O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

May 25, 2017 | Autor: Paulo Manuel Costa | Categoria: Human Trafficking, Imigration, Imigração, Tráfico de pessoas
Share Embed


Descrição do Produto

WORKING PAPER N.º 03

O TRÁFICO DE PESSOAS E O AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL EM PORTUGAL: ANÁLISE DE PROCESSOS JUDICIAIS

PAULO MANUEL COSTA 2006

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

2

NOTA

Este artigo foi elaborado com base em informação recolhida num projecto de investigação desenvolvido, em 2004, por uma equipa de investigadores no SOCIUS (ISEG/UTL), com o apoio da FCT/ACIME. Nesse sentido, para a elaboração deste artigo beneficiamos desse trabalho conjunto com António Goucha Soares, Catarina Sabino, João Peixoto, Sónia Pereira e Susana Murteira. O tratamento da informação neste artigo e as opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade do autor.

Março de 2006. Paulo Manuel Costa

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

3

ÍNDICE

1. Introdução

4

2. Enquadramento geral

4

3. Conceito de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal

6

4. Criminalidade organizada

7

5. A situação em Portugal

10

5.1. Entrada e permanência em Portugal

14

5.1.1. Mão-de-obra

15

5.1.2. Prostituição/Alterne

17

5.2. Intervenção de grupos criminosos

21

6. Conclusão

24

7. Bibliografia

26

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

4

1. Introdução Os Estados têm progressivamente fechado as fronteiras à imigração legal, com base em considerações relativas à segurança interna e ao elevado número de estrangeiros residentes, os quais, supostamente, constituiriam uma ameaça à ordem interna e à identidade nacional, apesar de economicamente continuarem a necessitar de um elevado volume de mão-de-obra. Deste modo, e perante a procura de mão-de-obra, estão criadas as condições para o florescimento de actividades ligadas à introdução clandestina de imigrantes e ao tráfico de pessoas, não apenas pela grande criminalizada organizada (que se ocupa igualmente do tráfico de droga e de armas e do contrabando de tabaco e bebidas alcoólicas), mas também por pequenas redes especializadas. Em termos da agenda político-mediática, a questão do tráfico de pessoas em Portugal foi colocada em primeiro plano com o afluxo de imigrantes em situação irregular provenientes do Leste da Europa. Com efeito, o facto de alguns grupos criminosos, e um tipo de criminalidade a que o país não estava habituado, terem ganho uma certa visibilidade, catapultaram esta temática para o primeiro plano das preocupações das autoridades portuguesas. O objectivo deste trabalho é verificar o modo como os imigrantes irregulares entraram e permaneceram em Portugal, bem como, a participação de grupos criminosos nesse processo, analisando, para o efeito, os processos judiciais que em Portugal julgaram casos de tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal, falsificação de documentos e extorsão. 2. Enquadramento geral Após a queda do Muro de Berlim, verificou-se um afluxo significativo de nacionais dos países excomunistas aos Estados da Europa Ocidental. Para Portugal, esse afluxo representou uma novidade em termos do panorama nacional da imigração, dado que o número de estrangeiros titulares do estatuto de residente originários desses países era até aí pouco significativo (cfr. quadro n.º 1).

Quadro n.º 1 – N.º de estrangeiros residentes e titulares de autorização de permanência, por ano e por nacionalidade Nacionalidade Bulgária Letónia Moldávia Roménia Rússia Ucrânia

Residentes 1998 318 2 169 375 100

Residentes 2001 431 12 44 507 597 196

Aut. permanência 2001/02 2.687 223 12.050 10.453 6.829 62.149

Aut. permanência 2003 158 8 582 473 218 2.546

Residentes 2003 698 29 266 766 852 519

Fonte: Elaborado com base em dados do SEF, 1999, 2002, 2003 e 2004.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

5

No total, em 1998, esses estrangeiros representavam 1,18% (2.105 pessoas) dos titulares do estatuto de residente em Portugal. No entanto, no final de 2002, correspondiam a 56,76% (99.083 autorizações de permanência) do total das autorizações de permanência concedidas, sendo que pela primeira vez eram registados em Portugal nacionais de países como o Quirguizistão (39 autorizações de permanência concedidas), Azerbeijão (3) ou Tadjiquistão (3). Mas não foram apenas os cidadãos do leste europeu a “beneficiarem” da concessão das autorizações da permanência, sendo especialmente significativo o caso dos brasileiros que em 2001 tinham 23.541 pessoas com o estatuto de residente e a quem foram concedidas 35.272 autorizações de permanência. Com efeito, as autorizações de permanência vieram introduzir alterações significativas no quadro imigratório nacional1, praticamente duplicando a população estrangeira a viver em Portugal com um título de residência válido. No entanto, dado que para a obtenção de uma autorização de permanência, o interessado, para além de já ter entrado em território nacional, teria que apresentar um contrato de trabalho, a concessão deste título de residência deveria corresponder, em princípio, a uma necessidade do mercado de trabalho português2. Como foi possível o afluxo prévio de um tão grande número de estrangeiros a Portugal? Nos anos 90 do século passado, Portugal organizou dois processos extraordinários de regularização de estrangeiros indocumentados, o que para além de ter permitido regularizar a situação de 68.173 estrangeiros (SEF, 1999, 2002, Processo de regularização), também serviu para passar para o exterior a imagem de um país em que é fácil obter documentos que permitam a regularização. Por outro lado, existe um número significativo de indivíduos em situação irregular na União Europeia, a denominada “reserva de clandestinos”, que, perante a hipótese da abertura de um processo de regularização, rapidamente se desloca para o país em causa, aproveitando a abolição das fronteiras internas, na esperança de conseguir regularizar a sua situação. Por fim, a necessidade de mão-de-obra sentida pela economia portuguesa, nomeadamente, para sectores como a construção civil, criaram condições para o interesse dos empresários e o consequente ingresso e contratação de imigrantes3. Portanto, foi um conjunto variado de factores que permitiu o afluxo de estrangeiros e a atribuição de um número significativo de autorizações de permanência (174.558 títulos de residência). A existência destes novos fluxos imigratórios provenientes do leste europeu coloca-nos a questão da sua formação e funcionamento, dado que não se aplicam aqui factores como as ligações históricas entre países ou a existência de prévias redes sociais. É neste contexto que se coloca a hipótese de 1

Para uma apreciação desse impacto, cfr. Costa, 2004b: 121-124. Sobre o papel dos mercados de trabalho e do Estado na regulação dos fluxos migratórios, cfr. Peixoto, 2002: 494-496. 3 Hollifield chama a atenção para a existência de um mercado internacional de trabalho na Europa, no qual é extremamente difícil ao Estado impedir as empresas e os empregadores de participarem (1992: 94). 2

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

6

serem fluxos organizados, em que intervém grupos criminosos, que atentos à possibilidade de obterem lucros significativos, edificam estratégias que permitem canalizar a oferta de mão-de-obra para onde existe procura.

3. Conceito de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal Importa, desde logo, fazer uma clarificação conceptual entre o tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal (“smuggling”). O Código Penal português define como tráfico de pessoas, o aliciamento, transporte ou acolhimento de pessoas para a prática da prostituição ou de actos sexuais de relevo, com a utilização de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta ou abuso de autoridade (artigo 169.º). Deste modo, não são consideradas como tráfico de pessoas, as situações em que as vítimas são traficadas para a prática de trabalho forçado ou mendicidade, bem como, é excluída a ilicitude do acto sempre que as vítimas tenham livremente manifestado o seu consentimento. Este é pois um conceito de tráfico de pessoas muito restritivo, até comparativamente com aqueles que foram adoptados pelo Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional4 e pela DecisãoQuadro 2002/629/JAI relativa à luta contra o tráfico de seres humanos5, os incluem, para além da prostituição e outras de exploração sexual, o trabalho forçado, a escravatura ou a servidão. No que respeita ao crime de auxílio à imigração ilegal, ele está previsto no artigo 134.º-A do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto6, sendo praticado por «quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional». Daqui resulta que a punição pela prática deste crime, apenas abrange os “actos instrumentais” da entrada em Portugal, não permitindo a punição da exploração do imigrante em território nacional. Salientese, no entanto, que situações como a colocação de trabalhadores estrangeiros em situação irregular no mercado de trabalho, estão previstas numa outra disposição do mesmo diploma, o artigo 136.º-A, que estabelece a sua punição como crime de angariação de mão-de-obra ilegal.

4

Nesse sentido, cfr. Costa, 2004a: 8-9. A referida convenção foi aprovada e ratificada por Portugal através da Resolução da Assembleia da República n.º 32/2004 e do Decreto do Presidente da República n.º 19/2004, de 2 de Abril. 5 Aprovado pelo Conselho em 19 de Julho de 2002 e publicado no JO n.º L 203, de 1 de Agosto de 2002, p.1. 6 Este diploma regula as condições de entrada, permanência, saída e afastamento do território nacional, tendo sido alterado pela Lei n.º 97/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

7

É importante sublinhar que não existe unanimidade legal e doutrinária sobre os conceitos e a distinção entre o tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal7, tendo sido até hoje apresentadas várias definições8. Mas se existem semelhanças evidentes entre ambas as actividades (a introdução de alguém num outro país, mediante o pagamento de uma determinada quantia), na nossa opinião, o que permite estabelecer a distinção entre elas é a situação da vítima e a sua exploração. Com efeito, no tráfico de pessoas, a vítima não manifestou o seu consentimento em ficar na posição que vai encontrar no país de destino, ao ver a sua liberdade de movimentos restrigida e sujeita a uma situação extrema de exploração (quanto muito, poderá apenas ter manifestado a vontade de viajar e de aceitar um trabalho). Por outro lado, é no momento em que a vítima é colocada a trabalhar no país de destino, que o traficante retira os maiores dividendos, em resultado da exploração do trabalho da vítima, ao contrário do que acontece no auxílio à imigração ilegal, cujos benefícios económicos resultam, fundamentalmente, do pagamento dos “serviços” prestados de transporte e/ou procura de trabalho para a vítima (Costa, 2004a: 32-33). Deste modo, a intervenção e interferência do traficante na situação pessoal do imigrante é maior na primeira situação. No âmbito deste artigo, vamos utilizar, evidentemente, o conceito legal de tráfico de pessoas que consta do Código Penal e que é utilizado nos processos judiciais que serão analisados, pelo que todas as outras situações serão enquadradas no crime de auxílio à imigração ilegal, em concurso real ou aparente com outros crimes, como o sequestro, a extorsão ou a angariação de mão-de-obra ilegal.

4. Criminalidade organizada Se existem elementos que aponta para a intervenção do crime organizado no tráfico de pessoas, ainda não é clara a dimensão em que tal ocorre. Com efeito, enquanto a EUROPOL considera que os grupos e redes envolvidos no tráfico de pessoas na maioria dos Estados-membros da UE, preenchem os critérios que os permitem definir como «crime organizado» (EUROPOL, 2004: 2), existem alguns estudos empíricos que parecem indicar que uma parte significativa do tráfico de pessoas não é realizado pelo crime organizado (Zhang e Chin, 2003: 477, Goodey, 2003: 418).

7

No seu relatório sobre tráfico de pessoas, o Departamento de Estado norte-americano salientou a necessidade de existir uma melhor clarificação da distinção entre tráfico de pessoas e crimes de imigração, de modo a garantir os direitos das vítimas e assegurar a punição dos casos de tráfico (U. S. Department of State, 2004: 165). 8 Para um panorama geral sobre a discussão do conceito de tráfico de pessoas e de smuggling, cfr. Pereira et al., 2004: 412.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

8

De qualquer modo, e independentemente da sua dimensão, parece-nos importante traçar um quadro básico que ajude a compreender melhor a estruturação e métodos da criminalidade organizada, pelos problemas e desafios que coloca às sociedades democráticas. Com efeito, como nota Figueiredo Dias, «a especial perigosidade das associações criminosas [...] prende-se, sobretudo, com as transformações da personalidade individual no seio da organização», através da «interiorização de valores e lealdade sub ou contraculturais», tendo como efeito «uma redução drástica do sentido da responsabilidade individual e uma mobilização sem peias para a actividade criminosa» (1988: 30). Também aqui não existem um consenso sobre o que é o «crime organizado», tendo sido adoptadas várias definições, quer pela doutrina, quer pelos instrumentos legais, o que de algum modo, tendo em conta a dificuldade em estabelecer uma correcta delimitação, torna mais complicada a implementação de estratégias eficazes no seu combate (Albanese, 2000: 410 e Davin, 2004: 19)9. Assim, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada, definiu grupo criminoso organizado como «um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material» (artigo 2.º, al. a). Por sua vez, a Acção Comum 98/733/JAI10, adoptou a seguinte definição de organização criminosa: «associação estruturada de duas ou mais pessoas, que se mantém ao longo do tempo e actua de forma concertada, tendo em vista cometer infracções puníveis com pena privativa da liberdade ou medida de segurança privativa da liberdade cuja duração máxima seja de, pelo menos, quatro anos, ou com pena mais grave, quer essas infracções constituam um fim em si mesmas, quer um meio de obter benefícios materiais e, se for caso disso, de influenciar indevidamente a actuação de autoridades públicas» (artigo 1.º). Pelas duas noções apresentadas são, desde logo, claras algumas diferenças, mas também elementos comuns a ambas as noções e que aparecem como fundamentais para a caracterização dos grupos criminosos organizados, como seja:

9

Mitsilegas chama a atenção para o facto de algumas definições de organização criminosa, ao procurarem incluir o máximo possível de actividades prosseguidas por estas organizações, poderão não só estar a colocar em causa a certeza legal dessas definições e a estender a sua aplicação a actividades que não deveriam estar nela incluídas, como utilizam vários elementos extra-jurídicos que poderão colocar diversos problemas quanto à sua concretização (2001: 570), obrigando os órgãos de investigação a fazer prova de uma multiplicidade de elementos típicos do delito e, consequentemente, permitindo às organizações criminosas iludir com facilidade a lei, ao evitar pelo menos a ocorrência de um dos elementos constitutivos da infracção, subtraindo-se assim à aplicação da lei (Weigend, 1997: 559-560). 10 Foi adoptada pelo Conselho, em 21 de Dezembro de 1998, com base no artigo K.3 do TUE, tendo em vista a incriminação da participação numa organização criminosa nos Estados-membros da UE, JO n.º L 351, de 29 de Dezembro de 1998, p. 1.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

-

grupo estruturado;

-

actuação concertada;

-

existência durante um determinado período de tempo;

-

prática de crimes graves;

-

finalidade de obtenção de benefícios materiais.

9

Em função da estrutura operativa dos grupos criminosos que actuam em matéria de tráfico de pessoas, podemos falar de diferentes tipos de traficantes, que podem variar entre aqueles que actuam em pequenos grupos informais e os grandes grupos criminosos transnacionais. Os primeiros prestam pequenos serviços na cadeia de actividades que permite a entrada e permanência dos imigrantes no país de destino, como o transporte, o acolhimento, a obtenção de documentação (documentos falsificados ou documentos legais como o cartão de contribuinte, um contrato de trabalho ou uma autorização de permanência) ou contactos com empregadores tendo em vista a obtenção de um emprego. Eventualmente, podem controlar todo o processo de tráfico (recrutamento, transporte, angariação de trabalho) mas, nesse caso, operam com um número muito limitado de pessoas e, normalmente, com base em pedidos de empregadores. A sua intervenção é o resultado da rede de contactos que têm, ou mesmo do acaso, como aconteceu num dos processos por nós consultado, em que o contacto do arguido foi fornecido a imigrantes por uma agência de viagens russa, depois da sua mulher ter recorrido à empresa para comprar um pacote de viagem, tendo também esta, nessa altura, sido convidada pela agência para fazer uma prospecção do mercado de trabalho português para programadores informáticos; num outro processo, dois membros do grupo criminoso foram nele integrados depois de terem vindo para Portugal e de lhes ter sido arranjado trabalho pelos outros elementos do grupo, sem que tivessem tido qualquer outro contacto prévio. Conforme a dimensão dos grupos vai crescendo, aumenta a sua capacidade para controlar um maior número de fases da cadeia de tráfico, bem como, a possibilidade de explorar outros “nichos” criminosos, como a extorsão ou a burla sobre os imigrantes. A dimensão transnacional de algumas organizações criminosas permite-lhes explorar as lacunas dos sistemas legais nacionais e as dificuldades de cooperação entre as instituições policiais e judiciais, potenciando os resultados das suas actividades criminosas.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

10

5. A situação em Portugal No que respeita às estatísticas oficiais sobre os crimes de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal, elas apresentam limitações importantes11, não sendo possível retirar grandes conclusões sobre a incidência destes crimes em Portugal, nem sobre os agentes e as vítimas envolvidas. Assim, relativamente ao crime de tráfico de pessoas, os dados estatísticos do Ministério da Justiça não apresentam um nível de desagregação suficiente, nomeadamente, porque aquele aparece associado ao crime de lenocínio, não sendo possível apurar o peso de cada um deles nos resultados finais apurados.

Quadro n.º 2 – Processos crime por tráfico de pessoas e de menores e por lenocínio, na fase de julgamento, findos em 2001 e 2002 Ano 2001 2002

Número de processos 30 18

N.º arguidos 46 31

N.º condenados 22 19

Fonte: Anuário Estatístico de Portugal, INE, 2002 e Estatísticas da Justiça, Ministério da Justiça, 2003.

De qualquer modo, os dezoito processos concluídos em 2002 (cfr. quadro n.º 2) correspondem a 0,02% do total de processos judiciais (0,03% em 2001), representando o n.º de arguidos condenados 0,03% do total (o mesmo valor em 2001). No entanto, e em relação a estes dados, devemos ter em atenção dois factos: - os casos de crime de tráfico de pessoas referidos enquadram-se no conceito penalista português que os restringe às situações em que as vítimas são traficadas para fins de exploração sexual; - esta é uma área em que, pela sua própria natureza, as «cifras negras»12 são elevadas (Simões, 2002, pp. 87-88). Os processos judiciais concluídos em 2002 envolveram 31 arguidos, tendo resultado na condenação de 19 deles (61%), mas a pena foi suspensa para 73% dos condenados (cfr. quadro n.º 3). De notar que 89% dos condenados não tinham antecedentes criminais.

11

Uma das recomendações para Portugal do relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre tráfico de pessoas, aponta para a necessidade de melhorar a recolha de informação estatística, de modo a permitir uma melhor documentação dos esforços de combate ao tráfico de pessoas (U. S. Department of State, 2004: 165). 12 Por tal, deverá entender-se o número de situações com relevância criminal que não são denunciadas às autoridades; em crimes como o tráfico de pessoas, esta cifra pode assumir uma dimensão significativa, dadas as pressões e represálias normalmente exercidas sobre as vítimas.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

11

Quadro n.º 3 – Processos crime por tráfico de pessoas e de menores e por lenocínio, na fase de julgamento, findos em 2002

Total de processos Total de arguidos Total Homens Arguidos Mulheres condenados De 20 a 25 anos De 30 a 39 anos De 40 a 59 anos Penas Prisão suspensa aplicadas Prisão não suspensa Condenados sem antecedentes criminais Condenados em prisão preventiva (mais de 6 meses a 12 meses) Total de vítimas

Tráfico de pessoas e lenocínio (inclui o de menor) 18 31 19 13 6 3 8 6 14 5 17 3 18

Fonte: Estatísticas da Justiça, Ministério da Justiça, 2003.

Também os elementos estatísticos disponibilizados pela APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima relativos aos casos tratados pelos seus 13 Gabinetes de Apoio à Vítima, não apresentando o nível de desagregação desejado, indicam valores pouco significativos para este tipo de crime (cfr. quadro n.º 4).

Quadro n.º 4 – Casos tratados pela APAV, por crime, em 2002 e 2003 Ano 2002 2003

Lenocínio e tráfico de maiores N.º de casos Percentagem 10 0,05% 11 0,07%

Lenocínio e tráfico de menores N.º de casos Percentagem 6 0,03% 15 0,09%

Fonte: Estatísticas, APAV, 2003, 2004.

No que respeita a dados relativos à condenação pelo crime de auxílio à imigração ilegal, apenas dispomos de informação estatística proveniente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras13, a qual indica que, para os anos 2002 e 2003, foram poucas as expulsões decretadas por decisão judicial condenatória pela prática do crime auxílio à imigração ilegal (cfr. quadro n.º 5).

13

Sobre o crime de auxílio à imigração ilegal, o Ministério da Justiça não disponibiliza dados estatísticos.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

12

Quadro n.º 5 – Expulsões executadas após condenação judicial por auxílio à imigração ilegal, por nacionalidade, em 2002 e 2003 Nacionalidade Moldávia Rússia Ucrânia Total

2002 1 1 2

2003 1 2 1 4

Fonte: SEF, 2002, 2003.

No entanto, estes dados devem também ser vistos com algum cuidado, uma vez que nem todos os estrangeiros que tenham sido condenados judicialmente são obrigatoriamente expulsos do país (vd. artigo 101.º do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto), sendo essa decisão ponderada em face das circunstâncias concretas do caso. Por outro lado, as decisões judiciais de expulsão só são executadas depois de cumpridas as penas a que os indivíduos tenham sido condenados, pelo que podem existir indivíduos condenados pelo crime de auxílio à imigração ilegal que ainda não figuram nestes dados estatísticos. É de salientar, no entanto, o facto de todas as decisões judiciais executadas serem relativas a cidadãos do leste europeu, o que poderá indiciar um seu maior envolvimento no auxílio à imigração ilegal, mas poderá também ser o resultado do combate efectuado pelas forças policiais aos grupos organizados provenientes dessa zona geográfica, por terem atingido uma maior visibilidade, em face da sua actuação. Por sua vez, o DCIAP - Departamento Central de Investigação e Acção Penal fez, a partir da recolha de informações do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal, um levantamento dos processos e expediente relativos a comportamentos ilícitos levados a cabo por grupos do leste europeu, abrangendo, quanto à prática dos factos, o período compreendido entre o 2.º semestre de 1999 e o 1.º semestre de 2002, tendo obtido dados sobre os crimes de auxílio e associação de auxílio à imigração ilegal (cfr. dados parciais no quadro n.º 6), extorsão, associação criminosa, roubo, sequestro e homicídio. Quadro n.º 6 – Ocorrências sobre o crime de auxílio e associação de auxílio à imigração ilegal, Jan/Jun 2002 Distrito Judicial Porto Coimbra Lisboa Évora Total

N.º de crimes 11 14 18 9 52

Fonte: DCIAP.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

13

Quanto à informação por nós recolhida em tribunal, foram consultados no total 33 processos judiciais, tendo a maioria deles sido iniciados nos anos 2000-2002 (82%). Estes processos envolveram 216 arguidos, maioritariamente homens (apenas 13% eram mulheres), acusados da prática de crimes como o auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas ou angariação de mão-de-obra ilegal (cfr. quadro n.º 7). Quadro n.º 7 – Acusações e condenações por tipo de crime Tipo de crime Tráfico de pessoas Auxílio à imigração ilegal Angariação de mão-de-obra ilegal Falsificação de documentos Extorsão

N.º de processos em que consta na acusação 4 21 5 4 11

N.º de arguidos condenados 1 47 15 35 36

Uma vez que os tribunais não dispõem de bases de dados dos processos judiciais classificados por tipo de crime, a identificação destes processos resultou de informações prestadas pelos órgãos policiais responsáveis pela investigação deste tipo de crimes e por funcionários judiciais, assim como, de indicações recolhidas em notícias publicadas na imprensa e do cruzamento de informação entre processos. Deste modo, a informação recolhida é respeitante apenas a uma parte dos processos julgados (aqueles de que tivemos conhecimento), sendo já estes uma ponta do iceberg, por conta do «efeito funil», o qual se verifica nas passagens do crime pelas várias instâncias formais de controlo (Mateus, s/d: 18). Com efeito, desde logo, o número de denúncias apresentadas às autoridades é inferior ao número de situações ilícitas ocorridas («cifra negra»); por outro lado, o número de inquéritos processados pelas órgãos de investigação criminal são superiores ao número de inquéritos que são enviados para o Ministério Público para acusação14. Por fim, o número de arguidos condenados é inferior ao número de arguidos acusados, desde logo, porque alguns estão inocentes e depois por dificuldade em produzir prova em julgamento, nomeadamente, por não ser possível assegurar a comparência de

14

É a denominada «cifra cinzenta», ou seja, o número de inquéritos abertos pelos órgãos de investigação criminal que são arquivados sem acusação. No caso da Polícia Judiciária, no que respeita aos inquéritos abertos a situações ocorridas com cidadãos do leste europeu, no período de 1999-2002, apenas 35% foram enviados ao Ministério Público para acusação (Mateus, s/d: 18-19).

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

14

testemunhas ou não ser possível recolher «depoimentos para memória futura», dadas as limitações legais existentes15. Relativamente à informação recolhida nos tribunais, ela foi tratada com alguma precaução. Com efeito, a decisão judicial condenatória divide-se em duas partes fundamentais: os factos provados e os factos não provados. Os primeiros são uma certeza, mas relativamente aos segundos é sempre difícil saber qual a sua relevância, pois o facto de não terem sido provados, significa apenas que a acusação não conseguiu apresentar provas suficientes para a condenação do arguido. Ora isso tanto pode resultar do facto do arguido não ter efectivamente praticado factos com relevância penal, como pode ser uma consequência da aplicação do princípio in dubio pro reo, tendo-se, em conformidade, absolvido o arguido. A mesma incerteza se verifica relativamente aos depoimentos prestados pelas testemunhas na fase da investigação e que não foram confirmados em audiência de julgamento, ou porque as testemunhas se arrependeram em testemunhar, ou porque abandonaram o país. E, a menos que tenham sido feitas para “memória futura”, este tipo de prova nunca será utilizada em julgamento, por não ter sido possível fazer uma apreciação “imparcial” do seu valor pelo tribunal. Pela nossa parte, dado que não estamos limitados pelas regras processuais penais, procurámos verificar na informação recolhida «padrões de regularidade» que nos permitissem obter indicações sobre o modus operandi dos traficantes e dos traficados. 5.1. Entrada e permanência em Portugal Para efeitos de análise, separámos dois tipos de situações: uma, em que os indivíduos entraram em Portugal para trabalhar no mercado “lícito”, e a outra em que foram exercer a prostituição ou o alterne. Esta separação não envolve qualquer posição moralista, sendo apenas operacional, tendo as aspas também em conta o facto de muitos imigrantes acabarem por trabalhar na denominada «economia subterrânea». Por outro lado, não repousa numa separação por género, pois muitas das mulheres que imigraram para Portugal foram trabalhar em sectores como os serviços domésticos, a agricultura ou a indústria. Por fim, está de acordo com o conceito penalista de tráfico de pessoas, que o associa à prática da prostituição ou de outros actos sexuais de relevo. Se ocorrem algumas semelhanças entre as duas situações, em matéria de obtenção de documentos, percursos ou valores pagos pelas viagens, a sua posição em Portugal acaba por apresentar diferenças significativas, não só porque as mulheres que exercem actividades nas áreas ligadas ao sexo, são normalmente recrutadas no país de origem para irem trabalhar para um local já pré-determinado, mas também por força da actividade realizada, que se traduz numa sua maior vulnerabilidade, dado o 15

Defendendo o alargamento dos «depoimentos para a memória futura» às situações em que as testemunhas temessem pela sua vida, integridade física ou psíquica e liberdade, cfr. Moura, s/d: 25.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

15

elevado desvalor social àquela associado, com implicações ao nível da integração social e da regularização do seu estatuto. 5.1.1. Mão-de-obra Os imigrantes que entraram irregularmente em Portugal e que intervieram nos processos judiciais como ofendidos, testemunhas ou mesmo arguidos, utilizaram um esquema muito semelhante de entrada no país (cfr. figura n.º 1). Figura n.º 1 - Percurso do imigrante em situação irregular

Imigrante

anúncios de jornais ou rádio com oferta de emprego

Agência de viagens aquisição de um pacote viagem/trabalho custo: 750 a 1500 euros Contacto de angariador de trabalho custo: 200 a 400 euros Emprego

Este esquema é sobretudo aplicado aos imigrantes da Europa do Leste, mas também aos brasileiros, pois se é verdade que a existência de redes sociais facilita a entrada destes no território nacional através dos contactos existentes em Portugal, não podemos ignorar as alterações introduzidas na composição sócio-cultural dos imigrantes brasileiros, com a crescente chegada de um maior número de pessoas com menores qualificações e portanto muito distintos dos anteriores, o que dificulta a utilização das redes sociais existentes. Já no que respeita à informação recolhida nos processos judiciais sobre imigrantes africanos, ela não foi muito significativa, pelo que não nos permite tirar muitas conclusões, mas um esquema muito seguido consiste em entrar em Portugal alegado que se pretende visitar familiares e depois permanecer no país ou, então, adquirir aqui documentos portugueses falsos que permitam viajar para outros países como a Inglaterra. Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

16

No esquema indicado é possível identificar dois actores-chave: as agências de viagens e os empregadores portugueses. Com efeito, as agências de viagens estão presentes nas várias fases que conduzem à entrada em Portugal, pois garantem o “recrutamento”, o transporte e a colocação no mercado de trabalho dos imigrantes. Por outro lado, os empregadores portugueses estão na base da vinda desses imigrantes, pois concedem-lhes trabalho, apesar da sua situação de irregularidade, sabendo que o não podem fazer. Ou seja, estamos perante dois actores cujo sector de actividade se integra na economia lícita, mas que acabam por ser os principais dinamizadores de uma actividade ilegal – a promoção da imigração e do trabalho irregulares. O desejo de imigrar para Portugal é despertado por anúncios publicitários de agências de viagens colocados nos meios de comunicação social, dando conta da existência de trabalho em Portugal, dos rendimentos a auferir (normalmente bastante inflacionados) e da possibilidade de legalização já em Portugal. Essas agências prestam um serviço completo: obtenção da documentação necessária (passaporte e visto de turismo16), viagem e fornecimento do contacto telefónico de alguém que em Portugal o ajudará a encontrar trabalho. Os valores a pagar dependem do ponto de origem da viagem, do tipo de serviços prestados pela agência e do meio de transporte utilizado. No caso dos cidadãos brasileiros, a viagem é feita de avião, podendo chegar directamente aos aeroportos portugueses (fundamentalmente, o de Lisboa e, em menor grau, o do Porto), ou então voar para Madrid ou Paris e, a partir daí, viajar para Portugal por meio ferroviário ou rodoviário, procurando assim iludir a vigilância das autoridades portuguesas. Quanto aos cidadãos de países do leste europeu, a viagem é feita de autocarro ou mini-bus, com mudança de veículo na Alemanha, França ou Espanha, de modo a que a chegada se faça num meio de transporte que não levante suspeitas às autoridades, como seria o caso de uma matrícula do leste europeu. Também pode acontecer que a continuação da viagem, a partir daqueles países, se faça através de táxi ou do carro de alguém que já está em Portugal e os vai buscar (neste caso, normalmente, associado a um grupo criminoso), ou mesmo por via ferroviária. O imigrante quando chega a Portugal traz normalmente consigo o contacto de alguém que o ajudará a encontrar trabalho e que lhe foi fornecido, com esse objectivo, pela agência de viagens. Não foi possível apurar, em concreto, como é que as agências constituiam essa carteira de contactos, mas pelos indícios recolhidos eles tanto podem resultar das ligações estabelecidas com os grupos criminosos, dos quais, aliás, as agências podem ser meros testas-de-ferro, como dos contactos frequentes que mantém com imigrantes ou resultar da própria iniciativa do angariador que se disponibiliza junto da agência para encontrar trabalho para os imigrantes que para ele sejam

16

Excepto no caso dos brasileiros que estão dispensados de visto de entrada em Portugal para estadas até três meses.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

17

encaminhados. O que foi possível verificar é que esse contacto nem sempre é válido, ou porque o número de telemóvel não funciona, ou porque a pessoa de contacto não aparece no local de chegada do imigrante. Na falta de um contacto prévio, o imigrante pode obtê-lo do condutor do autocarro, dos companheiros de viagem ou contactando directamente com os angariadores que esperam os imigrantes à chegada. Mas, para além da quantia paga junto da agência pelo contacto do angariador, a obtenção de um trabalho por este, está também sujeita ao pagamento de uma determinada quantia, normalmente idêntica àquela que foi paga na origem. A informação sobre os locais é obtida pelo angariador junto das empresas da área em que actua, ou então, mais raramente, através da pesquisa em anúncios de jornal. Normalmente, o angariador consegue colocar o imigrante a trabalhar, até como forma de justificar a verba recebida, embora em três processos os angariadores procurassem beneficiar desse pagamento sem desenvolver qualquer esforço especial no sentido de obter qualquer colocação, o que motivou a apresentação de acusações contra eles por crime de burla relativa ao emprego. Dado que nem sempre o imigrante dispõe à chegada da quantia necessária para entregar ao angariador, nessa situação, normalmente, ele paga parcialmente a verba exigida, comprometendo-se a pagar o restante quando receber o seu primeiro ordenado, ficando o angariador com o seu passaporte, a título de garantia. 5.1.2. Prostituição/Alterne Neste âmbito, os processos consultados permitiram a recolha de elementos relativos à vinda, fundamentalmente, de mulheres brasileiras17. Essa situação traduz, desde logo, o maior peso desta nacionalidade no exercício daquelas actividades, em particular no alterne, e que se pode explicar por factores como a língua comum ou a suposta maior sensualidade da mulher brasileira, mas também por estarem dispensadas de visto, o que facilita a sua entrada no país. A viagem pode fazer-se por duas formas: - a mulher por sua iniciativa, sem utilizar terceiros, adquire um bilhete de avião e entra em Portugal como turista. Isto ocorre, normalmente, quando a mulher já esteve anteriormente em Portugal e, portanto, possui contactos no meio, ou então é convidada/aliciada por alguém conhecido para vir trabalhar. - a mulher recorre a terceiros (cfr. figura 2), porque não tem contactos em Portugal ou não possui os recursos financeiros necessários para suportar a viagem.

17

Os processos analisados integravam 48 testemunhos de mulheres, sendo 37 deles relativos a brasileiras (77% do total).

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

18

É nesta segunda hipótese que a posição da mulher fica mais vulnerável, dada a sua dependência em relação aos angariadores ou aos donos das boites. Se bem que apenas um arguido tenha sido condenado pelo crime de tráfico de pessoas, envolvendo, neste caso, mulheres do leste europeu, a verdade é que foi possível recolher noutros processos alguns indícios que permitiriam enquadrar essas condutas naquele crime, e que se traduziam, por exemplo, na restrição de movimentos das mulheres, na apreensão de documentos ou na submissão das mulheres a maus tratos. Figura n.º 2 – Percurso das mulheres para exercício da prostituição e/ou alterne

Angariador no país de origem

Português ligado ao meio

Mulher (com ou sem experiência prévia) o custo da viagem pode ser adiantado pelo angariador português Strip-tease

Boite

Boite

Alterne

Boite

Prostituição

Boite

Boite

Conforme resulta do esquema apresentado (cfr. figura 2), os actores-chave são os angariadores ligados ao meio da prostituição e do alterne, e as boites que empregam as mulheres. Normalmente, o angariador português é o dono de uma boite, que se serve dos contactos que possui no Brasil para trazer mulheres para trabalharem no seu estabelecimento comercial. Estas mulheres, em princípio, sabem que vão estar ligadas à indústria do sexo, embora nem sempre saibam exactamente o que vão fazer, pensando muitas vezes que serão apenas “bailarinas” (strip-tease) ou alternadeiras e que não se terão de prostituir. E, efectivamente, em muitos casos, elas limitam-se a praticar aquelas actividades, mas a prostituição acaba por ser quase inevitável, dado que os rendimentos provenientes do alterne acabam por não ser suficientes para justificarem o projecto pessoal de emigrar. O custo da viagem é frequentemente suportado pelo angariador português que adianta a verba necessária, entregando simultaneamente um montante que pode variar entre os $1000 e os $6000 e que se destina a ser apresentado na fronteira às autoridades portuguesas, a título de meios de subsistência para a estada em Portugal. Trazem também consigo uma reserva de quarto para 2 ou 3 dias num bom hotel.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

19

As mulheres são instruídas pelo angariador sobre o modo como se deverão vestir e comportar, de forma a não chamarem a atenção dos funcionários de fronteira, e como deverão responder às questões que lhes serão colocadas devendo, nomeadamente, ter uma “história de cobertura”, que justifique a sua entrada no país, afastando-as de um cenário de imigração irregular (como exemplo, podemos indicar o objectivo de realizar uma peregrinação a Fátima). No aeroporto, está alguém à sua espera, ou quando isso não sucede, dirigem-se para o hotel, onde são contactadas, normalmente no próprio dia, por alguém do estabelecimento comercial onde irão iniciar a sua actividade nessa mesma noite. Este primeiro contacto tem as seguintes finalidades: obter de volta a quantia entregue para apresentar na fronteira; “apreender” o passaporte ou o bilhete de avião de regresso, até que o preço da viagem seja pago; e indicar às mulheres qual será o seu local de trabalho e funções, bem como o local em que ficarão a residir18. O preço de viagem inclui o custo do bilhete de avião, acrescido de um montante variável, destinado ao angariador brasileiro, sendo pago pela mulher através de desconto nas verbas auferidas. Estas verbas podem ser constituídas por rendimentos provenientes de: - shows de strip-tease; - comissões sobre as bebidas consumidas pelos clientes, que podem variar até um montante de 50%, podendo incidir sobre todas as bebidas consumidas ou apenas sobre o champanhe, a bebidas mais cara neste tipo de estabelecimentos; - prática de actos sexuais. Como já se disse, nem todas as mulheres exerceram a prostituição e aquelas que o fizeram, estiveram sujeitas a condições muito distintas, que podem ser agrupadas em algumas situações-tipo, cuja separação base assenta no facto da prática de relações sexuais com clientes ser ou não do conhecimento do estabelecimento: - quando não é, esses actos são praticados no final da noite de trabalho e o dinheiro reverte integralmente para as mulheres. - quando é, podem verificar-se os seguintes casos: -

são indicados à mulher limites quanto à hora de saída, ou ao montante mínimo de consumo do cliente para poder sair com ele antes do final da noite; o dinheiro da prostituição reverte integralmente para si.

18

Numa residencial ou um hotel de baixa categoria, ou então em apartamentos dos proprietários das casas nocturnas ou mesmo em instalações integradas nos estabelecimentos comerciais. Em qualquer situação, a renda é da responsabilidade da mulher.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

-

20

o estabelecimento dispõe de quartos nas suas instalações, ou próximo, para a prática desses actos, mas não incentiva a prostituição; o preço do quarto reverte para o estabelecimento e o dinheiro da prostituição para as mulheres.

-

a boite dispõe de espaços próprios e incentiva, ou obriga, as mulheres a prostituirem-se; o preço do quarto e uma percentagem do preço cobrado pelas práticas sexuais reverte para o estabelecimento e o restante para a mulher.

Uma das particularidades desta actividade é a frequência com que as mulheres mudam de local de trabalho. Com efeito, a denominada rotação ou sistema de praças entre casas nocturnas, consiste em as mulheres ficarem por pequenos períodos de tempo de dois/três meses, normalmente préacordados, em cada estabelecimento, após o que vão trabalhar para uma outra casa. De algum modo, este sistema serve às duas partes, uma vez que permite satisfazer a procura pelos clientes de caras novas e evita a criação de laços afectivos entre as mulheres e os clientes. Um elemento importante para a compreensão deste mecanismo era perceber como é que ele funcionava, ou seja, se era ou não organizado pelos estabelecimentos comercias ou pelos angariadores. As informações recolhidas não nos permitem retirar conclusões seguras, e se no processo que conduziu à condenação de um indivíduo por tráfico de pessoas, era ele o responsável pela permanência e circulação das mulheres, nos restantes casos os indícios apontam antes para a sua não organização, ou seja, as mulheres vão circulando pelas casas nocturnas em resultado da sua rede de contactos (frequentemente outras mulheres que conhecem ou com quem trabalharam) ou por sugestão dos proprietários dos estabelecimentos de onde saem. Em qualquer caso, não foram recolhidos elementos que apontem para a necessidade das mulheres pagarem para conseguirem trabalhar numa nova casa. Um aspecto a merecer investigação aprofundada nestes circuitos de circulação de mulheres é o da articulação entre Portugal e Espanha. Se não foi possível reunir informação que comprove ou não que Portugal serve como porta de entrada de mulheres brasileiras para Espanha, foi detectado que, especialmente no norte do país, várias mulheres brasileiras (22%) referiram já terem trabalhado anteriormente em Espanha na mesma área, o que parece evidenciar o peso que a Espanha desempenha como país de destino privilegiado, comprovado pela identificação de 32 rotas a ela destinadas, correspondendo a 32,7% do total de rotas internacionais identificadas, enquanto que para Portugal foram identificadas apenas 8 rotas (8,2% do total) (Leal et al., 2002: 105)19.

19

A importância da investigação das relações transfronteiriças com a Espanha é reforçada pela identificação que fizemos de vários processos de tráfico de mulheres portuguesas para trabalharem em estabelecimentos nocturnos espanhóis.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

21

5.2. Intervenção de grupos criminosos Apesar do Código Penal português, ou qualquer outro diploma legislativo nacional, não definirem criminalidade organizada, existem vários tipos de crime que podemos enquadrar naquele conceito20: - associação criminosa (artigo 299.º, n.º 1 do CP: «Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.»); - organização terrorista (artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto: «...todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, visem prejudicar a integridade e a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda a intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou população em geral...»)21; - associação de auxílio à imigração ilegal (artigo 135.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 244/98, de 8 de Agosto: «Quem fundar grupo, organização ou associação cuja actividade seja dirigida à prática dos crimes previstos no artigo anterior [auxílio à imigração ilegal] é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.»). Qualquer um destes tipos de crime não concretiza o que se deve entender por associação. Neste particular, Figueiredo Dias considera que só se pode falar em associação criminosa se existir uma realidade autónoma em relação às vontades e interesses dos membros singulares, constituída por uma pluralidade de pessoas, com uma certa duração e com um mínimo de estrutura organizatória e um qualquer processo de formação da vontade colectiva, devendo ainda existir um sentimento comum de ligação por parte dos membros da associação, tendo como finalidade a prática de crimes (Dias, 1988: 32-39)22. Nos processos por nós consultados, conforme se pode verificar através do quadro n.º 8, a maioria das acusações foram feitas por crime de associação criminosa, pois este, por contraposição com o crime de associação de auxílio à imigração ilegal, permite abranger a prática pelo grupo de crimes como a extorsão, o sequestro ou a falsificação de documentos, que em muitas situações, foram praticados em simultâneo com o crime de auxílio à imigração ilegal. E, por outro lado, é mais fácil fazer a prova dos seus elementos, comparativamente com o crime de organização terrorista.

20

Como nota Davin, referindo-se em concreto ao crime de associação criminosa, o conceito de “criminalidade organizada” não coincide, pelo menos inteiramente, com aquele crime previsto no Código Penal português (2004: 15). 21 Para Dias, o crime de organização terrorista é um crime qualificado face ao de associação criminosa, estando para com este numa relação de especialidade (1988: 76-79). 22 Esta orientação doutrinal tem sido seguida, em geral, pela jurisprudência portuguesa.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

22

Quadro n.º 8 - Acusações por tipo de estrutura organizativa Tipo de crime Associação de auxílio à imigração ilegal Associação criminosa Organização terrorista Sem acusação

N.º de acusações 8 15 1 12

Em apenas três casos foi feita, em simultâneo, uma acusação por crime de associação criminosa e crime de associação de auxílio à imigração ilegal23. Em doze dos processos (36% do total de processos consultados) não foi recolhida informação indiciadora da existência de um qualquer grupo organizado (ou pelo menos informação suficiente) que permitisse sustentar uma acusação nesse sentido. Nos 21 processos em que foram promovidas acusações por alguma forma de organização criminosa, estiveram envolvidos 180 arguidos (homens e mulheres), o que corresponde a uma média de 8,6 arguidos por processo. Estes grupos intervieram em todas ou em alguma das fases do processo que permitiu a chegada dos imigrantes a Portugal, podendo a sua actividade ter consistido em qualquer uma das seguintes funções: - angariar mão-de-obra interessada em emigrar; - controlar o acesso às embaixadas ocidentais e à obtenção de vistos de entrada pelos candidatos a emigrantes, canalizando-os para agências de turismo por si controladas; - transportar os emigrantes para o país de destino; - criar “portagens” durante o percurso, destinadas a obter receitas e a despojar os emigrantes de dinheiro, estabelecendo/fortalecendo a sua dependência à chegada. Em território português, as actividades do grupo consistiram em algumas das seguintes funções: - instalar os imigrantes; - angariar trabalho para os imigrantes; - extorquir os imigrantes, através do denominado “imposto de segurança”, o qual pode ter carácter regular (tendencialmente, mensal); - obter documentação para a legalização dos imigrantes. Ou seja, o leque de actividades desenvolvido por cada grupo podia ser muito variável, em função da sua estrutura organizativa e objectivos, e, como tal, a gravidade e a perigosidade da sua actividade era também muito distinta. 23

Um deles foi arquivado pelo Ministério Público, dado não terem sido recolhidos provas, nomeadamente, depoimentos para memória, pelo que não é garantido que a acusação, a seguir para tribunal, fosse pela prática dos dois crimes.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

23

Se adoptarmos a tipologia seguida por Ferracuti e Bruno para agrupar as condutas típicas dos grupos de criminalidade organizada (1988: 70), verificamos que a actividade da maior parte dos grupos criminosos que actuaram em Portugal se situa no primeiro nível (cfr. quadro 9). Quadro n.º 9 – Actos típicos praticados pelos grupos criminosos em Portugal (a partir da tipologia de Ferracuti e Bruno) Nível de actos Nível 1 (produzem movimento de dinheiro) Nível 2 (controlo da actividade e manutenção do poder) Nível 3 (perpetuar ou salvaguardar a actividade, estendendo-a)

Tipo de actos praticados transporte de imigrantes, angariação de emprego, burla, “imposto de segurança”, extorsão agressão, coacção, ataque a outros grupos lavagem de dinheiro, alargamento a outras actividades ilícitas (droga, contrabando...), entrada no mercado lícito (constituição de empresas...)

Com efeito, foram poucos os grupos que praticaram actos correspondentes aos outros dois níveis. No que respeita ao nível 2, destaca-se, especialmente, o grupo Borman24, que foi o mais violento e tinha como objectivo expresso o controlo do mercado português da imigração do leste europeu. Já relativamente ao nível 3, pensamos que os grupos criminosos não tiveram um tempo de existência suficiente para consolidarem a sua intervenção, pois se bem que tenham sido constituídas algumas empresas, elas tinham com a finalidade facilitar a colocação de trabalhadores no mercado de trabalho e a sua legalização através da celebração de contratos, pelo que nos parece que essa acção se enquadra melhor nos actos do nível 1, como forma de proporcionar a obtenção de receitas para o grupo. Para além das quantias cobradas pela colocação no mercado de trabalho, a outra fonte de receitas destes grupos criminosos resultava da extorsão exercida sobre os imigrantes, em particular através do denominado “imposto de segurança”. Este último era exigido como contrapartida pela “protecção” que lhes era oferecida relativamente aos outros grupos. O valor a pagar era normalmente pequeno, cerca de 25¼VHQGRH[LJLGRPHQVDOPHQWH Uma vez que a protecção oferecida não era pedida, nem necessária, não é de surpreender que ocorresse alguma resistência por parte dos imigrantes, ao que os grupos reagiam com ameaças e violência sobre os mais renitentes. E foi, fundamentalmente, a extorsão, mas sobretudo a violência que apareceu associada a ela, que contribui para a maior visibilidade destes grupos e gerou um maior alarme social. 24

Aqui nomeado porque a sua forma de actuação foi tornada pública através de vários trabalhos na comunicação social.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

24

Ao contrário das quantias recebidas pela colocação no mercado de trabalho, que se esgotavam com a prestação desse serviço, a extorsão garantia uma fonte de receitas permanente e permitia aos grupos criminosos mais importantes e estruturados canalizá-las para o financiamento da actividade regular dos grupos-mãe no país de origem. Uma vez que os grupos analisados tinham uma diferente dimensão e um campo de acção variado, é díficil traçar uma estrutura-tipo para a sua organização interna. Mas pode dizer-se genericamente que actuavam em pequenas células que respondiam perante o líder do grupo, com pouco contacto entre elas, a não ser nos casos em que era exigida a actuação de um maior número de membros. Existia uma certa especialização de funções, em áreas como a recolha de informações sobre a oferta de trabalho e as potenciais vítimas de extorsão (quem são, onde vivem, que dinheiro têm), o acolhimento e colocação de trabalhadores, a cobrança do dinheiro e a utilização de ameaças e da força sobre quem resiste, assegurando simultaneamente o controlo sobre os outros grupos.

6. Conclusão A adopção de políticas de imigração restritivas pelos Estados europeus, em simultâneo com a manutenção da necessidade económica de mão-de-obra e a abolição das fronteiras internas entre os Estados-parte do Acordo de Schegen, criou condições para o florescimento da imigração irregular e para a intervenção de vários actores no processo de entrada e permanência dos imigrantes nos países de destino. No essencial, este processo de imigração irregular é caracterizado, para o imigrante, por três fases: 1.ª fase - entrada em Portugal: legal com visto de turismo; 2.ª fase - exercício de actividade profissional: ilegal por falta de título de residência adequado; 3.ª fase – regularização: obtenção de uma autorização de permanência anual ou de outro título de residência adequado. Em qualquer uma destas fases, é possível a participação de intervenientes que prestam serviços legais ou ilegais aos imigrantes, sendo que esta classificação nem sempre é fácil de fazer; com efeito, poderá considerar-se como actividade legal a colocação de um anúncio num jornal, indicado a existência de oportunidades de trabalho noutro país, oferecendo para o efeito ao cliente um pacote de viagem turístico? Mas o que é comum a todos estes intervenientes é que lucram com o desejo do imigrante em procurar melhorar o seu nível de vida25.

25

Ruggiero salienta a particularidade dos traficantes fornecerem um serviço aos empregadores que contratam os imigrantes, mas não lhes ser cobrado o serviço prestado, o qual é pago pelo imigrante (1997: 29).

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

25

E se é verdade que, na maior parte dos casos, o imigrante conhece e aceita as condições que lhe são propostas, mais do que actor da irregularidade, ele é a sua principal vítima, embora se verifique o paradoxo da censura social e da punição recaírem sobretudo sobre si. Enquanto não ocorrer uma mudança neste mecanismo de percepção e intervenção, a situação do imigrante irregular será sempre muito frágil, por não lhe serem disponibilizados instrumento básicos de protecção, como mecanismos de denúncia (hotlines, equipas de investigação especializadas...), centros de apoio e acolhimento ou protecção de testemunhas e familiares. Os processos por nós consultados não nos permitem retirar conclusões seguras sobre a dimensão do fenómeno do tráfico de pessoas para Portugal, embora pareça indiciar que este não é numericamente muito significativo, prevalecendo antes o auxílio à imigração ilegal. E se a separação conceptual entre uma e outra actividade nem sempre é fácil de fazer, a utilização de alguns critérios para fundamentar essa distinção, como o consentimento da vítima, o valor cobrado pelos serviços contratados e o tipo de liberdade da vítima à chegada ao país de destino, conduz-nos à constatação que o conceito penal português de tráfico de pessoas é demasiado restrito, pelo que se defende que seja alargado e harmonizado, nomeadamente, com o conceito de tráfico de pessoas adoptado pela Convenção contra a Criminalidade Organizado, no seu Protocolo Adicional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças. Com efeito, se o conceito de tráfico de pessoas constante da Decisão-Quadro 2002/629/JAI, que deveria ter sido transposto para a legislação interna até 1 de Agosto de 2004 (artigo 10.º), tem um âmbito mais alargado que o conceito penal português, deixa no entanto de fora, por exemplo, o tráfico de pessoas para a extracção de órgãos. Por outro lado, e atendendo à sua dimensão transnacional, o combate ao tráfico de pessoas implica o reforço dos mecanismos de cooperação policial e judicial existentes, de modo a permitir tornar efectiva a sua punição e, nomeadamente, a combater vários actos instrumentais que não são praticados no país de destino.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

26

7. Bibliografia Albanese, Jay S. (2000), The Causes of Organized Crime: Do Criminals Organize Around Opportunities for Crime or Do Criminal Opportunities Create New Offenders?, Journal Of Contemporary Criminal Justice, 16, 4: 409-423. APAV (2003), Estatísticas 2002, www.apav.pt APAV (2004), Estatísticas 2003, www.apav.pt Costa, Paulo Manuel (2004a), Tráfico de pessoas - Algumas considerações legais, Socius working papers, n.º 8/2004, http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/wp/wp200408.pdf Costa, Paulo Manuel (2004b), Políticas de imigração e as novas dinâmicas da cidadania em Portugal, Lisboa: Instituto Piaget. Davin, João (2004), A Criminalidade Organizada Transnacional: A Cooperação Judiciária e Policial na UE, Coimbra: Livraria Almedina. Departamento Central de Investigação e Acção Penal (2002), Criminalidade organizada em Portugal: “Máfias de Leste”, policopiado. Dias, Jorge de Figueiredo (1988), As «associações criminosas» no Código Penal Português de 1982 (arts. 287.º e 288.º), Coimbra: Coimbra Editora. EUROPOL (2004), Trafficking of human beings: a EUROPOL perspective - January 2004, http://www.europol.eu.int/publications/SeriousCrimeOverviews/2004/OverviewTHB2004.pdf, acesso em 23/8/2004. Ferracuti, Franco e Bruno, Francesco (1988), La criminalità organizzata nella prospettiva criminologica, in Ferracuti, F. (ed.), Trattato di Criminologia, medicina criminologica e psichiatria forense, IX - Forme di organizzazioni criminali e terrorismo, Milano: Dott. A. Giuffrè Editore: 63-78. Goodey, Jo (2003), Migration, crime and victimhood: Responses to sex trafficking in the EU, Punishment & Society, 5, 4: 415-431. Hollifield, James F. (1992), Immigrants, Markets and States: The Political Economy of Postwar Europe, London: Harvard University Press. INE (2002), Anuário Estatístico de Portugal 2002. Leal, Maria Lúcia e Leal, Maria de Fátima, orgs. (2002) Pesquisa sobre Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil: Relatório Nacional, Brasilia: Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes. Mateus, João Miguel Ramos (s/d), O fenómeno que veio de Leste, trabalho de Pós-Graduação em Criminologia 2001/2002, policopiado. Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

O tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal em Portugal: análise de processos judiciais

27

Ministério da Justiça (2003), Estatísticas da Justiça. Mitsilegas, Valsamis (2001), Defining organised crime in the European Union: the limits of European criminal law in an area of ‘freedom, security and justice’, European Law Review, December: 565-581. Peixoto, João (2002), Strong market, weak state: the case of recent foreign immigration in Portugal, Journal of Ethnic and Migration Studies, 28, 3: 483-497. Pereira, Sónia, Sabino, Catarina e Murteira, Susana (2004), Estado da Arte sobre o Tráfico de Pessoas, Socius working papers, n.º 9/2004, http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/wp/wp200409.pdf Ruggiero, Vincenzo (1997), Criminals and service providers: Cross-national dirty economies, Crime, Law and Social Change, 28, 1: 27-38. SEF (2004), Dados estatísticos, ficheiro digital. SEF (2003), Dados estatísticos, ficheiro digital. SEF (2002), Dados estatísticos, ficheiro digital. SEF (1999), Relatório Estatístico – 1998. Simões, Euclides Dâmaso (2000), Tráfico de Pessoas: Breve análise da situação em Portugal Notícia do novo protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade organizada transnacional, Revista do Ministério Público, Julho-Setembro: 81-93. U. S. Department of State (2004), Trafficking in Persons Report, revised June 2004. Zhang, Sheldon e Chin, Ko-Lin. (2003), The declining significance of triad societies in transnational illegal activities: A Structural Deficiency Perspective, The British Journal of Criminology, 43, 3: 469-488. Weigend, Thomas (1997), Relación general: Los sistemas penales frente al reto del crimen organizado, in Les systèmes pénaux à l’épreuve du crime organisé, Colloque préparatoire, Section I - Droit pénal général, in Revue Internationale de Droit Pénal, 68.e année - nouvelle série, 3.e et 4.e trimestres: 547-574.

Paulo Manuel Costa

2006

www.pmcosta.co.pt

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.