O Tractatus: roteiro de leitura a partir de uma \"ideia básica\"

June 5, 2017 | Autor: Marcelo Carvalho | Categoria: Wittgenstein, Filosofía
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O TRACTATUS: ROTEIRO DE LEITURA A PARTIR DE UMA “IDÉIA BÁSICA”

Marcelo Carvalho Universidade Federal de São Paulo

Publicado como: CARVALHO, Marcelo. O Tractatus: roteiro de leitura a partir de uma idéia básica. In: Sobre o conhecimento, a lógica e a ética. São Bernardo do Campo: Ed. Universidade Metodista, 2008.

Wittgenstein apresenta no parágrafo 4.0312 do Tractatus uma indicação de qual poderia ser o ponto de partida para a compreensão das concepções sobre lógica e filosofia ali apresentadas: Minha idéia básica é que as “constantes lógicas” não substituem; que a lógica dos fatos não se deixa substituir. Essa concepção se desdobra na afirmação de que “não há objetos lógicos” (TLP 4.441) e no conjunto de proposições dedicados exclusivamente a esse tema, iniciado em TLP 5.4. Wittgenstein parte da recusa direta da concepção compartilhada por Frege e Russell de que os conectivos lógicos (“e’, “ou”, “não”, etc), seriam “objetos lógicos”, e que, portanto, apareciam na proposição como o nome desse tipo de entidade. Os conectivos indicariam operações realizadas a partir dos objetos e fatos do mundo, e não entidades de qualquer natureza. Isso seria mostrado, por exemplo, pela possibilidade de representar a proposição “A e B” sem o uso do conectivo “e” e sim por meio da seguinte tabela de verdade:

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A

B

V

V

V

V

F

F

F

V

F

F

F

F

Assim, como afirma o próprio parágrafo 4.0312, A possibilidade da proposição repousa sobre o princípio de substituição do objeto por sinais Dessa concepção sobre os “objetos lógicos” deriva, de maneira direta, tanto a concepção da proposição como figuração da realidade, núcleo da ontologia do Tractatus, quanto a distinção entre proposições “moleculares” e proposições elementares. As proposições moleculares são resultantes da aplicação de operações lógicas (conjunção, negação, etc) a proposições elementares, como no caso acima, em que a proposição “A e B” é resultado de uma operação lógica a partir de “A” e de ”B”. Pode-se assim afirmar que uma proposição molecular é função de verdade de proposições elementares (TLP, 5), ou seja, que, como os conectivos lógicos são apenas operadores de um cálculo lógico e não têm significado, a verdade de uma proposição depende unicamente da verdade das proposições básicas a partir das quais se compõe. E assim, de forma trivial, temos que “A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma” (TLP, 5), que sua verdade não depende – e não pode depender – da verdade de qualquer outra proposição. A indicação de Wittgenstein no parágrafo 4.0312 parece adequada, na medida em que o núcleo principal de problemas que move o Tractatus de Wittgenstein parece colocar-se a partir da concepção sobre os sinais lógicos e as proposições que consideramos brevemente até aqui. De um lado, temos aberto o terreno para a formulação do projeto de análise lógica da linguagem, ou seja, de explicitação de como a verdade de uma proposição (em meio ao debate sobre a ciência ou qualquer outro tema) depende da verdade das proposições a partir das quais se constitui (e, em última instância, da verdade de proposições elementares). De outro lado, a recusa da existência de objetos lógicos implica na necessidade de 2

caracterizar a relação entre as proposições elementares e os fatos que elas representam sem que se recorra a nada além dos próprios objetos – e dos nomes que os substituem na proposição. A resposta de Wittgenstein a esse segundo problema é, por sua vez, a base dos demais desdobramentos do Tractatus: a concepção da proposição como “figuração” de fatos (e, portanto, da linguagem como “imagem” do mundo). A relação entre um fato e uma proposição que figure esse fato se estabelece por estarem os elementos da figuração (elementos que convencionalmente correspondem aos objetos que se relacionam no fato figurado) na mesma relação que os objetos que figuram. Assim, no exemplo de Luiz Henrique L. dos Santos, Brigadeiro --- Trianon --- Consolação é uma figuração adequada de um trecho do metrô paulistano, por estarem os elementos da figuração em relação equivalente àquela que os elementos que ela representa mantêm no mundo. Assim, para que uma figuração seja figuração de um fato, algo deve ser comum a ambas, algo para além da convencionalidade da representação dos objetos por um sinal qualquer: a forma lógica da figuração e do fato figurado deve ser a mesma. Mais ainda, essa forma lógica não é um “objeto” (afinal, não há “objetos lógicos”), e como uma figuração consiste em apresentar a relação entre objetos por meio de sinais, a própria forma lógica não pode ser figurada. Isto quer dizer que aqui, já no início de nossa investigação da relação entre linguagem e mundo, da relação de figuração, nos deparamos com o “limite da linguagem” (caso se possa falar assim com sentido): a “forma lógica” se situaria para além da possibilidade da figuração e, portanto, da própria linguagem e do pensamento. Sobre essa forma, pressuposta à relação de afiguração entre uma proposição e um fato, Wittgenstein dirá que só se pode mostrá-la, inaugurando a distinção entre dizer (figurar) e mostrar que atravessa o Tractatus. Podemos ir mais adiante e explicitar que se as proposições, na medida em que são figurações de fato, só podem representar fatos, relações entre objetos, então nada do que não seja um fato pode ser dito ou pensado (na medida em que “o pensamento é a proposição com sentido”, TLP, 4). Nem mesmo os objetos podem ser pensados fora dos fatos de que participam, pois se não estiverem em relação com outros objetos não podem ser figurados (TLP, 3.221). O conceito de

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“limite da linguagem” de Wittgenstein apresenta-se de maneira bastante clara e palpável, desdobrando-se em um projeto de revisão de nosso discurso sobre a experiência e sobre os temas da filosofia cujo principal objetivo será “eliminar” os “pseudo-problemas”, mostrando que sua origem era uma compreensão equivocada da estrutura lógica da linguagem. Dessa perspectiva a proximidade do projeto do Tractatus com a filosofia crítica kantiana é evidente. A apresentação de uma figuração possível, ou melhor, de uma relação possível entre objetos, que corresponda a um fato no mundo é uma figuração verdadeira. A figuração de um fato possível que não ocorra no mundo é uma proposição falsa. A proposição assim concebida tem como características fundamentais uma complexidade essencial, afinal ela representa relações a partir das relações entre as partes de que se constitui, e a bipolaridade, a possibilidade de ser verdadeira ou falsa (ainda que a compreensão de seu sentido, ou seja, a figuração de como deveria ser o mundo para que ela fosse verdadeira, independa da verificação de sua verdade), o que diferencia completamente o sentido da proposição da significação do nome: A proposição não é uma mistura de palavras. – (como o tema musical não é uma mistura de sons.) A proposição é articulada (TLP, 3.141) Só fatos podem exprimir sentido, uma classe de nomes não pode. (TLP, 3.142) Na medida em que a proposição limita-se a figurar fatos, resulta que tudo o que pode ser dito ou pensado com sentido são fatos. Mais ainda, na medida em que todas as proposições são funções de verdade de proposições elementares e as proposições elementares são funções de verdade de si mesmas (ou seríamos levados a uma regressão ao infinito), essas proposições elementares são independentes entre si, a verdade de uma não mantendo qualquer relação com a verdade de qualquer outra. Ou seja, o pensamento limita-se a fatos, todos eles de igual valor, independentes entre si. Qualquer coisa que não seja um fato entre outros não pode ser pensado ou dito, de tal forma que só se pode conceber o mundo como um conjunto de fatos (TLP, 1.1), todos eles contingentes (só há necessidade na lógica, mas ela não trata do mundo nem de qualquer objeto realmente existente, apenas da “gramática” da linguagem). Assim,

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Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo. (TLP, 5.6) e O que não podemos pensar, não podemos pensar; portanto, tampouco podemos dizer o que não podemos pensar. (TLP, 5.61) Esse movimento de sua investigação possibilita ao Tractatus transitar de uma análise lógica da linguagem para o terreno da ontologia, estabelecendo a estrutura básica do mundo (ontologia que é apresentada por Wittgenstein na abertura do Tractatus: “O mundo é tudo que é o caso”, TLP, 1), e para uma avaliação do estatuto do conhecimento em cada âmbito em que ele se apresente. Após estabelecer a concepção de linguagem como figuração do mundo, o Tractatus se alonga primeiramente na caracterização de que a linguagem e o pensamento se limitam à figuração de fatos e, em seguida,, na caracterização da independência e igual valor das proposições lógicas, desdobrando as implicações dessa concepção para a lógica e matemática, de um lado (que são tratadas da perspectiva do “cálculo”, como operações, não dizendo nada sobre o mundo e sequer tendo “sentido”), e para a ciência empírica, de outro, evidenciando a contingência de qualquer teoria sobre o mundo, mesmo de princípios que pareceriam universais, como o princípio de causalidade. Toda necessidade é lógica e essa se refere apenas à estrutura da gramática de nossa linguagem, não aos fatos no mundo de que trata essa linguagem. Por fim, no que se refere à ética e à estética, na medida em que valores dessa ordem não seriam fatos entre outros, a serem descritos como relações entre objetos, e na medida em que nada de “extraordinário” poderia ser representado na linguagem, apenas fatos de igual valor, eles não poderiam estar no mundo: No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de todo acontecer e serassim. Pois todo acontecer e ser-assim é casual. (TLP, 6.41) Essa é a perspectiva a partir da qual Wittgenstein afirma que não pode haver “proposições na ética”: Proposições não podem exprimir nada de mais alto. (TLP, 6.42) 5

Tal qual a forma lógica da proposição, também a ética (e a estética: “ética e estética são uma só”) se situaria para além dos limites do discurso com sentido, para além dos limites da linguagem. Ao tentar apresentá-la no interior da linguagem figuraríamos apenas fatos contingentes, nunca algo de valor. De maneira trivial, portanto, tudo o que é realmente importante está para além dos limites da linguagem. Entretanto, ainda de maneira análoga à forma lógica compartilhada pela proposição e pelo fato figurado, da qual não se podia falar, mas que se podia mostrar, também o “Místico”, como Wittgenstein chama esse inefável, que estaria para além dos limites do pensamento, pode-se mostrar. Há, por certo, o inefável. Isso se mostra, é o Místico. (TLP, 6.522) A distinção entre dizer e mostrar, entretanto, ela própria, como, no mais, boa parte do que se diz no Tractatus, como o conceito de figuração e Forma lógica, a afirmação de que haveria um limite da linguagem, etc. nada disso pode ser concebido como uma relação entre fatos. Portanto, toda a filosofia apresentada pelo Tractatus é, por seu próprio critério, sem sentido, não é uma figuração de fatos, de tal forma que, diz Wittgenstein, Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos (TLP, 6.54) e, assim, deve, “por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela”. O conjunto do texto se apresenta como uma espécie de “terapia”, que nos levaria a ver o mundo de outra maneira, uma atividade que nos “mostra” os limites da linguagem e o estatuto de nossos discursos, ainda que, como atividade, nos mostre muito que não poderia ser dito, ou que use, para fazê-lo, proposições sem sentido. O resultado desejado dessa atividade não é uma teoria qualquer sobre o mundo, nem um conjunto qualquer de verdades, mas que se veja “o mundo corretamente”. Para além desse exercício de tatear os limites da linguagem e da experiência do inefável, o Tractatus termina de maneira lacônica com sua proposição de número 7: Sobre aquilo que não se pode calar, deve-se calar (ainda que o próprio livro não tenha, como vimos, seguido esse seu preceito).

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Bibliografia FREGE, G. Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo, 1978. FREGE, G. Fundamentos da Aritmética. Ed.Abril, Col. Os Pensadores, S.Paulo. HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: Editora UNESP, 2002 KNEALE, W. & KNEALE, M.. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1972. RUSSELL, Bertrand. “Da denotação”. São Paulo: Abril Cultural, 1980. SALMON, W. Lógica. 9a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. “A Essência da Proposição e a Essência do Mundo”. In: Wittgenstein, L. Tractatus. São Paulo: Edusp. TUGENDHAT, E. & WOLF, U. Propedêutica lógico-semântica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo, Edusp, 1995.

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