de escolaridade e exposição a risco de vida. Já o cargo de motorista da Procuradoria Geral de Justiça (Ministério Público), com exigência de Ensino Fundamental, apresenta remuneração quase no mesmo nível de cargos como o de médico psiquiatra da Susepe (que exige registro de especialidade junto ao Conselho Regional de Medicina), escrivão e inspetor de polícia. Em termos gerais, observa-se que pertencem ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo os cargos com as maiores remunerações, o que reflete a posição relativamente mais elevada destes órgãos, no espaço de distribuição de poder, em relação à área da segurança pública. Apresentam-se a seguir informações acerca do número de policiais em cada cargo e classe, bem como suas características em termos de gênero, período de ingresso na Polícia Civil e trajetória ocupacional anterior, com base em dados fornecidos pelo Serviço de Cadastro e Assentamento do Departamento de Administração Policial da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, apresentando a situação em 24 de novembro de 2004. Esses dados são os mesmos do Almanaque da Polícia Civil, publicação anual onde constam, separados por cargo

200

e classe, os nomes, datas de nascimento e o tempo de serviço de cada servidor do quadro policial.72 Apresenta-se na Tabela 18 a distribuição dos policiais civis por cargo, classe e sexo, com vistas a permitir uma visão geral da distribuição deste conjunto de servidores públicos. Tabela 18 – Número de policiais civis do Rio Grande do Sul por cargo, classe e sexo – 2004. Cargo

%

Total por classe

1a 2a 3a 4a

25 39 16 1 81

52,08 26,17 12,12 1,72 20,93

23 110 116 57 306

47,92 73,83 87,88 98,28 79,07

48 149 132 58 387

Comissário

-

20

6,64

281

93,36

301

Escrivão

1a 2a 3a 4a

308 267 173 28 776

60,75 32,01 32,52 10,18 36,13

199 567 359 247 1.372

39,25 67,99 67,48 89,82 63,87

507 834 532 275 2.148

1a 2a 3a 4a

96 162 101 39 398

31,37 16,22 15,86 12,04 17,56

210 837 536 285 1.868

68,63 83,78 84,14 87,96 82,44

306 999 637 324 2.266

6a 7a

43 25,00 58 13,55 101 16,83

129 370 499

75,00 86,45 83,17

172 428 600

Delegado

Classe

Sexo Feminino Masculino Total % Total

Total delegado

Total escrivão Inspetor

Total inspetor Investigador

Total investigador TOTAL 1.376 24,13 4.326 75,87 5.702 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Departamento de Administração Policial. Divisão de Cadastro e Assentamento. Situação em 24 nov. 2004. Cálculos elaborados pela autora.

O tempo de serviço é contado em dias. Transcrevem-se os dias de serviço segundo cinco critérios: dias na classe, no cargo,na Polícia Civil, na Secretaria da Justiça e da Segurança e no Estado do Rio Grande do Sul. A mesma fonte foi utilizada para o estudo das promoções, mais adiante neste mesmo capítulo.

72

201

Observa-se na tabela que a proporção de homens aumenta à medida em que aumenta a ordem da classe.73 O cargo de delegado é aquele em que as diferenças na composição de gênero mostram-se mais claras: na primeira classe há uma situação de equilíbrio, com ligeiro predomínio das mulheres; na segunda e terceira classes a proporção de homens aumenta, chegando-se à quarta classe com apenas uma delegada (correspondendo a 1,72% do total). A classe onde predominam as mulheres é a primeira do cargo de escrivão. A presença de proporção mais elevada de mulheres nas classes iniciais é reflexo da composição de gênero dos grupos admitidos através dos concursos mais recentes (nomeados entre 2000 e 2004). Importante fator que auxilia a explicar essas diferenças na composição de gênero em cada cargo e classe, atualmente, é o número pequeno de mulheres que ingressaram na instituição até os anos 1990. Para o cargo de delegado, apenas em 1987 foram aprovadas mulheres, sendo que uma delas é a delegada que atualmente está na quarta classe. Apresenta-se na Tabela 19 um quadro do efetivo policial em 2004, mostrando a distribuição dos indivíduos por ano de ingresso na Polícia Civil segundo o sexo, considerados todos os cargos. Tabela 19 – Distribuição dos policiais civis do Rio Grande do Sul segundo o período de ingresso na instituição, por sexo – 2004 Período de ingresso na Polícia Civil

1960 a 1969 1970 a 1979 1980 a 1985 1986 a 1990

Mulheres Total % do efetivo atual

Homens Total % do efetivo atual

Total Total %

Taxa de participação das mulheres nos períodos de ingresso (%)

-

-

31

0,72

31

0,54

0,00

27

1,96

765

17,68

792

13,89

3,41

25,59 1.299

22,78

14,78

7,52

26,57

192 114

13,95 1.107 8,29

315

7,28

429

73 O único cargo em que não há classes, que é o de comissário, corresponde ao que seria uma quinta classe para inspetores e escrivães, apresentando uma participação masculina superior à da quarta classe de cada um desses cargos.

202

Período de ingresso na Polícia Civil

Mulheres Total % do efetivo atual

Homens Total % do efetivo atual

Total Total %

Taxa de participação das mulheres nos períodos de ingresso (%)

1991 a 362 26,31 1.081 24,99 1.443 25,31 25,09 1995 1996 a 191 13,88 528 12,21 719 12,61 26,56 2000 2001 a 490 35,61 499 11,53 989 17,35 49,54 2004 Total 1.376 100,00 4.326 100,00 5.702 100,00 Fonte: POLÍCIA CIVIL. Departamento de Administração Policial. Serviço de Cadastro e Assentamento. Cálculos elaborados pela autora. Nota-se o aumento da participação feminina nos últimos concursos para ingresso na carreira policial, observando-se na coluna da direita que se alcançou uma situação de equilíbrio no último período. Considerando-se que havia uma taxa de ingresso feminino estabilizada em torno de 26% no período de 1986 a 2000, o período de 2001 a 2004 mostrou-se o mais importante para essa alteração. Em relação ao total de mulheres policiais, 75,80% delas ingressaram na instituição a partir de 1991, enquanto o número de homens que ingressou no mesmo período corresponde a 48,73% do total. Dessa forma, explica-se o número menor de mulheres nas classes finais de todos os cargos. Aspecto que chama a atenção é o número de servidores que abandona a função. Dos 239 escrivães nomeados em 2001, 30 (12,55%) já não estão na instituição; entre os inspetores nomeados no mesmo ano, o número chega a 50 (25,00%). Para os escrivães e inspetores nomeados em 1995 e 1996, os percentuais são de 10,72% e 7,83% para os nomeados em 1995 e de 11,56% e 8,56% para os nomeados em 1996, respectivamente (Serviço de Cadastro e Assentamento do Departamento de Administração Policial, 2004). Não há dados registrados sobre os

203

motivos que levaram estas pessoas a sair da Polícia Civil, mas as informações disponíveis74 indicam que obtiveram empregos melhor remunerados.75 Em relação à experiência anterior do efetivo atual, foram realizados dois tipos de cálculos a partir do tempo de serviço, registrado em dias: a) subtração dos dias de serviço no cargo atualmente ocupado dos dias de serviço na Polícia Civil; b) subtração dos dias de serviço na Polícia Civil dos dias de serviço na Secretaria da Segurança Pública. O resultado positivo, no primeiro caso indica que a pessoa ocupou outro cargo policial antes do atual, ou seja, fez um primeiro concurso para um cargo e posteriormente fez novo concurso público ou prova de habilitação (concurso interno) para outro(s) cargo(s). No segundo caso, o resultado positivo indica que a pessoa ocupou outro cargo na Secretaria da Segurança Pública (seja como policial militar, servidor penitenciário ou do Instituto Geral de Perícias) antes de ser policial civil. Os resultados são mostrados na Tabela 20. Tabela 20 – Proporção de policiais civis que ocuparam outro cargo na Polícia Civil ou nos órgãos vinculados à Secretaria da Segurança Pública antes do cargo atual – Rio Grande do Sul – 2004 Cargo policial anterior ao atual

Não M 81,48

H 52,94

Sim M 18,52

H 47,06

Cargo na SSP anterior ao atual

Não M H 98,77 95,42 100,00 96,09 96,26 79,08 98,24 79,09 99,01 93,79

Sim M 1,23 0,00 3,74 1,76 0,99

H Delegado 4,58 Comissário 3,91 Escrivão 95,75 93,22 4,25 6,78 20,92 Inspetor 94,97 89,72 5,03 10,28 20,93 Investigado 6,21 r Total 85,99 14,01 86,46 13,54 Fonte: POLÍCIA CIVIL. Departamento de Administração Policial. Divisão de Cadastro e Assentamento. Cálculos elaborados pela autora. Nota: O cálculo não pode ser feito para os comissários porque seu ingresso no cargo é feito por promoção, e não por concurso, e para os investigadores porque o cargo é hierarquicamente inferior aos demais, ou seja, só admitia ingresso de não-policiais. Informações obtidas através de contatos telefônicos realizados pela Divisão de Assessoramento Especial da ACADEPOL. O percentual mais elevado de afastamento entre os agentes das turmas com exigência de nível superior de escolaridade reforça a idéia referida em entrevistas por vários policiais, de que os agentes que ingressam nesta situação continuam procurando empregos com remuneração melhor, encarando o trabalho policial como algo temporário. 74 75

204

Em relação aos homens, observa-se que o grupo em que houve a maior proporção de ingresso na Polícia Civil em cargo diferente do atual é o dos delegados (47,06%), enquanto as delegadas vieram majoritariamente (81,48%) de fora da instituição. Mesmo assim, é o cargo com maior proporção de mulheres que ocuparam anteriormente outro cargo policial (18,52%), pois nos demais este número chega no máximo a 5,03% (no caso das inspetoras). Quanto à situação de haver ocupado outro cargo na área da segurança, a proporção mais elevada ocorre entre escrivães e inspetores homens (20,92% e 20,93%, respectivamente). Embora o cargo anterior, nesse caso, possa ter sido na Superintendência dos Serviços Penitenciários ou no Instituto Geral de Perícias, os dados obtidos nas sindicâncias de vida pregressa (a serem apresentados mais adiante, neste mesmo capítulo) indicam que esses policiais civis vieram da Brigada Militar, especialmente das patentes iniciais (soldado e cabo). No total, 13,54% dos policiais civis passaram anteriormente por outros órgãos da segurança pública, percentual semelhante ao dos

que

ingressaram

inicialmente

em

outros

cargos

da

Polícia

Civil.

Majoritariamente, portanto, os policiais civis do atual efetivo ingressaram diretamente nos cargos em que se encontram hoje. Considerando apenas os servidores nomeados nos anos de 1995 e 1996, (correspondendo à nomeação dos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor de 1994), observam-se percentuais elevados de aprovação de candidatos que ocupavam cargos na Secretaria da Justiça e da Segurança: 35,00% em 1995 e 39,52% em 1996.

205

5.1 Perfil sócio-demográfico do pessoal ingressante na Polícia Civil (19702004) O objetivo desta seção é estabelecer o perfil dos policiais civis, com base especialmente nos dados obtidos durante os cursos de formação. A partir das categorias de idade, sexo, escolaridade, situação de atividade e ocupação anterior, pode-se evidenciar um processo de mudança ao longo do período estudado. Além das alterações na legislação que regula o acesso aos cargos policiais, com a gradual elevação do nível de exigência, ocorreu também uma mudança nas características dos candidatos aprovados, como será discutido a seguir. 5.1.1 Explicação metodológica Diversas fontes foram utilizadas para a obtenção dos dados apresentados a seguir, sendo a primeira delas os documentos do Arquivo da Academia de Polícia Civil. A série documental mais importante foi a de sindicâncias de vida pregressa, do fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Outros documentos foram consultados, tais como editais de homologação de concursos, relatórios de cursos e de concursos, planos e relatórios anuais da Academia de Polícia Civil e de suas divisões e alguns requerimentos de matrícula. Todos os documentos disponíveis foram analisados. Mesmo assim, nem todos os concursos realizados estão contemplados, devido à eliminação de parte dessa documentação.76 Os requerimentos de matrícula foram utilizados como fonte de informação relativamente aos alunos dos cursos de formação de delegados dos anos de 1970 a 1973. Trata-se de uma ficha com duas páginas, contendo dados necessários à efetivação da matrícula, tais como os números dos documentos pessoais e a opção 76 Além dos problemas decorrentes de períodos em que a Academia de Polícia Civil não teve seu arquivo organizado, com extravio ou dano a alguns documentos, houve descartes autorizados pela Tabela de Temporalidade de Documentos. As sindicâncias de vida pregressa são eliminadas após um período de vinte anos da realização do concurso e, para os requerimentos de matrícula, o prazo é o do encerramento do curso. Os requerimentos aqui utilizados foram mantidos somente como exemplo do tipo de registro documental do período.

206

do aluno entre receber uma bolsa durante o curso ou manter o seu salário, no caso de ser funcionário público. As informações registradas são: nome, idade, escolaridade e profissão. Nesse período, todos os alunos dos cursos de formação de delegados eram do sexo masculino. As sindicâncias de vida pregressa dos candidatos aos cursos de formação correspondem a uma das etapas do processo seletivo, comum a todos os concursos, onde são verificadas informações sobre aspectos diversos da vida do candidato. Sempre há um questionário, cujos quesitos foram sendo alterados ao longo do tempo. Além disso, o candidato também deve apresentar alguns documentos (certidões negativas acerca de envolvimento em processos judiciais e protesto de títulos, entre outras), e a própria instituição policial produz outros (tais como consulta ao Sistema de Informações Policiais e correspondência às instituições de ensino para verificar a autenticidade dos diplomas escolares). Caso surja algo desabonatório, o candidato é chamado a dar explicações, sendo tudo registrado em documentos. As variáveis utilizadas para a presente pesquisa, com base nas sindicâncias, são: sexo, idade, escolaridade (nível de escolaridade e, no caso dos candidatos com nível superior, curso de graduação) e ocupação anterior. As sindicâncias mais recentes, a partir da década de 1990, são as mais extensas, com questionários mais detalhados, permitindo o registro de anotações como a informação acerca de ter parentes policiais ou de já trabalhar na Polícia como estagiário ou servidor administrativo. O questionário extenso permitiu que a resposta inicialmente dada ao quesito “profissão” fosse verificada em mais detalhe. Assim, observou-se que havia candidatos que se identificavam como estudantes, mas respondiam negativamente à questão “estuda atualmente?”. Em outros casos, a profissão indicada correspondia

207

ao curso de graduação concluído pelo candidato, mas sua ocupação efetiva (emprego ou atividade remunerada) era outra. As sindicâncias referentes aos concursos para inspetor e escrivão realizados em 1993, 1994 e 1999, e aos concursos para delegado realizados em 1997, 1998 e 2004 ofereceram maior detalhamento dos dados. As demais sindicâncias analisadas foram as dos concursos para inspetor e escrivão de 1975, 1978 e 1992 e para delegado, de 1977 e 1978. O número de sindicâncias é maior do que o número de alunos formados nos cursos, em alguns casos, porque corresponde ao total de aprovados nas fases anteriores: alguns foram reprovados devido a problemas surgidos como resultado da própria sindicância, outros foram excluídos nos exames psicotécnicos e outros ainda desistiram, antes ou durante o curso. Tabela 21 – Número de sindicâncias analisadas, por cargo e ano - Arquivo da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul Ano

Delegado

Inspetor

Escrivão

Inspetor e escrivão

1973 – – – 38 1975 – – – 215 1976 18 142 – – 1977 7 – – – 1978 24 – – 630 1979 17 – – – 1980 6 – – – 1981 14 – – – 1992 – – – 939 1993 – – – 715 1994 – – – 1.525 1997 25 – – – 1998 176 – – – 1999 – 257 452 – 2003 – 290 285 – 2004 53 – – – Total por cargo 340 689 737 4.062 Total geral 5.828 Nota: Alguns concursos foram realizados de forma conjunta para os cargos de inspetor e escrivão, sendo a opção realizada apenas ao final do curso de formação; outros concursos foram específicos para cada um dos cargos.

208

Outra fonte de informação foram os questionários produzidos pela Divisão de Assessoramento Especial (DAE) da própria Academia de Polícia Civil, e aplicados a todos os alunos dos cursos de formação de inspetores e escrivães realizados em 2003 e do curso de formação de delegados realizado em 2004. Para os agentes foram distribuídos 627 questionários, tendo sido respondidos 57877 (92% do total). Para os alunos do curso de formação de delegados foram distribuídos 53 questionários, sendo todos respondidos. Para a classificação das ocupações anteriores ao ingresso na Polícia, utilizouse como ponto de partida a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 2002), desenvolvida pelo Ministério do Trabalho e Emprego78. O objetivo de recorrer à CBO 2002 foi estabelecer um critério para agrupar as diversas ocupações citadas nos documentos pesquisados; se forem considerados os títulos das ocupações em sua forma original (ou seja, como aparecem nos documentos pesquisados), tem-se um alto grau de heterogeneidade, dificultando a análise. Assim, ocupações como escriturário, auxiliar de escritório, auxiliar de contabilidade, almoxarife, apontador, conferente, secretária, agente administrativo e auxiliar administrativo foram reunidas sob o título de “administrativos”. Os trabalhadores do setor público constituíram outra fonte de respostas heterogêneas, observando-se a ocorrência dos termos genéricos como "servidor", "funcionário público" ou "servidor estadual", e denominações mais específicas, como "professor estadual" ou "policial militar". Optou-se por destacar os cargos da área da segurança pública, sob as categorias (ainda genéricas, por

77 Destes questionários, três foram devolvidos depois que as informações já haviam sido tabuladas, e por isso não constam do banco de dados. Assim, todos os cálculos foram feitos tendo 575 como o número total de questionários. 78 Secretaria de Políticas Públicas de Emprego, Departamento de Emprego e Salário, Coordenação de Identificação e Registro Profissional, Divisão da Classificação Brasileira de Ocupações.

209

agregarem cargos diversos) de policial militar, policial civil e servidor penitenciário, esta última com participação significativa apenas em alguns concursos.79 5.1.2 Concursos para escrivão e inspetor de polícia Apresentam-se a seguir as informações relativas aos candidatos aprovados nos

concursos

para

escrivão

e

inspetor

de

polícia,

conforme

explicado

anteriormente. 5.1.2.1 Idade e sexo A média de idade dos candidatos aprovados nos concursos para inspetor e escrivão de polícia tem aumentado no período em estudo, acompanhando a elevação do nível de escolaridade exigido, conforme aponta a Tabela 22, a seguir. Tabela 22 – Médias de idade de inspetores e escrivães, por ano de concurso e sexo – Rio Grande do Sul, 1973/2003 Requisito de escolaridade

Cargo

Mulheres

Homens

Fundamental

Inspetor e escrivão 1973 28,07 24,64 Inspetor 1975 24,39 Escrivão 1975 24,72 Inspetor 1976 24,12 Inspetor e escrivão 1978 26,53 Médio Inspetor e escrivão 1992 27,65 27,31 Inspetor e escrivão 1993 28,17 28,15 Inspetor e escrivão 1994 28,56 28,18 Superior Escrivão 1999 29,45 31,41 Inspetor 1999 31,13 30,39 Escrivão 2003 30,47 30,92 Inspetor 2003 30,95 31,15 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Nota: Anos selecionados de acordo com a disponibilidade dos documentos para a pesquisa.

79 Ressalta-se que a noção de desemprego não corresponde aos conceitos, diferentes entre si, utilizados pelas instituições de pesquisa encarregadas do fornecimento regular de informação oficial com respeito a esse dado, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais (DIEESE). Trata-se aqui do termo usado pelos próprios candidatos ao responder aos questionários, indicando a existência de procura de uma ocupação, através do concurso, e a ausência de declaração de ocupação.

210

A proporção entre homens e mulheres apresentou ampla variação, com a ocorrência de alguns concursos em que todos os aprovados eram homens, na década de 1970 e, a partir de 1992, uma alteração no sentido do equilíbrio quanto a esse aspecto. Tabela 23 – Aprovados nos concursos da Academia de Polícia Civil, por sexo, segundo cargo e ano do concurso – Rio Grande do Sul, 1973/2003 Cargo

Mulheres

Homens

Inspetor e escrivão 1973 36,84 63,16 Inspetor e escrivão 1975 100 Inspetor e escrivão 1976 100 Inspetor e escrivão 1978 100 Inspetor e escrivão 1992 24,39 75,61 Inspetor e escrivão 1993 21,68 78,32 Inspetor e escrivão 1994 24,46 75,54 Escrivão 1999 64,38 35,62 Inspetor 1999 38,21 61,79 Escrivão 2003 61,40 38,60 Inspetor 2003 29,66 70,34 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Nota: Anos selecionados de acordo com a disponibilidade dos documentos para a pesquisa. Os dois últimos concursos mostram maioria feminina no cargo de escrivão de polícia. O cargo de escrivão atrai mais mulheres por oferecer a perspectiva de desempenho de tarefas administrativas ou nos cartórios das delegacias, com menor exposição ao risco das tarefas ligadas à investigação. Na realidade, os escrivães têm o mesmo treinamento que os inspetores no que se refere ao uso da força física e da arma de fogo, são igualmente obrigados a portar arma e podem desempenhar tarefas com risco de vida. Mesmo assim, aparentemente a imagem do cargo tem influência na opção de homens e mulheres. Existe uma idéia, entre os policiais, de que o perfil do cargo de escrivão é mais feminino, no sentido de exigir qualidades que as mulheres são estimuladas socialmente a desenvolver: dedicação, atenção a detalhes, boa comunicação. O perfil do cargo de inspetor, por sua vez, está

211

associado a qualidades tidas como masculinas: arrojo, coragem, capacidade de exercer autoridade. Essas diferenças voltarão ao centro da análise mais adiante, nesta tese. 5.1.2.2 Escolaridade Dos concursos para inspetor e escrivão contemplados no presente estudo, dados relativos à escolaridade estão disponíveis para os anos seguintes: 1975, 1976, 1993, 1994, 1999 e 2003. Esses dados são apresentados nas tabelas a seguir, de acordo com a exigência de escolaridade: em 1975 e 1976, o nível mínimo era o correspondente ao Ensino Fundamental; em 1993 e 1994, o Ensino Médio e, nos dois últimos, a exigência era o nível Superior (englobando qualquer curso de graduação). Em relação a 1975 e 1976, os dados relativos ao nível de escolaridade são apresentados na Tabela 24. Todos os candidatos aprovados eram do sexo masculino. Tabela 24 – Grau de escolaridade dos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil – Rio Grande do Sul – 1975-1976 1975 Total

%

1976 Total

%

Ensino Fundamental 128 59,53 116 81,69 Ensino Médio 78 36,28 26 18,31 Ensino Superior 2 0,93 0 0 Sem declaração 7 3,26 0 0 Total 215 100,00 142 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Nota: Anos selecionados de acordo com a disponibilidade dos documentos para a pesquisa. Para os concursos de 1993 e 1994, com exigência de escolaridade equivalente ao Ensino Médio, os números são apresentados na Tabela 25.

212

Tabela 25 – Grau de escolaridade dos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil, por sexo – Rio Grande do Sul – 1993-1994 1993 Mulheres

1994 Homens

Mulheres

Ensino Médio 73,55 92,14 Ensino Superior 25,81 7,68 Sem declaração 0,65 0,18 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida elaborados pela autora.

Homens

72,12 92,01 27,88 7,29 0,00 0,69 Fundo Divisão de pregressa. Cálculos

Na tabela acima, um dado que se destaca é o alto nível de escolaridade das mulheres, com percentuais de formação em curso superior de 25,81% em 1993 e 27,88% em 1994, muito acima da cifra observada para os homens (7,68% e 7,29%, respectivamente). Comparando-se com os dados da população em geral, pode-se dizer que o grau de escolaridade dessas mulheres policiais é de fato elevado, pois o Censo de 2000 apontava, para a população do Rio Grande do Sul com 25 anos ou mais de idade, um percentual de pessoas com nível Superior concluído de 6,02% para os homens e de 7,60 para as mulheres; o percentual relativo ao Ensino Médio concluído era de 15,97% para ambas as categorias de sexo (IBGE, 2003). O maior nível de escolaridade das mulheres em relação a seus colegas homens é considerado na bibliografia específica como um indicador da dificuldade das mulheres de encontrar empregos compatíveis com o seu grau de escolaridade, fazendo com que se candidatem a postos com menor nível de exigência. Para o concurso de 1994 não foi exigido o nível superior de escolaridade. Mesmo assim, conforme a Tabela 25, 27,88% das mulheres e 7,29% dos homens tinham nível superior completo. Na Tabela 26 podem-se observar os cursos mais freqüentes entre os candidatos. Tabela 26 – Distribuição dos candidatos a concurso para inspetor e escrivão da Polícia Civil que possuíam curso Superior, segundo os principais cursos de graduação, por sexo - Rio Grande do Sul, 1994 Curso

Mulheres (%)

Homens (%)

213

Direito Letras Educação Física Administração Pedagogia Ciências Contábeis História Ciências Estudos Sociais Economia Outros Total

27,88 21,15 5,77 5,77 5,77 4,81 4,81 4,81 3,85 0,96 14,42 100,00

45,74 2,13 10,64 4,26 1,06 7,45 3,19 0 2,13 4,26 19,14 100,00

Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Embora o curso de Direito apareça em primeiro lugar para ambos os sexos, há diferenças importantes entre as escolhas de homens e de mulheres. As mulheres com curso superior eram basicamente da área docente, pois entre os cursos mais freqüentes entre elas estavam os de Letras, Educação Física, História, Pedagogia, Estudos Sociais e Ciências (46,16% do total), todos voltados à atividade pedagógica. Já entre os homens, os cursos de Direito, Ciências Contábeis, Administração e Economia correspondiam a 61,71% dos candidatos, mostrando um perfil de trabalhadores da área administrativa e financeira. Essas tendências, entretanto, não eram seguidas por todos, havendo também uma proporção importante dos candidatos homens com graduação em Educação Física (10,64%), e mulheres graduadas em Administração e em Ciências Contábeis (em um total de 10,58%). Nos concursos realizados em 1999 e 2003, o nível de escolaridade exigido era o Superior, restringindo mais ainda o percentual de possíveis candidatos em relação à população geral. Apresentam-se na Tabela 27, a seguir, a distribuição dos aprovados nesses dois concursos, quanto aos cursos de graduação que realizaram.

214

Tabela 27 – Distribuição dos candidatos aprovados nos concursos para escrivão e inspetor da Polícia Civil, por curso de graduação e sexo - Rio Grande do Sul, 1999 e 2003 1999 Curso

Administraçã o Ciências Contábeis Direito Educação Física História Informática Letras Pedagogia Psicologia Economia Outros Total

2003

Inspetor M H

Escrivão M H

Inspetor M H

4,67

14,45

7,90

13,04

9,30

13,73

12,15

7,51

3,78

8,07

5,81

5,88

34,58 10,28

35,84 8,67

45,70 4,81

46,24 4,97

45,35 4,65

42,16 8,33

0 4,62 0 1,74 9,35 2,31 4,67 1,16 4,67 1,73 0 4,05 19,63 17,92 100,00 100,00

2,75 2,48 1,38 2,48 8,59 3,73 2,41 0,62 2,06 0,62 1,72 4,35 18,90 13,40 100,00 100,00

Escrivão M H

8,00 15,45 4,57

5,45

52,57 57,27 6,29 3,64

0 1,47 1,16 4,41 2,33 3,45 5,81 5,81 4,65 0 1,16 3,43 19,78 11,33 100,00 100,00

1,14 0,91 0,57 4,55 6,29 0 4,00 0 2,86 0 1,14 2,73 12,57 10,00 100,00 100,0 0 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Para situar esses dados em relação à população em geral, apresentam-se a

seguir informações relativas aos cursos de graduação com maior número de concluintes do Rio Grande do Sul em 1994 e em 1997. Tabela 28 – Concluintes de cursos de graduação, segundo os dez cursos com maior número de concluintes - Rio Grande do Sul, 1994 e 1997 1994 Número

Direito Administração Ciências Contábeis Pedagogia Engenharia Letras Medicina Comunicação Social Educação Física Psicologia Ciências Total

2.355 1.561 1.349 1.288 750 1.081 729 703 449 489 584 16.963

1997 %

13,88 9,20 7,95 7,59 4,42 6,37 4,30 4,14 2,65 2,88 3,44 100,00

Número

2.784 1.711 1.205 1.433 876 819 762 622 547 514 452 17.603

%

15,82 9,72 8,14 8,14 4,98 4,65 4,33 3,53 3,11 2,92 2,57 100,00

215

Fonte: BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Entre 1994 e 1997, os cursos de Direito, Administração, Ciências Contábeis, Pedagogia, Engenharia e Letras mantiveram-se nos primeiros lugares, respondendo por cerca da metade dos concluintes nos dois momentos observados (49,43% e 50,15%, respectivamente)80. Observando-se as duas tabelas, pode-se notar que a proporção de candidatos a escrivão e a inspetor, homens e mulheres, graduados em Direito, é elevada, variando entre 34,58% e 57,27%. Ainda em relação ao curso de Direito, nota-se um certo equilíbrio, dentro de cada cargo e ano, entre homens e mulheres, bem como o maior percentual de graduados em Direito entre os candidatos a escrivão. Os graduados em Administração constituem o segundo grupo, seguidos pelos graduados em Ciências Contábeis e Educação Física. Entre as mulheres, destacam-se os cursos de Letras e de Pedagogia. Comparando-se os dois concursos (1999 e 2003), observa-se o aumento da proporção de graduados em Direito, indicando uma especialização do processo de seleção, com ênfase maior nos conteúdos jurídicos. Os cursos de Direito, Administração, Ciências Contábeis e Educação Física aparecem entre os mais freqüentes no período analisado (1994 a 2003). Quanto aos dois primeiros, deve-se lembrar que são cursos com percentuais elevados de freqüência no conjunto dos cursos de graduação, conforme a Tabela 28. Além disso, as atividades de polícia judiciária exigem conhecimentos obtidos no curso de Direito. As proporções mais elevadas de graduados em Direito entre os aprovados para o cargo de escrivão são compatíveis com a idéia geral de que os escrivães desempenham suas funções basicamente nos cartórios das delegacias,

80 Nove cursos constam entre os 10 primeiros, segundo o número de concluintes, em 1994 e em 1997; o curso de Ciências, no entanto, está nesse grupo apenas em 1994, e o curso de Educação Física apenas em 1997.

216

preparando os inquéritos policiais, necessitando assim de maior conhecimento jurídico. Um outro aspecto relacionado ao curso de Direito é o fato de que a maioria dos candidatos também presta concurso para o cargo de delegado, sendo o cargo de inspetor ou escrivão uma segunda opção. Para o curso de Educação Física, a explicação está ligada às características comuns ao trabalho policial e à carreira de profissional da Educação Física: no que diz respeito à imagem, ambas as atividades envolvem dinamismo, capacidade física (força, resistência) e desempenho da função em contato com pessoas. Confirmando esta idéia, pode-se observar que o maior percentual de graduados em Educação Física encontra-se entre os candidatos ao cargo de inspetor, em tese mais afeito às atividades “na rua”, ou seja, longe da delegacia, expondo seus ocupantes a maior risco e exigindo deles habilidades físicas. 5.1.2.3 Ocupação anterior Em relação à ocupação anterior dos candidatos aprovados nos concursos da Polícia Civil, procedeu-se à agregação de algumas categorias, conforme explicitado anteriormente. Apresentam-se a seguir os dados relativos aos concursos realizados na década de 1970, sendo todos os aprovados do sexo masculino. Tabela 29 – Distribuição dos aprovados nos concursos para inspetor e escrivão da Polícia Civil segundo a classificação da ocupação e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1975, 1976 e 1978 Classificação da ocupação

1975

1976

1978

Administrativo Bancário Comerciário Estudante Militar (Exército e Aeronáutica) Policial militar Investigador de polícia Servidor estadual - diversos cargos Outras

8,84 9,30 9,30 14,42 7,91 6,98 0,93 3,72

11,27 4,23 15,49 6,34 5,63 6,15 0,00 4,22

4,79 2,74 7,88 9,59 3,42 15,07 20,89 9,23

29,30

31,88

23,79

217

Desempregado 9,30 14,79 2,60 Total 100,00 100,00 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Nota: Anos selecionados de acordo com a disponibilidade dos documentos para a pesquisa. É importante detalhar as ocupações classificadas como “outras”, embora apresentem um número menor de ocorrências. Aparecem muitas ocupações do grande grupo 7 da CBO, “trabalhadores da produção de bens e serviços industriais”, com baixa exigência de escolaridade. Podem ser citados: gráfico, industriário (sem especificação de função), mecânico, metalúrgico, estivador, forjador, pedreiro, eletricista, funileiro, montador, oleiro, operador de torno, paginador, vidraceiro, lixador de parquê, torneiro mecânico, eletrotécnico, marceneiro e serralheiro. Para os concursos realizados em 1992, 1993 e 1994, as informações estão transcritas na Tabela 30. Devido à heterogeneidade das respostas, apresentam-se apenas algumas ocupações, especialmente as ligadas à área da segurança pública ou que permitam uma comparação com os concursos posteriores, onde aparecem em maior proporção (particularmente, advogado e professor). Tabela 30 – Distribuição dos aprovados nos concursos para inspetor e escrivão da Polícia Civil segundo a classificação da ocupação anterior ao concurso – Rio Grande do Sul, 1992-1994 1992 1993 1994 Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens

Administrativo Advogado Comerciário Dona de casa Investigador de polícia Policial militar Professor Outras Total

15,72 2,62 6,55 7,86 8,30

5,77 0,85 6,20 0 14,37

18,71 0,65 8,39 6,45 10,97

8,57 1,07 7,86 0 13,57

19,33 4,02 9,65 12,87 5,36

5,29 0,78 6,16 0 6,42

1,75 7,42

20,70 1,83

3,23 2,58

21,96 1,43

5,90 7,77

40,54 1,74

49,78

50,28

49,02

45,54

35,10

39,07

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

218

Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Ainda no concurso de 1992 aparecem várias ocupações manuais, como as de gráfico (seis homens), mecânico (cinco homens), eletricista (quatro homens), industriário (sem especificação de ramo industrial, quatro homens), funileiro (dois homens), marceneiro (dois homens), pedreiro (dois homens), metalúrgico (um homem), oleiro (um homem), operador de torno (um homem), serralheiro (um homem) e vidraceiro (um homem). Por outro lado, há também indivíduos com escolaridade muito acima da exigida para a função, como é o caso de três engenheiros, uma arquiteta, uma enfermeira e um agrônomo. As ocupações anteriores dos homens e das mulheres apresentam perfis diferentes: os homens apresentam percentuais maiores de situação de ocupação anterior como policiais militares, investigadores de polícia e desempregados; as mulheres

distribuem-se

principalmente

entre

ocupações

administrativas,

comerciárias, estudantes, professoras, donas-de-casa e também desempregadas. O grupo de donas-de-casa desperta uma certa curiosidade: por que mulheres casadas, quase sempre com filhos, até então desempenhando um papel convencional na divisão sexual do trabalho, como responsáveis pela esfera doméstica, passariam a ter uma ocupação ligada ao uso da força, ao contato com a violência e com a criminalidade? Uma das explicações é a presença de policiais, tanto civis quanto militares, no grupo familiar: muitas delas têm maridos, pais ou irmãos policiais; em alguns casos, outras mulheres da família já são policiais. Isto aparece nos questionários que integram as sindicâncias, onde há uma pergunta sobre parentes ou amigos na Polícia Civil. Em uma organização de maioria masculina, a presença de um familiar policial funciona como uma proteção para a

219

mulher, um elo de ligação entre o mundo familiar, doméstico, e o mundo do trabalho. O familiar policial, seja homem ou mulher, proporciona contatos à mulher que ingressa, facilitando sua aceitação entre os colegas de profissão. Com o objetivo de identificar melhor o perfil dos indivíduos ingressantes na Polícia Civil como inspetores e escrivães, apresentam-se na Tabela 31 os dados relativos à sua escolaridade segundo as situações de ocupação anteriores de policial militar e de investigador de polícia. Tabela 31 – Distribuição dos aprovados para os cargos de inspetor e escrivão da Polícia Civil, segundo grau de escolaridade, ocupação anterior e sexo – Rio Grande do Sul, 1993-1994 Médio

Investigador

1993 Superior

Médio

M 58,82 41,18 H 90,79 9,21 Policial militar M 60,00 40,00 H 94,31 4,88 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida elaborados pela autora.

1994 Superior

65,00 35,00 82,43 17,57 86,37 13,64 96,36 2,78 Fundo Divisão de pregressa. Cálculos

Tendo em vista que, nos concursos de 1993 e 1994, a proporção dos candidatos que possuíam instrução de nível Superior era de 25,81% e 27,88% das mulheres, e de 7,68% e 7,29% dos homens, respectivamente, observam-se algumas variações conforme a situação de ocupação anterior. Os homens que trabalhavam anteriormente como policiais militares apresentam nível de escolaridade Superior em menor proporção do que o conjunto dos homens, sendo de 4,88% em 1993 e de 2,78% em 1994; as ex-policiais militares, com uma proporção de 40% de graduadas no Ensino Superior em 1993, apresentam em 1994, como seus colegas, uma proporção menor desta condição em relação ao conjunto das mulheres, com 13,64%. Os investigadores de polícia, ao contrário, tanto homens quanto mulheres,

220

possuem instrução Superior em níveis mais elevados do que o conjunto dos candidatos aprovados, considerando-se separadamente cada um dos sexos. A Tabela 32 traz os dados referentes ao concurso para escrivão e inspetor de polícia realizado em 1999. Tabela 32 – Distribuição dos candidatos aprovados no concurso para escrivão e inspetor da Polícia Civil, segundo o sexo, a classificação da ocupação anterior e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1999 Inspetor M

H

Escrivão M

H

Advogado 17,61 18,29 19,24 24,22 Professor 10,06 12,84 13,06 11,18 Servidor 9,43 12,06 8,93 5,59 público Administrativo 3,77 4,67 10,31 9,32 Policial militar 2,52 1,56 1,03 0,00 Outras 49,06 43,19 23,38 27,95 Desempregad 7,55 7,39 24,05 21,74 o Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Nesse concurso, as proporções de advogados e, em menor escala, professores, aparecem em níveis mais elevados, indicando uma alteração no perfil ocupacional dos novos policiais. Para o concurso realizado em 2003, os dados utilizados foram obtidos através do questionário aplicado pela DAE/ACADEPOL, e os resultados estão na Tabela 33. Tabela 33 – Distribuição dos alunos candidatos a inspetores e escrivães da Polícia Civil segundo o sexo, a classificação da ocupação e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 2003 Escrivão Inspetor M H M H Administrativo 8,00 4,55 8,14 5,39 Advogado 14,86 16,36 2,33 7,84 Policial militar 1,71 4,55 2,33 7,84 Professor 8,57 4,55 5,81 11,27 Servidor 0,57 3,64 5,81 2,45 penitenciário

221

Outras 24,00 31,80 33,72 35,80 Desempregado 42,29 34,55 41,86 29,41 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Academia de Polícia Civil. Divisão de Assessoramento Especial. Levantamento do perfil dos alunos dos cursos superiores de formação da Academia de Polícia: Relatório final do projeto de pesquisa. Outubro 2003a. Os desempregados, que na Tabela 33 aparecem em número elevado, são em geral indivíduos jovens e recém-formados, dedicando-se aos estudos dirigidos a concursos públicos, em geral da área jurídica. Como será visto adiante, este mesmo perfil também é detectado entre os candidatos aprovados nos concursos para o cargo de delegado de polícia. 5.1.3 Concursos para delegado de polícia Como o número de vagas para delegados é menor do que o de vagas para escrivães e inspetores81, os cursos de formação para o acesso a este cargo também envolvem menos alunos, o que em alguns casos dificulta as análises de caráter estatístico. 5.1.3.1 Idade e sexo Em relação à média de idade dos alunos dos cursos de formação de delegados, os dados estão transcritos na Tabela 34. Tabela 34 – Aprovados nos concursos para o cargo de delegado da Academia de Polícia Civil, por médias de idade, segundo ano de concurso e sexo - Rio Grande do Sul, 1970/2004 Ano do concurso

1970 1971 1972 1973/1 1973/2 1976 81

Idade Homens

Mulheres

27,86 26,54 27,71 30,57 28,21 30,89



Como pode ser observado na tabela 18, o número de delegados é inferior a 10% do efetivo total.

222

1977 33,28 1978 38,46 1979 35,00 1980 34,67 1981 38,57 1997 30,13 26,50 1998 31,01 28,72 2004 31,21 31,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série Sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Em relação à idade, observa-se uma elevação coincidindo com o início da exigência da graduação no curso de Direito, em 1976. A partir desse ano, houve um aumento gradual, mas a falta de informações para o intervalo entre 1982 e 1991 (último concurso antes de 1997) não permite confirmar uma tendência. Nos concursos a partir de 1997, já organizados pela FAURGS, o que se percebe é a média de idade inicialmente mais baixa entre as mulheres e uma tendência geral de elevação desse número. Até 1987 não havia mulheres delegadas, pois embora as mulheres participassem dos concursos, não obtinham aprovação. No concurso realizado em 198682, três mulheres foram aprovadas, sendo que duas já eram escrivãs, enquanto a terceira não tinha experiência de trabalho. Esse foi o último ano em que ocorreram duas formas de ingresso: concurso público e prova de habilitação (o chamado concurso interno, aberto apenas aos policiais). No concurso seguinte, ocorrido entre 1989 e 1990, de um total de 27 aprovados encontrava-se apenas uma mulher. Foi somente a partir dos concursos realizados desde 1997, sob novas regras que visavam melhorar a transparência do processo, que o número de mulheres aprovadas teve expressivo aumento, tendo esse contingente chegado a ser maior do

82

O concurso teve início em 1986, sendo os candidatos aprovados nomeados e empossados somente no ano seguinte.

223

que o número de homens aprovados em 2004. Os dados encontram-se expostos na Tabela 35. Tabela 35 – Distribuição dos candidatos aprovados nos concursos para delegado da Polícia Civil segundo o sexo - Rio Grande do Sul, 1986/2004 Ano do concurso

Mulheres

Homens

Total

1986 (total) 7,32 92,68 100,00 1986 – concurso público 25,00 75,00 100,00 1986 – concurso interno 100,00 100,00 1990 3,70 96,30 100,00 1991 13,27 86,73 100,00 1997 40,00 60,00 100,00 1998 28,98 71,02 100,00 2004 54,72 45,28 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção, Série Sindicâncias de vida pregressa e Série Editais de homologação de concursos. Cálculos elaborados pela autora. Uma alteração tão expressiva quanto à aprovação de elevado número de mulheres é um indicador da existência anterior de mecanismos, mesmo que tácitos, para excluí-las. A inscrição das mulheres não era proibida, e havia efetivamente várias candidatas que participavam dos concursos para o cargo de delegado que, entretanto, eram reprovadas em sua totalidade no período anterior a 1986. 5.1.3.2 Ocupação anterior Os delegados de polícia provinham, durante as décadas de 1970 e 1980, majoritariamente das ocupações de investigador, escrivão e inspetor de polícia e ascendiam ao cargo, através de concurso público ou de dispositivos legais que lhes garantiam esse direito. A Tabela 36 traz os dados referentes a esse período. Tabela 36 – Distribuição dos aprovados em concursos para delegado da Polícia Civil segundo a ocupação anterior– Rio Grande do Sul, 1970/1981 Ano

1970 1971 1972 1973/ 1

Policial civil Policial militar

71,43 63,64 11,76 57,14

Advogado

Estudante

Outras

Total

29,41 28,57

9,52 18,18 23,53 14,29

19,05 18,18 35,30 0,00

100,00 100,00 100,00 100,00

224

1973/ 50,00 21,43 7,14 21,43 100,00 2 1976 72,22 27,78 100,00 1977 42,86 14,29 28,56 14,29 100,00 1978 62,50 16,67 8,33 12,50 100,00 1979 64,71 0,00 11,76 0,00 23,53 100,00 1980 85,00 10,00 5,00 100,00 1981 80,00 5,00 15,00 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série sindicâncias de vida pregressa; Série Requerimentos de matrícula. Cálculos elaborados pela autora. Nos concursos realizados a partir de 1997, assim como aumentou a participação de mulheres entre os aprovados, o número de policiais civis diminuiu, como se pode observar na Tabela 37. Tabela 37 – Distribuição dos aprovados em concursos para delegado da Polícia Civil, por sexo, segundo a classificação da ocupação anterior e o número de desempregados antes do concurso – Rio Grande do Sul, 1998, 2004 1998

2004

M H M H Policial civil 7,84 25,60 17,24 0,00 Advogado 25,49 22,40 31,03 41,67 Militar 0,00 5,60 0,00 0,00 Servidor da área jurídica 15,69 12,80 27,59 25,00 Servidor penitenciário 0,00 0,00 6,90 0,00 Policial militar 0,00 4,80 0,00 4,17 Outras 23,53 19,20 3,45 20,83 Desempregado 27,45 9,60 13,79 8,33 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundo Divisão de Recrutamento e Seleção. Série sindicâncias de vida pregressa. Cálculos elaborados pela autora. Considerando-se os concursos mais recentes, tanto para o cargo de delegado como para os cargos de inspetor e escrivão, observa-se um processo semelhante, com a participação mais equilibrada entre homens e mulheres e o aumento do número de indivíduos que se classificam, quanto à sua ocupação anterior, como advogados. Quanto à situação de desemprego, apresentou-se como mais freqüente entre as mulheres, tendo essa diferença diminuído no concurso mais recente.

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O aumento da participação feminina na magistratura foi destacado por Vianna et al. (1997), com base em uma pesquisa em nível nacional. Juvenilização e feminização constituem-se em dois movimentos que revolucionam a estrutura de quadros da magistratura brasileira e que não devem, de modo algum, ser indiferentes à formação de correntes de opinião e de doutrina que se manifestam no interior do Poder Judiciário. [...] De passagem, importa considerar que a juvenilização e a feminização da magistratura não derivam de uma política explícita do Poder Judiciário, constituindo, antes, uma conseqüência das transformações ocorridas no sistema educacional e no mercado de trabalho. (Vianna et. al., 1997, p. 69-70).

Os autores citados apontam, como associado ao crescimento da participação feminina entre os aprovados em concursos públicos para carreiras jurídicas, o desejo de evitar os riscos da concorrência desigual no mercado da advocacia liberal, descrito como dominado pela cultura masculina (Vianna et al., 1997, p. 67). No caso da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, as mudanças no perfil de gênero dos ingressantes foi radical, coincidindo com a retirada das tarefas de elaboração e da execução dos concursos de admissão do controle direto da própria Polícia Civil. Esta alteração foi provocada, em grande parte, pelo processo de investigação de denúncias de irregularidades no concurso para o cargo de delegado de 1993, conforme relatado no Capítulo 2 desta tese. 5.2 Os policiais e as trajetórias possíveis na instituição A carreira policial apresenta percursos diversos: pode-se ingressar na Polícia Civil em um cargo e permanecer nesse cargo até a aposentadoria, ou fazer sucessivos concursos até chegar a postos mais elevados; as promoções entre as classes de cada cargo podem ser obtidas mais rápida ou mais lentamente; pode-se ocupar posições de chefia, recebendo gratificações, ou estar sempre em uma posição subordinada; pode-se passar muitos anos em um mesmo local de trabalho ou ser deslocado para órgãos diversos, ou até mesmo para outra cidade; pode-se ir

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do interior para a capital e vice-versa. As várias possibilidades para o desenvolvimento de uma carreira envolvem fatores como relações sociais (laços familiares ou de amizade), relações políticas (com partidos políticos, por exemplo), conhecimentos e habilidades específicos (informática, defesa pessoal) e a avaliação do desempenho do indivíduo em suas atividades. A conjuntura política também influencia as carreiras dos policiais. Durante o governo Olívio Dutra (1999 a 2002), por exemplo, emergiram tensões entre os delegados mais antigos e bem posicionados na carreira e o então Secretário da Justiça e da Segurança, pois a proposta da administração era, então, de restringir os poderes desses delegados. Como resultado desses conflitos, alguns delegados de quarta classe, ocupando posições destacadas na hierarquia, foram colocados no plantão da Área Judiciária, considerado pelos policiais, de um modo geral, um local desprestigiado. Por outro lado, postos importantes foram atribuídas a delegados de primeira classe, ou seja, jovens que estavam recém ingressando na carreira. A Academia de Polícia Civil, por exemplo, passou a ser dirigida por um delegado de terceira classe (sendo um órgão com nível de Departamento, a Academia deve ser dirigida por delegado de quarta classe83), e suas três divisões por delegados de primeira classe. Quando teve início o governo de Germano Rigotto, em 2003, retornou-se à prática anterior, segundo a qual os delegados de classe mais elevada ocupam as posições de maior poder. Considerando-se a Polícia Civil como um espaço de disputas entre os agentes que ocupam diferentes posições de poder, pode-se compreender que as 83 O Decreto nº 28.656, de 22 de março de 1979, estabeleceu em seu art. 14: “As funções gratificadas lotadas na Polícia Civil serão providas por ato do Secretário da Segurança Pública, face à proposta do Superintendente dos Serviços Policiais. Parágrafo único - A escolha de titular para a função de direção, chefia e assessoramento deve recair: I - Para a Chefia do Gabinete do Superintendente, Diretores dos Departamentos de Polícia Metropolitana, da Polícia do Interior, de Trânsito, de Ordem Política e Social, de Diversões Públicas, de Organização e Correição, de Informática Policial, de Administração Policial, e Diretor da Escola de Polícia - em Delegado de Polícia da classe mais elevada na carreira.” (RIO GRANDE DO SUL, 1982a).

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possibilidades de desenvolvimento de uma carreira, bem como as alterações mais ou menos súbitas dos critérios de classificação, devidas às mudanças de governo, são a expressão dos estados dessa luta. O acesso dos agentes sociais a diferentes tipos de recursos, mais valorizados em determinada conjuntura política, por exemplo, se não garante de imediato o acesso a determinados cargos ou classes na carreira policial, contribui, ao menos, para que esses objetivos sejam vistos como possíveis. 5.2.1 As promoções Van Maanen (1997) descreveu o processo de progressão para o cargo de sargento na maioria das polícias dos Estados Unidos, em que há provas escritas e entrevista, além da análise do currículo do candidato (Van Maanen, 1997, p. 168172). Apesar da tentativa de manter a objetividade do processo, Maanen aponta a influência das relações sociais dos candidatos sobre a seleção, especialmente na prova oral. Desenvolvem-se estratégias como trabalhar nos locais onde se tem acesso aos avaliadores, estabelecendo com eles relações de conhecimento pessoal, ou procurando mostrar as qualidades individuais na realização do trabalho. No caso da presente pesquisa enfocando a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, detectaram-se similaridades quanto à maneira de perceber o processo de progressão funcional, pois muitos policiais referiram, tanto nas entrevistas como em conversas informais, que o trabalho junto aos delegados mais influentes está associado à obtenção de promoções por merecimento. Segundo essa visão, quem trabalha em delegacias estaria em posição desvantajosa em relação aos que trabalham nos órgãos centrais da administração, chefiados por delegados de quarta classe, os quais exercem influência na escolha das listas de promoção.

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Na Polícia Civil do Rio Grande do Sul, as promoções (de uma classe para outra e da quarta classe dos cargos de escrivão e inspetor para o cargo de comissário) são feitas por dois critérios: merecimento e antigüidade. Antes de cada promoção (duas vezes por ano), publica-se no Diário Oficial do Estado uma listagem onde os nomes dos servidores que podem ser promovidos são colocados em ordem segundo os dois critérios: pontos acumulados (merecimento) e dias de trabalho (antigüidade). Como há um tempo mínimo de dois anos requerido entre cada promoção, essas listagens abrangem apenas uma parte do efetivo, excluindo os que foram promovidos há menos de dois anos. A promoção por antigüidade não depende do desempenho do servidor, contando-se em primeiro lugar os dias na classe; havendo empate, os critérios de desempate são, sucessivamente, a antigüidade no cargo, no efetivo exercício policial, na Polícia Civil, no serviço público estadual84 e, finalmente, a idade mais elevada. Quanto à promoção por merecimento, embora exista um critério de pontos atribuídos a determinadas atividades, a escolha pode recair sobre qualquer servidor, independentemente de sua colocação. Até 1993, os escolhidos deveriam estar no primeiro terço de candidatos em cada classe e cargo, mas uma alteração no regulamento das promoções passou a determinar que qualquer um dos candidatos poderia ser escolhido.85 Assim, a promoção por merecimento é ligada muito mais às relações que o servidor estabelece dentro da instituição do que qualquer outro critério passível de avaliação quantificável. O tempo que cada servidor permanece em uma classe varia amplamente. A Tabela 38, a seguir, traz dados relativos ao número de anos entre o ingresso no 84 O tempo de efetivo serviço policial refere-se ao período em que o servidor esteve ocupando cargo do quadro policial, mesmo que não seja o cargo atual; o tempo de serviço na Polícia Civil refere-se ao período em que o servidor esteve lotado na Polícia Civil, mesmo em cargo não policial, como do quadro dos Técnicos Científicos, por exemplo. 85 Decreto nº 34.690, de 2 de abril de 1993, que modificou o regulamento anterior, instituído pelo Decreto nº 32.669, de 29 de outubro de 1987.

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cargo e a promoção para a classe na qual se encontra o servidor, considerando-se os dados relativos ao conjunto do efetivo policial, fornecidos pelo Serviço de Cadastro e Assentamento da Polícia Civil. Tabela 38 – Distribuição do efetivo da Polícia Civil segundo número de anos entre o ingresso no cargo e a promoção para a classe atual, por categorias de cargo, classe e sexo –Rio Grande do Sul, 2004 Grupos de anos menos 5 a 10 a 15 a 20 a 25 a 30 e Total Cargo e Sexo de 5 menos menos menos menos menos mais de 10 de 15 de 20 de 25 de 30 classe Delegado 2a F 100,0 100,0 0 0 M 100,0 100,0 0 0 3a F 6,25 68,75 25,00 100,0 0 M 12,93 62,07 25,00 100,0 0 (1) 4a F 100,0 0 M 19,30 29,82 15,79 19,30 10,53 5,26 100,0 0 Escrivão 2a F 66,29 33,71 100,0 0 M 78,23 21,77 100,0 0 3a F 12,79 70,93 11,05 5,23 100,0 0 M 5,31 53,35 20,67 20,67 100,0 0 4a F 11,11 7,41 40,74 40,74 100,0 0 M 5,70 3,25 19,51 71,54 100,0 0 Inspetor 2a F 65,00 34,29 0,71 100,0 0 M 70,05 29,35 0,60 100,0 0 3a F 1,01 27,27 24,25 46,46 1,01 100,0 0 M 1,14 17,46 13,47 63,19 4,74 100,0 0 4a F 2,70 5,41 62,16 29,73 100,0 0

230

M

-

2,86

Investigado r 6a F

-

-

7a

1,43

25,71

61,07

95,34

2,33

2,32

8,57

-

0,36 100,0 0

-

100,0 0 M 0,78 69,76 13,18 16,28 100,0 0 F 15,25 61,02 23,73 100,0 0 M 4,61 46,61 46,61 1,90 0,27 100,0 0 Fonte: POLÍCIA CIVIL. Departamento de Administração Policial. Serviço de Cadastro e Assentamento. Cálculos elaborados pela autora. Nota: (1) Há apenas uma delegada de 4a classe. Observa-se que as mulheres foram promovidas mais rapidamente do que os

homens nos cargos de investigador, escrivão (exceto na segunda classe) e inspetor (exceto na segunda classe). No cargo de escrivão, 83,72% das mulheres chegaram à terceira classe em menos de 10 anos, enquanto apenas 58,66% dos homens alcançaram o mesmo ponto na carreira no mesmo período; para chegar à quarta classe, 59,26% das mulheres escrivãs demoraram menos de vinte anos, tempo em que apenas 28,46% dos homens tiveram a mesma promoção. Entre os inspetores, a proporção dos que foram promovidos até a terceira classe em menos de 15 anos foi de 52,53% entre as mulheres e de 33,07% entre os homens; até a quarta classe, 70,27% das mulheres levaram menos de 20 anos, enquanto apenas 30,00% dos homens foram promovidos no mesmo espaço de tempo. Ao contrário, no cargo de delegado, enquanto 12,93% dos homens levaram menos de 5 anos para chegar à terceira classe, apenas 6,25% das mulheres obtiveram tal promoção no mesmo período; somando-se os números de delegados promovidos à terceira classe entre menos de 5 até menos de 10 anos após o ingresso no cargo, entretanto, observa-se que um percentual idêntico para ambos os sexos (75%) alcançou a terceira classe em menos de 10 anos. Para a segunda

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classe todos foram promovidos em menos de cinco anos, e na quarta classe há apenas uma delegada, a qual levou mais tempo para ser promovida (entre 10 e menos de 15 anos) do que 19,30% de seus colegas homens. A análise dos dados acima indica que as mulheres, considerado o efetivo atual da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, são promovidas mais rapidamente do que seus colegas homens nos cargos de escrivão, inspetor e investigador, mas estão em desvantagem no cargo de delegado. As promoções das mulheres agentes, das quais muito poucas trabalham no setor de investigação, confirmam as avaliações expressas nas entrevistas, envolvendo a idéia de que o trabalho em atividades administrativas e cartorárias seria um elemento favorável às promoções. As razões apontadas para isto foram a proximidade com os delegados, que indicam os agentes a serem promovidos por merecimento, e também a distância das situações de contato direto com a violência, que muitas vezes dão ensejo à formalização de acusações em relação às atitudes dos policiais, originando inquéritos policiais e, em alguns casos, processos judiciais. Tais acusações, mesmo quando se verifica sua improcedência a partir dos procedimentos legais, acabam por atrasar as promoções dos envolvidos. Analisando-se especificamente o quadro dos delegados de quarta classe, aqui destacado por ser o grupo que detém as posições de chefia na instituição, observa-se a grande variação entre os indivíduos em relação ao tempo de promoção. Tabela 39 – Delegados de quarta classe segundo o tempo decorrido entre o ingresso no cargo e o ingresso na classe – Rio Grande do Sul, anos selecionados Tempo (anos)

Menos de 10 10 a menos de 20 20 a menos de 30 30 e mais

1970

1981

1990

1997

2004

55,00 40,00 5,00 -

40,50 59,50 -

69,44 30,56 -

8,47 71,19 18,64 1,7

18,97 46,55 29,31 5,17

232

Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Serviço de Cadastro e Assentamento. Cálculos elaborados pela autora. Observa-se que em 1970 as promoções eram mais rápidas, havendo significativa proporção de delegados (55%) que chegavam à classe final da carreira em menos de 10 anos. Em 1981, embora esse grupo tenha diminuído (40,50%), todos os delegados da quarta classe haviam sido promovidos em menos de 20 anos no cargo. Em 1990, inicia-se uma concentração entre 10 e menos de 30 anos para a promoção, que permanece até 2004. Em 1997, destacam-se os extremos, com um grupo (8,47%) progredindo em menos de 10 anos e outro, menor (1,17%), demorando mais de 30 para a mesma progressão. Em 2004, ambos os extremos apresentaram crescimento em relação a 1997. O significado desses números deve ser avaliado não apenas em termos estatísticos, mas especialmente quanto ao que representam em termos de prestígio, de reconhecimento pelos pares e de acesso a posições de poder. O tempo de 30 anos é o necessário para a aposentadoria dos policiais, tanto homens quanto mulheres. Assim, alguém que demora 30 anos para percorrer as posições até a quarta classe passou praticamente toda a sua carreira sem acesso às chefias mais importantes. Por contraste, delegados que alcançam a mesma posição em oito ou nove anos têm grandes chances de chefiar departamentos ou até mesmo chegar à Chefia de Polícia, o cargo mais elevado na instituição. Quais seriam as características associadas a uma carreira em rápida progressão? Com o objetivo de verificar se o pertencimento anterior à instituição seria um fator positivo em termos de carreira, compararam-se os dados relativos ao tempo para chegar à quarta classe entre os delegados que anteriormente já eram policiais e os que ingressaram na

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instituição diretamente no cargo. Os resultados estão expressos na Tabela 40, a seguir. Tabela 40 – Média de número de anos decorridos para promoção à quarta classe do cargo de delegado da Polícia Civil, segundo ocupação anterior na Polícia Civil – Rio Grande do Sul, 1970/2004 1970

1981

1990

1997

Policiais 10,38 10,95 15,49 14,27 Não policiais 11,08 13,91 19,02 17,87 Diferença percentual entre as 6,74 27,03 22,79 25,23 médias Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Serviço de Cadastro Assentamento. Cálculos elaborados pela autora.

2004

16,14 17,77 10,10 e

A média de tempo, em número de anos, para os que já eram policiais anteriormente chegarem à quarta classe é mais baixa do que a dos não-policiais em todos os anos analisados, embora a diferença entre as médias tenha subido de 6,74% (1970) a 27,79% (1981), caindo para 10,10% em 2004. Essa diferença indica que os delegados que iniciaram suas carreiras como agentes apresentam algum tipo de vantagem em relação aos colegas que ingressaram na Polícia Civil diretamente como delegados. A explicação para isso está ligada a diversos aspectos, entre os quais destaca-se o acúmulo de capital social propiciado pelo habitus ajustado às condições do campo.

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6 Trabalho policial, violência e relações de gênero Balestreri (2003) recolheu o relato transcrito a seguir, feito por um policial brasileiro que retornava de um período de estágio junto à polícia canadense. Numa noite muito fria, saí numa ronda com um colega policial canadense. Houve, então, o furto de um veículo. Daí em diante, participei de uma admirável ação policial. Perseguição automobilística digna de filmes de Hollywood, com interceptação do carro furtado. Trocados tiros, o criminoso, sem munição, correu, com o policial em seu encalço. Próximo, este aproveitou um declive e saltou sobre as costas do criminoso. Derrubando-o, passou-lhe as algemas. Sou filho de policial e policial por vocação. Amo o que faço e admiro quem o faz bem feito. Aquele colega era meu herói naquele momento. Foi perfeito. Mas pôs tudo a perder quando ergueu o bandido e perguntou: “Você está bem?” Parti para cima dele, indignado. Perguntar ao bandido, que ele perseguiu e prendeu magnificamente, se estava bem? Que é isso? - Ele já está imobilizado. Quero saber, agora, se está bem. Sou um profissional. Não fiz por raiva. Agi com tamanha energia, usando com habilidade toda a força necessária, porque sou treinado para isso. Talvez seja por esse motivo que erramos menos: porque agimos mais com a razão e não tanto com as emoções. - Mas ele é um bandido, gritei, tentando convencê-lo, num derradeiro argumento. Ao que ele respondeu: - Mas eu não sou. Essa é a diferença. (Balestreri, 2003, p. 105).

A idéia de que o policial e o delinqüente nunca poderiam ser confundidos é fundamental para o trabalho de educação em Direitos Humanos desenvolvido pelo referido autor, que defende uma atuação policial que seja enérgica quando necessário, mas que nunca ultrapasse os limites legalmente estabelecidos. Desse ponto de vista, a atividade policial, seja de policiais civis ou de militares, envolve tanto a disposição para o uso da força, que pode chegar a ser letal, quanto a capacidade de auto-controle para impedir que os sentimentos e os valores pessoais alterem o objetivo da ação. Enquanto agente do Estado, o policial está autorizado à prática da violência legítima, ou seja, a violência justificada segundo critérios legais. No entanto, além do

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abuso da força física, outras formas de ação policial ilícita envolvem a apropriação privada do exercício da violência simbólica do Estado, através de delitos como peculato, concussão, corrupção passiva, prevaricação, condescendência criminosa ou violação de sigilo funcional.86 Se essa questão for pensada a partir das categorias de gênero, observa-se uma associação entre violência e masculinidade, decorrente de um modelo específico de relações entre os gêneros. Uma de suas conseqüências é a atribuição das atividades ligadas à coerção, como o trabalho policial, ao gênero masculino. Neste capítulo, serão analisadas as relações entre polícia, gênero e violência, de grande importância para a compreensão da atividade policial em geral, bem como da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. 6.1 Os policiais civis e sua imagem O trabalho policial envolve o contato com a violência, seja praticada por infratores ou, como reação, pelos próprios policiais. Como já se destacou no Capítulo 1 desta tese, Bittner (2003) apontou que tal característica contribui para tornar a polícia uma "ocupação corrompida", que desperta sentimentos contraditórios de medo e fascinação na população em geral (Bittner, 2003, p. 98-99). Oliveira (1992), observando os alunos de um curso de formação de delegados realizado na Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, identificou diferenças entre os que não tinham experiência anterior na polícia e os que já eram policiais. Sobre esses, afirmou:

86 Os crimes classificados no Título XI, Capítulo I do Código Penal, "Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral", são os seguintes: peculato, inserção de dados falsos em sistema de informações, modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações, extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, concussão, excesso de exação, corrupção passiva, facilitação de contrabando ou descaminho, prevaricação, condescendência criminosa, advocacia administrativa, violência arbitrária, abandono de função e violação de sigilo funcional.

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Imitam, também, a figura do “malandro”, com os seus símbolos de representação social, como por exemplo: vocabulário rico em gírias, roupas extravagantes e marcantes, uso de jóias bem salientes, trejeitos na postura corporal, uso de óculos escuros e outros adornos. – É o homem que resolve tudo e que nunca é passado para trás. (Oliveira, 1992, p. 41).

Essa figura um tanto caricatural, usando casaco de couro e óculos escuros, é a imagem mais difundida do policial civil. Policiais entrevistados para a realização desta tese relataram a surpresa de seus interlocutores ao saberem que falavam com um policial, como afirmou um deles. Como as pessoas falam comigo assim: “Pô, mas tu não tem cara de policial, porque tu é um cara calmo. Normalmente o policial é arrogante, é gritalhão, é estúpido.” E eu digo, "eu sou policial e não sou assim". Mais uma vez é a pessoa tentando generalizar. Bom, esse cara é policial, então ele é assim, assim, assim. É o protótipo do policial. [...] Qual é o policial típico? É aquele que usa botinha de bico fino, camisa colorida, aberta no peito, com correntinhas de ouro, óculos Ray-Ban e um palito de fósforo na boca... e dois, três revólveres na cintura. Esses tu olha de longe. E ainda com perfume forte, chega a doer o nariz. Só que ninguém é obrigado a andar assim. Tem uns palhaços que andam assim, mas eu não ando assim. Então quando aparece uma pessoa que foge desse estereótipo, “ah, mas tu é polícia, eu não sabia”, ficam admirados. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

A imagem negativa não se restringe ao modo de se vestir, mas envolve principalmente a idéia de um comportamento violento e a participação em delitos como concussão e prevaricação. A partir das entrevistas e das observações da pesquisa, pode-se notar que a maioria dos policiais civis, tanto agentes quanto delegados, procura não se identificar enquanto policial fora do ambiente de trabalho, sob diversas justificativas. Além do aspecto da segurança pessoal e da família, a questão mais citada é o fato de que a condição de policial provoca nos interlocutores reações desagradáveis, seja um afastamento, reclamações quanto a experiências negativas em contatos com a polícia ou a solicitação de favores, como relata uma investigadora que não gosta de se identificar como policial.

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Na minha própria rua ali, ninguém sabia que eu era policial. [...] Sabiam que eu era funcionária pública [...]. Aí um dia um dos caras que estavam construindo lá resolveu contar. O que aconteceu? Eu estava chegando um dia de manhã em casa, já veio um guri dizer que tinha perdido a carteira de identidade, que ele queria ver o que eu podia fazer por ele, se podia agilizar, outro vizinho já queria que eu conseguisse um facão para ele [risos]. É esse tipo de coisa que eu quero evitar. (Entrevista de pesquisa com investigadora).

Banton (1964), baseando-se em pesquisas realizadas no início dos anos 1960, na Escócia e nos Estados Unidos, apresenta relatos muito semelhantes aos observados na pesquisa para esta tese no que respeita à reação das demais pessoas frente aos policiais em encontros sociais. Um de seus entrevistados comentou que, ao sair em férias, nenhum leiteiro é obrigado a ouvir reclamações sobre a qualidade do leite, por exemplo, enquanto um policial recebe um "dilúvio" de queixas sobre a atuação da polícia. A outra reação comum, segundo o mesmo entrevistado, é o comentário, em tom de brincadeira, sobre a necessidade de não falar ou fazer nada errado na presença do policial (Banton, 1964, p. 196-197). Um delegado entrevistado na presente pesquisa referiu a mesma reação, como se observa no trecho transcrito a seguir. Quando tu diz assim, "eu sou delegado", quando a pessoa não te conhece bem, tu não conversou nada ainda, tu diz que é delegado, a pessoa já tem aquele impacto: "Ah, tu é delegado, então tenho que cuidar para não me prender!" Eu sempre digo, e continuo dizendo: "Se tu não fizer nada de errado, eu não vou te prender." (Entrevista de pesquisa com delegado).

Cabe destacar que a sensação de temor frente a um policial civil brasileiro, diferentemente das situações relatadas por Banton (1964), é reforçada pela história relativamente recente, durante o regime militar, de abusos policiais, com a ocorrência de prisões sem fundamento legal. O peso desta história sobre a imagem da polícia brasileira, apesar de todas as mudanças pelas quais passou o país nos últimos 20 anos, não pode ser desprezado.

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O mesmo delegado acima referido contou um episódio, ocorrido quando passava férias em outro Estado, ilustrando a mudança de tratamento por parte de seus vizinhos de praia ao serem informados de sua profissão. Eu estava lá há uns 10 dias, mais ou menos. Todo mundo me tratando de tu, de você, uma simplicidade, uma beleza! Até que passou um delegado aposentado, me viu, e me seguiu, mas eu não o vi e entrei em casa. Daí a pouco bate uma pessoa do condomínio na porta: "Tem um delegado aqui nessa casa? Tem uma pessoa ali no portão que disse que viu entrar aqui um delegado, e gostaria de falar com ele". Fui obrigado a dizer que eu era delegado, e aí a pessoa já perguntou: "Ah, mas o senhor é delegado?" Já mudou a conversa comigo... A partir daquele momento, já me trataram diferente, com mais respeito, mais formalidade, e isso prejudicou o meu lazer. (Entrevista de pesquisa com delegado).

O distanciamento e a formalidade, citados pelo entrevistado como aspectos negativos na situação de férias, são, no entanto, características do tratamento dispensado aos delegados no cotidiano da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. O que se observou durante a pesquisa para esta tese é que os delegados esperam ser tratados com deferência em função de seu cargo. Nas conversas com os demais servidores da Polícia Civil, todos os delegados são chamados de "senhor" ou "senhora", independente de sua idade ou da idade da pessoa que se dirige a eles. Um inspetor entrevistado afirmou que, mesmo não sendo boa, a imagem da polícia atualmente é melhor do que no passado. Acho que está melhorando, já foi pior. O policial era mal visto, sinônimo de corrupção e coisas do gênero. Atualmente acho que o pessoal aceita bem mais o policial no dia-a-dia, como aquele que está ali para defender, e não só para aquela coisa de extorquir, coisas que realmente aconteceram na polícia, e que talvez até aconteçam. Acontecem alguns casos isolados, mas acho que a comunidade aceita bem mais, atualmente. Acho que teve uma época bem mais complicada. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Esse inspetor ingressou na Polícia Civil em 1982, mas tinha contato com o tema da imagem da polícia há mais tempo, incluindo o período em que ocorreram as ações mais violentas do regime militar, pois seu pai é policial militar. Mesmo que

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tenha ocorrido essa mudança, as críticas ainda são freqüentes, como se observa no trecho, a seguir, da entrevista com um comissário. Sempre se fala em rodas, quando a gente vai falar, “ah, mas a polícia é corrupta”. Digo: é corrupta mesmo, tem policiais corruptos, mesmo, tem policiais que são ladrões, que estão presos lá no GOE87, que eu conheço muito bem quem são, e esses tem que botar na cadeia mesmo. Mas uma coisa eu digo: não é a maioria, é a minoria. Tu tem que dizer que existem policiais bons na Polícia. Existem pessoas que querem realmente ajudar, existem pessoas de boa índole, e que são a maioria, não são a minoria! (Entrevista de pesquisa com comissário).

A estratégia que o entrevistado declara adotar, diante de críticas que também o atingem, ao abrangerem todo o seu grupo profissional, é dirigir tais críticas a um grupo restrito de policiais. Esse grupo é alvo de seu repúdio, ao mesmo tempo em que procura apresentar a si mesmo e à maioria dos policiais como indivíduos que seguem as normas legais. De forma coerente com essa representação, o comissário entrevistado afirma que não costuma ocultar sua condição de policial, como se observa no trecho transcrito a seguir. Olha, eu sou um pouco diferenciado nesse sentido. Eu não tenho medo, eu ando sempre armado, com umas roupas pretas, se tiver que botar colete de policial... [...] Eu sou uma pessoa que bato no peito e digo que sou policial, não tenho medo de dizer que sou policial. Quem não me pergunta eu não digo, não vou estar dizendo que sou policial, mas todas as pessoas imaginam que eu sou policial. (Entrevista de pesquisa com comissário).

No mesmo sentido de justificar a identificação como policial civil, um escrivão entrevistado afirmou que apresentar-se como “funcionário público” equivale, em sua opinião, a envergonhar-se de sua atividade profissional. A gente tem que se colocar como policial civil por um simples motivo: funcionário público é muito amplo. Eu me sinto, quando eu digo assim, “eu sou um funcionário público”, que eu sinto vergonha do que eu faço, no mínimo, ou então eu estou tentando omitir o que eu faço. Eu estou tornando claro: sou um policial civil, tu precisa de um policial, eu estou aqui! Não tem problema! [...] É uma coisa que 87 Grupamento de Operações Policiais, que tem entre outras atribuições a responsabilidade pela custódia dos policiais civis em prisão temporária no Palácio da Polícia.

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eu sou, é uma coisa que é minha profissão, então... Não coloco como uma vantagem. Não omito, mas não alardeio também. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

A partir dessas duas entrevistas, pode-se observar que assumir publicamente o fato de ser policial tem, no mínimo, dois sentidos: por um lado, é colocar-se como servidor público, disposto a servir ao público; por outro lado, é também mostrar-se como um agente do Estado, e assim investido de um poder maior do que a simples força física, que é a autorização legal para usá-la. Essa contradição já foi apontada por Westley (1953), nos termos a seguir transcritos. O policial enfrenta seus problemas mais agudos em sua relação com o público. A sua ocupação é de serviço, mas de um tipo incongruente, pois ele deve disciplinar aqueles a quem serve. (Westley, 1953, p. 35, tradução nossa).

Assim, ao mesmo tempo em que o policial civil que se identifica publicamente como tal se arrisca a ser desprezado pelos que têm uma idéia muito negativa acerca da polícia, ou simplesmente ser importunado por solicitações diversas, também está se colocando em uma posição de maior poder em relação a seus interlocutores, na medida em que também anuncia sua capacidade de usar a força, se necessário. Além das críticas à brutalidade policial, os policiais entrevistados também relatam que recebem críticas pela atuação dentro dos limites legais, feitas por pessoas que esperam deles um papel de “justiceiros”. Tem aqueles também que dão força demais para a polícia: a polícia tem que matar, tem que dar tiro... Tem esses também, então tu tens que fazer o papel, “não, não é assim, não pode matar, não pode também pegar e ir dando tiro, não, tu tem que usar a lógica, tem que saber quando é que tu pode atirar”. [...] Eles dão palpite, sabem o que tu tem que fazer, isso aí existe! É normal. Mas isso a gente tem que enfrentar, explicar para eles o que é correto, o que é justo, para eles terem uma visão diferenciada do que é a polícia. (Entrevista de pesquisa com comissário).

De forma coerente com a representação que faz de si mesmo e da instituição policial, o comissário acima citado propõe-se a explicar os motivos pelos quais os

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policiais têm limites para o uso da arma. O referido apoio de parte da população às ações violentas, entretanto, é um dos problemas a serem enfrentados para promover a mudança da atuação policial, na medida em que torna a violência policial parte do senso comum, das idéias compartilhadas acerca do que constitui a normalidade, a regra geral. Embora não existam informações específicas para o Rio Grande do Sul, Arthur Costa (2004) apresenta alguns dados que tendem a confirmar o relato do comissário entrevistado. Baseando-se em pesquisa realizada no Rio de Janeiro em 1997 (CPDOC/FGV; ISER, 1997), esse autor refere que o uso de métodos violentos para obter a confissão de suspeitos foi considerado "justificável em alguns casos" por 40,4% dos entrevistados, e "sempre justificável" por 4,1% deles (Costa, A., 2004, p. 128). A mudança de imagem da atuação policial é um processo que requer um esforço ativo por parte dos policiais, pois há exemplos atuais e passados de ações ilícitas. Uma delegada entrevistada relatou a situação que encontrou em seu primeiro posto de trabalho, em uma cidade pequena, defrontando-se com a memória de um tipo de atuação policial caracterizada pela brutalidade. Eu comecei numa cidade que antes tinha um comissário de polícia da época da ditadura, ainda, que torturava as pessoas, botava de cabeça para baixo na frente da delegacia, para todos verem. [...] E daí esse cara morreu, e essa cidade então o tinha como ídolo, porque na época do Fulano era tudo ajeitado, não tinha nem foguetes, eles diziam! [risos] Era uma outra época. Então eles passaram depois desse tempo vários anos sem ter delegado. [Quando eu cheguei], 25 anos, mulher, conhecimento jurídico, direitos humanos, eles custaram a me aceitar. Mas até hoje, quando eu vou nessa cidade, “ah, quando é que a senhora vai voltar?” Então aquela época foi bastante complicada. A gente sempre tem que mostrar competência em dobro. (Entrevista de pesquisa com delegada).

É interessante observar a afirmação ao final da citação (“a gente sempre tem que mostrar competência em dobro”). Além de referir-se às dificuldades encontradas pelas mulheres em cargos de poder, refere-se também à comparação que, segundo

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a visão da delegada, a população fazia entre a atuação do comissário que a antecedeu, valorizado por sua eficiência no controle da ordem pública (“não tinha nem foguetes”), e a dela (“25 anos, mulher, conhecimento jurídico, direitos humanos”). A jovem delegada sentia a necessidade de obter resultados positivos que viessem a mostrar para a população que não havia contradição entre ser eficiente e agir dentro da lei, o que lhe parecia ser a compreensão vigente. 6.2 A violência policial As análises sobre a função policial trazem, como um de seus aspectos fundamentais, a questão do exercício da violência legítima. O conceito de violência policial, entretanto, no sentido de uso abusivo desse recurso, é objeto de controvérsias. Muniz, Proença Junior e Diniz (1999) afirmam, a esse respeito, o que se transcreve a seguir. É curioso que a percepção do problema do uso da força pela polícia e a discussão de sua propriedade no Brasil se dêem com base na ingenuidade perigosa que não distingue – ou não quer distinguir – o uso da violência (um impulso arbitrário, ilegal, ilegítimo e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e idealmente profissional). Esta situação é agravada pela ausência de um acervo reflexivo cientificamente embasado e informado pela realidade comparativa com outros países, o que abre espaço para comportamentos militantes e preconceituosos. De fato, intervenções tecnicamente corretas do ponto de vista da ação policial têm sido lançadas à vala comum da “brutalidade policial” e erigidas em símbolo de uma mítica banalização da violência, que explicaria o atual estado da criminalidade em nossas cidades. (Muniz; Proença Junior; Diniz, 1999, p. 1).

O estabelecimento de uma distinção entre uso da força e violência, configurada como abuso da força, é fundamental para todos os trabalhadores da área da segurança pública, na medida em que coloca limites para o uso da força, seja no sentido de restringi-la em algumas situações como de autorizá-la em outras. Contribuição relevante para o entendimento do fenômeno da violência policial é a de Mesquita Neto (1999), que procura analisar as abordagens teóricas e as

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práticas de controle do problema. Ele considera que os efeitos da violência policial são muito graves, mesmo sem levar em conta seu aspecto quantitativo. Os casos de violência policial, ainda que isolados, alimentam um sentimento de descontrole e insegurança que dificulta qualquer tentativa de controle e pode até contribuir para uma escalada de outras formas de violência. A violência policial, principalmente quando os responsáveis não são identificados e punidos, é percebida como um sintoma de problemas graves de organização e funcionamento das polícias. Estes problemas, se não forem solucionados, particularmente em democracias emergentes como o Brasil, podem gerar problemas políticos, sociais e econômicos sérios e podem contribuir para a desestabilização de governos e de regimes democráticos. (Mesquita Neto, 1999, p. 131).

Na medida em que os policiais, investidos pelo Estado do uso legítimo da força, abusam de suas prerrogativas, a própria legitimidade do Estado pode ser questionada. A questão que Mesquita Neto (1999) coloca é a ausência de um critério unívoco para a classificação das ações policiais como violentas, dificultando o debate sobre o tema e a implementação de soluções para o problema. O referido autor apresenta quatro concepções de violência policial: jurídica (uso ilegal da força pelos policiais), política ou sociológica (uso ilegítimo da força, ou seja, uso excessivo, mesmo dentro da legalidade), jornalística (uso irregular, anormal, escandaloso ou chocante da força) e profissional (uso de mais força do que um policial adequadamente treinado usaria na mesma situação). Essa última concepção, desenvolvida por Carl Klockars (1996), é a mais flexível e abrangente, pois classifica como atos de violência até mesmo aqueles considerados legais, legítimos e regulares, desde que envolvam o uso de mais força do que o necessário por um policial treinado. Um esquema que permite compreender o uso adequado da força é o denominado modelo FLETC, desenvolvido pelo Federal Law Enforcement Training

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Center, órgão do governo dos Estados Unidos.88 O modelo estrutura-se em cinco níveis, combinando em cada um deles a percepção da situação por parte do policial com a resposta adequada do policial à situação percebida (FEDERAL LAW ENFORCEMENT TRAINING CENTER, 2001). O policial é sempre referido como “policial razoável” (reasonable officer), ou seja, o policial treinado adequadamente e portador de condições físicas e emocionais também adequadas à sua função. O objetivo é sempre o de obter e manter o controle sobre o indivíduo com o qual o policial se defronta no momento. Os níveis são os seguintes: – Nível I – Indivíduo cooperativo – policial usa suas habilidades comunicativas, como a própria presença e a verbalização de ordens ou solicitações, sendo atendido pelo indivíduo. Não percebe a possibilidade de reação do indivíduo. – Nível II – Resistência passiva – o indivíduo recusa-se a cumprir as ordens do policial, mas não esboça reação física. O policial responde com controles de contato, ou seja, técnicas psicológicas ou físicas com baixo uso da força, tais como as que envolvam contato físico apenas com as mãos. As habilidades verbais e o controle do próprio posicionamento e de outros policiais em relação ao indivíduo continuam a ser usados. – Nível III – Resistência ativa – o indivíduo usa energia, mas não dirigida diretamente contra o policial. Exemplo: ao ser preso, sai andando para longe do policial. O policial responde com técnicas de submissão, com táticas de controle físico, tais como aplicação de pressão em pontos sensíveis, técnicas de condução, chaves de articulação e uso de agentes químicos. – Nível IV – Agressivo (lesão física) – o policial percebe o risco de ser agredido ou de que outras pessoas no local sejam agredidas. Exemplo: ao ser

88

Barbosa e Angelo (2001, p. 124-129) apresentam o modelo FLETC traduzido para o português e comentado.

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preso, o indivíduo sai andando, mas repentinamente volta-se e dirige-se contra o policial com os punhos cerrados. O policial responde com táticas defensivas para retomar o controle da situação, tais como o uso de armas não-letais (bastão, por exemplo) e técnicas de defesa pessoal. – Nível V – Agressivo (lesão grave ou morte) – a percepção do policial é de risco iminente de um ataque grave, podendo levar à morte ou a um ferimento significativo, seja do policial ou de outras pessoas. O policial reage com medidas imediatas para impedir o ataque, podendo usar armas de fogo ou outras formas de força letal. O modelo permite observar a possibilidade de aumento do nível de violência como também sua diminuição, sendo que o policial deve usar apenas a força necessária em cada situação, procurando chegar ao nível I. A aplicação desse tipo de procedimento requer um treinamento cuidadoso, pois as habilidades verbais, as técnicas de defesa pessoal, as formas adequadas de algemar, revistar ou conduzir uma pessoa, o uso de armas não-letais e o uso de armas de fogo, entre outros aspectos, são conhecimentos cuja aquisição requer tempo e condições adequadas de ensino. Ao policial sem o treinamento necessário, torna-se mais fácil fazer uso da arma de fogo ao primeiro sinal de resistência, pois não tem condições de usar os outros recursos possíveis. Importante aspecto relaciona-se à quantidade de efetivo e de recursos materiais disponíveis, pois as regras de segurança policial exigem a superioridade numérica e de recursos dos policiais em relação às pessoas abordadas. Se um policial defronta-se com uma situação de risco onde há várias pessoas armadas, ele só pode agir com segurança se tiver condições de chamar reforços, ou seja, ele precisa ter acesso a meios de comunicação (rádio ou telefone)

246

e deve existir um número de policiais que possa se deslocar rapidamente para o local da ação, usando equipamentos de proteção (coletes balísticos, escudos), dispondo de munição e de preferência portando armas iguais ou superiores às que estão nas mãos dos infratores. O objetivo da exposição do modelo FLETC foi o de mostrar que a atividade policial, em seu aspecto que envolve o uso da força, requer o domínio de uma série de conhecimentos, obtidos através de treinamento. Além das técnicas de uso da força, também é necessário que o policial consiga manter uma atitude psicológica adequada nas situações de confronto, não permitindo que seus próprios sentimentos de raiva ou de medo conduzam suas ações. Nos casos em que os policiais não têm acesso a uma formação específica, seu trabalho é orientado por noções do senso comum, o que pode ter resultados desastrosos em termos de uso abusivo da força. A atenção ao treinamento policial está relacionada à posição da polícia como parte do Estado, retirando de um confronto entre policial e infrator o caráter de uma briga entre duas pessoas quaisquer: ao policial cumpre conter o infrator e conduzi-lo à delegacia, e não mostrar que é mais forte ou mais corajoso. 6.3 Quantificando a violência policial letal Embora algumas afirmações sobre a polícia possam ser válidas em termos gerais, existem aspectos que necessitam uma avaliação específica, tornando as generalizações inadequadas. No Brasil, onde existem polícias civis e militares, organizadas em base estadual, além de uma polícia federal, as avaliações da violência policial devem levar em conta os critérios de local de atuação e de tipo de organização. Há referências à polícia brasileira que trazem generalizações e afirmações graves. Paes Machado e Noronha (2002), por exemplo, partem de dados relativos às

247

cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador (Bahia) e generalizam suas conclusões para todo o Brasil, como se observa no trecho a seguir. Além dos abusos de autoridade praticados em sociedades democráticas, as polícias brasileiras utilizam muitos outros recursos arbitrários e violentos, entre os quais se sobressaem os homicídios. Efetivamente, o impressionante número de homicídios policiais brasileiros é um reflexo do mandato hipertrofiado do policiamento, seja para manter a ordem pública, seja para praticar desvios de conduta. (Paes Machado; Noronha, 2002, p. 230).

Analisando os números encontrados em Salvador, os autores destacam alguns dados, como os seguintes: 97% das vítimas fatais da polícia, no ano de 1997, eram do sexo masculino, 47% tinham de 15 a 29 anos, 76% possuíam apenas o primeiro grau incompleto e 99% eram negro-mestiças. (Paes Machado; Noronha, 2002, p.231)

De fato, o perfil das pessoas mortas por policiais em Salvador coincide com o perfil mais amplo das vítimas de homicídio no Brasil, descrito por Soares e Borges (2004) como se transcreve a seguir. Embora os dados nacionais ainda apresentem imprecisões, já são suficientes para comprovar que a grande maioria dos indivíduos que têm sua vida interrompida por assassinatos são os homens, adolescentes e jovens adultos (em especial entre os 14 e os 30 anos) e, entre eles, principalmente os negros – grupo que, segundo critérios censitários, inclui “pardos” e “pretos”. (Soares; Borges, 2004, p. 26)

Especificamente para a cidade de Salvador, pode-se citar o trabalho de Paim et al. (1999) com os resultados de estudos sobre a mortalidade por causas externas. Em relação aos jovens, predominam os homicídios, especialmente no sexo masculino e na faixa etária de 15 a 29 anos. Constatou-se uma distribuição desigual da mortalidade por causas externas no espaço urbano, penalizando, especialmente no caso dos homicídios, as populações residentes em bairros pobres, com taxas superiores ao coeficiente médio de Salvador. (Paim et al., 1999, p. 321).

248

Considerando os dados acima, observa-se uma coincidência entre o perfil das vítimas de homicídios e das pessoas mortas pela polícia, indicando que são pessoas que vivem em situação de maior exposição ao risco. Outro estudo cujas conclusões vão na mesma direção do anteriormente citado é o de Sankievicz (2005). Após apresentar dados referentes aos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo e ao Distrito Federal, conclui o seguinte: Em resumo, a despeito de os dados nem sempre serem precisos, é possível constatar que o índice de pessoas mortas pela polícia no Brasil é excessivamente elevado e há indícios apontando que boa parte dessas pessoas foram vítimas de execuções sumárias. (Sankievicz, 2005, p. 9).

Esses estudos vêm, sem dúvida, contribuindo para tornar público o debate acerca das formas ilegais de atuação da polícia no Brasil. Seguindo a proposta de Cano (2002), seu aprofundamento deverá contar com a construção de indicadores para a avaliação do trabalho policial. Em relação ao aspecto do uso da força, o autor propõe indicadores como: número de opositores mortos pela polícia, número de opositores mortos para cada opositor ferido (denominado “índice de letalidade”) e número de opositores mortos dividido pelo número de policiais mortos (Cano, 2002, p. 31-32). Além desses, Cano propõe ainda outros indicadores: número de policiais mortos em ação, número médio de projéteis disparados pela polícia, percentual de homicídios dolosos provocados por intervenções policiais, número de opositores mortos para cada opositor detido ileso e indicadores periciais a partir das necropsias de opositores mortos (Cano, 2002, p. 31-32). Considerando-se os dados relativos às polícias civis e militares do Rio Grande do Sul e de São Paulo, apresentam-se a seguir os resultados obtidos a partir de

249

indicadores propostos por Cano (2002)89. A Tabela 41 apresenta os dados relativos ao número de mortos e de feridos em confrontos com as polícias civis e militares de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Tabela 41 – Mortos e feridos em confrontos com as polícias civil e militar – São Paulo e Rio Grande do Sul, 2000 a 2004 – Taxas por 100.000 habitantes 2000

2001

2002

2003

2004

Civil ferido PC/RS 0 0 0,15 0,10 0,15 Civil ferido PC/SP 0,24 0,22 0,12 0,09 0,05 Civil ferido PM/RS 0,77 1,03 1,12 1,46 1,06 Civil ferido PM/SP 0,81 0,95 0,98 1,19 0,92 Civil morto PC/RS 0 0 0 0,01 0 Civil morto PC/SP 0,19 0,20 0,18 0,10 0,07 Civil morto PM/RS 0,18 0,27 0,25 0,37 0,28 Civil morto PM/SP 1,42 1,03 1,42 2,04 1,39 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais; SÃO PAULO. Secretaria da Segurança Pública; SÃO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SEADE; RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Coordenação e Planejamento. Fundação de Economia e Estatística. Cálculos elaborados pela autora. Pode-se observar que as polícias civis, nos dois Estados considerados, apresentam taxas inferiores às das polícias militares, o que é esperado devido à função de policiamento ostensivo das polícias militares, com maior probabilidade de enfrentamento armado. A Polícia Militar do Rio Grande do Sul apresenta uma taxa de pessoas feridas em confrontos mais elevada em relação à polícia militar paulista. Em relação à taxa de mortos em confronto, ao contrário, a Polícia Civil de São Paulo causa mais vítimas do que a Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Um indicador importante de violência policial é a ocorrência de mais mortos do que feridos em enfrentamentos, o que pode estar revelando a existência da intenção de matar, e não de prender o oponente. No caso da Polícia Militar do Rio

89 A idéia inicial, na presente seção, era comparar os dados relativos ao Rio Grande do Sul com outros Estados, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, mas para este último a divulgação não é feita segundo as mesma categorias, pois não há informações quanto a civis feridos, nem separação dos civis mortos pelas polícias civil e militar.

250

Grande do Sul, os resultados indicam que as formas de atuação se aproximam do que se espera em termos ideais de uso adequado da força, ou seja, mais civis feridos do que mortos nos enfrentamentos. O cálculo do chamado “índice de letalidade” (número de mortos dividido pelo número de feridos) é apresentado na Tabela 42. Tabela 42 – Razão entre mortos e feridos pelas polícias civil e militar – São Paulo e Rio Grande do Sul – 2000 a 2004 2000

2001

2002

2003

2004

Razão civis mortos/civis feridos PC/RS 0 0 0 0,09 0 Razão civis mortos/civis feridos PC/SP 0,81 0,90 1,47 1,09 1,40 Razão civis mortos/civis feridos PM/RS 0,23 0,26 0,22 0,25 0,27 Razão civis mortos/civis feridos PM/SP 1,76 1,08 1,45 1,71 1,51 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais; SÃO PAULO. Secretaria da Segurança Pública. Cálculos elaborados pela autora. Os resultados da tabela acima indicam que os policiais do Rio Grande do Sul atuam de maneira mais moderada quanto ao uso das armas de fogo do que os policiais do Estado de São Paulo. No Rio Grande do Sul, a Polícia Civil registrou o índice de 0,09 em 2003, sendo que nos outros anos considerados não houve nenhum caso de morte de oponente. Nesse mesmo Estado, a Polícia Militar manteve o índice entre 0,22 e 0,27, bem abaixo das polícias paulistas. A Polícia Civil do Estado de São Paulo, com índices inferiores à Polícia Militar do mesmo Estado no que se refere ao número de civis mortos, mostra, no entanto, índices de letalidade bem mais elevados do que a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, indicando uma atuação mais direcionada à morte do que à prisão. A Tabela 43 mostra, a seguir, os dados relativos ao número de policiais mortos e feridos em serviço. Tabela 43 – Policiais feridos e mortos em serviço – São Paulo e Rio Grande do Sul, 2000 a 2004 – Taxas por 100.000 habitantes 2000

2001

2002

2003

2004

251

Policial ferido PC/RS 0,59 0,27 0,28 0,18 0,21 Policial ferido PC/SP 0,27 0,27 0,23 0,19 0,21 Policial ferido PM/RS 1,56 1,88 2,55 1,93 2,30 Policial ferido PM/SP 1,93 1,40 1,18 1,18 1,12 Policial morto PC/RS 0,04 0,07 0,03 0,01 0,02 Policial morto PC/SP 0,04 0,05 0,04 0,04 0,01 Policial morto PM/RS 0,11 0,08 0,08 0,04 0,05 Policial morto PM/SP 0,09 0,11 0,11 0,04 0,06 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais; SÃO PAULO. Secretaria da Segurança Pública; SÃO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SEADE; RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Coordenação e Planejamento. Fundação de Economia e Estatística. Cálculos elaborados pela autora. De forma coerente com os dados anteriores, observa-se que os policiais militares, em ambos os Estados contemplados, sofrem mais ferimentos e mortes em serviço do que os policiais civis. As taxas referentes ao número de policiais militares feridos, superiores no Rio Grande do Sul (exceto em 2000), indicam a existência de enfrentamento, ou seja, o policial militar defrontou-se com alguém que lhe produziu algum dano físico, situação diversa de uma execução, quando um oponente imobilizado é morto. O que se busca argumentar aqui é que a atuação das polícias apresenta importantes diferenças na comparação entre os Estados da Federação. Apresentase na Tabela 44, a seguir, uma comparação entre os números de mortos pela polícia em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Os dados referentes às polícias civis e militares de São Paulo e do Rio Grande do Sul foram somados porque os do Rio de Janeiro estão agregados dessa forma. Tabela 44 – Pessoas mortas pelas polícias civil e militar – Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, 2000-2003 – taxas por 100.000 habitantes 2000

Rio Grande do Sul São Paulo Rio de Janeiro

2001

2002

2003

2004

0,18

0,27

0,25

0,38

0,28

1,61 3,16

1,22 4,03

1,60 6,11

2,13 8,03

1,46 6,46

252

Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais; SÃO PAULO. Secretaria da Segurança Pública; SÃO PAULO. Secretaria de Economia e Planejamento. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SEADE; RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Coordenação e Planejamento. Fundação de Economia e Estatística; CESECUniversidade Cândido Mendes. Cálculos elaborados pela autora. Fica evidente o perfil diferenciado do Rio Grande do Sul, comparativamente a São Paulo e ao Rio de Janeiro, onde ocorrem números muito mais elevados de mortos pela polícia. Mesmo considerando que a falta de outros dados, complementares, impede uma comparação mais detalhada entre as polícias de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, pode-se afirmar que seus modos de atuar são diferentes, e que não se pode generalizar para todo o Brasil o que se observa no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Cumpre outrossim considerar que a violência pode se manifestar de outras formas, além da letalidade, sua face mais extrema. Durante toda a pesquisa para a elaboração da presente tese, foram colhidos relatos de uso inadequado da força, quase sempre praticados em situações em que a denúncia seria improvável, pois as vítimas também eram culpadas de outros delitos. Esse ponto será analisado na próxima seção. 6.4 Delitos não-letais cometidos por policiais Além das mortes devidas ao uso inadequado e abusivo da arma de fogo, os policiais também podem se desviar da atuação legalmente prescrita através de delitos que configuram atos de corrupção, em parte cometidos sem o recurso à violência física, tais como a prevaricação, a condescendência criminosa ou a concussão. Nos casos enquadrados como abuso de autoridade90, ocorre violência

90 O delito de abuso de autoridade está definido na Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, incluindo qualquer atentado à liberdade de locomoção, à inviolabilidade do domicílio, à incolumidade física do indivíduo, bem como ordenar ou executar

253

psicológica ou física que não leva à morte, tendo como objetivo o estabelecimento de uma relação de domínio sobre a pessoa agredida. Birkbeck e Gabaldón (2001) realizaram pesquisas na Venezuela com o objetivo de avaliar os fatores que influenciavam a disposição dos agentes policiais para usar da força contra os cidadãos. Uma das etapas da pesquisa consistiu em perguntar aos policiais da amostra selecionada em três cidades venezuelanas qual seria a reação mais freqüente a algumas situações. Os resultados são apresentados na Tabela 45, a seguir. Tabela 45 – Reações previstas por policiais entrevistados segundo a situação apresentada – Venezuela, 2001 Situação apresentada

Conversar

Aplicar chave de braço

Usar o bastão

Disparar contra as pernas

Disparar contra o corpo

Deputado aponta arma 65,3 20,8 contra policial Bandido aponta arma 18,4 9,7 contra policial Diretor resiste à 73,9 23,9 condução Assaltante resiste à 15,7 56,0 condução Advogado xinga 65,3 30,1 policial Bêbado xinga policial 52,6 36,4 Fonte: Birkbeck e Gabaldón, 2001, p. 234.

3,1

5,9

4,9

10,3

36,2

25,5

2,1

0,1

0,0

25,4

2,9

0,0

3,8

0,7

0,0

10,1

1,0

0,0

Observa-se maior disposição para conversar e menor disposição para o uso da força contra indivíduos situados em posições sociais de elevado prestígio e poder, ou seja, com maior probabilidade de sucesso ao denunciar abusos sofridos. Como a pergunta envolvia a reação que os policiais esperavam de seus colegas, as respostas indicam o que eles considerariam normal em cada situação. Quando foram questionados quanto a suas próprias reações, as respostas apresentaram

medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder e submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei.

254

valores semelhantes para todos os casos, indicando o receio de admitir um tratamento diferenciado aos cidadãos. Uma variação das perguntas foi introduzida na mesma pesquisa, com a substituição de termos pejorativos, como “bêbado” ou “malandro”, apresentando-se pares como “engenheiro” e “pedreiro” ou “arquiteto” e “taxista”. Nesse caso, as diferenças também diminuíram sensivelmente, pois não ficava caracterizada a posição desvalorizada de uma das partes de cada par. Segundo os dados constantes dos Relatórios Anuais da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, as ocorrências mais freqüentemente registradas pela Corregedoria de Polícia em 2002 e 2003 foram as classificadas nas categorias “contra a administração pública” e “outros contra a pessoa”, sendo a maioria dos inquéritos remetidos à Justiça pertencentes à primeira categoria. Tabela 46 – Ocorrências criminais registradas na Corregedoria de Polícia Civil por categoria – Rio Grande do Sul, 2001-2003 Categoria

2001 nº

Contra a administração pública Outros contra a pessoa Outros contra o patrimônio Contra a liberdade individual Lesões corporais Outras

3 59 2 1 7 38

2002 nº

%

2,72 53,63 1,82 0,91 6,36 34,54

45 113 2 0 11 51

2003 nº

%

%

20,27 50,90 0,90 0 4,95 22,98

88 35,06 92 36,63 16 6,37 8 3,19 5 1,99 42 16,76 100,0 Total de ocorrências criminais 110 100,00 222 100,00 251 0 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatórios 2001-2003. Quanto aos inquéritos remetidos à Justiça, os números estão apresentados na Tabela 47, a seguir. Tabela 47 – Inquéritos policiais remetidos à Justiça pela Corregedoria de Polícia Civil por categoria – Rio Grande do Sul, 2001-2003 Categoria

Contra a administração pública Outros contra a pessoa

2001 nº

%

2002 nº

%

2003 nº

%

138

79,31

40

70,18

95

66,43

11

8,05

0

0

11

7,69

255

Outros roubos 3 1,72 2 3,51 4 2,80 Outros contra o patrimônio 0 0 2 3,51 2 1,40 Outras infrações penais 22 10,92 13 22,80 31 21,68 Total de inquéritos remetidos 174 100,00 57 100,00 143 100,00 Fonte: RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Divisão de Planejamento e Coordenação. Relatórios Anuais 2001-2003. Marimon (2003), baseando-se em dados da Delegacia de Feitos Especiais da Corregedoria de Polícia Civil do Rio Grande do Sul (delegacia especializada em delitos cometidos por policiais civis), cita como denúncias mais freqüentemente recebidas entre 1999 e 2001 as seguintes: abuso de autoridade, uso indevido de viatura, prevaricação, tráfico de entorpecentes, concussão, ameaça, peculato e lesões corporais. Além desses delitos, há também uma grande quantidade de delitos não identificados, ou seja, a denúncia é tão vaga que não há condições de se saber exatamente o que está ocorrendo. Os crimes contra a administração pública praticados por funcionários públicos são, entre outros: peculato, concussão, corrupção passiva, prevaricação e condescendência criminosa. Todos eles implicam em fazer ou deixar de fazer algo que seria prescrito por lei, comumente incluindo policiais e pessoas envolvidas em algum delito. Segundo Cano (1999), tais delitos são de difícil identificação, pois não há interesse em nenhuma das partes em seu esclarecimento. Os desvios mais difíceis de evitar são aqueles em que os agentes da lei poupam o infrator da aplicação da mesma em troca de benefícios pessoais. Estes casos, normalmente chamados de “corrupção”, são os mais refratários ao controle pois os dois atores sociais envolvidos na interação, o policial e o infrator, conseguem um benefício pessoal do episódio que ficaria anulado e revertido com a publicidade do mesmo. Portanto, os dois lados possuem grande interesse em que os fatos fiquem desconhecidos e não pode se esperar de nenhum deles a iniciativa da denúncia. (Cano, 1999, p. 5).

Mingardi (2000) analisou delitos que envolvem policiais e indivíduos comprometidos com outras infrações penais. O autor realizou uma pesquisa na Polícia Civil do Estado de São Paulo utilizando-se de um procedimento inusitado,

256

que lhe proporcionou uma grande quantidade de informações acerca do funcionamento cotidiano de uma delegacia de polícia: fez concurso para investigador, tornando-se ele mesmo um policial. A partir desse ponto de vista, descreveu e analisou detalhadamente a relação entre quatro figuras, as quais denominou: “trutas”, advogados de porta de cadeia (“devos”), “gansos” e policiais corruptos (Mingardi, 2000, p. 31-40). O “truta” seria um ladrão “profissional”, que pratica furtos e roubos habitualmente, como meio de vida. Policiais corruptos e advogados, auxiliados pelos “gansos” (indivíduos associados aos policiais, prestando serviços como informantes ou desempenhando tarefas nas próprias delegacias), obtêm pagamentos dos “trutas” em troca de deixá-los em liberdade através de meios ilícitos, tais como a elaboração de inquéritos policiais falhos, dificultando a ação do Ministério Público. Durante a pesquisa para a elaboração da presente tese, procurou-se verificar se esses mecanismos também existiam na Polícia Civil do Rio Grande do Sul, ou se as havia formas diversas de ilicitudes. Nas entrevistas gravadas, as referências a atos ilegais foram muito limitadas, como o exemplo a seguir: Tudo que fiz eu cumpri, e outra coisa: com idoneidade, probidade moral. Mantive sempre a minha vida pautada nisso, nunca fui para o caminho de tirar dinheiro, de pegar dinheiro do jogo do bicho, de prostituição, de vender inquérito, nada! Sempre me pautei pela honestidade. E fazia o serviço. (Entrevista de pesquisa com comissário).

Assim, o entrevistado reconhece a existência de delitos cometidos por policiais no exercício de sua função, mas se apresenta como diferente desses policiais. Outro tipo de referência observada nas entrevistas é aquela que cita um possível desvio por parte do policial, ao mesmo tempo colocando um questionamento quanto à credibilidade da pessoa que faz a acusação.

257

O policial vai numa casa fazer um mandado de busca e apreensão, quando vê some uma televisão que ele levou! Ou então ele levou para escrever no papel do mandado, a pessoa até assinou, mas depois não reduziu a termo no papel digitado, e aí, “ah, não trouxe televisão nenhuma, a senhora me desculpe.” Como também deve haver muito caso de algumas vítimas que acabam inventando, eu acredito que isso possa acontecer. Se a vítima fala: “Ah, eu tinha 500 reais num bolso duma calça...” Pois é. A primeira coisa que fica, pela pecha que a polícia tem, é que o policial tirou. Tinha os 500. E isso às vezes não é verdade, e isso causa uma injustiça muito grande em relação a muitos policiais honestos. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

Nas conversas informais, entretanto, foram relatados problemas como os referentes a trocas entre policiais e “banqueiros” do jogo do bicho, ou formulados comentários do tipo: “Na delegacia [X], metade do pessoal está na cadeia, e a outra metade deveria estar.” Segundo tais informações, mesmo nos casos em que existem fortes indícios de que algum policial esteja envolvido em atividades ilícitas, muitas vezes não se consegue provar nada. Alguns policiais, sempre em conversas informais, relataram propostas explícitas de participação em atos ilegais formuladas por colegas, enquanto outros afirmaram ter testemunhado inquéritos sendo destruídos ou "banqueiros" do jogo do bicho comparecendo a delegacias para entregar dinheiro a delegados. O que ocorre, segundo os policiais ouvidos, é uma aproximação entre delegados e agentes com posições semelhantes, fazendo com que se formem equipes mais homogêneas em termos de respeito às normas legais. 6.4.1 Os limites entre o lícito e o ilícito na atividade policial civil Uma questão referida em muitas das entrevistas de pesquisa foi a de como conviver com infratores sem se tornar um deles. O método mais tradicional de obter informações na investigação policial é freqüentar os mesmos lugares que os infratores, relacionar-se com as mesmas pessoas e até mesmo chegar a conhecer os infratores pessoalmente. É um tipo de infiltração informal, e só faz sentido para a

258

investigação dos crimes cometidos por assim chamados profissionais, ou seja, criminosos que se dedicam à atividade como meio de sustento. A idéia de conhecer o ambiente onde os criminosos vivem, conhecer as pessoas de “dentro do crime”, como referiu o investigador citado a seguir, envolve também um risco para o policial, que é tornar-se mais identificado com este ambiente do que com seu ambiente familiar. Tem que ter uma investigação organizada, o pessoal que trabalha na investigação tem que ser organizado, tem que ter as informações, tem que ter o conhecimento da região em que está trabalhando, tem que ter conhecimento das pessoas [...] que estão dentro do crime, e a partir daí tu parte para investigação. Informações, trabalhos de observação... [...] A primeira coisa para quem trabalha na investigação [é] tomar conhecimento da área. [...] Os outros policiais mais antigos, a leitura das ocorrências, o mapeamento [...], aí depois para rua, o contato que tu tem com as pessoas que circulam na noite, tem que fazer aquele trabalho de pesquisa, de campo. Ah, é uma coisa que exige trabalho, exige tempo, não é brincadeira não, exige sacrifício, é dia e noite. (Entrevista de pesquisa com investigador).

Continuando com a explicação acerca das dificuldades enfrentadas, o referido investigador faz um relato da possibilidade de perda das referências, dos limites entre o certo e o errado. A idéia do povo é uma coisa, a idéia das pessoas que estão fora. A idéia de dentro, passando uma situação, é outra bem diferente. Não tem nem como te dizer em palavras o que é uma coisa, o que é outra. Só quem está lá é que vai sentir isso mesmo, o que é realmente. Então, o que acontece com muitos? O cara no dia, na noite, no dia, na noite, no dia, na noite, ele não encontra aí... Quando ele volta para casa, a pessoa não vai entender ele. Porque ele está vendo uma realidade... Fora daquilo ali, quem entende ele? Os caras que estão falando que nem ele. Ele sai para a rua, volta para lá, aí ele acaba convivendo com n tipos de pessoas, com n tipos de personalidades, e ele tem que tocar o barco para a frente. Por outro lado, ele não tem o apoio necessário do Estado, nem psicológico, nem de treinamento, nem de nada! O que vai acontecer com esse cara? Se ele não traz uma base boa, a tendência é ele se perder um pouco, como tem acontecido até. Agora, se o cara tem uma base, ele vai até ali, ele recua de novo, opa! Ele volta de novo! Agora, se o cara não tem essa base, ele vai embora! É uma questão cultural, é uma questão de educação, de personalidade, de uma série de coisas. (Entrevista de pesquisa com investigador).

259

O processo descrito pelo entrevistado assemelha-se a uma passagem a um outro mundo, em que vigoram outras regras, em um movimento de ida e volta, até o momento em que o policial começa a se sentir mais à vontade no outro mundo, encontrando dificuldades crescentes para ser compreendido em seu meio familiar e de trabalho. Nas palavras do entrevistado, o policial que tem firmeza em seus princípios éticos “vai até ali, ele recua de novo, opa! Ele volta de novo!” Caso contrário, “ele vai embora”, ou seja, ultrapassa o limite moral e legal, confundindo-se com os infratores. O que o entrevistado não explicita é que, em sua adesão às práticas delitivas, o policial usa os recursos aos quais tem acesso devido à condição de policial, passando a utilizá-los para finalidades particulares. Para que isso não aconteça, o investigador entrevistado considera necessária a intervenção do Estado, através de ações como treinamento e apoio psicológico, no sentido de reforçar entre os policiais a característica de legalidade de seu trabalho. Situando-se na periferia do campo jurídico, pressionados pelo contato direto com a população, os policiais civis muitas vezes ressentem-se de sua posição, avaliando-se como reconhecidos em um nível abaixo do que consideram adequado. A partir desse ressentimento, alguns deles elaboram representações negativas quanto à condição de agentes do Estado autorizados ao uso legítimo da força, construindo uma representação alternativa que os autoriza ao uso da força para outras finalidades, inclusive ilícitas. Outra justificativa para o uso ilegal da força, observada no decorrer da pesquisa para esta tese, vincula-se ao não-reconhecimento do campo jurídico como instância adequada à resolução de todos os conflitos. Um inspetor relatou dois episódios característicos dessa posição. O primeiro envolveu um jovem que foi levado a uma delegacia por estar espancando sua própria avó, uma senhora idosa.

260

Já na delegacia, o jovem voltou a agredir a senhora de forma violenta, ao que o inspetor reagiu espancando por sua vez o jovem agressor. O segundo episódio ocorreu quando o pai do inspetor deparou-se com uma situação de violência doméstica, em que um vizinho espancava a esposa; ao tentar intervir, levou um soco e foi jogado pelas escadas do prédio. O inspetor foi então à delegacia, para onde o agressor tinha sido levado, e deu-lhe uma surra, com o consentimento dos colegas presentes. Vários outros casos semelhantes foram observados durante a pesquisa, sempre em comentários informais, nunca nas entrevistas gravadas. O que aparece como elemento comum a todos é a figura de um delinqüente considerado covarde, pois age contra vítimas mais fracas do que ele (idosos, mulheres e crianças), contra o qual opõe-se a figura do policial. O delito que dá início ao episódio normalmente é o de lesão corporal, para o qual a pena é avaliada pelos policiais como excessivamente branda91. Assim, o policial “corrige” a situação com sua atuação violenta. Nesta concepção, as leis e o sistema legal são vistos como inadequados, o que leva à ação segundo os critérios particularistas de justiça adotados pelos próprios policiais. Ao tomar a decisão de atribuir a si mesmos o poder de estabelecer as regras, os policiais podem chegar a cometer delitos graves, como o homicídio, sem se sentirem culpados. A entrada no campo jurídico, conforme Bourdieu (1989a), tem como requisito a renúncia aos meios como a violência física para a resolução dos conflitos, aceitando-se os procedimentos jurídicos para este fim. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adoção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia à violência física e às formas As lesões corporais leves são abrangidas pela Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais (BRASIL, 1995).

91

261

elementares da violência simbólica, como a injúria. (Bourdieu, 1989a, p. 229).

Quando policiais, seja qual for a corporação, assumem uma posição de negação do Direito, também estão questionando, mesmo que inconscientemente, seu direito ao uso da violência física legítima. Uma experiência de violência policial do ponto de vista da vítima foi relatada por uma delegada, que sofreu o que considerou uma atitude covarde por parte de policiais militares, e pôde sentir, segundo ela, “o que a população sente”. Era uma extorsão, a vítima deixaria o dinheiro para o autor pegar num cemitério retirado, então a gente fez uma operação para ir lá pegá-lo em flagrante, e a Brigada obviamente não foi avisada, e eles nos confundiram com os assaltantes. A gente estava numa viatura discreta, e eles agiram realmente com um ar muito arbitrário, nos colocaram no chão, tinha uns 20 PMs, todos com armas de calibre pesado. Então ali eu senti o que o povo sente quando sofre arbitrariedades da polícia. [...] Foi horrível! Ainda mais uma arma 12, qualquer tremida que a pessoa tenha dispara o gatilho. Ele estava com essa 12 na minha cabeça, no chão. Um procedimento totalmente inadequado! Totalmente! Depois que tu está no chão, não tem necessidade nenhuma, e um deles ainda deu um chute no meu colega, realmente covarde, bem o que a gente sempre foi contra durante toda a carreira. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Esta mesma delegada foi a entrevistada que expressou mais claramente uma posição de defesa do trabalho regido por princípios éticos muito firmes. A idéia de tratar os outros como gostaria de ser tratada é colocada em prática em suas atividades, segundo afirma. Então isso também eu posso dizer, nessa luta pelos direitos humanos, que todas as prisões que a gente conseguiu fazer na região, nunca se precisou dar um tapa em alguém. [...] Se tu pergunta com falta de educação, daí vem a falta de educação de resposta. Então às vezes os caras não estavam preparados para ser tratados com delicadeza, com cortesia, com educação. [...] “O que o senhor tem a dizer?” Se tu chama de senhor, o cara já cai. E para ter uma idéia assim, tinha presos que iam para outras localidades, que diziam que só iam confessar se a delegada [Fulana] fosse lá. Daí eu ia [...], e aí eu os pegava em contradição, também nas perguntas, e eu sempre fui muito técnica [...]. Mas também tem muita hostilidade, nem tudo é um mar de rosas, às vezes a gente perde a paciência, dá uma raiva, que o cara está mentindo, tu sabe, mas tu tem uma

262

profissão, uma carreira a zelar, e a tua vida pessoal também, então, tem que ter paciência... Depois eu aprendi, no final, a nem ter raiva mais se a pessoa estava mentindo, sabe, porque isso até me dava mais ânimo para provar que ele estava mentindo. (Entrevista de pesquisa com delegada).

Seu argumento contra a violência como recurso para obter uma confissão baseia-se na lógica do processo judicial, onde outras evidências também devem ser apresentadas. A confissão é a pior das provas, então a polícia precisa ser técnica. [...] Se tem só a confissão, fica uma coisa muito dúbia. Sempre alguém desconfiando, então tu tem que ter outras provas, e a gente sempre procurou isso, ter provas técnicas, e realmente nunca se precisou nada, e a comunidade sabia disso e respeitava porque se conseguia as prisões, com respeito aos direitos humanos, então é pura balela dizer que direitos humanos é perfumaria. (Entrevista de pesquisa com delegada).

No primeiro capítulo desta tese, apresentou-se a atividade dos policiais civis como estando vinculada à introdução de situações classificadas como delitivas no campo jurídico, através de procedimentos que visam ao ajustamento de tais situações às categorias jurídicas. Os policiais civis podem procurar equiparar-se, quanto ao poder e prestígio de que desfrutam, às posições dominantes no campo de poder,

especialmente

pela

aquisição

de

conhecimento

jurídico.

Se

tal

empreendimento é percebido como impossível, sendo a defasagem, em termos de poder e prestígio, entre as posições sociais ocupadas pelos policiais em relação às de juízes e procuradores públicos muito grande, uma alternativa pode ser a valorização de outros recursos, especialmente o uso dos meios de violência física, como as armas de fogo. Se a primeira estratégia referida acima tem como objetivo fortalecer a polícia civil como integrante do Estado, e assim beneficiar-se em termos de capital simbólico, a segunda estratégia conduz ao enfraquecimento do próprio Estado, na medida em que contribui para seu esvaziamento enquanto detentor do monopólio da violência física e simbólica legítima.

263

6.5 As relações de gênero na atividade policial Connell (2000) apresenta, no texto a seguir transcrito, o que constitui, a seu ver, a conexão entre gênero e violência. Não é difícil mostrar que há uma conexão entre gênero e violência. Isto é óbvio nas instituições que se dedicam às técnicas da violência, agências estatais da força. Os vinte milhões de membros das forças armadas de todo o mundo atualmente são majoritariamente homens. [...] Os homens também dominam outros ramos de atividades impositivas, tanto no setor público, enquanto policiais ou guardas prisionais, como no setor privado, enquanto agentes de segurança. Além disso, os alvos da repressão são principalmente homens. Em 1999, por exemplo, mais de 94% dos prisioneiros nas prisões australianas eram homens; nos Estados Unidos, em 1996, 89% dos presidiários eram homens. Na vida privada, também, é mais provável que os homens andem armados e sejam violentos do que as mulheres. (Connell, 2000, p. 213-214, tradução nossa).

Essa associação é discutida pelo autor, que se contrapõe à idéia de que ela seja natural, procurando demonstrar a existência de diversas masculinidades possíveis. Huggins (2002), ao examinar os policiais envolvidos na prática de tortura no Brasil, durante o regime militar, refere-se a uma "agressividade masculina normal", no texto transcrito a seguir. Os termos torturador e executor sugerem uma versão extrema de agressividade masculina normal, caracterizada por frieza, força bruta e prazer ao desempenhar tais atividades. [...] Na verdade, esses rótulos são tão específicos de gênero que quase nunca evocam uma imagem feminina, apesar de algumas pesquisas terem sugerido que mulheres estiveram envolvidas nos complexos de tortura, embora com muito menos freqüência do que os homens. (Huggins, 2002, p. 81, tradução nossa).

A constituição predominantemente masculina das

polícias

tem sido

reconhecida pelos estudiosos dessa área, embora com enfoques diferenciados. Young (1991), por exemplo, afirma que as mulheres constituem na polícia um caso de marginalidade estrutural, apresentando seu ponto de vista da forma a seguir. O mundo policial sempre alocou prioridade e respeito às categorias e símbolos masculinos, tendo dificuldade em lidar com os

264

problemas encobertos de gênero, simplesmente porque a masculinidade historicamente mantém-se na posição principal, sendo algo com que se concorda e se compreende. [...] Tudo isso leva a um "culto da masculinidade" usado como "estrutura de prestígio", levando a que as mulheres sejam difamadas, recebam baixo status, sejam tratadas com condescendência e tenham seu valor social negado. (Young, 1991, p. 192, tradução nossa).

Young relata detalhadamente as diversas formas através das quais, na polícia britânica, as mulheres eram discriminadas durante as décadas de 1970 e 1980. Segundo o autor, as mulheres eram sempre comparadas aos homens, tidos como padrão de normalidade no meio considerado. Mesmo assim, Young (1991) refere a existência do que ele denomina "novas policiais", mulheres que conseguem afirmarse enquanto policiais, atuando sem inibições no ambiente masculino em que se encontram. Elas são profissionais, competentes e atraentes, sendo, em conseqüência disso, temidas e reverenciadas [...]. Estas mulheres adquirem status, são discutidas por todos, e evitadas pelos homens mais inseguros. (Young, 1991, p. 240, tradução nossa).

Fielding (1996) destaca o tema do gênero no trabalho policial, referindo-se ao que denomina “cultura de refeitório da polícia"92 nos termos transcritos a seguir. Os valores estereotipados da cultura de refeitório da polícia podem ser lidos como uma forma quase pura de "masculinidade hegemônica". Eles enfatizam (i) a ação agressiva, física; (ii) um forte senso de competitividade e preocupação com a representação do conflito; (iii) orientações heterossexuais exageradas, freqüentemente articuladas em termos de atitudes misoginísticas e patriarcais em relação às mulheres; e (iv) a operação de rígidas distinções entre os integrantes e não integrantes do grupo, cujas conseqüências são fortemente excludentes no caso dos não integrantes e fortemente assertivas de lealdade e afinidade no caso dos integrantes (Fielding, 1996, p. 47, tradução nossa).

Esse autor destaca que os elementos de estímulo e status associados ao perigo são fundamentais para o estilo de vida e a auto-imagem dos policiais, fornecendo material para histórias exageradas de violência e de conquistas sexuais. 92

No original, “cop canteen culture”.

265

A presença de mulheres policiais seria, deste ponto de vista, uma ameaça, ao expor a realidade de que a maior parte do trabalho policial não envolve lutas e perigo físico (Fielding, 1996, p. 50). Heidensohn (1995), analisando o conjunto dos estudos sobre cultura policial, aponta como o caráter masculino da atividade é considerado como algo dado, não problematizado. Mulheres e gênero constam, de um modo limitado, nos estudos sobre a cultura policial. O gênero é incluído principalmente devido à necessidade de explicar seu caráter viril. Praticamente todos os relatos descrevem, algumas vezes com um entusiasmo quase celebratório, o abuso de bebidas alcoólicas, as piadas grosseiras, o racismo e o assédio sexual observados e algumas vezes esperados. (Heidensohn, 1995, p. 79, tradução nossa).

Considerando-se os autores acima referidos, torna-se necessário, mais do que simplesmente reconhecer a associação entre polícia e masculinidade, analisar as formas através das quais ela se manifesta, bem como suas inconsistências. 6.5.1 Homens e mulheres no trabalho policial A associação entre masculinidade e violência como um fenômeno natural, como um dado indiscutível, é questionada entre os estudiosos dessa temática, como Cecchetto (2004). Obviamente, a violência masculina não é um dado universal. Varia de uma sociedade para outra, de um indivíduo para outro, como mostram as pesquisas antropológicas que abordaram a masculinidade fora de paradigmas essencialistas. [...] Dependendo do contexto e das noções locais de masculinidade, o confronto violento e o uso conspícuo da força física podem constituir valor simbólico, agregando prestígio ao agente, enquanto em outros contextos são repudiados e considerados sinais de fraqueza ou inferioridade, pois o que conta é o estilo verbal de confrontação, a persuasão e o compromisso da palavra. (Cecchetto, 2004, p. 38)

Em relação a alguns grupos sociais, entretanto, é comum formularem-se generalizações que vêm a fazer parte do senso comum, como se compartilhassem

266

de um modelo único de masculinidade. Além dos policiais, outros exemplos podem ser referidos, tais como o dos motoristas de caminhão, estudados por Vitorello (1999). Os caminhoneiros revelam possuir sentimentos de autoconfiança, virilidade, vigor físico, apreço pela liberdade e pela boemia, superioridade ao medo decorrente dos riscos profissionais e não-conformidade com a monogamia. (Vitorello, 1999, p. 99)

Ao longo do presente estudo, tornou-se evidente a existência, entre os policiais, de formas diversas de masculinidade, como de resto, entre muitos outros agrupamentos sociais. Tomando-se especificamente o aspecto da infidelidade conjugal, constatou-se a existência de uma ampla variedade de situações, desde os casamentos estritamente monogâmicos até os casos que poderiam ser descritos como de poligamia, com a manutenção de várias unidades familiares simultâneas. Um inspetor entrevistado, ao ser questionado sobre a existência de casos extra-conjugais entre os policiais homens, respondeu conforme segue, associando o trabalho de investigação a essa prática. Acho que o pessoal que está na linha de frente está mais vulnerável a isso, e se envolve mais, precisa estar lá no barzinho, na noite, na boate, na danceteria, contato com muita gente diferente... Eu acho que o pessoal que trabalha na linha de frente se envolve mais, realmente. [...] Acho difícil dizer se é comum, depende do local que se trabalha, vai depender da cidade. Os locais em que eu trabalhei, de 10, vamos dizer que dois, três tivessem uma situação assim, de ter realmente aquela coisa. Vou falar daquela coisa assim estabelecida, se é isso que tu está falando, aquela coisa estabelecida, até mesmo pela dificuldade financeira que representa pelo salário. Eu, pelo menos, não consigo manter uma! [risos] Eu vou ter que arrumar uma que me sustente, fica complicado! (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Ao mesmo tempo em que se apresenta como desvinculado dessa prática, o inspetor acima citado reconhece sua difusão entre os colegas. A desqualificação dos relacionamentos eventuais enquanto casos extra-conjugais é sugestiva de sua classificação, pelo entrevistado, como algo normal. Uma inspetora entrevistada

267

referiu-se ao comportamento de seus colegas homens nos termos a seguir transcritos, destacando a importância atribuída ao que ela considera demonstrações de virilidade. Parece que ficou estabelecido que é normal, parece que ficou normal o policial ter mais de uma mulher. Chamam de “fogão”. [...] Seria muito interessante fazer um estudo sociológico, porque que ele tem que demonstrar para os outros colegas que ele pode sustentar mais que uma mulher, mais que uma família. É como se fosse assim uma demonstração de virilidade, sabe, aquele que só vive sozinho é um panaca. Tem que manter, aquilo é uma coisa de status. O cara não usa uma única arma, o cara usa duas ou três armas, uma atrás, uma na perna, outra aqui... [aponta para a cintura] "Ah, hoje eu vou na 'um', na 'dois', eu vou na 'oficial'..." Aquilo é uma coisa muito de orgulho. [Quando alguém morre, por exemplo,] no enterro os próprios colegas protegem, separam uma da outra, os colegas levam a esposa, depois a “outra”, para poder chegar no caixão, toda uma ginástica! (Entrevista de pesquisa com inspetora).

A associação que a entrevistada faz entre portar mais de uma arma e sustentar mais de uma mulher reforça o significado masculino atribuído à arma de fogo. A masculinidade associada à violência traz conseqüências negativas para homens e mulheres. Estas, assim como as crianças, são as vítimas de homens violentos na esfera doméstica. Os próprios homens, por sua vez, são vítimas uns dos outros, pois as estatísticas mostram que os homens jovens são as vítimas mais freqüentes dos homicídios e acidentes de trânsito.93 A idéia de que a violência física é a única maneira de resolver os conflitos, aliada a uma noção de honra que não deixa margem para a negociação de pontos de vista, leva a confrontos por motivos aparentemente banais, provocando a morte ou ferimentos em jovens homens de diversos grupos sociais . No trabalho policial, essa noção de masculinidade traduz-se, por vezes, em atitudes como a de não usar colete de proteção ou não seguir outras normas de segurança, além de uma tendência ao abuso da força física e da arma de fogo.

93

Uma apresentação muito clara desses dados encontra-se em Waiselfisz (2002).

268

Segundo um comentário repetido por diversos policiais, esse “super polícia”, ou seja, o policial violento e que não respeita as determinações legais, “acaba morto ou preso”. A dificuldade para aceitar-se como vulnerável aumenta a probabilidade de danos físicos, e a dificuldade para aceitar limites à sua ação aumenta a probabilidade da prática de atos ilícitos. A masculinidade violenta tem como sua correspondente uma feminilidade passiva e frágil. Estudos sobre mulheres vítimas de violência, tais como Müller (2004)

e

Gregori

(1993),

trazem

relatos

de

mulheres

que

sustentam

economicamente a unidade familiar e submetem-se a espancamentos por parte do marido ou companheiro, enfrentando grandes dificuldades para visualizar uma saída para tal situação. 6.5.2 Divisão sexual do trabalho na Polícia Civil Entre os elementos que contribuem para a imagem de virilidade da atividade policial estão o uso da arma de fogo, o uso da força física e o contato com as situações de enfrentamento, fora das delegacias. A entrada de mulheres processouse dentro de um padrão semelhante ao que Fielding descreve, referindo-se à polícia inglesa: “[As mulheres] são afastadas [kept from] de algumas tarefas e destinadas [kept for] a outras.” (Fielding, 1996, p. 56) São unânimes os elogios ao trabalho feminino nos cartórios das delegacias, por exemplo: as mulheres seriam mais detalhistas, mais atentas aos prazos, mais organizadas e até mais hábeis para obter depoimentos (“a mulher sabe ouvir, sabe entender o outro”, colocou uma policial entrevistada). São comuns, por outro lado, os relatos de maior exigência e de tratamento discriminatório às mulheres que desejam trabalhar em atividades “de ponta”, ou seja, onde há o contato direto com a criminalidade e a violência.

269

As duas citações a seguir, extraídas de entrevistas de pesquisa, são exemplos claros da divisão de trabalho entre homens e mulheres na atividade policial. A primeira citação refere-se a um delegado, respondendo sobre sua visão acerca do trabalho das mulheres policiais. Eu acho que de certa forma, para algumas atividades a mulher é muito mais eficiente do que o homem. Principalmente atividade cartorária. Na atividade de ouvir, de reduzir a termo, de tomar as declarações, de trabalhar o inquérito, ela é mais eficiente que o homem. No serviço de rua, é mais difícil, eu não posso dizer que ela não seja tão eficiente quanto, mas na realidade se mostrava inferior, até porque a sociedade ainda não está acostumada com a mulher policial, principalmente no interior. Então eles não a respeitam como policial. [...] Um outro aspecto que eu vejo, que eu senti no interior, como o número de homens é maior que o de mulheres, há um certo protecionismo para com a mulher dentro da delegacia, no sentido de dar tarefas menos penosas, de evitar situações de constrangimento... Situações que possam envolver violência, plantão noturno, dificilmente deixam... Acho que eles tentam proteger, digamos, considerá-la mais fraca, de repente pode até ser por isso, então eles tentam proteger. E elas aceitavam bem faceiras, e até muitas vezes brigavam para não sair... Eu acho que elas também faziam questão dessa proteção. (Entrevista de pesquisa com delegado).

No quadro descrito pelo entrevistado, homens e mulheres concordam com a idéia de que a atribuição de tarefas às mulheres deve ocorrer no âmbito da delegacia. O que o entrevistado não discute é até que ponto as tarefas reservadas aos homens são mais penosas, como se o simples fato de serem consideradas masculinas já lhes atribuísse maior periculosidade. Um escrivão, questionado sobre a possibilidade de trabalhar com uma colega policial em atividades na rua, respondeu o seguinte: Na verdade, se eu puder escolher, para uma atividade essencialmente de polícia, uma coisa prática, eu entrar numa casa, eu vou preferir ter um troglodita do meu lado, um cara forte, do que uma moça, uma menina. É uma coisa [...] de testosterona. Eu não vou querer que uma moça me auxilie a arrebentar uma porta, até porque ela tem uma certa limitação física. [...] Eu preferiria ter um colega daqueles que têm condições físicas, um cara forte, de preferência até mais forte que eu, ou mais operante do que eu, em termos de técnica, do que ter uma moça. Claro que se ela pudesse

270

suplantar isso com qualificação, se eu sei que ela é qualificada, ela tem como me auxiliar numa ação sem problema nenhum. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

Na primeira parte da resposta, observa-se a escolha de termos que enfatizam a fragilidade das policiais: “moça”, “menina”. A frase final, ao contrário, coloca a alternativa para a superação dessa fragilidade através da qualificação. A continuação da entrevista mostra que o mesmo escrivão entrevistado não acredita que as mulheres procurem melhor qualificação, pois sua visão é semelhante à do delegado citado anteriormente, no sentido de que as policiais preferem não se envolver em tarefas ligadas ao uso da força. Não tem tantas mulheres que se dediquem, não é que ela não tenha condição de fazer, ela não se dedica a isso. Uma mulher não se dedica a isso. [...] Eu acho que na verdade o trabalho de investigação é mais procurado pelo público masculino, até porque é uma coisa que não existem horários formais, e não tem também como uma senhora, uma moça, conciliar o trabalho de investigação, que eventualmente tem que virar a noite, tem que dormir na delegacia, tem que ficar fazendo uma campana numa vila, com a vida doméstica, ela tem filhos. [...] O homem, pela própria rusticidade natural, pelo que se espera dele como policial, a mulher sabe, quando casou com um policial, que ela vai ter que amargar eventualmente alguma solidão, porque ele vai estar trabalhando, vai estar empenhado em operações ou coisa desse tipo. Já a mulher, normalmente ela não entra na Academia de Polícia pensando que um dia ela vai estar exposta a esse tipo de coisa. Ela até imagina, “ah, vou de repente participar de uma invasão de uma casa, vou ter que prender alguém”, ou auxiliar nesse sentido, mas ela não se imagina tiroteando com alguém. [...] Não é uma discriminação da parte dos homens para as mulheres, na verdade é uma constatação delas, é uma constatação delas que tem gente mais apta para fazer aquele tipo de serviço do que elas. (Entrevista de pesquisa com escrivão).

O

conceito

de

dominação

simbólica

(Bourdieu,

1999a,

2001c)

é

especialmente útil para a compreensão desse tipo de afirmação sobre a divisão sexual das tarefas. Homens e mulheres que compartilham uma visão de mundo em que feminilidade e fragilidade estão associados pensam ser natural que as mulheres

271

não gostem de atuar em situações de confronto. Uma investigadora relatou outro aspecto da dificuldade das mulheres em relação à autoridade: Eu até sinto que existem algumas colegas que, quando têm que falar no rádio, elas se retraem um pouco, porque elas acham que, do outro lado, se é uma voz feminina que está sendo recebida, os colegas não dão muita atenção, mas eu não acho. Sempre falo, sou bem atendida. (Entrevista de pesquisa com investigadora).

Assumindo até mesmo a falta de credibilidade de suas vozes, tais policiais demonstram o grau de dificuldade que enfrentam em uma atividade ligada ao uso da força. Outras mulheres, por outro lado, são apresentadas como exemplo de utilização dos recursos tidos como femininos, como a sensibilidade e a empatia, para executar suas tarefas de forma muito eficiente. É o que se observa no relato feito por um delegado entrevistado, a propósito de uma investigadora com a qual trabalhou, e que preferia desempenhar atividades fora da delegacia. Teve uma, especificamente, uma investigadora que trabalhou comigo em [X], sim, aquela fazia questão de trabalho de rua. Ela pedia, ela fazia questão de trabalho de investigação, de rua. Era boa, muito boa, excelente funcionária. Eu acho que até ela era mais eficiente do que os homens porque ela tinha mais diplomacia, sabia chegar melhor, ela se tornava mais eficiente muitas vezes, em algumas coisas, do que os homens. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Tanto nas entrevistas como em todas as conversas e observações, a presença de mulheres nas atividades de maior risco foi apresentada como excepcional, como algo que uma determinada policial se propõe a fazer, e não algo que seja esperado dela. Um inspetor entrevistado relatou, sobre seu trabalho em um departamento onde as operações de risco são rotineiras, o que segue. Existem mulheres no plantão, mas muito pouco. A hegemonia das mulheres é no cartório, é serviço cartorário. Por quê? Porque ainda tem aquela coisa, a mulher é o sexo frágil, é a coisinha lindinha que tem que ser preservada dentro do cartório, batendo máquina. Mas essa realidade está mudando, eu conheço, por exemplo, a [Fulana], que é do cartório, mas numa operação lá no Morro Santa Tereza ela foi com a gente, botou arma na cintura e colete à prova de

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balas e foi, entende? Outras mulheres, não, outras mulheres inclusive não querem nem dirigir viatura, porque há muito tempo não dirigem, se pegar uma viatura é capaz de bater no primeiro poste. Já a [Fulana] não, ela é super ativa. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Considerando as restrições ao trabalho de mulheres nas atividades de policiamento ostensivo, Martin (1980) observou que os argumentos utilizados para defender a idéia de que a participação das mulheres em atividades na rua é dificultada por sua fragilidade física são mais emocionais do que racionais, recorrendo a situações extremas, como relata no trecho a seguir. Eles perguntam: “Como seria possível uma mulher de um metro e meio controlar um homem de dois metros de altura e mais de cem quilos?”, ignorando o fato de que uma policial mediana não tem um metro e meio de altura, e que a maioria dos policiais homens também não seria capaz de lidar sozinho com um cidadão tão grande. (Martin, 1980, p. 91, tradução nossa).

A capacidade física que precisa ser comprovada, dentro dessa forma de pensar, é a da mulher, presumindo-se que todos os homens são fortes e preparados para todo tipo de enfrentamento, e as mulheres, não. Um comissário entrevistado chamou a atenção para a especificidade da atuação policial em caso de agressão física. Ao ser questionado sobre a participação das mulheres em operações na rua, especialmente em relação à importância da força física, respondeu o seguinte: Não é fundamental. A força física não é fundamental. Por que? Essa é a diferenciação de nós, policiais. Nós temos uma arma de fogo. E Colt foi o primeiro que disse isso: a partir do momento que um cidadão tem uma arma de fogo, a arma de fogo fez com que perdessem importância as diferenças de tamanho e força. O que ele quis dizer com isso? Pode ser uma pessoa pequenininha, um metro e trinta, o cara pode ter duzentos quilos, ser um lutador de jiu-jitsu, se ele tiver uma arma na mão, ele ficou maior que essa pessoa. Então o policial tem essa arma. A mulher tem essa arma. Ela não vai fazer força física, e até se tiver, ela está preparada para isso também, porque as nossas técnicas são voltadas para quê? Para nunca ir para uma luta corporal, e sim sair de um raio de ação e sacar a arma e dominar a pessoa, com a arma de fogo, ali! Então o diferencial vai ser a arma de fogo. Então a arma de fogo é que faz a diferença, e até nós ficamos superiores às pessoas, porque nós temos uma arma

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de fogo. Esse que é o diferencial. (Entrevista de pesquisa com comissário).

A fala do comissário coloca a necessidade de avaliação, em cada confronto, da proporcionalidade dos recursos a serem utilizados. No caso de um oponente tão forte como aquele citado por Martin (1980), qualquer policial treinado dificilmente optaria por um embate corpo-a-corpo. A atitude protetora dos policiais homens em relação a suas colegas enquadrase no que Martin (1980) descreveu como uma profecia auto-realizável, no texto a seguir transcrito. Se o policial trata a policial como uma “rainha”, ela “relaxa”, agindo como uma rainha – e assim age de forma inadequada enquanto policial. O comportamento dela reforça o sentimento dele de que ela deve ser tratada diferentemente dos colegas homens, tornando seu trabalho mais duro mas preservando seu senso de masculinidade. Se, por outro lado, a mulher opta por não agir como uma rainha, torna-se uma ameaça ao ego do homem. (Martin, 1980, p. 93, tradução nossa).

Um exemplo de tratamento especial foi dado em entrevista por uma inspetora, relatando os cuidados de que era cercada quando ia entregar intimações, tarefa normalmente realizada pelos homens sozinhos, ou no máximo em dupla. O pessoal da investigação ia junto comigo, nunca saía intimação... mesmo antes de saber que eu estava grávida, o pessoal da delegacia da parte de intimação é que me levava, me acompanhava. Iam dois, eu ia atrás para entregar a intimação. Eles tinham assim uma atenção muito grande pelo meu trabalho ali, por ser mulher. (Entrevista de pesquisa com inspetora).

Tais cuidados em relação à colega mulher reforçam as noções a respeito de sua fragilidade, bem como a sensação de força dos colegas homens, que se colocam como seus protetores. Essa relação é o que, especialmente nas atividades desempenhadas na rua, justifica que se classifique as mulheres como um estorvo, por aumentarem a carga de trabalho dos colegas homens. Quanto ao suposto

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desempenho superior das mulheres na área do trabalho documental, ao ser naturalizado, não contribui para valorizá-las. 6.5.3 As mulheres no ambiente masculino A participação feminina no efetivo da Polícia Civil do Rio Grande do Sul tem aumentado, especialmente a partir da década de 1990.94 Mesmo assim, os homens ainda são a maioria, sendo as mulheres consideradas muitas vezes intrusas em um ambiente masculino. Durante a década de 1980, as poucas mulheres policiais eram tratadas de forma muito diferente de seus colegas homens, até mesmo porque sua presença expunha algumas características das condições de trabalho da categoria. Em relação aos locais de moradia dos policiais deslocados para cidades do interior, por exemplo, a presença de mulheres evidenciou sua precariedade, como se observa no relato de uma inspetora entrevistada, ao explicar o motivo de todas as mulheres de sua turma terem sido designadas para trabalhar em Porto Alegre. Porque as mulheres da turma anterior tinham dado muito problema, como eles falam entre aspas, nas delegacias, ...de instalação. Chegaram sozinhas, e a gente tem conhecimento que quando os homens chegaram no interior do Estado, se tinham problema para se instalar, onde ficar, acabavam morando na “zona”, como era chamada [risos]. Com as mulheres estavam surgindo problemas, as prefeituras estavam tendo que construir em cima da delegacia um alojamento, isso era um problema... (Entrevista de pesquisa com inspetora).

Segundo a entrevistada, até as mulheres chegarem, o fato de policiais homens serem obrigados a morar nos mesmos locais em que moravam prostitutas não era considerado problemático; as policiais mulheres tornaram um problema esta forma de solução para a moradia dos policiais recém-chegados ao deixar evidente o seu baixo nível salarial e a falta de condições de trabalho da categoria.

94

Dados a esse respeito encontram-se no Capítulo 5, nesta tese.

275

A presença de uma mulher em um local de trabalho anteriormente masculino, especialmente onde se cultiva um determinado tipo de masculinidade que inclui brincadeiras e comentários de conotação sexual, também provoca alterações no comportamento dos homens. Quando eu cheguei lá, todos os funcionários que trabalhavam lá, acostumados, “trocentos” anos sempre só com homem, contando piada, com revista de mulher pelada, aquelas piadas sujas, aquele negócio... Quando eu cheguei lá eles levaram um susto! Toda arrumada, toda pintada, toda assim... eu estraguei o clubinho deles. Não fui maltratada, mas eu criei um ambiente que... se eles iam contar uma piada suja, eles se trancavam. Eles iam fazer algum comentário, eles ficavam constrangidos. (Entrevista de pesquisa com inspetora).

Mesmo que o número de mulheres tenha aumentado, nos locais de trabalho com predomínio de policiais homens a presença de mulheres continua a ser marcada como algo específico, diferente. Observa-se que, no caso transcrito a seguir, a colega mulher é tratada como igual no que se refere ao desempenho de tarefas, as quais não envolvem contato direto com situações de risco, mas sempre é lembrada de sua condição de gênero através do que ela descreveu como um “assédio leve”, através de piadas e comentários. A gente sabe que tem um tipo de assédio, aquele assédio leve, aquelas piadinhas, aquelas coisas... Mas, se tu estiver falando no sentido profissional, eu fui bastante estimulada, eu recebi todo o apoio, porque 95% dos que trabalham lá no meu setor são homens. Eu aprendi da mesma forma que os colegas homens aprenderam. (Entrevista de pesquisa com investigadora).

Questionada mais diretamente sobre o tema do assédio sexual, a investigadora entrevistada explicou que normalmente não ocorrem atitudes agressivas, mas que isso depende também da reação da mulher, que precisa manter a situação dentro de limites aceitáveis para ela. Não é uma coisa pesada. Fazem muita brincadeira, então tu tem que saber brincar, tu não pode levar tudo a sério. Tu também não pode ser muito rígida, não topar nenhum tipo de brincadeira,

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nenhuma piadinha... que aí a coisa fica... como é que eu vou te explicar, pesada não é o termo, mas mantém uma coisa muito distante, um colega de ti, e aí fica uma coisa mais... Não fica descontraída a coisa, então tem que topar as brincadeirinhas, fazer uma brincadeirinha também, mas tudo num nível... Tem que ter limite. (Entrevista de pesquisa com investigadora).

As mulheres podem optar, segundo o relato da entrevistada, entre participar do jogo ou não, mas considera que essa última alternativa pode levar a um isolamento em relação ao grupo. Em relação à presença de mulheres na atividade policial, Martin (1980) apontou duas alternativas que se apresentam às mulheres policiais, conforme explica no texto transcrito a seguir. Uma policial deve optar entre desfeminização (e sua ênfase nas obrigações ocupacionais do papel) e desprofissionalização (e ênfase em corresponder às normas de papel sexual ao trabalhar). Àquelas que adotam a primeira opção, denominei mulheres policiais [policewomen]; àquelas que escolhem a segunda opção, mulheres policiais [policewomen]. (Martin, 1980, p. 186, tradução nossa).

Uma escrivã entrevistada, falando sobre as diferenças entre as escrivãs e as inspetoras, apresenta os termos descritivos de cada uma dessas categorias de um modo que lembra Martin, conforme se observa no trecho a seguir. A gente tem aquela idéia, mulher faz concurso para escrivão porque a gente não quer ir para a rua. Mulher faz essa opção. Até porque eu andei conversando, porque eu dei aula tanto para a turma de escrivão como para a turma de inspetor, e as meninas que fizeram concurso para inspetor, elas queriam ir para a rua, elas fizeram para inspetor conscientes. Eu perguntei, me deu curiosidade de saber por que elas se inscreviam para inspetor, e eu perguntei: vocês têm consciência de que vocês vão para a rua? “A gente quer ir para a rua”. Tu vê a diferença de postura. Não que as outras sejam masculinas, “machorras” ou qualquer termo pejorativo, mas elas são mais práticas, mais ágeis, um porte melhor, um jeito de se vestir mais despojado, sabe. Eu também tenho um jeito mais despojado de me vestir, apesar de não ter esse perfil de ir para a rua. Mas as escrivãs, não, as escrivãs são todas mais ajeitadinhas, mais arrumadinhas, o cabelinho, as coisinhas, tu sente no olhar, tu sente a diferença. (Entrevista de pesquisa com escrivã).

Assim, as “mulheres-policiais”, nos termos utilizados por Martin (1980), seriam aquelas que a entrevistada descreve como “mais ajeitadinhas, mais arrumadinhas”,

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enquanto as “mulheres-policiais” seriam “mais práticas, mais ágeis, um porte melhor”. É interessante notar que a própria escrivã se descreve como tendo “um jeito mais despojado” de se vestir, indicando que a diferença estaria mais na postura, no olhar, do que propriamente no tipo de vestimenta. Corroborando os achados enfatizados na literatura especializada, todas as observações empíricas realizadas durante a pesquisa para o presente estudo confirmam a existência de uma divisão sexual do trabalho policial, que reserva as tarefas desempenhadas na rua e as que envolvem o uso da arma de fogo para os homens, e para as mulheres, as tarefas de caráter administrativo ou cartorial. 6.5.4 Questões de gênero no uso da arma de fogo O uso da força física e da arma de fogo é uma área decididamente masculina no ambiente policial. Todos os instrutores das disciplinas ligadas à defesa pessoal e ao uso da arma de fogo nos cursos da Academia de Polícia Civil (e também na Brigada Militar) são homens. Em 2002, realizou-se pela primeira vez um curso de formação de instrutores de tiro, em conjunto com a Brigada Militar, com a participação de duas policiais civis, as únicas mulheres da turma. Para a disciplina de Defesa Pessoal, contratou-se em 2003 a primeira mulher, uma moça com extensa formação em artes marciais e não integrante dos quadros da Polícia. A posição das mulheres em relação às armas de fogo varia, mas aparentemente a maioria delas tem alguma dificuldade com o assunto. Muitas não andam armadas, embora isto seja obrigatório, preferindo sofrer alguma sanção disciplinar do que assumir o risco de portar uma arma. Este medo também aparece entre os homens, mas as mulheres são mais claras ao enunciar sua justificativa: em caso de assalto, a arma denuncia a condição de policial, podendo levar à execução da vítima. De acordo com essa visão, o preço pago por um policial que anda armado

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é um estado de alerta permanente, na tentativa de não ser surpreendido em uma eventual situação de assalto. Em todas as entrevistas da pesquisa foi feita uma pergunta sobre o uso da arma de fogo, equipamento obrigatório para os policiais civis. A resposta de uma inspetora foi a que segue. Usava. Eu usava porque viajava bastante. Desde que a PM Carina95 morreu, naquele ônibus, eu parei de usar arma e parei de usar a carteira funcional. Todas as minhas colegas também. A gente pesa na balança: entre responder uma sindicância por não estar com a arma e não estar com a arma, a gente prefere do que ser apanhada dentro duma lotação ou dum ônibus, com a arma e com a insígnia de polícia. (Entrevista de pesquisa com inspetora).

Uma investigadora, ao responder negativamente à mesma pergunta, explicou seus motivos, ligados à falta de treinamento no uso da arma. Eu acho que deveria haver mais reciclagens, com mais condições materiais para a gente fazer isso, mais vezes, com mais armas... Porque se tu é obrigado a carregar uma arma, tu tem que saber utilizá-la, senão não vale a pena usar. É por isso que eu não uso a minha, eu deixo a minha em casa. Não uso a minha, ainda mais se estiver num ônibus, uma coisa assim. Por que? Porque eu não tenho a segurança de saber que eu vou sacar e vou fazer a coisa certa. E que o momento em que tu tira a arma, que tu expõe a arma, tu tem que saber que quem está dentro de um ônibus assaltando está pronto para qualquer coisa. (Entrevista de pesquisa com investigadora).

A situação de assalto, especialmente em um ônibus, é freqüentemente referida pelos policiais, em entrevistas ou em conversas informais, como uma situação de alto risco. A presença de outras pessoas, possíveis vítimas em uma troca de tiros, assim como a impossibilidade de fuga, dificultam a possível reação do policial. Um episódio ocorrido em 2 de junho de 2005, em Esteio (Região Metropolitana de Porto Alegre), quando um policial civil matou dois assaltantes e feriu um terceiro, mostra uma das possibilidades de desenvolvimento da situação; anteriormente, em 27 de agosto de 2001, entretanto, em um ônibus da mesma 95 Referência ao homicídio da policial militar Carina Macedo, de 28 anos, ocorrido em 21 de dezembro de 2001, durante um assalto a ônibus. Os assaltantes a identificaram como policial devido às algemas que levava na bolsa, obrigaram-na a ajoelhar-se no chão e mataram-na com um tiro na cabeça.

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empresa e no mesmo local, um assalto terminou com a morte de um assaltante e de um policial civil, que trabalhava em Novo Hamburgo. Em relação ao episódio de 2005, o jornal Zero Hora apresentou um depoimento do inspetor Rogério Mendes Bilhalva, transcrito a seguir. Uso essa linha todo dia. Entrei pela porta da frente e sentei perto do motorista. Logo em seguida foi anunciado o assalto na catraca. Veio na minha cabeça a morte do colega aqui mesmo (Mauro Vieira Rodrigues, 34 anos, assassinado em 27 de agosto de 2001 por assaltantes). Aí, me apavorei. Levantei e pedi ao motorista para parar o ônibus para eu descer. Queria evitar um tiroteio. Eles vieram em mim. Um disse: “Não te coça, magrão”. Meu medo era ter de entregar a carteira profissional, ele ver que é polícia e me apagar. Ele se virou para o motorista e disse: “Não pára, não pára” e atirou nele. Em vez de eu puxar a carteira, puxei o revólver. Ele correu para a porta. Atirei. Vi mais dois correndo para a rua. (Costa, J., 2005).

O depoimento de uma escrivã entrevistada revela suas dificuldades em relação à arma de fogo, bem como o esforço bem sucedido para superá-las. Falando sobre o curso de formação, ela relatou sua decepção com as disciplinas da área jurídica (sua formação acadêmica era em Direito) e sua satisfação com outras áreas. Eu gostei muito da Saúde Física, tanto a parte de Educação Física quanto a parte de Defesa Pessoal, porque eu nunca tinha feito nenhum tipo de arte marcial. Me impressionei muito com os professores de Tiro, inclusive com meu professor do Básico, um capitão da Brigada que nos deu aula. Aquele senhor tinha uma paciência de Jó, ele conseguiu me fazer pegar uma arma, porque eu nunca tinha pegado uma arma, até porque a minha mãe nos ensinou, e nos incutiu na cabeça que, de olhar, a arma atirava! Então aquele capitão teve uma paciência, não lembro o nome dele, mas teve uma extrema paciência, foi mãe, assim, sabe. Porque eu consegui pegar na arma, consegui parar de tremer... Tremia, fazia assim... Não conseguia puxar o gatilho. Era o medo aliado à falta de força, mas eu acho que quando eu perdi o medo, veio a força. (Entrevista de pesquisa com escrivã).

Pode parecer estranho o fato de alguém com tantas dificuldades em relação ao uso da arma de fogo ter prestado concurso para a Polícia Civil, mas é freqüente a presença de alunos, homens e mulheres, no curso de formação de escrivão de polícia com a idéia de que sua atividade profissional não envolverá a participação

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em situações de confronto. A falta de força para puxar o gatilho, seja de um revólver ou de uma pistola, é muito comum entre as mulheres, até mesmo entre as policiais com vários anos de trabalho. Mais do que o aspecto físico, a dificuldade psicológica parece desempenhar importante papel nesse problema.96 Professores de tiro, em conversas informais, relataram casos de alguns alunos, tanto homens quanto mulheres, que apresentaram quadros agudos de ansiedade ao segurarem uma arma de fogo pela primeira vez, com tremores musculares, sudorese e intenso mal estar. Os significados atribuídos à arma de fogo podem alterar-se à medida em que novas experiências são vividas pelo indivíduo. A mesma escrivã acima citada, que não conseguia segurar um revólver sem tremer, passou a considerar sua arma como um objeto que lhe transmitia segurança, conforme se observa no relato a seguir transcrito. Ao caminhar por uma rua próxima à delegacia em que trabalhava, identificou três homens caminhando em sua direção como sendo infratores já autuados nessa mesma delegacia, com sua participação ativa. Começou a caminhar mais rápido, com a intenção de entrar em um bar antes que eles a vissem, e colocou a mão dentro de sua bolsa, onde carregava a arma. Em pensei em pegar a arma. [...] Eu apressei o passo, sem correr, e eu ia entrar no bar. O tocar na arma é mais como uma sensação de garantia, sei lá, não sei como explicar. Porque a minha intenção não era atirar, a minha intenção era entrar no bar, porque eu fiz um cálculo aproximado, assim, que se eu apressasse o passo e eles não apressassem o deles, eles continuassem vindo na forma que eles estavam vindo, eu conseguia entrar no restaurante antes deles chegarem em mim. O meu medo era que eles me reconhecessem e aí puxassem a arma, por isso que eu peguei a arma. O meu medo era que eles me reconhecessem, porque eu os reconheci de longe. (Entrevista de pesquisa com escrivã).

Apesar de exercer atividades no cartório da delegacia e de não se dispor a participar de ações na rua, essa escrivã se viu envolvida em uma situação de risco, 96 Essa observação foi feita por professores da área de armamento e tiro em conversas não gravadas, mas não foram localizados estudos específicos sobre o tema. A autora desta tese manuseou um revólver calibre 38 e uma pistola .40, sem munição, e avaliou como muito pequena a força necessária para acionar o gatilho de qualquer uma das armas.

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e um risco devido especificamente à sua condição de policial. Seu medo não era o de qualquer outra mulher andando na mesma rua, mas o medo de ser reconhecida como policial. Tocar na arma representou para ela, naquele momento, sentir-se mais protegida, mesmo que não tivesse a intenção de chegar a atirar. Assim, a arma anteriormente ameaçadora passou a ser um recurso para a defesa e, mais do que isso, algo que transmitia segurança e tranqüilidade. Entre os homens entrevistados, o uso da arma de fogo não se dava da mesma forma, variando desde aqueles que estão sempre com a arma até aqueles que não a usam nunca, não sendo nem mesmo capacitados tecnicamente a usá-la. O primeiro caso citado a seguir é o de um delegado, que concedeu a entrevista em seu gabinete, estando sua pistola em cima da mesa, bem à vista. Vou até fazer educação física armado. Tenho bem consciência de que eu estou numa área perigosa, que eu estou numa área sensível, e que isso aí tem que estar presente. Minha casa tem alarme, tem cachorro. Os meus filhos sabem atirar, atiram bem, a mulher também atira, todos eles atiram. [...] Se eu estou na rua, minha arma está na minha cintura, ela está carregada. Porque é o seguinte, eu só consigo relaxar, se a gente pode considerar relaxamento, quando eu tiro férias. Quando eu tiro férias, vou viajar, vou para outro Estado, minha arma fica. [...] Nós somos polícia 24 horas por dia. (Entrevista de pesquisa com delegado).

Uma questão apresentada a um inspetor foi sobre seu procedimento para entrar em um banco, pois alguns policiais costumam deixar a arma no carro, por exemplo, para evitar a necessidade de identificar-se para o vigilante que controla a porta com detector de metais. Seus comentários a esse respeito são os que seguem. Outro dia até briguei com um gerente do Banrisul, porque eu mostrei a carteira, aí chamaram o cara lá, todo um constrangimento... Até xinguei ele bastante. Na Caixa Federal, por exemplo, não tem problema nenhum, mas tem outros bancos em que é preciso chamar alguém, essa pessoa tem que te autorizar a entrar, pede documento... São constrangimentos que tu tem, são constrangimentos. [...] Ando sempre armado, até em aniversário de criança vou armado, vou no parque armado. [...] Tu é policial 24

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horas por dia. Esses dias, sexta à noite, eu estava com um amigo meu, nós ali na Érico Veríssimo, tinha uma mulher que estava sendo assaltada, eu impedi o assalto. [...] À medida em que o tempo vai passando, tu prende muita gente, tu não sabe, está com a tua família, não sabe se vai precisar da arma. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

Esse inspetor usou a mesma expressão do delegado anteriormente citado: “ser policial 24 horas por dia”. Essa idéia, mesmo que freqüentemente repetida por todos os policiais, não traz as mesmas conseqüências para todos. Outro inspetor entrevistado, por exemplo, afirmou que só costuma usar a arma quando está trabalhando, pois não pretende agir sozinho, sem as necessárias medidas de segurança. Em suas palavras, “a menor unidade policial é formada por duas pessoas”, não sendo recomendável agir isoladamente. Ao responder sobre os motivos pelos quais não estava armado no momento da entrevista, o inspetor referiu o aspecto do incômodo físico provocado pelo revólver (“cutuca a perna, deixa marcas na pele”), mostrando uma preocupação com o conforto e com o bem estar que os homens usualmente não revelam. Primeiro porque é incômodo, um revólver é do tamanho de um bonde. Ando com um 38. Então, é incômodo, cutuca a perna, deixa aquelas marcas na pele, é incômodo. E em segundo por isso que eu te disse, eu não vou impedir um assalto. Tem três, quatro caras dentro do banco, mais três, quatro caras dentro de um carro, eu sozinho vou impedir um assalto? Eu não estou aqui para morrer! Eu sou policial mas eu não sou louco, entende? Então, se eu estou numa operação, se eu vou sair com outros colegas, eu vou estar armado. [...] Mas um policial típico, ele está sempre armado, sempre, sempre, sempre armado. Eu não tenho a ilusão de que sozinho eu vou impedir um assalto à mão armada num banco, não tenho essa ilusão. Só uso arma quando eu estou no serviço, mesmo. Agora, por exemplo, eu chego de tarde e a primeira coisa que eu faço, eu ponho a arma na cintura. Vou para o centro agora, sem estar armado, sem problema. Tem uma lei que exige que se ande armado. Eu estou correndo o risco, de por exemplo, se um delegado perguntar, “Está armado aí? Vamos fazer uma missão.” “Ah, delegado, deixei minha arma na delegacia.” "Mas como?" Não vou ser punido por isso, vou levar um xingão, uma coisa assim. (Entrevista de pesquisa com inspetor).

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A situação de evitar um assalto, apresentada de forma hipotética pelo inspetor entrevistado, ocorre no cotidiano dos policiais civis, conforme se observa no caso apresentado a seguir. O policial civil Pedro Paulo Cardoso de Paiva, 49 anos, foi baleado no ombro direito quando chegava em uma pastelaria no bairro Partenon, na Capital. Por volta das 16h30min, dois homens invadiram a Pastelaria Bom Recheio, na Rua Albion, e anunciaram o assalto. Neste momento, o policial chegava ao local em seu carro. Segundo a 15a Delegacia da Polícia Civil, Paiva disse que percebeu o assalto e fez menção de reagir, mas não teve tempo. [...] Atendido no Hospital de Pronto Socorro, Paiva foi liberado. Conforme testemunhas, os tiros partiram de dois ladrões que davam cobertura, do lado de fora, para a dupla que tinha invadido a pastelaria. Depois de atingir o policial, os ladrões fugiram para lados opostos. Um quinto homem, que estava em um Astra roubado, deu cobertura ao grupo, que teria saído pela Avenida Bento Gonçalves em direção ao Morro da Cruz. (Loeblein, 2005).

Nesse tipo de situação, o policial não tem como se opor a um número superior de assaltantes armados, mas pode ocorrer uma reação involuntária de pegar a arma, ou o reconhecimento, pelos assaltantes, da condição de policial. Assim, o policial que está sempre armado (com mais de uma arma, muitas vezes) é obrigado a estar constantemente alerta a qualquer sinal de risco, controlando suas reações para não reagir quando a situação for desfavorável. No ponto extremo da aversão ao uso da arma de fogo, um delegado, cuja carreira desenvolveu-se quase que exclusivamente em delegacias, afirmou que nunca portou sua arma. Não, nunca. Quando protocolei minha aposentadoria já devolvi a arma e a algema, isso trinta dias antes de sair. [...] Nunca gostei de arma. Não gosto de arma, não... Não aprendi a manejar a arma na Academia. (Entrevista de pesquisa com delegado).

A falta de hábito de usar a arma levou esse delegado a uma situação que foi relatada em meio a risadas, mas que poderia ter sido fatal, como se observa no texto a seguir.

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A única vez que eu tive medo foi quando, trazendo presos dentro da viatura, eu sozinho com dois presos na viatura, um deles me cutucou e me alcançou o revólver que eu tinha esquecido no banco de trás. [...] Na correria de prender os caras, todo mundo saiu da viatura, correndo, levei dois na viatura comigo. E aí o cara me cutucou no ombro: “Delegado, o senhor esqueceu o seu revólver aqui atrás, a sua arma.” A partir daí nunca mais fiz isso... (Entrevista de pesquisa com delegado).

Desse momento em diante, o delegado decidiu não mais portar a arma de fogo, seguindo o conselho que os policiais dão aos cidadãos comuns: a arma portada por pessoa não habilitada ao uso representa mais um risco, e não maior segurança. O que pode ser destacado em seu relato é o fato de não sentir-se diminuído em sua auto-avaliação pelo fato de não saber utilizar a arma de fogo. Essa característica foi colocada pelo entrevistado como um simples fato, uma constatação que não o prejudicava em nada, e inclusive não o impedia de acompanhar os agentes em ações na rua. A partir do caso desse delegado, observa-se um aspecto importante no que diz respeito às práticas e representações de gênero na Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Em termos de capital simbólico, pode-se dizer que, sendo homem e ocupando o cargo de delegado, seu valor já estava assegurado, não precisando ser comprovado através de ações. Se a coragem e capacidade operacional das mulheres estão constantemente à prova, não sendo dadas como garantidas, um delegado não perde prestígio ou o respeito dos demais mesmo que não use arma de fogo. Os agentes homens, por sua vez, já não desfrutam de uma posição de tanto poder na instituição, precisando confirmar publicamente sua capacidade de uso da força através do porte da arma. O modelo prevalecente de relação entre os gêneros, entretanto, não é unânime entre os homens e mulheres policiais. Mesmo entre os policiais mais velhos, que ingressaram na carreira em uma época em que esse modelo era mais

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difundido no meio policial, verificou-se, no decorrer deste estudo, que existem aqueles cuja noção de masculinidade baseia-se em outros aspectos, tais como uma atitude de proteção à sua família e às mulheres em geral, mas aceitando com mais facilidade a convivência em iguais condições com colegas mulheres. Em relação à Polícia Civil do Rio Grande do Sul, o crescente ingresso de mulheres, tanto como delegadas quanto como inspetoras e escrivãs, coloca em questionamento as representações que associam feminilidade a fragilidade e submissão, levando a uma relação desigual de poder entre os gêneros. Ao mesmo tempo em que esse processo se desenvolve, também está em curso um questionamento acerca do uso da violência no trabalho policial. A partir das mudanças mais amplas na sociedade brasileira, que passou de um regime autoritário para outro, mais democrático, esse debate veio a se implementar também no âmbito da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. A ênfase da linha pedagógicopolítica adotada atualmente na formação e treinamento dos policiais, quanto à necessidade de qualificação, tanto em termos de conhecimento jurídico como de técnicas de uso da força, diminuindo o risco à integridade física de todos os envolvidos, é um dos resultados desse movimento. Dessa forma, os atributos associados a uma masculinidade violenta, como a força física, a agressividade e a dificuldade para compreender o ponto de vista do outro, embora ainda ocupem considerável espaço no trabalho policial, vêm, pouco a pouco, sendo substituídos pelo uso moderado da força, adequado à situação, e por uma representação de si como agente da lei.

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Conclusão Ao longo das últimas três décadas, a sociedade brasileira passou por importantes transformações, entre as quais podem-se apontar a passagem do regime militar para uma ordem formalmente democrática, o crescimento expressivo das relações informais de trabalho e emprego, assim como do ingresso das mulheres no mercado de trabalho e a elevação do acesso da população brasileira à escolarização. Essas mudanças convergem de forma relevante sobre o estudo do trabalho policial civil, exigindo que sua abordagem sociológica desenvolva um enfoque analítico que faça convergir os recursos de diversas áreas temáticas, especialmente as do trabalho, das profissões, das relações de gênero e da violência, como se procurou proceder nesta tese. A seguir, será realizada a exposição de cada um dos eixos analíticos do presente estudo, organizados em capítulos. No Capítulo 1, as questões colocadas na literatura específica dos estudos sobre o trabalho policial foram apresentadas e discutidas, especialmente as definições de polícia e o tema da cultura policial. Dentre os diferentes ângulos de análise construídos por estudiosos da sociologia das profissões, destacou-se o processo de profissionalização do trabalho policial, detectado ao longo do estudo sobre a Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. O conceito de campo jurídico, assim como o conceito de habitus, relacionado ao primeiro, foram apresentados no Capítulo 2, como ponto de partida para a análise do trabalho policial. A Polícia Civil, da forma como existe no Brasil, é a instituição responsável pela investigação dos delitos e por sua tradução em termos jurídicos, situando-se em uma posição periférica no campo de poder jurídico. A Polícia Civil

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subordina-se formalmente ao Poder Executivo estadual, cujas disputas políticas também se refletem na instituição policial civil. Mudanças relevantes na composição da categoria, detectadas na análise dos critérios de seleção e da forma de treinamento dos policiais civis no Rio Grande do Sul, ocorridas ao longo dos últimos 20 anos, ou seja, após o fim do regime militar, foram contempladas no Capítulo 3. Os requisitos de seleção para o ingresso são hoje mais exigentes, a forma de seleção se tornou pública e o conteúdo do treinamento inicial passou a incorporar novos temas, ligados a questões como a promoção dos direitos humanos e a qualificação para o uso comedido da força. Anteriormente, durante o período do regime militar, especialmente entre 1964 e o final dos anos 1970, mecanismos que estimulavam o recrutamento interno foram implantados, reforçando o corporativismo e o isolamento da instituição. Os processos seletivos adotados à época abriam espaço para a aplicação de critérios particularistas, excluindo possíveis postulantes, cujos atributos eram então classificados negativamente. Dentre os indivíduos e grupos política, ideológica e socialmente discriminados quanto às suas oportunidades de ingresso na polícia civil, a participação das mulheres foi enfocada na presente tese. A partir de 1985, com a introdução da disciplina de Direitos Humanos nos cursos de formação da Academia de Polícia Civil, constatam-se os primeiros sinais de que a retomada da atividade política no âmbito da sociedade civil, já em curso desde meados da década anterior, refletia-se na Polícia Civil. O processo seletivo, entretanto, mudou, de forma radical, somente em 1997, quando se tornou público o fato de que procedimentos de cunho particularista, que ainda eram adotados até então, não garantiam igualdade formal de oportunidades a todos os candidatos. Além da forma de seleção dos ingressantes, os cursos de formação, através dos quais os novos policiais

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estabeleciam os primeiros contatos com a instituição, também foram se tornando mais extensos e complexos. O processo de seleção tornou-se mais transparente, passando a ser de conhecimento público os critérios de avaliação dos candidatos, e a aplicação dos testes, realizada da mesma forma para todos. Tanto as disciplinas a serem ministradas, como os conteúdos das disciplinas já existentes, foram alterados, especialmente a partir do governo Olívio Dutra (1999-2002), com vistas a elevar a qualidade da formação dos novos policiais. As

atividades

desenvolvidas pelos policiais civis em seu cotidiano

constituíram o foco do Capítulo 4. Através da análise do tipo de conhecimento envolvido, das divisões e distinções estabelecidas no desempenho dessas atividades, detectou-se a existência de disputas entre os próprios policiais civis, em torno da definição (imposição) dos atributos considerados necessários ao policial civil. Ao mesmo tempo, e não menos relevante, constatou-se um certo grau de unidade, por vezes tácita, em torno da luta conjunta da corporação pelo controle da investigação criminal, travada especialmente face à Brigada Militar, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Delegados e agentes situam-se em posições opostas, na medida em que existe divisão entre coordenação e execução das atividades. Essas mesmas posições, porém, podem ser aproximadas, independentemente de critérios hierárquicos, no sentido de representarem um mesmo agrupamento de uma outra divisão, como a que classifica o policial "operacional" e o "burocrata". Destaca-se que essas classificações não são fixas, como se imaginou inicialmente, pois diversos entrevistados afirmaram que uma das condições do que vem a ser, em sua visão, o bom policial, é a de poder trabalhar tanto na investigação, no pólo mais operacional, quanto em uma atividade estritamente administrativa, como o controle de material.

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A identificação de um perfil sócio-demográfico dos aprovados nos concursos para os cargos policiais civis, ao longo das últimas três décadas, foi apresentada no Capítulo 5. A partir das informações disponíveis, detectou-se crescente participação de mulheres entre os aprovados nos concursos de admissão a todos os cargos. Ademais, verificou-se a diminuição da proporção de indivíduos que iniciam sua carreira na polícia civil como inspetores, escrivães, investigadores ou comissários e que, posteriormente, são aprovados em concurso para o cargo de delegado. Paralelamente, aumentou o número de candidatos externos à polícia civil para esse cargo. A análise das promoções, que permite visualizar a ascensão entre as classes de um mesmo cargo, mostrou que as mulheres foram promovidas mais rapidamente do que os homens em quase todas as classes dos cargos de escrivão, inspetor e investigador, ao contrário do que inicialmente se poderia esperar. Mantendo presentes os critérios de mérito, a maior rapidez dessas promoções se explica, também, pelo fato de as policiais, em grande parte, situarem-se em atividades desenvolvidas nos cartórios e nas secretarias das delegacias, bem como nos setores administrativos, localizados no Palácio da Polícia. Em contraste, os policiais, em maior proporção do que suas colegas de trabalho, inserem-se em atividades consideradas "de rua", mais suscetíveis a gerar situações em que venham a enfrentar procedimentos disciplinares, cujos desdobramentos podem acarretar o retardamento de sua promoção. No entanto, cabe ressaltar que, apesar dos avanços em direção a formas burocrático-legais, critérios clientelísticos de promoção ainda se fazem presentes. Entre os ocupantes do cargo de delegado, o mais elevado na hierarquia funcional, observou-se que os homens estão melhor posicionados na carreira do que

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suas colegas de profissão. A presença de apenas uma delegada na quarta classe do cargo reflete, ainda hoje, os mecanismos que operavam até 1997, que restringiam a aprovação de mulheres nos concursos para o cargo de delegado. No Capítulo 6, discutem-se as relações entre gênero, violência e trabalho policial. É sabido que a noção de masculinidade aceita por parcelas importantes da população inclui, de forma naturalizada, a disposição dos homens para a violência física. Em conseqüência disso, além da vitimização de mulheres e crianças, os próprios homens tornam-se sujeitos preferenciais de homicídios, muitas vezes provocados por motivos banais. Essa noção também leva a que mulheres enfrentem dificuldades para o exercício de funções de poder e de imposição. Trata-se aqui de uma expressão da violência simbólica que, conforme Bourdieu (1999a), refere-se à adoção, por atores sociais que se situam no espaço de poder como dominados, de categorias de classificação e de percepção que incorporam a relação de dominação, levando-os a aceitar como naturais as limitações que lhes são impostas. Cumpre levar em consideração, entretanto, que se as condições objetivas se modificam, a percepção delas também se altera. No caso da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, o ingresso crescente de mulheres em todos os cargos, inclusive o de delegado, configura uma nova situação. Se as mulheres foram apresentadas em muitos estudos sobre a violência na condição de vítimas, como destacou Heidensohn (1992), sua participação em atividades de imposição da lei e de proteção aos cidadãos traz uma nova imagem. As mulheres vítimas de violência que vão a uma delegacia especializada, por exemplo, encontrando inspetoras, escrivãs e delegadas para atendê-las, podem encontrar apoio às suas demandas, ao mesmo tempo, o questionamento da aceitação da fragilidade associada à sua condição de gênero.

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O ingresso de mulheres em cargos públicos, aos quais têm acesso mediante concurso público, é uma forma de escapar aos mecanismos de discriminação do mercado de trabalho. Sua conseqüência, através da tendência ao equilíbrio na composição de gênero de diversas funções, é o estabelecimento de uma situação objetivamente diferente da anterior, na medida em que diminuem as diferenças de remuneração e de acesso ao poder entre homens e mulheres. A pesquisa para a elaboração desta tese realizou-se no âmbito da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, e a generalização de suas conclusões não pode ser feita sem mediações. A partir da literatura acerca do trabalho policial, foram identificados alguns pontos comuns, compartilhados pela atividade de policiamento, de um modo geral. À medida em que essas leituras foram aprofundadas, percebeuse a importância da realização de estudos específicos a cada contexto sóciohistórico. A função policial, de imposição da lei, da ordem, é comum, mas as condições em que se realiza apresentam ampla variação. Podem ser citadas como evidências dessas diferenças entre as polícias civis, no Brasil, o nível de remuneração, a composição de gênero do efetivo, o número de policiais em relação à população, a forma de seleção dos novos policiais (critérios de qualificação e aplicação de provas), o treinamento recebido na instituição, bem como os recursos materiais de que se dispõe para a organização e para a realização do trabalho. A partir do quadro que Zaverucha (2003) observou nas delegacias de polícia de Recife, por exemplo, pode-se afirmar que as diferenças em relação às delegacias de Porto Alegre são importantes, contrastando especialmente a presença, em Recife, de homens detidos nas próprias delegacias, mantidos em condições degradantes (despidos, em celas lotadas e sujas). O policial que exerce sua

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atividade em um ambiente como esse está submetido a pressões de ordem psicológica, além do risco de vida que essa situação representa. Tendo em vista a análise realizada para a presente tese, pode-se afirmar que as maiores diferenças entre as polícias civis brasileiras decorrem da forma como se apresentam, em cada Estado considerado, as relações de poder entre as diversas posições ocupadas no campo jurídico, a começar pela própria autonomia relativa do campo jurídico. Se não se constitui um campo de poder específico, em que o Direito é a linguagem comum aos participantes, as disputas tendem a ocorrer de forma a favorecer o lado mais forte, política e economicamente, inclusive no que respeita aos conflitos criminais. Assim, o trabalho da polícia civil tende a perder sua orientação por princípios jurídicos, tornando-se o uso da força seu principal (e até mesmo exclusivo) modo de atuar. À medida em que o campo jurídico se configura com relativa autonomia, em uma sociedade democrática, crescem em importância os aspectos jurídicos segundo os quais os conflitos de caráter criminal são avaliados pelo Poder Judiciário, o que repercute sobre a polícia civil, no sentido da valorização do conhecimento jurídico e dos procedimentos legais em suas atividades. O presente estudo, acerca da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, permitiu refletir sobre as possibilidades de definir formas de atuação policial civil que levem em conta, além da eficiência, no sentido de elucidação da autoria dos delitos, a incorporação de procedimentos que promovam os direitos de cidadania de todos os envolvidos.

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RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais. Estatísticas segundo semestre 2002. In: Diário Oficial do Estado, p. 33-38, 10 mar. 2003c. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Concurso para Juiz de Direito Substituto. Edital nº 01/2003 (2003d). Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2005. RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.102, de 28 de maio de 2004. Introduz modificações na Lei nº 10.994, de 18 de agosto de 1997, que estabelece a organização básica da Polícia Civil, dispõe sobre sua regulamentação e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2004a. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Fazenda. Boletim Informativo de Pessoal, n. 63, mar. 2004. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2004b. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Boletim de Estatísticas (segundo semestre 2003). In: Diário Oficial do Estado, p. 35-41, 27 fev. 2004c. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais. Boletim Estatístico (primeiro semestre 2004). In: Diário Oficial do Estado, p. 41-47, 01 set. 2004d. RIO GRANDE DO SUL. Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos. Concurso para a Polícia Civil. 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2005a. RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Academia de Polícia Civil. Edital nº 01/2005. Edital de abertura para concurso público de ingresso na carreira de escrivão de polícia. Diário Oficial do Estado, p. 75-79, 8 set. 2005b. RIO GRANDE DO SUL. Polícia Civil. Academia de Polícia Civil. Edital nº 02/2005. Edital de abertura para concurso público de ingresso na carreira de inspetor de polícia. Diário Oficial do Estado, p. 79-81, 8 set. 2005c. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Justiça e da Segurança. Departamento de Relações Institucionais. Estatísticas segundo semestre 2004. In: Diário Oficial do Estado, p. 48-55, 25 fev. 2005d. ROCHA, Maria Isabel Baltar da (org.). Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios. Campinas, SP: ABEP: NEPO/UNICAMP; São Paulo: Editora 34, 2000. ROVINSKI, Sonia Liane Reichert. Dano psíquico em mulheres vítimas de violência. Rio de Janeiro: Lumen, 2004. SANKIEVICZ, Alexandre. Políticas públicas para a redução dos índices de letalidade da ação policial. Brasília: Câmara dos Deputados – Consultoria Legislativa. (Estudo, maio 2005) Disponível em: . Acesso em 04 ago. 2005. SILVA FILHO, José Vicente da; NETTO, José Peres. Um novo mapa da criminalidade na cidade de São Paulo. Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, [1999]. Disponível em: . Acesso

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em: 25 fev. 2001. SILVA, Aloísio Firmo Guimarães da; ARAÚJO, Maria Emília Moraes de; CORRÊA, Paulo Fernando. A investigação criminal direta por Promotor de Justiça. Disponível em: . Acesso em 15 out. 2004. SKOLNICK, Jerome H.; FYFE, James J. Above the law: police and the excessive use of force. New York: The Free Press, 1993. SKOLNICK, Jerome. Justice without trial: Law enforcement in democratic society. 3rd ed. New York: Macmillan, 1994. SOARES, Barbara Musumeci; MUSUMECI, Leonarda. Mulheres policiais: presença feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SOARES, Gláucio Ary Dillon; BORGES, Doriam. A cor da morte. Ciência Hoje, v. 35, n. 209, p. 26-31, out. 2004. STANKO, Elizabeth A. Challenging the problem of men’s individual violence. In: NEWBURN, Tim; STANKO, Elizabeth (ed.) Just boys doing business? Men, masculinities and crime. London: Routledge, 1996. p.32-45. TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial, consenso e violência. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, São Paulo, v.9, n.1, p. 155-167, maio 1997. TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Risco de vida e vidas em risco. In: RIO GRANDE DO SUL. Assembléia Legislativa. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. Relatório Azul. Porto Alegre, 1999. p. 315-319. VAN MAANEN, John. “Making rank: becoming an American Police Sergeant.” In: DUNHAM, Roger G.; ALPERT, Geoffrey P. (org.) Critical issues in policing: contemporary readings. 3rd ed. Prospect Height, Illinois: Waveland Press, 1997. p. 167-183. VIDA POLICIAL. Porto Alegre: Repartição Central de Polícia, 1938-?. VIANNA, Luiz Werneck et al. 3. ed. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997. VITORELLO, Márcia A. Masculinidade e trabalho: o caso dos motoristas de caminhão. In: STREY, Marlene Neves et al. (org.) Gênero por escrito: saúde, identidade e trabalho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 95-108. WEBER, Max. A política como vocação. In: ______. Ciência e política: duas vocações. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 53-124. WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: ___. Weber. 3. ed. São Paulo: Ática, 1986. p. 128-141. (Grandes Cientistas Sociais, 13) WEISELFISZ, Jacobo. Mapa da violência III: os jovens do Brasil. Brasília: UNESCO: Instituto Ayrton Senna: Ministério da Justiça/Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2002. WESTLEY, William A. Violence and the police. The American Journal of Sociology, Chicago, v. LIX, n. 1, p. 34-41, Aug. 1953. WESTLEY, William A. Violence and the police: a sociological study of law, custom,

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Apêndice A – Roteiro de entrevista 1. Etapa do ciclo de vida Data e local de nascimento; composição atual da unidade doméstica: esposo (a), companheiro (a), filhos, outros familiares, demais pessoas residentes no domicílio; escolaridade, atividade, contribuição para o rendimento familiar (número de pessoas e posição na unidade doméstica); renda familiar. 2. Origem social familiar Família de origem (pais, irmãos): escolaridade, atividade de trabalho, renda familiar (composição:

trabalho,

aposentadoria,

pensão;

suficiência

para

os

gastos

necessários) 3. Educação escolar e profissional Escolaridade do entrevistado: quando, onde, tempo de permanência na escola regular Educação profissional do entrevistado: curso superior, outros cursos e treinamentos; trabalho anterior ao ingresso na polícia A Academia de Polícia: curso de formação e outros 4. Expectativas em relação ao trabalho policial Motivação para o ingresso na polícia: conhecimentos e experiências pessoais (presença de amigos, conhecidos, familiares; episódios; informações). Reação dos amigos e familiares à decisão. Expectativas em relação ao trabalho policial: salário, atividade, carreira, prestígio. 5. Conteúdo do trabalho Tarefas desempenhadas, passadas e atuais: o que se faz, quem faz, descrição do conteúdo das tarefas, variação das atividades ao longo do tempo

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6. A construção de uma carreira: ingresso, cargos ocupados, formas de promoção Cargos ocupados, locais de trabalho ao longo do tempo Promoções: tipo (merecimento ou antigüidade), fatores apontados como positivos e negativos em relação a elas 7. Aspectos positivos e negativos da profissão: fatores institucionais e individuais Carências e obstáculos enfrentados pela instituição; pontos positivos. Conseqüências positivas e negativas da condição de policial em nível individual. 8. Trabalho policial e masculinidade: representações de gênero Divisão das tarefas segundo os gêneros: tarefas representadas como masculinas e femininas, tarefas efetivamente desempenhadas por homens e mulheres Posição do indivíduo em relação à questão de gênero: opinião sobre a diferença entre homens e mulheres como chefes e como colegas, expectativas sentidas em relação ao seu próprio desempenho enquanto homem ou mulher policial 9. Representações sobre as qualidades e conhecimentos necessários ao trabalho policial; o policial ideal confrontado ao policial real Exigências do trabalho policial: qualidades pessoais, conhecimentos científicos, escolaridade, conhecimentos práticos Diferenças entre o modelo ideal de policial e os policiais realmente existentes: características, causas 10. A identidade profissional – representações de si e do “outro”: policiais militares, delegados / agentes, público em geral Posição da polícia na sociedade em geral: relações com a imprensa, Ministério Público, Justiça, Polícia Militar e com a população em geral

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Semelhanças e diferenças entre policiais civis e militares; relações entre ocupantes dos diversos cargos da Polícia Civil Participação em sindicatos e associações profissionais: motivos para participar ou não, expectativas Influência da profissão na vida pessoal: relações com familiares, amigos e conhecidos; nível de satisfação

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Apêndice B – Número de alunos aprovados nos cursos de formação para cargos policiais realizados pela Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, por ano e cargo

Ano 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981

Escrivão Inspetor 47 96 23 83 84 85 47 133 132 69 0 203 376 389 0 192 153 240 601 810 620 389 324 298

Investigador

391 388 0 194 99 94 0 0 0 0 159 157

Delegado 46 0 0 27 14 13 31 18 31 48 0 37 2 32 16 20 22 25 48 22 38 15 10 29

Ano

1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 Total

Escrivão Inspetor

Investigador

Delegado

407 139 175 0 0 0 0 0 0 0 93 489 704 1.397 0 0 0 0 0 454 0 613 0 9.865

280 87 45 173 162 0 31 415 148 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2.823

40 18 34 34 0 41 0 82 27 0 113 0 0 0 0 0 19 178 0 0 0 0 53 1.183

Fonte: Arquivo da Academia de Polícia Civil. Fundos Divisão de Ensino e Divisão de Recrutamento e Seleção. Cálculos elaborados pela autora. Dados aproximados, pois as fontes apresentam, em alguns casos, informações contraditórias.

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Apêndice C – Artigos selecionados do Código Penal

Crime consumado

Tentativa Crime doloso

Crime culposo

Exclusão de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Estado de necessidade

Legítima defesa

Ação pública e de iniciativa privada

PARTE GERAL TÍTULO II DO CRIME Art. 14 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. § 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. TÍTULO VII DA AÇÃO PENAL Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo.§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal. § 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. PARTE ESPECIAL

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TÍTULO I DOS CRIMES CONTRA A PESSOA CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA A VIDA Homicídio simples Art 121. Matar alguém Induzimento, Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe instigação ou auxílio a auxílio para que o faça suicídio Infanticídio Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após Aborto provocado Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem pela gestante ou com lho provoque seu consentimento Aborto provocado por Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante terceiro Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante Aborto necessário Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. CAPÍTULO II DAS LESÕES CORPORAIS Lesão corporal Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem Lesão corporal de natureza grave Lesão corporal seguida de morte Lesão corporal culposa Violência Doméstica § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, (Incluído pela Lei nº irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha 10.886, de 2004) convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004) § 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). CAPÍTULO III DA PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE Perigo para a vida ou Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e saúde de outrem iminente Abandono de incapaz Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria Omissão de socorro Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública

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Maus-tratos

Rixa

Calúnia Difamação Injúria

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina CAPÍTULO IV DA RIXA Art. 137 - Participar de rixa, salvo para separar os contendores CAPÍTULO V DOS CRIMES CONTRA A HONRA Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro

CAPÍTULO VI DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL SEÇÃO I DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL Constrangimento Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ilegal ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda Ameaça Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave Seqüestro e cárcere Art. 148 - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou privado cárcere privado Redução a condição Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer análoga à de escravo submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) SEÇÃO II DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO Violação de domicílio Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências § 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder. § 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências: I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência; II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser. SEÇÃO III DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DE CORRESPONDÊNCIA [Violação de correspondência; Sonegação ou destruição de correspondência; Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica; Correspondência comercial]

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SEÇÃO IV DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DOS SEGREDOS Divulgação de Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de segredo documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem [...] § 1º Somente se procede mediante representação. § 1o-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) § 2o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) Violação de Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência correspondência fechada, dirigida a outrem Correspondência Art. 152 - Abusar da condição de sócio ou empregado de comercial estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo Divulgação de Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de segredo documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem Violação do segredo Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem profissional ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem TÍTULO II DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO CAPÍTULO I DO FURTO Furto Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel Furto de coisa comum Art. 156 - Subtrair o condômino, co-herdeiro ou sócio, para si ou para outrem, a quem legitimamente a detém, a coisa comum CAPÍTULO II DO ROUBO E DA EXTORSÃO Roubo Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havêla, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. § 1º - Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro. § 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade: I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma; II - se há o concurso de duas ou mais pessoas; III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância. IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior; (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996) V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)

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Extorsão

Extorsão mediante seqüestro Extorsão indireta

Alteração de limites

Supressão ou alteração de marca em animais

Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90 Art. 160 - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da situação de alguém, documento que pode dar causa a procedimento criminal contra a vítima ou contra terceiro CAPÍTULO III DA USURPAÇÃO Art. 161 - Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia Art. 162 - Suprimir ou alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio, marca ou sinal indicativo de propriedade

CAPÍTULO IV DO DANO Dano Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia Introdução ou Art. 164 - Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem abandono de animais consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte em propriedade prejuízo alheia Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico Alteração de local especialmente protegido

Art. 165 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico Art. 166 - Alterar, sem licença da autoridade competente, o aspecto de local especialmente protegido por lei

CAPÍTULO V DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA Apropriação indébita Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção CAPÍTULO VI DO ESTELIONATO E OUTRAS FRAUDES Estelionato Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento CAPÍTULO VII DA RECEPTAÇÃO Receptação(Redação Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em dada pela Lei nº proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou 9.426, de 1996) influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. TÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE IMATERIAL CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE INTELECTUAL

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Violação de direito autoral

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

TÍTULO IV DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Atentado contra a Art. 197 - Constranger alguém, mediante violência ou grave liberdade de trabalho ameaça I - a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias II - a abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica Atentado contra a Art. 198 - Constranger alguém, mediante violência ou grave liberdade de contrato ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a de trabalho e outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto boicotagem violenta industrial ou agrícola TÍTULO V DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO Ultraje a culto e Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de impedimento ou crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou perturbação de ato a prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de ele relativo culto religioso CAPÍTULO II DOS CRIMES CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS Impedimento ou Art. 209 - Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária perturbação de cerimônia funerária Violação de sepultura Art. 210 - Violar ou profanar sepultura ou urna funerária Destruição, subtração Art. 211 - Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele ou ocultação de cadáver Vilipêndio a cadáver Art. 212 - Vilipendiar cadáver ou suas cinzas TÍTULO VI DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL Estupro Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça Atentado violento ao Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave pudor ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90 Posse sexual Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005) Atentado ao pudor mediante fraude

Art. 216. Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeterse à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)

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Assédio sexual (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função." (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001) CAPÍTULO II DA SEDUÇÃO E DA CORRUPÇÃO DE MENORES Corrupção de Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de menores 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo CAPÍTULO V DO LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOAS (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005) Mediação para servir Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem a lascívia de outrem Favorecimento da Art. 228 - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou prostituição impedir que alguém a abandone Casa de prostituição Art. 229 - Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente Rufianismo Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça Tráfico internacional Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território de pessoas (Redação nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída dada pela Lei nº de pessoa para exercê-la no estrangeiro (Redação dada pela Lei 11.106, de 2005) nº 11.106, de 2005) Tráfico interno de pessoas (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005)

Ato obsceno Escrito ou objeto obsceno

Bigamia

Registro de nascimento inexistente

Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005)

CAPÍTULO VI DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno TÍTULO VII DOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA CAPÍTULO I DOS CRIMES CONTRA O CASAMENTO Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento CAPÍTULO II DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DE FILIAÇÃO Art. 241 - Promover no registro civil a inscrição de nascimento inexistente

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Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido Sonegação de estado de filiação

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981)

Art. 243 - Deixar em asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar direito inerente ao estado civil CAPÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A ASSISTÊNCIA FAMILIAR Abandono material Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Entrega de filho Art. 245 - Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em menor a pessoa cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou inidônea materialmente em perigo (Redação dada pela Lei nº 7.251, de 1984) Abandono intelectual Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar CAPÍTULO IV DOS CRIMES CONTRA O PÁTRIO PODER, TUTELA CURATELA Induzimento a fuga, Art. 248 - Induzir menor de dezoito anos, ou interdito, a fugir do entrega arbitrária ou lugar em que se acha por determinação de quem sobre ele exerce sonegação de autoridade, em virtude de lei ou de ordem judicial; confiar a outrem incapazes sem ordem do pai, do tutor ou do curador algum menor de dezoito anos ou interdito, ou deixar, sem justa causa, de entregá-lo a quem legitimamente o reclame Subtração de Art. 249 - Subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de incapazes quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial TÍTULO VIII DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA CAPÍTULO I DOS CRIMES DE PERIGO COMUM Incêndio Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem Explosão Art. 251 - Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos CAPÍTULO II DOS CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E TRANSPORTE E OUTROS SERVIÇOS PÚBLICOS CAPÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA Epidemia Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos

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Infração de medida sanitária preventiva

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa

Omissão de Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública notificação de doença doença cuja notificação é compulsória Envenenamento de Art. 270 - Envenenar água potável, de uso comum ou particular, água potável ou de ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo substância alimentícia ou medicinal Corrupção ou poluição de água potável

Art. 271 - Corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde

Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica

Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites

Charlatanismo

Art. 283 - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível

Curandeirismo

Art. 284 - Exercer o curandeirismo I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos TÍTULO IX DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA Incitação ao crime Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime Apologia de crime ou Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de criminoso autor de crime Quadrilha ou bando Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes TÍTULO X DOS CRIMES CONTRA A FÉ PÚBLICA CAPÍTULO I DA MOEDA FALSA Moeda Falsa Art. 289 - Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro Crimes assimilados Art. 290 - Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda ao de moeda falsa com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros; suprimir, em nota, cédula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, sinal indicativo de sua inutilização; restituir à circulação cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para o fim de inutilização CAPÍTULO II DA FALSIDADE DE TÍTULOS E OUTROS PAPÉIS PÚBLICOS

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Falsificação de papéis Art. 293 - Falsificar, fabricando-os ou alterando-os públicos I – selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão legal destinado à arrecadação de tributo; (Redação dada pela Lei nº 11.035, de 2004) II - papel de crédito público que não seja moeda de curso legal; III - vale postal; IV - cautela de penhor, caderneta de depósito de caixa econômica ou de outro estabelecimento mantido por entidade de direito público; V - talão, recibo, guia, alvará ou qualquer outro documento relativo a arrecadação de rendas públicas ou a depósito ou caução por que o poder público seja responsável; VI - bilhete, passe ou conhecimento de empresa de transporte administrada pela União, por Estado ou por Município CAPÍTULO III DA FALSIDADE DOCUMENTAL Falsificação de Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou documento público alterar documento público verdadeiro Falsificação de documento particular

Art. 298 - Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro

Falsidade ideológica

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte. Falsidade de atestado Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado médico falso Uso de documento falso Supressão de documento

Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302

Art. 305 - Destruir, suprimir ou ocultar, em benefício próprio ou de outrem, ou em prejuízo alheio, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia dispor CAPÍTULO IV DE OUTRAS FALSIDADES Falsa identidade Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem Adulteração de sinal Art. 311 - Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer identificador de sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou veículo automotor equipamento (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996) TÍTULO XI DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CAPÍTULO I DOS CRIMES PRATICADOS POR FUNCIONÁRIO PÚBLICO CONTRA A ADMINISTRAÇÃO EM GERAL

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Peculato

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio Inserção de dados Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção falsos em sistema de de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos informações (Incluído nos sistemas informatizados ou bancos de dados da pela Lei nº 9.983, de Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para 2000) si ou para outrem ou para causar dano (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) Modificação ou Art. 313-B. Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de alteração não informações ou programa de informática sem autorização ou autorizada de sistema solicitação de autoridade competente (Incluído pela Lei nº 9.983, de informações de 2000) Extravio, sonegação Art. 314 - Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que tem ou inutilização de livro a guarda em razão do cargo; sonegá-lo ou inutilizá-lo, total ou ou documento parcialmente Emprego irregular de Art. 315 - Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da verbas ou rendas estabelecida em lei públicas Concussão Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida Excesso de exação § 1º - Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990) Corrupção passiva Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem Facilitação de Art. 318 - Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou contrabando ou descaminho (art. 334) descaminho Prevaricação Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal Condescendência Art. 320 - Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar criminosa subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente Advocacia Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado administrativa perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário Violência arbitrária Art. 322 - Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la Abandono de função Art. 323 - Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei Violação de sigilo Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e funcional que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação CAPÍTULO II DOS CRIMES PRATICADOS POR PARTICULAR CONTRA A ADMINISTRAÇÃO EM GERAL

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Usurpação de função pública Resistência

Art. 328 - Usurpar o exercício de função pública

Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio Desobediência Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público Desacato Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela Tráfico de Influência Art. 332 - Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, (Redação dada pela vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato Lei nº 9.127, de 1995) praticado por funcionário público no exercício da função (Redação dada pela Lei nº 9.127, de 1995) Corrupção ativa Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício Contrabando ou Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo descaminho ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria Subtração ou Art. 337 - Subtrair, ou inutilizar, total ou parcialmente, livro oficial, inutilização de livro ou processo ou documento confiado à custódia de funcionário, em documento razão de ofício, ou de particular em serviço público CAPÍTULO II-A (Incluído pela Lei nº 10.467, de 11.6.2002) DOS CRIMES PRATICADOS POR PARTICULAR CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTRANGEIRA CAPÍTULO III DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA Denunciação Art. 339. Dar causa a instauração de investigação policial, de caluniosa processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente (Redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000) Comunicação falsa de Art. 340 - Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a crime ou de ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter contravenção verificado Auto-acusação falsa Art. 341 - Acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por outrem Falso testemunho ou Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como falsa perícia testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001) Coação no curso do Art. 344 - Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de processo favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral Exercício arbitrário Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer das próprias razões pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite Fraude processual Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito Favorecimento Art. 348 - Auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor pessoal de crime a que é cominada pena de reclusão Favorecimento real Art. 349 - Prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime

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Exercício arbitrário ou abuso de poder Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança Evasão mediante violência contra a pessoa Arrebatamento de preso Motim de presos

Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder Art. 351 - Promover ou facilitar a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança detentiva.

Art. 352 - Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa Art. 353 - Arrebatar preso, a fim de maltratá-lo, do poder de quem o tenha sob custódia ou guarda Art. 354 - Amotinarem-se presos, perturbando a ordem ou disciplina da Patrocínio infiel Art. 355 - Trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado Sonegação de papel Art. 356 - Inutilizar, total ou parcialmente, ou deixar de restituir ou objeto de valor autos, documento ou objeto de valor probatório, que recebeu na probatório qualidade de advogado ou procurador Exploração de Art. 357 - Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, prestígio a pretexto de influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito, tradutor, intérprete ou testemunha CAPÍTULO IV DOS CRIMES CONTRA AS FINANÇAS PÚBLICAS(Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000) Contratação de operação de crédito; Inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar; Assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura; Ordenação de despesa não autorizada (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000); Prestação de garantia graciosa (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000); Não cancelamento de restos a pagar; Aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura; Oferta pública ou colocação de títulos no mercado

Fonte: BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Texto compilado disponível em: Acesso em: 20 jan. 2005. Artigos selecionados pela autora.

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