O trágico e o cómico na \"Poderosa Afrodite\" de Woody Allen

June 30, 2017 | Autor: Diogo Jesus | Categoria: Classics, Greek Tragedy, Woody Allen
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Lisboa, 8 de Junho de 2015

O trágico e o cómico na Poderosa Afrodite de Woody Allen

Trabalho apresentado na cadeira de História das Culturas da Antiguidade Clássica, regida pelo Prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues

Realizado por: Diogo Jesus Nº 53154 Licenciatura de História – 2º Semestre, 2014/15

INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende analisar o filme Mighty Aphrodite, de 1995, escrito, realizado e protagonizado por Woody Allen. Os objectivos desta análise são expor o que existe de comum à tragédia grega tal como ao cómico nesta película. Para isso, primeiramente estabeleceremos alguns pontos prévios, em seguida resumiremos a trama, posteriormente traçaremos os pontos comuns à tragédia e comédia nesta representação contemporânea (com destaques e exemplos) e por fim sumarizaremos em guisa de considerações finais.

Woody Allen denota na sua filmografia um especial apreço explícita ou implicitamente pelo trágico e cómico herdados da Grécia clássica. São exemplos possíveis, respectivamente, o filme aqui estudado ou O sonho de Cassandra (W. Allen, 2007); e Melinda e Melinda (W. Allen, 2004) ou Match Point1 (W. Allen, 2005). O filme insere-se no género comédia romântica e parodia a velha tragédia clássica (elementos como o fado ou moira, da peça Édipo Rei, personagens clássicas do ideário cultural e mitológico grego…) e acrescenta uma forte componente burlesca.

O ENREDO O filme inicia-se à boa maneira do teatro clássico. Neste párodo, um coro grego entra em cena e vai prologar a história que em breve se desenrolará: a tragicomédia de Lenny Weinrib (desempenhado por W. Allen). Ele escreve como comentador desportivo em Nova Iorque casado com uma curadora de obras de arte (papel exercido por Helena Bonham Carter) que o convence a adoptar um filho 2, adopção que levam avante. O rapaz, Max, rapidamente fascina o casal e em especial Lenny que se torna incansável na busca pela identidade da mãe biológica do seu filho. Fica apoquentado quando finalmente descobre que ela é uma prostituta com passado na indústria pornográfica. Lenny tenta demover Linda (que valeu um Óscar à actriz Mira Sorvino) do seu modo de vida mas a desastrada Linda afigura-se difícil de reconverter noutro estilo de vida. Lenny esforça-se por ser seu amigo resgatando-a de um proxeneta ou arranjando-lhe um encontro amoroso. Entretanto, a relação de Lenny e sua esposa esfria tanto pela sua 1

A frase da personagem Chris, neste filme, é clara: «Sófocles disse que nunca ter nascido poderá ser a maior bênção de todas» [tradução livre] (referencia ao Édipo em Colono). 2 É ilustrativa a pergunta de Max ao seu novo pai de quem manda em casa. Lenny responde: «Mando eu, claro. A mamã só toma as decisões».

nova amizade como pelo trabalho e caso amoroso da sua cônjuge. Desconsolado Lenny tem um caso de uma noite com Linda. Quase de imediato ele e a sua esposa reconciliam-se e ela tenta reatar a relação que teve sem sucesso. Assim que regressa desconsolada ajuda um piloto que teve um problema no seu helicóptero e que mais tarde ficamos a saber que se casaram. Anos mais tarde, Linda e Lenny reencontram-se sem se aperceber que cada um tem o filho do outro (ela tinha engravidado de Lenny), afastamse e o coro encerra num êxodo em dança e música.

O TRÁGICO E O CÓMICO Em primeiro lugar, detemo-nos no uso do coro. O coro é a chave para compreender o significado e sentido do teatro e é o núcleo de onde a tragédia evoluiu, continuando a ter um papel primordial através de toda a época clássica, daí o realce que lhe dedicaremos. O uso do coro era variável, dependente do método do dramaturgo e das necessidades de cada peça, muitas vezes tinha o papel de espectador ideal, porta-voz conservador da comunidade, como no Édipo Rei (clarifica as experiências e sentimentos das personagens em termos comuns, além de expressar a atitude convencional face ao desenvolvimento da historia). Em algumas peças como nas Suplicantes de Ésquilo, o coro é ele próprio uma figura central. Este filme é um excelente exemplo do uso do coro grego no drama contemporâneo. Se por um lado, há como na tragédia e comédia um prólogo (introdução inicial) e párodo (primeira entrada do coro), os episódios (os diálogos ou seguimentos de acção entre os coros), estásimos (todas as intervenções do coro entre os episódios) que termina no êxodo são muito próprios. Neste caso o coro tem activa interacção com a personagem principal. Lenny fala com corifeu que é invisível para as outras personagens. As interacções do coro mostram-se tão úteis como cómicas. Seguindo a tradição grega também na Poderosa Afrodite o coro vai cantando pequenas odes no entanto aqui a vertente humorística é dominante. Numa dessas odes o coro emite uma prece a Zeus3 para impedir a ousadia de prosseguir na sua busca (talvez aqui 3

Coro grego: Ó Zeus! Mais poderoso de todos os deuses! Imploramos-te! Zeus! Grande Zeus! Escutanos! Escuta-nos! Imploramos por ti! Zeus: [como se estivesse chegado à caixa de voz do telefone] hum… daqui é Zeus. Não me encontro em casa de momento, deixe uma mensagem que responderei. Por favor comece quando ouvir o bipe. [beep] Coro grego: Liga-nos quando chegares. Precisamos de ajuda!

Woody Allen brinque com a hybris trágica). O realizador presta tanto uma homenagem aos gregos clássicos como os goza na sua religiosidade à boa maneira cómica. O coro serve de conselheiro de Lenny contra possíveis perigos que resultem da sua procura pela mãe do seu filho. Por muitas vezes ao longo do filme é avisado e no entanto continua a ignorar. Quando Lenny furta ilegalmente o número de telefone da papelada da agência de adopção o líder do coro aparece e urge a impedi-lo. Aí Lenny critica-o dizendo que por isso é que sempre será um membro do coro, já que não toma acção. O coro em vez do tradicional comentar, fazer preces e avisar fala directamente com a personagem (como já referido). Na ode final deste coro cantam uma música optimista, "When You're Smiling (The Whole World Smiles With You)", que reforça o papel específico e cómico que Woody Allen imprime no seu coro grego. Não só é cantada como dançada (até exageradamente). Importante também referir é o carácter mais individual deste coro que não só, como mencionado, tem o seu líder claramente destacado como nos créditos finais são focados um por um. Quanto ao uso de personagens do ideário mitológico grego podemos apontar algumas referências entre possíveis candidatos. Numa cena, Cassandra, junto ao coro, avisa Lenny para não procurar a mãe do seu filho adoptado. Ela prevê problemas (pior advogados!) se o fizer e avisa-o dos perigos que se avizinham. Lenny apenas responde “és mesmo uma Cassandra” o que é irónico e não pode deixar de ser retorquido com “eu não sou uma Cassandra, eu sou a Cassandra”. Esta situação torna-se ainda mais divertida se se conhecer quem é esta figura premonitória e absolutamente significante na mitografia trágica clássica. Ela conseguia prever o futuro mas raramente seria tida em conta. Lenny mais tarde apercebe-se que ela está correcta mas, como no teatro grego, a anagnórise não é imediata apesar de Cassandra repetir o seu aviso. Outra passagem cómica com uma personagem grega é o encontro do protagonista com Tirésias 4 , o vidente cego tebano. Lenny encontra-o numa avenida nova-iorquina quando sai do restaurante “Acropolis”, dá-lhe uma esmola visto que Tirésias exibe um sinal que diz 4

Tirésias é o mais famoso de todos os videntes gregos. A lenda conta que, como compensação da

cegueira, os deuses deram-lhe extraordinários poderes de visionário. Por exemplo, figura na Odisseia, onde o seu espírito é consultado por Ulisses no submundo de Hades, avisando o herói acerca dos perigos que ainda o esperam, o aconselha para o seu nostos e adivinha o seu êxito e uma vida feliz.

que é cego e precisa de dinheiro. Assim que Lenny passa por ele, este avisa-o de que a sua esposa o anda a trair. Para enfatizar o cómico, assim que Lenny pergunta se a esposa tentou resistir, Tirésias é célere em responder que não, pelo contrário. Mais, diz “tens de ser cego para não ver o que a tua mulher andou a fazer”. A ironia aqui é inegável já que o protagonista consegue ver mas não vê aquilo que o cego Tirésias viu. A ponte de contacto com a temática (da cegueira frente a determinadas situações) está presente no teatro grego, como é exemplo mais uma vez Édipo. Ilustra igualmente o uso da imagética trágica para a comédia em vez de instigar a catarse. As alusões aos deuses gregos são cómicas. Quando o coro indaga se Lenny e Linda tiveram relações, Tirésias compara-os a Zeus e Afrodite5. Afrodite deusa do amor, da beleza, dos jardins, de proveniência oriental. Neste filme Linda é descrita como a personificação de Afrodite livre de preconceitos, ansiedades ou auto-censura. Enfrenta a sua sexualidade sem pena ou arrependimento. Perto do final do filme é importante salientar, para este estudo, dois pontos que coadunam com o final feliz que este filme tem, típico da filmografia norte-americana. Por um lado, numa das cenas Lenny encontra-se junto do coro no teatro siciliano (em Taormina) e começa a falar ostentando o coro máscaras com uma expressão infeliz. A sua esposa aparece, aparentemente surpresa de ele ali se encontrar, reconciliam-se e quando se beijam o coro troca as suas mascaras para uma expressão facial feliz. Simbolicamente figura numa mesma cena as mascaras trágicas e cómicas. Por outro lado, Woody Allen faz uso do trágico deus ex machina. A mēkhanē ou máquina, seria uma espécie de torre com roldanas e cordas que se podia montar no telhado da skēnē (atrás do que hoje chamaríamos palco) e que servia para materializar as aparições milagrosas dos deuses para a resolução de um dilema dramático. Ora quando Linda está a conduzir desgostosa da sua vida, rejeitada e infeliz, um helicóptero pára num campo limítrofe com a estrada. Ela pára igualmente para ajudar. Por Tirésias, ficamos a saber de imediato que Linda acaba por se casar com este homem. Ele funciona como salvador da situação de Linda (e só assim pode ser entendido até porque é rico, jovem, perfeitamente compreensivo com o passado da sua nova esposa).

5

Tiresias: "O Lenny e a Linda fizeram amor naquela noite como se ele fosse Zeus e ela Afrodite com um afrodisíaco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O realizador aproveita assim o género trágico para veicular o cómico. Da música tradicional grega (moderna) que inicia este filme até aos intervenientes e aos seus destinos. As personagens são essencialmente felizes mas são respeitadas as regras fundamentais da tragédia numa mistura de temas trágicos, numa vida moderna. Quase a encerrar o filme não deixa de ser absolutamente irónico que Lenny não saiba que a filha de Linda também é sua e Linda não saiba que Max também é seu filho. Tudo acaba num final feliz contrário ao que um espectador do trágico esperasse. A reviravolta do conflito, a katastrophé, que na Grécia antiga só poderia ser “para baixo” (katá) segue a direcção oposta de ascenção (aná) culminando em alegria e felicidade6. Será apenas a visão “hollyodesca” da herança clássica? Ou o verdadeiro significado da tragédia ou melhor, desta vida? De referir, finalmente, a prova de que o mundo clássico não morreu nem com a queda do império romano ocidental, nem com as conquistas otomanas de 1453 nem mesmo na imagética napoleónica ou fascizante do século XX e existe, directa ou subjacentemente, na literatura, mentalidade ou cinema é manter-se, resultando tão bem e naturalmente, como o filme analisado o prova. “Tomai como exemplo o caso de Lenny Weinrib, uma tragédia tão grega e eterna como o destino” (cena inicial da Poderosa Afrodite).

6

Cf. BARBERA, Woody Allen and the Spirit of Greek Tragedy: From “Crimes and Misdemeanors” (1989) to “Match Point” (2005). pp. 9

Fontes: ALLEN, W. (Realizador). (1995). Mighty Aphrodite [DVD]. EUA: Sweetland Films, Magnolia Pictures

Bibliografia: BOFF, Ibsen. An analysis of Woody Allen´s “Mighty Aphrodite” by means of relevance theory. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, vol. 5, nº 8, Março de 2007 ALLUÉ, Sonia. Parody and Metafiction in Woody Allen´s “Mighty Aphrodite”. EPOS, XV, 1999, pp. 391-406 BARBERA, Gilabert. Woody Allen and the Spirit of Greek Tragedy: From “Crimes and Misdemeanors” (1989) to “Match Point” (2005). Barselona English Language and Literature Studies, Janeiro de 2008, pp 6-12. MLA International Bibliography. Web. 8 de Junho de 2015

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