O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA POLÍTICA EXTERNA E DO DIREITO INTERNACIONAL ATRAVÉS DOS TEMPOS E A SUA INFLUÊNCIA GERAL SOBRE O CONSTITUCIONALISMO CABO-VERDIANO

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O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA POLÍTICA EXTERNA E DO DIREITO INTERNACIONAL ATRAVÉS DOS TEMPOS E A SUA INFLUÊNCIA GERAL SOBRE O CONSTITUCIONALISMO CABO-VERDIANO José Pina Delgado* Resumo: O tratamento constitucional da política externa e do Direito Internacional não tem sido objecto contínuo de interesse da doutrina constitucional ou sequer internacional. É natural, se considerarmos que ao ocupar uma zona híbrida entre a ordem jurídica externa e a doméstica, agrupa elementos de ambos e é mais exigente do ponto de vista dogmático, com conceitos mais fluídos, por vezes incompletos e agravados pela dimensão fortemente política das matérias que recobre. Atendendo ao contexto descrito, este artigo tem, primeiramente, o objectivo didáctico de apresentar a evolução histórica do tratamento constitucional da política externa e do Direito Internacional, chamando a atenção para os seus principais momentos; secundariamente, visa recortar as tradições que tiveram, sobre o constitucionalismo cabo-verdiano, influência directa ou indirecta, adoptando-se a tese de base de que, em larga medida, as Leis Fundamentais da República foram absorvendo e adaptando tradições diversas, provenientes do desenvolvimento constitucional ocidental, marxista e terceiro-mundista. Palavras-Chave: História; Política Externa; Direito Internacional; Cabo Verde; Constitucionalismo Abstract: Constitutional treatment of foreign policy and international law has not been a continuous field of interest for constitutional and international scholarship. Justifiably, if one bares in mind that it’s a hybrid domain between the domestic legal order and the external legal order and that, theorectically, it’s more demanding, with fluid concepts, seldomly incomplete, characteristics that are agravated by the strong political tone of the topic under study. With this context in mind, this article has, primarely, the didactic aim of presenting the historical evolution of the constitutional treatment of foreign policy and international law by underlining the main stages of its development; secondly, this article aims to identify the traditions that had, directly or indirectly, influence on Caboverdean Constitutionalism, and to present the thesis that its basic laws adopted different traditions in this domain, certainly from Western Constitutionalism, but also from the Marxist-Socialist and Third World experiences. Key-words: History; Foreign Policy; International Law; Cabo Verde; Constitutionalism * Professor Graduado do Departamento de Direito e de Estudos Internacionais do ISCJS. Agradeço aos colegas Mário Ramos Silva e Liriam Tiujo-Delgado pelos comentários a uma versão inicial deste texto. Exonero-os da responsabilidade por qualquer erro que este artigo mantiver.

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Introdução A História das relações internacionais é pródiga em situações de ausência de restrições ao uso do poder do Estado e de limitação jurídica à sua actuação no cenário global. Nesta senda, desde sempre, teorizaram os chamados realistas, que o espaço internacional, sendo intrinsecamente anárquico1 e movido pela prossecução do interesse dos Estados2, não poderia conviver com qualquer regulação efectiva da sua conduta3. Outrossim, esta seria marcada somente por motivações estratégicas e qualquer restrição ao exercício do poder pelas suas unidades constitutivas, resultariam da prudência auto-imposta e não de obrigações hetero-induzidas4. Não obstante persistirem formulações mais cépticas relativamente ao papel das normas na regulação das relações internacionais5 ou pelo menos em algumas das suas dimensões6, não ficam dúvidas de que o Direito Internacional desempenha um importante papel na contenção da acção externa do Estado e na sua parametrização7. Menos observado pela doutrina em geral se processa outro fenómeno associado, a tentativa de o próprio Estado, através de actos normativos de Direito 1

Especificamente, ver o texto paradigmático de Hedley Bull, The Anarchical Society. A Study of Order in World Politics, New York, Columbia University Press, 1977. 2 Como diz Hans Joachim Morgenthau, Politics Among Nations. The Struggle for Power and Peace, 7. ed., New York, McGraw-Hill, 2005, p. 5, “The main signpost that helps political realism to find its way through the landscape of international politics is the concept of interest defined in terms of power”. 3 Ver o nosso José Pina Delgado, “Interdependência e Neo-Realismo: Perspectivas para um Enfoque Liberal-Realista nas Relações Internacionais” in: Odete Maria de Oliveira & Arno dal Ri (org.), Relações Internacionais. Interdependência e Sociedade Global, Ijuí, Ed. da Unijuí, 2003, pp. 289-323 (“a esfera internacional não poderia sofrer regulamentação, até porque não haveria qualquer instituição que pudesse manter a ordem estabelecida, portanto a tentativa de impor um Direito Internacional não passaria de uma quimera ou, quando muito, de um recurso nem sempre utilizável”) (p. 294) . 4 Ilustrado representativamente por Niccolò Machiavelli, “Il Principe” in: Opere Completa di Niccolò Machiavelli, Cittadino e Segretario Fiorentino, Firenze, Borghi, 1833, pp. 294-320, ao destacar a importância de se agir na política, mormente na internacional, por vezes como o leão, por vezes como a raposa, ou seja, com a força, mas também com prudência, ou como a chama, astúcia (cap. xviii). Na lógica realista, que Maquiavel ajudou a desenvolver (por exemplo, Steven Forde, “Classical Realism” in: Terry Nardin & David Mapel (eds.), Traditions of International Ethics, Cambridge, UK, Cambridge University Press,1992, pp. 64-69), o limite à acção externa do Estado resulta simplesmente de um cálculo estratégico baseado na prudência. 5 Com este enfoque, Jack Goldsmith & Eric Posner, The Limits of International Law, Oxford, Oxford University Press, 2005. 6 Aplicando-a à regulação do uso da força, Michael Glennon, Limits of Law, Prerogatives of Power. Interventionism after Kosovo, New York, Palgrave, 2001. 7 Com diversas nuances, Louis Henkin, How Nations Behave. Law & Foreign Policy, 2. ed., New York, Columbia University Press, 1979; Abram Chayes & Antonia Chayes, The New Sovereignty: Compliance with International Agreements, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1995, e Harold Hongju Koh, “Why Nations Obey International Law?”, Yale Law Journal, v. 106, n. 8, 1997, pp. 2599-2659.

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Interno de natureza fundacional, limitar unilateralmente a sua própria conduta internacional8. Não que os desenvolvimentos não tivessem existido ao longo da História do Estado, da Antiguidade aos nossos dias. Longe disso, historicamente a maior parte das comunidades políticas que se organizaram enquanto Estados limitados, tentaram de alguma forma submeter à lei a sua política externa. No entanto, por motivos evidentes, isso somente se tornou possível de uma forma ampla com o advento do Estado de Direito moderno e com o Estado liberal contemporâneo9. O princípio do Estado de Direito tem subjacente um mandado de submissão de qualquer acção, interna ou externa, à Constituição, recobrindo o respeito pelo Direito Internacional como decorrência natural do sistema e a atribuição dos poderes em matéria de política externa a vários órgãos do Estado para que se complementem e se controlem uns aos outros, enquanto se adoptam precauções para evitar que, através de processos externos, se fraude a Constituição e os seus valores básicos. Os desenvolvimentos positivos das últimas décadas são evidentes10, mas é natural que o tópico não tenha atraído tantos estudos doutrinários quanto se podia esperar. Ocupando uma posição híbrida entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional, como ocorre muitas vezes nessas situações, acaba por ser negligenciada por ambos, ou como área bastarda ou como domínio fronteiriço cujo alcance seria dificultado para especialistas em cada uma das suas partes. Por esses motivos não é surpreendente que também tenha sido desconsiderada pela historiografia jusinternacional e constitucional11. Neste contexto, o artigo tem o modesto propósito didáctico de apresentar de modo muito genérico o percurso de constitucionalização interna da política externa e do Direito Internacional12 na História jurídica universal com o fito de 8 Veja-se o tratamento que foi sendo dado à questão no Século XX por Boris Mirkine-Guetzevich, “Droit International et Droit Constitutionell”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 38, 1932, pp. 307-465; Paul de Vischer, “Les tendances internationales des Constitutions Modernes”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 102, 1962, pp. 511-578, e Antonio Cassese, “Modern Constitutions and International Law”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 192, 1985, pp. 331-476. 9 Ver Scott Gordon, Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1999, e Louis Henkin, Constitutionalism, Democracy, and Foreign Affairs, New York, Columbia University Press, 1990, passim. 10 Para um ponto de situação actualizado, Wen-Chen Chang & Jiunn-Rong Yeh, “Internationalization of Constitutional Law” in: Michel Rosenfeld & András Sajó (eds.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, Oxford, Oxford University Press, 2012, pp. 1165-1184. 11 É excepção Antonio Cassese, “Modern Constitutions and International Law”, pp. 351-367, que tenta apresentar a evolução da Constituição Internacional através dos tempos. 12 Apesar da sua ligação com a matéria em apreço e de, no geral, não deixar de fazer parte da Constituição Internacional, a questão dos direitos humanos/fundamentais não será recoberta. Primeiro, porque a sua origem é o resultado de influxos mistos, internos e internacionais, por esta ordem. Assim, apesar de a evolução constitucional mais recente, e a de Cabo Verde não é excepção, ser tributária dos instrumentos internacionais de direitos humanos do Século XX, estes, em larga medida, já faziam parte do arcaboiço constitucional de vários países nessa altura; segundo, em razão de ser materialmente impossível, dada a extensão dos sistemas constitucionais de direitos fundamentais, dar conta desta associação num artigo.

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proporcionar aos estudantes de Direito Internacional e de Direito Público Externo do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais um meio de estudo. Foram, de forma muito secundária, introduzidas teses e hipóteses relacionadas a essa questão, designadamente a proposta de uma leitura da Constituição Internacional actualmente em vigor e todo o percurso constitucional de Cabo Verde, como o resultado de um quadro que não só resulta do propalado constitutional borrowing13 da Constituição Portuguesa de 197614, mas também, e particularmente, de desenvolvimentos ocorridos desde finais do Século XVIII, seja ao nível constitucional positivo, seja no teórico-filosófico, que, em conjunto, criaram uma agenda e modelos adaptáveis a qualquer Lei Fundamental. A isso acresce o inevitável influxo de institutos e categorias do Direito Internacional (por exemplo, do Direito Internacional dos Tratados, do Direito das Organizações Internacionais, do Direito da Segurança Internacional ou do Direito Internacional Diplomático), Direito Comunitário e desenvolvimentos de outras áreas do Direito Constitucional, como, por exemplo, as relacionadas à organização do poder político e à definição do sistema de governo. Num cenário em que cada país tem um percurso próprio, não se pode pretender abarcá-los todos. É necessário, pois, fazer-se, por vezes, recortes espaciais, sem perder o contexto universal. Por este motivo, cingir-nos-emos à recuperação dos principais momentos do percurso universal, relacionandoos às principais etapas do constitucionalismo antigo e moderno e incidindo em particular sobre o percurso no espaço lusitano do qual Cabo Verde fazia parte, com o propósito de estabelecer, de forma geral, os antecedentes15 mais importantes do modelo e das soluções que viriam a ser, mais tarde, adoptadas pelo constitucionalismo cabo-verdiano, no momento em que dava os primeiros passos nas décadas de setenta e oitenta, e depois pela Constituição de 1992, actualmente em vigor. 13

Sobre o conceito, com diferentes perspectivas, Nelson Tebbe & Robert Tsai, “Constitutional Borrowing”, Michigan Law Review, v. 108, n. 4, 2010, pp. 459-522; mais especificamente sobre emigração/imigração de institutos, ideias e normas constitucionais, Frederich Schauer, “On the Migration of Constitutional Ideas”, Connecticut Law Review, v. 37, n. 4, 2005, pp. 907-919, e os artigos em Sujit Choudhry (ed.), The Migration of Constitutional Ideas, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2006. 14 O estudo geral mais completo continua a ser o de Jorge Carlos Fonseca, “Do regime de partido único à democracia em Cabo Verde: as sombras e a presença da Constituição Portuguesa de 1976”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Edição Especial: 30 Anos de Constituição Portuguesa, 1976-2006, 2006, pp. 81-118. 15 Deixa-se de fora somente as versões da Constituição Portuguesa posteriores à originária, precisamente porque estas estabeleceram um quadro de mediação com a nossa lei-mãe que justificaria uma análise mais autónoma e específica. Apesar de não sufragarmos a orientação de que não há ligação palpável entre a Constituição de 1980 e o constitucionalismo português, concordamos plenamente com Jorge Carlos Fonseca de que “hoje não restam grandes dúvidas de que a Constituição de 1992 sofreu influência forte e directa do constitucionalismo português mais recente, concretamente da CRP de 1976, naturalmente das versões de 1982 e 1989” (Ibid., p. 104).

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I. Momentos do percurso universal: da Antiguidade ao Século XIX A ligação entre a Constituição e a Política Externa é antiga16, ainda que nem sempre presente e consistente. Para além dos exemplos das civilizações orientais17, na região do Mediterrâneo, vários preceitos das Sagradas Escrituras regulavam a actividade bélica do Estado de Israel, encontrando-se com algum desenvolvimento no Livro do Deuteronómio18. Em Roma19, o chamado Direi16 Veja-se genericamente sobre esta associação, Louis Henkin, Constitutionalism, Democracy, and Foreign Affairs, passim; Celso de Albuquerque Mello, Direito Constitucional Internacional – Uma Introdução, 2. ed., Rio de Janeiro/São Paulo, Renovar, 2000. 17 Os Estados Orientais ficaram conhecidos pelo modelo autocrático de poder, baseado num soberano absoluto (cf., por todos, Samuel Finer, A História do Governo, José Espadeiro Martins (trad.), Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, v. I (Monarquias e Impérios Antigos)). Porém, disso não resultou uma ausência total de constrangimentos à sua acção, já que, na qualidade de vigários dos Deuses, os seus representantes na Terra, os reis deviam-lhes obediência, um aspecto que não deixava de ter os seus impactos no Direito Público Externo dessas Nações. Por todos, ver Péter Kóvacs, “Relativities in Unilateralism and Bilateralism of the International Law of Antiquity”, Journal of the History of International Law, v. 6, n. 2, 2004, pp. 173-186, e, complementarmente, Victor Mathews, “Legal Aspects of Military Service in Ancient Mesopotamia”, p. 139 (“In Ancient Mesopotamia, as today, it was appropriate to justify declarations of war and call down divine support”), e Amnon Altman, Tracing the Earliest Recorded Concepts of International Law. The Ancient Near East (2500–330 BCE), Leiden/Boston, Martinus Nijhof, 2012, p. 59 (“An appeal to the god included necessarily also a request for the god’s help, since it was inconceivable for a battle to be won without the support of the gods, let alone against their will”), para a sua relevância em situações de guerra, e Donald Magnetti, “The Function of the Oath in the Ancient Near Eastern International Treaty”, American Journal of International Law, v. 82, n. 4, 1978, pp. 815-829, (“In an agreement between States, the agreed points can only be enforced peacefully by an appeal to an international legal structure. In the absence of such established structure, as was the case in the Ancient Near East only an appeal to the gods could be an effective means to guarantee observance of the treaty – other than military force”) (p. 815); Karl-Heinz Ziegler, “Conclusion and Publication of International Treaties in Antiquity”, Israel Law Review, v. 29, n. 1-2, 1995, pp. 233-249; David Bederman, International Law in Antiquity, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2001, pp. 61-65; Amnon Altman, “The Role of the ‘Historical Prologue’ in the Hittite Vassal Treaties: An Early Experiment in Securing Treaty Compliance”, Journal of the History of International Law, v. 6, n. 1, 2004, pp. 43-64; ver também os tratados reunidos em Gary Beckman (ed.), Hitite Diplomatic Texts, 2. ed., Atlanta, Society of Biblical Studies, 2000, em relação às relações de paz, todos mostrando que os Deuses de cada uma das partes é que garantiam o cumprimento das obrigações, através da ameaça de sanções. 18 Um exemplo ilustrativo encontra-se na passagem mais completa da Torah (Deuteronómio, 20/10 e ss) sobre a regulação da guerra, quando são estabelecidos dois regimes jurídicos diferentes: um para as “cidades muito afastadas”, mais fléxivel e limitado, e outro para as “cidades daqueles povos cuja posse te dá o Senhor teu Deus”, onde praticamente inexistiam quaisquer restrições jurídicas sobre o modo como as guerras deveriam ser travadas (v. Bíblia Sagrada, 5. ed., Cucujães, Editorial Missões, 2005, p. 292); seguir, inter alia, Roland de Vaux, Ancient Israel. Its Life and Institutions, Grand Rapids, Michigan/Livonia, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company/Dove Bookseelers, 1961; Shabtai Rosenne, “The Influence of Judaism on the Development of International Law: an Assessment” in: Mark Janis & Carolyn Evans (eds.), Religion and International Law, Leiden/ Boston, Martinus Nijhoff, 1999, p. 76; David Bederman, International Law in Antiquity, p. 265; Alexander Rofé, “The Laws of Warfare in the Book of Deuteronomy: Their Origins, Intent and Positivity”, Journal for the Study of the Old Testament, v. 32, n. 1, 1985, pp. 23-44. 19 Para a contribuição geral do Direito Romano ao desenvolvimento do Direito Internacional, Arthur Nussbaum, “Roman Law and International Law”, University of Pennsylvania Law Review,

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to dos Feciales, o Direito de Guerra dos Romanos e Latinos20, definia o processo de declaração de guerra de Roma e as regras internas de carácter fundamental para a vinculação aos diversos tipos de tratados que desenvolveram21, bem como de tratamento dos estrangeiros em território romano (Jus Gentium)22. Na Antiga Grécia, pouco antes, as leis fundamentais das cidades-Estado, as Nomoi, distribuíam entre os órgãos constitucionais as competências em matéria de política externa e Direito Internacional. Em Esparta entre a Gerusia (Conselho), o Eforato e a Appela (Assembleia)23; em Atenas, entre a Ekklesia (Assembleia) e a Boulé dos 500 (Conselho)24. A tradição de controlo da guerra, em particular, v. 100, 1952, pp. 678-687, e uma leitura geral do Direito Público Externo romano em Eduardo Vera-Cruz Pinto, História do Direito Comum da Humanidade. Ius Communis ou Lex Mundis?, Lisboa, AAFDL, 2006, 2 v. 20 Em especial, Alan Watson, International Law in Archaic Rome. War and Religion, Baltimore/ London, The John Hopkins University Press, 1993, passim, especialmente 62 (“The ius fetiale – and ius ‘law’ is accurate terminology – was a wonderful creation of Latins (or possibly some other central Italian people). Which community was responsible cannot be established. The whole purpose of the ius fetiale was the preservation of peace among an ethnically and linguistically related group of states that were faced with hostile neighbors. Latin communities had no organized political relationship, but they had common religious ties. They traced on these to set up, in each community, a body of priests who could use a shared religious tradition to keep peace and, if all else failed, to declare a just war”); a leitura de David Bederman, International Law in Antiquity, pp. 231-233, é proveitosa para detalhes sobre o processo de declaração de guerra. 21 O grande desenvolvimento em relação ao Direito dos Tratados teria como mote a submissão dos outros povos a Roma, através de diversas modalidades convencionais internacionais: o deditio (tratado de capitulação) ou os tratados de amizade (amicitia), aliança (foedus) e hospitalidade (hospitium) (Georg Stadmüller, História del Derecho Internacional Público. Hasta el Congreso de Viena [Geschichte des Völkerrechts. Bis zum Wiener Kongress], António Truyol y Serra (trad.), Madrid, Aguillar, 1971, p. 37). 22 Na doutrina cabo-verdiana, ainda que tendencialmente na perspectiva de ser o jus gentium um Direito Internacional, Geraldo da Cruz Almeida, “Subsídios para a história do estudo do Direito Internacional Privado na antiguidade clássica”, Direito & Cidadania, a. 4, n. 14, 2002, pp. 213-233. 23 Assim aconteceu em Esparta. Apesar de ser um Estado completamente militarizado, as campanhas militares dependiam da aprovação da Assembleia Espartana (a Appela), que se reunia por iniciativa do Conselho (a Gerusia) e convocação de Éforos, e eram conduzidas pelos dois reis da cidade, sob acompanhamento e controlo de dois membros do Eforato. Várias vezes, os próprios órgãos da cidade, ordenavam o fim das hostilidades e a volta dos militares a Esparta. Veja-se, por exemplo, o que se diz de Agesilao, Rei de Esparta: “When the ephors recalled him because Sparta was ringed by Greek enemies thanks to the money send by the Persians, he declared that the good commander should be commanded by the laws, and sailed from Asia (…)” (“Sayings of Spartans” in: On Sparta, Richard Talbett (trad. e notas), London, Penguin, 2005, p. 142), o que quer dizer que as ordens dos órgãos de poder de Esparta vinculavam efectivamente os reis. Aliás, a garantia de eficácia desse sistema assentava também no facto de que, não se podendo tomar qualquer medida contra os reis em período de campanha militar, uma vez regressado a Esparta, eles podiam ser acusados por iniciativa dos éforos e julgados pela Gerusia. 24 Apesar de conduzidas por generais sob orientação do Conselho da cidade (a Boulé dos 500), pressupunha uma autorização da Assembleia (a Ekklesia). Evidências existem que ela se pronunciava sobre qualquer iniciativa militar da cidade sendo, portanto, em meio de controlo do uso da força no cenário internacional, muito embora, na prática, na cidade democrática, a po-

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manteve-se constante, mesmo no período medieval e na aurora da modernidade, quando, por um lado, a literatura internacional manteve-se fiel à tradição romana de uma regulação interna da política externa que se projecta sobre a esfera internacional e mescla-se com o Direito Internacional25, e, por outro, as Assembleias receberam poderes para limitar as prerrogativas reais nessa matéria, recusando a aprovação dos impostos necessários para financiar os seus empreendimentos bélicos26. Esta tendência é representada de forma perfeita pela complexa organização política das cidades do Norte da Itália, no período renascentista, particularmente a República de Florença 27, e pelo escrito de um esquecido, contudo importante 28, pensador florentino chamado Donato Giannotti (1492-1573)29, em que propõe, a partir do exílio, a reforma da Constituição da cidade do Arno, contemplando a distribuição dos poderes em matéria de política externa pelos vários órgãos de Estado cuja criação recomenda30. pulação inclinava-se pela prossecução de interesses imperiais atenienses. Cf. Christopher Blackwell, “The Assembly” in: Dēmos: Classical Athenian Democracy, a publication of Stoa: a consortium for electronic publication in the humanities [www.stoa.org], pp. 30-33, 39-41, para o papel da Ekklesia na política externa e de segurança de Atenas, mostrando que o papel da Assembleia na condução da política de segurança não se limitava a aspectos genéricos, mas atingia praticamente todas as suas fases e pormenores. Nada mais lógico, aliás, se se atentar ao facto de que o exército da cidade era composto pelos cidadãos, de maneira que a sua anuência era devida para se levar avante qualquer empreendimento bélico. 25 Seguir em particular os clássicos do período como Giovanni da Legnano, Tractatus De Bello, De Represaliis et De Duello, ed. bilíngue, Thomas Erskine Holland (ed.), Oxford, Oxford University Press, 1917 [1360]; Pierino Belli, De re militari et bello tractatus, ed. bilíngue, Herbert Chester Nutting (ed.), Oxford/London, Clarendon/Milford, 1936 [1563], e Balthazar Ayala, De jure et officiis bellicis et disciplina militari libri III, ed. bilíngue, John Westlake (ed.),Washington D.C.,The Carnegie Institution of Washington, 1912 [1582]. 26 Veja-se, por todos, Yoram Barsel & Edgar Kiser, “Taxation and Voting Rights in Medieval England and France”, Rationality & Society, v. 14, n. 4, 2002, pp. 473-507. 27 Por exemplo, ver a apresentação geral de Samuel Finer, The History of Government: the Intermediate Times, Oxford, Oxford University Press, 1999, v. I, p. 950 e ss. 28 Veja-se os trabalhos recentes de Ernst-Ulrich Petersmann, “The Transformation of the World Trading System through the 1994 Agreement Establishing the World Trade Organization”, European Journal of International Law, v. 6, n. 1995, p. 163; e “De-Fragmentation of International Economic Law Through Constitutional Interpretation and Adjudication with Due Respect for Reasonable Disagreement”, Loyola University Chicago International Law Review, v. 16, n. 1, 2008, p. 246, internacionalista que tem tentado resgatar o papel deste pensador. 29 Donato Giannotti, Della Reppublica Florentina, Venezia, Gio. Gabriel Hertz, MDCCXII, lib. III (a obra, na realidade, não foi publicada em vida em razão do receio do autor, no exílio em Roma, de ser prejudicado pelo volátil ambiente político florentino). 30 Sobre esta dimensão da sua obra e apresentações gerais, Francesca Russo, “L'idea di Res publica e penseiro anti-tirannico in Donatto Giannotti”, Annali - Universitá degli Studi Suor Orsola Benincasa, v. I, 2009, pp. 179-192; María Luisa Soriano González, “La República de Donato Giannotti: rara avis de la teoría política renascentista”, Revista Internacional de Estudios Políticos, v. 5, 2010, pp. 273-286.

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A emergência do poder absoluto, já no período moderno, é que permitirá a concentração total e ilimitada (legibus solutus) de todos os poderes nas mãos do soberano – ou seja, tanto dos poderes em matéria de feitura e condução da guerra e concertação da paz, como de celebração de tratados, envio de embaixadores e demais emissários diplomáticos – tornando-se prerrogativa insindicável de monarcas31. É neste quadro que o constitucionalismo moderno vai operar, tentando, em moldes parecidos aos Estados limitados da Antiguidade32, mas proporcionalmente mais ténues, moderar os foreign affairs powers absolutos do soberano. A questão é muito simples e observada pela sabedoria de autores como o inglês Thomas Paine (1737-1804)33 na obra Direitos Humanos (1791). Poderes excessivos em matéria de política externa colocam em risco o direito das pessoas, uma vez que expandem o Estado e os seus poderes e criam situações de guerras descontroladas que servem para criar as condições destinadas a afectar desproporcionalmente as liberdades fundamentais, aumentar os impostos e impor fardos insuportáveis aos indivíduos34. Esta relação conheceu a sua principal formulação no famoso texto de 1795 de Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden, em que o filósofo prussiano advoga a paz perpétua mundial, pressupondo, para tanto, Repúblicas Democráticas35, nas quais quem 31

A este respeito, cf. Gaston Zeller, “Politique exterieure et diplomatie sous Louis XIX”, Revue d’Histoire Moderne, t. 6, 1931, pp. 124-143; William J. Rosen, “The Functioning of Ambassadors under Louis XIV”, French Historical Studies, v. 6, n. 3, 1970, pp. 311-333, e Jean Chagniot, “Organizer la counduit de la guerre sous Louis XIV? A partir de deux ouvrages récents”, Revue Historique de Droit Français et Étranger, n. 4, 2010, pp. 563-570, todos mostrando a concentração jurídica e fáctica dos poderes em matéria de política externa nas mãos do rei absoluto francês. 32 Cf. Scott Gordon, Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today, passim. 33 Um dos ícones da Revolução Americana, Paine era mais um activista do que um teórico. Nascido na Inglaterra, lutou contra a sua própria pátria para a independência das colónias da América do Norte e tomou parte da Revolução Francesa, embora se tenha incompatibilizado com as lideranças jacobinas por não concordar com os excessos revolucionários, designadamente com a decisão que levou à decapitação de Luís XVI (Seguir a pequena, mas importante, apresentação de David Matravers, “Introduction” in: Thomas Paine, Rights of Man, Hertfordshire, UK, Wordsworth, 1996, pp. viii-xii, e, para a última questão, Christopher Hobson, “Revolution, Representation and the Foundations of Modern Democracy”, European Journal of Political Theory, v. 7, n. 4, 2008, pp. 449-471). 34 Numa certa passagem daquela que pode ser considerada a sua principal obra, Thomas Paine, Rights of Man, p. 105, diz: “Every war terminates with an addition of taxes, and consequently with an addition of revenue; and in any event of war, in the manner they are now commenced and concluded, the power and interest of Governments are increased. War, therefore, from its productiveness, as it easily furnishes the pretence of necessity for taxes and appointments to places and offices, becomes a principal part of the system of old Governments”. 35 A respeito da paz perpétua de Kant, cf. o nosso José Pina Delgado, “Cosmopolitismo e os dilemas do humanismo: as relações internacionais em Al-Farabi e Kant” in: Odete Maria de Oliveira (org.), Configuração dos humanismos e relações internacionais: ensaios, Ijuí, Ed. da Unijuí, 2006, pp. 211-271, bem ainda como as compilações de Valério Rohden (coord.), Kant e a instituição da paz, Porto Alegre, Ed. UFRGS/ Goethe Institut, 1997, e James Bohman & Mathias Lutz-Bachmann (eds.). Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopolitan Ideal, Cambridge, Mass/London, UK, The MIT Press, 1997.

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decide sobre a guerra e a paz são os próprios cidadãos e não o soberano, pois sobre aqueles e não este recaíam os ónus de qualquer conflito armado36. Per contra, autores mais afeitos à glorificação do Estado, como Hegel, o maior crítico do sábio de Königsberg, entendiam fazer apologias aos efeitos positivos da guerra para a consolidação interna da Comunidade Política organizada37, algo que, mais tarde, foi capturado na sua amplitude simbólica pela ideia esposada em 1937 por Carl Schmitt, apostado em ser Jurista da Coroa do Dritten Reich38, com a expressão “Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat”, “Inimigo Total, Guerra Total, Estado Total”39. 36

Conforme o autor, “A Constituição Republicana, além de possuir pureza de sua origem, de ter nascido na fonte pura do conceito de direito, tem como objectivo o resultado desejado, isto é, a paz perpétua. Se é preciso o consentimento dos cidadãos (como não pode ser de outro modo nessa Constituição) para decidir se deve haver guerra ou não, nada mais natural que se pense muito por começar de um jogo tão maligno, uma vez que eles teriam que decidir por si próprios todos os sofrimentos da guerra (como combater, custear as despesas da guerra com o seu próprio património, reconstruir penosamente a devastação que ela deixa atrás de si e, por último, para cúmulo dos males, responsabilizar-se pelas dívidas que se transferem para a própria paz e que nunca desaparecem (…) [Nun hat aber die republikanische Verfassung, außer der Lauterkeit ihres Ursprungs, aus dem reinen Quell des Rechtsbegriffs entsprungen zu sein, noch die Aussicht in die gewünschte Folge, nämlich den ewigen Frieden; wovon der Grund dieser ist. – Wenn (wie es in dieser Verfassung nicht anders sein kann) die Beistimmung der Staatsbürger dazu erfordert wird, um zu beschließen, »ob Krieg sein solle, oder nicht«, so ist nichts natürlicher, als daß, da sie alle Drangsale des Krieges über sich selbst beschließen müßten (als da sind: selbst zu fechten; die Kosten des Krieges aus ihrer eigenen Habe herzugeben; die Verwüstung, die er hinter sich läßt, kümmerlich zu verbessern; zum Übermaße des Übels endlich noch eine, den Frieden selbst verbitternde, nie (wegen naher immer neuer Kriege) zu tilgende Schuldenlast selbst zu übernehmen)(...)”, (Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden in: Werke, Berlin, Walter de Gruyter, 1968, Ak. VIII, art. I (A garantia da Paz Perpétua)). 37 Ver o trecho seguinte: “A idealidade que aparece na guerra como orientada para o exterior num fenómeno contingente e a idealidade pela qual os poderes interiores do Estado são momentos orgânicos de um todo constituem, pois, uma única mesma idealidade, o que na aparência histórica se vê quando as guerras evitam felizes perturbações internas e consolidam o poder interior do Estado [Daß die Idealität, welche im Kriege als in einem zufälligen Verhältnisse nach außen liegend zum Vorschein kommt, und die Idealität, nach welcher die inneren Staatsgewalten organische Momente des Ganzen sind, dieselbe ist, kommt in der geschichtlichen Erscheinung unter anderen in der Gestalt vor, daß glückliche Kriege innere Unruhen verhindert und die innere Staatsmacht befestigt haben]” (Georg Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986, § 324, para facilitar o acesso, reproduziu-se igualmente a tradução brasileira de Orlando Vitorino, São Paulo, Martins Fontes, 2000); para comentários e reflexões, Charles Taylor, Hegel, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1975, p. 448, e Lukas Sosoe, “Superar as antinomias das luzes. Hegel” in: Alain Renaut (dir.), História da Filosofia Política: Luzes e Romantismo, António Viegas (trad.), Lisboa, Instituto Piaget, 2001, v. III, pp. 263-308, esp. p. 289. 38 Veja-se Joseph Bendersky, Carl Schmitt. Theorist for the Reich, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1983; Bernd Rüthers, Carl Schmitt en el Tercer Reich. La ciencia como fortalecimiento del espíritu de la época? [Carl Schmitt in Dritten Reich], Luís Villar Borda (trad. e pres.), Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2004 [orig.: 1990]; Gopal Balakrishnan, The Enemy. An Intellectual Portrait of Carl Schmitt, London/New York, Verso, 2000; David Cumin, Carl Schmitt. Biographie Politique et Intelecctuelle, Paris, CERF, 2005; Carlo Angelino, Carl Schmitt sommo Giurista del Führer. Testi antisemiti (1933-1936), Genova, Il Melangono, 2006. 39 Cf. Carl Schmitt, “Enemigo Total, Guerra Total, Estado Total [1937]’ in: Héctor Orestes Aguillar (org.), Carl Schmitt, Teólogo de la Política, México, DF, Fondo de Cultura Económica, 2001, pp.

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A preocupação dos constitucionalistas modernos foi tanta que John Locke (1632-1704)40, o grande teórico da Revolução Gloriosa41, para além dos poderes mais tradicionais do Estado popularizados por Montesquieu no seu L’Esprit des Lois42, contava com o que chamava de poder federativo, portanto a prerrogativa de conduzir a política externa, muito embora entendendo ser difícil ultrapassar a inevitibilidade de se a deixar para a prudência do soberano pela concreta impossibilidade de submetê-la a qualquer tipo de regulação43. Esta perspectiva, no fundo, acabou por marcar a lógica do sistema inglês desse período44, garantindo-se ao Rei (e, mais tarde, ao Primeiro Ministro) a prerrogativa45 de, por um lado, executar a política externa, nomeando os seus representantes46 e vinculando, se necessário, o Estado47 e, do outro, utilizar a força armada na esfera 141-154, e, para uma ligação entre os dois autores, Jean-François Kervegan, Hegel, Carl Schmitt: La politique entre spéculation et positivité, Paris, PUF, 2005. 40 Sobre Locke e o seu papel, Roger Woolhouse, Locke. A Biography, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2007. 41 Para além da obra citada no rodapé anterior, cf. James Farr & Clayton Roberts, “John Locke and the Glorious Revolution”, The Historical Journal, v. 28, n. 2, 1985, pp. 385-394, e Lois Schwoerer, “Locke, Lockean Ideas, and the Glorious Revolution”, Journal of the History of Ideas, v. 51, n. 4, 1990, pp. 531-548. 42 [Barão de] Montesquieu, [abrev. De l’Esprit des Lois] in: Ouevres Completes, Paris, Gallimard, 1951, v. II, pp. 225-995. 43 Dizia John Locke, The Second Treatise of Government: An Essay Concerning the True Original, Extent, and End of Civil Government in: John Locke, Two Treatises of Government, Peter Laslett (ed.), Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1988 (Student Edition), cap. XII § 147, que o poder de “management of the security and interest of the publick without, with all those that it may receive benefit or damage from (...) is much less capable to be directed by antecedent, standing, positive Laws, than the Executive; and so it must be necessarily left to the Prudence and Wisdom of those hands it is in, to be managed for the Publick good”. 44 No geral, cf. John Yoo, “The Eighteenth-Century Anglo-American Constitution and Foreign Affairs” in: John Yoo, The Powers of War and Peace. The Constitution and Foreign Affairs after 9/11, Chicago/London, Chicago University Press, 2005, pp. 30-54, que apresenta deste modo a lógica do sistema: “The English system gave the executive leadership in the initiation and conduct of war and the making of treaties, while the legislature primarily played a role by funding the wars, enacting implementing legislation, and impeaching ministers” (p. 32). 45 Para um enquadramento geral dessas prerrogativas, Thomas Poole, “United Kingdom: the Royal Prerrogative”, International Journal of Constitutional Law, v. 8, n. 1, 2010, pp. 146-155, bem ainda como a obra de Vernon Bogdanor, The Monarchy and the Constitution, Oxford, UK, Oxford University Press, 1995. 46 Sir William Blackstone, Commentaries on the Laws of England in Four Books [1765-1769], Philadelphia, J.B. Lippincott Co., 1893, v. 1, destaca a este respeito que “The king therefore, considered as the representative of his people, has the sole power of sending ambassadors to foreign states, and receiving ambassadors at home” (p. 253). 47 Já dizia Sir William Blackstone que “It is also the king’s prerogative to make treaties, leagues, and alliances with foreign states and princes. For it is by the law of nations essential to the goodness of a league, that it be made by the sovereign power; and then it is binding upon the whole community: and in England the sovereign power, quoad hoc, is vested in the person of the king. Whatever contracts therefore he engages in, no other power in the kingdom can legally delay, resist, or annul. And yet, lest this plenitude of authority should be abused to the detriment of

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internacional48, cabendo ao Parlamento apenas discutir a incorporação dessas normas na esfera jurídica interna no quadro do sistema dualista adoptado49 e eventualmente censurar o executivo pela má utilização do exército no exterior50. Para além deste aporte teórico não-materializado em poderes parlamentares concretos é de se referir como marco da evolução do tratamento constitucional do Direito Internacional ao papel sistematizador do renomado jurista inglês William Blackstone (1723-178051) que detectou, sistematizou e popularizou uma das principais facetas da incorporação de normas costumeiras no direito interno, que ficou conhecida pela fórmula International Law is Law of the Land52. the public, the constitution (as was hinted before) hath here interposed a check, by the means of parliamentary impeachment, for the punishment of such ministers as from criminal motives advise or conclude any treaty, which shall afterwards be judged to derogate from the honour and interest of the nation (Ibid., p. 257). 48 Seguir, mais uma vez, Blackstone, para quem “Upon the same principle, the king has also the sole prerogative of making war and peace. For it is held by all the writers on the law of nature and nations, that the right of making war, which by nature subsisted in every individual, is given up by all private persons that enter into society, and is vested in the sovereign power” (Ibid., pp. 257-258), bem ainda como o mais recente Nigel White, “The British Constitution and Military Action” in: Democracy Goes to War. British Military Deployments under International Law, Oxford, UK, Oxford University Press, 2008, pp. 7-30, e, com outro foco, em “The United Kingdom: Increasing Commitment Requires Greater Parliamentary Involvement” in: Charlote Ku & Harold Jacobson (eds.), Democratic Accountability and the Use of Force in International Law, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2003, pp. 300-322. 49 A propósito desta tradição, Stephen Neff, “United Kingdom” in: Dinah Shelton (ed.), International Law and Domestic Legal Systems. Incorporation, Transformation, and Persuasion, Oxford, Oxford University Press, 2011, pp. 620-630, e, historicamente, mais uma vez, John Yoo, “The Eighteenth-Century Anglo-American Constitution and Foreign Affairs”, p. 45, para quem “(…) different functions were distributed so that each organ of government could restrain the other. In the former, maintaining a line between war and treaties on the one hand, and domestic lawmaking and funding on the other, fits the distinction between executive power in foreign affairs and legislative control over domestic regulation. Limiting wars and treaties to matters of international affairs, however, and requiring parliamentary participation for any war or treaty undertakings of a domestic nature also provided Parliament with a check on the royal prerogative over internacional agreements”. 50 Como diz Nigel White, “The British Constitution and Military Action”, p. 22, “In theory the legislature controls the executive since a government can be ousted by a vote of no-confidence in parliament. (…). However it is questionable whether these operate as robust controls on Cabinet decision-making. Crucial decisions have already been made, making the controls appear, at best, retrospective. Nevertheless, Ministers may curtail their decision when considering the possible adverse reaction of the House of Commons or the relevant Select Committee in the near future”. 51 Sobre o afamado jurista, ver Herbert Storing, “William Blackstone” in: Leo Strauss & Joseph Cropsey (eds.), History of Political Philosophy, 3. ed., Chicago, The University of Chicago Press, 1987, pp. 622-634. 52 Na realidade a expressão é representativa das ideias formuladas por Sir William Blackstone, Commentaries on the Laws of England in Four Books [1765-1769], l. iv, cap. v, p. 67, a respeito do assunto (“since in England no royal power can introduce a new law, or suspend the execution of the old, therefore the law of nations (wherever any question arises which is properly the object of its jurisdiction) is here adopted in its full extent by the common law, and is held to be

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Tentativas foram feitas de ajustar tradições monárquicas clássicas aos novos desenvolvimentos, sendo um exemplo clássico a Lei Fundamental de organização do poder da Suécia (1720)53 , um país com importantes tradições constitucionais54 e que teve uma relevante experiência de divisão de poder entre o Rei e o Parlamento no início do Século XVIII55 . Na esfera externa, numa lógica de transição, reservava-se, de um lado, ao Monarca as prerrogativas tradicionais de fazer a guerra para defender o Reino contra os seus inimigos56, porém, do outro, tentava ressalvar os interesses dos súbditos, vedando-se o lançamento de impostos destinados a financiá-la sem o consentimento do Parlamento (os Estados Gerais)57 e exigindose que este, caso estivesse em funcionamento, aprovasse, com a excepção dos casos de legítima defesa e de guerra continuada, o seu lançamento e a conclusão da paz, das tréguas ou de alianças58. Não estando reunido o Parlamento, o seu papel, com as devidas mutações, seria assumido transitoriamente pelo Senado59. A primeira lei fundacional moderna amplamente estruturada e sistematia part of the law of the land. And those acts of parliament which have from time to time been made to enforce this universal law, or to facilitate the execution of its decisions, are not to be considered as introductive of any new rule, but merely as declaratory of the old fundamental constitutions of the kingdom, without which it must cease to be a part of the civilized world”). 53 ‘La Forme du Gouvernement de Suède, établie par S. M. & les États du Royaume le 2. May 1720 à Stockholm’, Jus Publicum, n. 9, 2013. 54 Veja-se a respeito Jean-Paul Lepetit, “La constitution suédoise de 1720: Première constitution écrite de la liberté en Europe continentale”, Jus Politicum, n. 9, 2013, p. 1 que assim sumariza a sua opinião: “On néglige habituellement la contribution de la Suède à l’histoire du constitutionnalisme libéral. Ce pays possède pourtant une longue tradition de gouvernement constitutionnel”. 55 Ver o enquadramento de Michael Roberts, The Age of Liberties. Sweden, 1719-1772, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1986. 56 Estabelece o instrumento que “Il appartient à S. M. de maintenir son Royaume en paix, de le secourir, principalement contre toute force étrangère & toute violence & attaque ennemie” (´La Forme du Gouvernement de Suède, établie par S. M. & les États du Royaume le 2. May 1720 à Stockholm’, art. 5º`). 57 A expressão é esta: “mais il ne doit pas pour cela, contre la loi, contre son serment Royal & ses assurances exiger de ses sujets des impôts, subsides pour la guerre, taxes, péages, levées de soldats & autres charges, sans la participation & le libre consentement des États au delà de ce que l’article suivant lui accorde; il ne doit pas non plus les étendre, ni les prolonger plus qu’il n’est permis de le faire conformément au contenu clair & positif de la concession qui lui en a été faite” (Ibid.). 58 “S. M. ne doit pas non plus; sans une délibération & un consentement antécédent des États du Royaume commencer la guerre & attaquer à main armée ses voisins qui sont en paix. Mais si quelques séditieux dans le pays, ou quelque ennemi du dehors vient armé & de force ouverte troubler la tranquillité du Royaume & en attaquer les frontières; un dessein si mauvais doit être sur le champ prévenu, avec l’avis du Sénat, & sans attendre l’assemblée & la délibération des États, le Royaume doit être défendu, pacifié & délivré; & les impôts nécessaires et inévitables en pareil cas établis & continués jusqu’à ce que les États du Royaume puissent s'assembler” (Ibid., art. 6º).“ 59 S. M. dans des cas de cette importance délibère avec le Sénat, prend avec lui les mesures les plus utiles, & les plus convenables pour le bien du Royaume & les fait exécuter sans retardement. Cependant il nous en sera donné connaissance dans la suite à la plus prochaine Diète : Mais lorsque la Diète se trouve actuellement assemblée on n'entreprend ni ne conclut rien en pareille matière à l'insu & sans le consentement des États” (Ibid., art. 7º).

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zada a tratar as matérias objecto desta apresentação, a Constituição dos Estados Unidos de 178760, expande este entendimento aos tratados61, que passam igualmente a ser tidos como Law of the Land, por força do artigo 6 (2)62 desta lei fundamental paradigmática e das decisões reiteradas da Suprema Corte a respeito da questão63. Para além disso, também previa a divisão de poderes em matéria de declaração de guerra, tratados, e comércio internacional entre, por um lado, o Congresso64 e o Presidente da República65, e, por outro, entre 60 Para comentários gerais de carácter histórico e jurídico-positivo, Louis Henkin, Foreign Affairs and the US Constitution, 2. ed., Oxford, Clarendon Press, 1996; Louis Fischer, Presidential War Powers, 2. ed., Lawrence, Kansas, University of Kansas Press, 2004; John Yoo, The Powers of War and Peace. The Constitution and Foreign Affairs after 9/11, passim ; Mark Janis, The American Tradition of International Law. Great Expectations 1789-1914, Oxford, Clarendon Press, 2004, passim, dá, ademais, ênfase à aplicação do Direito Internacional pelos tribunais americanos (cap. 3), tema recuperado pelo autor no mais recente America and the Law of Nations, 1776-1939, New York, Oxford University Press, 2010. 61 Especificamente, Harold Hongjuh Koh, “International Law as Part of Our Law”, American Journal of International Law, v. 98, n. 1, 2004, pp. 43-57. 62 A redacção do dispositivo é esta, ressaltando-se a expressão relevante: “This Constitution, and the laws of the United States which shall be made in pursuance thereof; and all treaties made, or which shall be made, under the authority of the United States, shall be the supreme law of the land; and the judges in every state shall be bound thereby, anything in the Constitution or laws of any State to the contrary notwithstanding” (art. 6º) (The Constitution of the United States of America [1787], Washington, Government Printing Office, 2007). Este e muitos dos textos constitucionais aqui mencionados podem ser encontrados em Jorge Miranda (org.), Textos Históricos de Direito Constitucional, 2. ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, passim. 63 Ver, por exemplo, o que em período relativamente próximo dizia o Tribunal sobre o Direito Internacional no Caso Paquete Havana: “International law is part of our law, and must be ascertained and administered by the courts of justice of appropriate jurisdiction as often as questions of right depending upon it are duly presented for their determination. For this purpose, where there is no treaty and no controlling executive or legislative act or judicial decision, resort must be had to the customs and usages of civilized nations, and, as evidence of these, to the works of jurists and commentators, not for the speculations of their authors concerning what the law ought to be, but for trustworthy evidence of what the law really is” (‘The Paquete Habana’, 175 U.S. 677 (1900) disponível na página da rede http://supreme.justia.com/cases/federal/ us/175/677/case.html, acesso a 9 de Agosto de 2013). 64 “The Congress shall have Power (...) To regulate Commerce with foreign Nations; (...) To declare War, grant Letters of Marque and Reprisal; (...) To raise and support Armies, but no Appropriation of Money to that Use shall be for a longer Term than two Years; To provide and maintain a Navy (The Constitution of the United States of America [1787], art. 1, sec. 8). Cf., por exemplo, William Young, “A Check on Fainted-Heart Presidents: Letters of Marque and Reprisal”, Washington & Lee Law Review, v. 66, n. 2, 2009, pp. 895-940, e especialmente Francis Wormuth & Edwin Firmage, To Chain the Dog of War. The War Power of Congress in History and Law, 2. ed., Urbana/Chicago, Illinois University Press, 1989, e, em particular, o influente comentário novecentista de Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States with a Preliminary Review of the Constitutional History of Colonies and States, before the Adoption of the Constitution, Abridged Edition by the Author, Boston/Cambridge, Hilliard, Gray and Company/Brown, Shattuck and Co, 1833, l. III, cap. xx-xxii, bem como as contribuições de John Norton Pomeroy, An Introduction to the Constitutional Law of the United States, New York, Hurd & Houghton, 1868, cap. iv, para. 441-482; Thomas Cooley, The General Principles of Constitutional law in the United States, 2. ed., Alexis Angell (ed.), Boston, Little & Brown, 1891, caps. III, IV/sec. 12-13. 65 “The President shall be Commander in Chief of the Army and Navy of the United States,

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a Federação66 e os Estados67. Esses aspectos serão, ainda que em contexto diferente, retomados pelas constituições revolucionárias francesas68, que continham tanto princípios e valores de relações internacionais69, como regras de divisão de poderes em matéria de política externa, nomeadamente em relação à sua condução e noand of the Militia of the several States, when called into the actual Service of the United States; (...); He shall have Power, by and with the Advice and Consent of the Senate, to make Treaties, provided two thirds of the Senators present concur; and he shall nominate, and by and with the Advice and Consent of the Senate, shall appoint Ambassadors, other public Ministers and Consuls, (...)” (Ibid., art. 2, sec. 2); cf. Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States with a Preliminary Review of the Constitutional History of Colonies and States, before the Adoption of the Constitution, l. III, cap. xxvii; John Norton Pomeroy, An Introduction to the Constitutional Law of the United States, cap. v/para. 628-641; 669-681; 703-714; Thomas Cooley, The General Principles of Constitutional law in the United States, cap. v. 66 Adicionalmente, ver seguintes passagens, “The Congress shall have Power (...) To provide for calling forth the Militia to execute the Laws of the Union, suppress Insurrections and repel Invasions; To provide for organizing, arming, and disciplining, the Militia, and for governing such Part of them as may be employed in the Service of the United States, reserving to the States respectively, the Appointment of the Officers, and the Authority of training the Militia according to the discipline prescribed by Congress (...)”.(The Constitution of United States of America [1787], art. 1, sec. 8). 67 “No State shall enter into any Treaty, Alliance, or Confederation; grant Letters of Marque and Reprisal; (...) No State shall, without the Consent of Congress, lay any duty of Tonnage, keep Troops, or Ships of War in time of Peace, enter into any Agreement or Compact with another State, or with a foreign Power, or engage in War, unless actually invaded, or in such imminent Danger as will not admit of delay” (Ibid., art. 1, sec. 10); ver Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States with a Preliminary Review of the Constitutional History of Colonies and States, before the Adoption of the Constitution, l. III, cap.xxv, e discussão actualizada em John Kincaid, “The International Competence of US States and Their Local Government” in: Francisco Aldecoa & Michael Keating (eds.), Paradiplomacy in Action. The Foreign Relations of Subnational Governments, London/Portland, Frank Cass, 1999, pp. 111-133. 68 Para não se perder o objecto exemplificativo desta incursão, limitamo-nos a fazer referência à primeira delas (os textos citados nesta parte do artigo podem ser encontrados em Les constitutions de la France de la Révolution à la IVe République, Ferdinand Mélin-Soucramanien (org.), Paris, Dalloz, 2009), a de 1791 (sobre esta lei fundamental, cf. François Furet & Ran Halévi, La monarchie republicaine. La Constitution de 1791, Paris, Fayard, 1996), apesar de que as outras que foram sendo aprovadas até ao período da formalização do Império Bonapartista, incluírem alguns desenvolvimentos e inovações técnicos e dogmáticos (a de 1793, por exemplo), outras terem contribuído para a fragilização do sistema (as do período consular, especialmente após a consagração do Consulado Perpétuo), para além das necessárias mutações impostas pela abolição da realeza e instalação da chamada I República (1793) (veja-se, em particular, Michel Troper, Terminer la revolution. La constitituon de 1795, Paris, Fayard, 2006, pp. 172-175), o Directório (1795) ou do próprio Consulado (1799) (para esta evolução, veja-se, por todos, Yves Guchet, Histoire Constitutionelle de la France, 1789-1974, 3. ed., Paris, Economica, 1993; Michel de Guillenchmidt, Histoire constitutionelle de la France depuis 1779, Paris, Economica, 2000, pp. 3-40; Marcel Morabito, Histoire constitutionelle de la France (1789-1958), 10. ed., Paris, Montchrestien, 2008). 69 Não deixa de ser curioso que, a primeira delas, ainda durante a monarquia limitada imediatamente posterior à Revolução, dedicasse uma parte da Constituição às relações entre a França e outros Países e incluísse uma norma de acordo com a qual “La Nation française renonce à entreprendre aucune guerre dans la vue de faire des conquêtes, et n’emploiera jamais ses forces contre la liberté d’aucun peuple” (‘Constitution de 1791’, Titre VI (Des rapports de la Nations Française avec les Nations Étrangéres)).

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meação de embaixadores70, celebração de tratados71, declaração e condução da guerra72, e, por fim, dispositivos relacionados ao estatuto do estrangeiro73. A Constituição Belga de 183174 é também referenciada por muitos75 como sendo importante neste percurso, particularmente porque articula um mecanismo de divisão de poderes em matéria de celebração de tratados entre o poder executivo e o poder legislativo76. Fê-lo, é verdade, de forma genérica e sem a pormenorização que, mais tarde, veio a ser adoptada, referindo-se à necessidade de os tratados de comércio, os gravosos e aqueles que pudessem vincular individualmente os belgas, tivessem que contar necessariamente com a autorização parlamentar, o mesmo ocorrendo com aqueles que tivessem algum efeito territorial77. 70 De acordo com a Constituição de 1791 com predomínio do Rei, poder executivo, a quem cabia nomear os Embaixadores (“Le roi nomme les ambassadeurs, et les autres agents des négociations politiques”) (Ibid., t. III, cap. IV, art. 2º) e conduzir a política externa (“Le roi seul peut entretenir des relations politiques au dehors, conduire les négociations, (…)” (Ibid., t. III, cap. IV, sec. III, art. 1º). 71 Também da competência do Rei (“Il appartient au roi d’arrêter et de signer avec toutes les puissances étrangères, tous les traités de paix, d’alliance et de commerce, et autres conventions qu’il jugera nécessaire au bien de l’Etat, sauf la ratification du Corps législatif”) (Ibid., t. III, cap. IV, sec. III, art. 3º), porém, sujeitos a ratificação parlamentar (“Il appartient au Corps législatif de ratifier les traités de paix, d’alliance et de commerce; et aucun traité n’aura d’effet que par cette ratification”) (Ibid., t. III, cap. III, sec. I, art. 3º). 72 Tanto a declaração, quanto a condução da guerra, cabiam ao Monarca (“Le roi seul peut (…), faire des préparatifs de guerre proportionnés à ceux des Etats voisins, distribuer les forces de terre et de mer ainsi qu’il le jugera convenable, et en régler la direction en cas de guerre”) (Ibid., t. III, cap. IV, sec. III, art. 1º, in fine), porém, mais uma vez, somente poderia fazê-lo após autorização do Corps legislatif (“La guerre ne peut être décidée que par un décret du Corps législatif, rendu sur la proposition formelle et nécessaire du roi, et sanctionné par lui” (Ibid., t. III, cap. III, sec. I, art. 2º), uma solução polémica aquando dos debates da constituinte (vide François Furet & Ran Halévi, La monarchie republicaine. La Constitution de 1791, pp. 213-218). 73 “La Constitution n’admet point de droit d’aubaine. Les étrangers établis ou non en France succèdent à leurs parents étrangers ou Français. Ils peuvent contracter, acquérir et recevoir des biens situés en France, et en disposer, de même que tout citoyen français, par tous les moyens autorisés par les lois. Les étrangers qui se trouvent en France sont soumis aux mêmes lois criminelles et de police que les citoyens français, sauf les conventions arrêtées par les Puissances étrangères; leur personne, leurs biens, leur industrie, leur culte sont également protégés, par la loi” (‘Constitution de 1791’, Titre VI). 74 O artigo central que fazia referência aos foreign affairs powers era o 68, de acordo com o qual, “[1]. Le roi commande les forces de terre et mer, déclare la guerre, fait des traités de paix, d’alliance et de commerce. Il en donne conaissance aux chambres aussitôt que l’intéret et la sûrete de l’État le permettent, en y joignant les communications convenables. [2]. Les traités de commerce et ceux qui pourraient grever l’État ou lier individuellement les Belges n’ont d’effet qu’après avoir reçu l’assentiment des chambres. [3] Nulle cession, nul échange, nulle adjonction de territoire, ne peut avoir lieu qu’en vertue d’une loi. Dans aucun cas, les articles secrets d’un traité ne peuvent êtres destructifs des articles patents”. A partir da versão originária, ‘Constitution [Belge] du 7 Fevrier 1831’, disponível na página da rede http://mjp.univ-perp.fr/constit/be1831.htm#3b, acesso a 9 de Agosto de 2013. 75 Cf. Celso de Albuquerque Mello, Direito Constitucional Internacional – Uma Introdução, pp. 107-108. 76 Sobre esta matéria em especial, Paul de Vischer, “La Constitution Belge et le Droit International”, Revue Belge de Droit International, n. 1, 1986, pp. 5-58. 77 Assim a redacção : “Les traités de commerce et ceux qui pourraient grever l’État ou lier individuellement les Belges n’ont d’effet qu’après avoir reçu l’assentiment des chambres. [3] Nulle cession, nul échange, nulle adjonction de territoire, ne peut avoir lieu qu’en vertue d’une loi”, (‘Constitution [Belge] du 7 Fevrier 1831’).

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Continuaremos a apresentação dos desdobramentos deste percurso no Século XX. Antes, porém, faremos uma longa incursão sobre a evolução no espaço lusitano, dentro do qual nos integramos desde o Século XV ao XX, permitindo-nos, neste contexto, integrar os desenvolvimentos ocorridos no período da República e do Estado Novo, uma vez que estão estruturalmente ligados a esse contexto. II. A evolução constitucional portuguesa e os impactos jurídicointernacionais e equiparados sobre as Ilhas de Cabo Verde Quando as Ilhas de Cabo Verde foram achadas em 146078, o Reino Português há muito tinha sido formado. Independente desde o Século XI79, sem possuir uma Constituição formal até ao Século XIX80, tinha, outrossim, normas de carácter fundamental que, no mínimo, permitiam a organização do Reino, definiam os poderes dos seus órgãos principais e eventualmente estabelecia limites ao poder do Estado em relação aos súbditos81. Neste quadro não é desprovido de sentido inferir que foi inevitável que essas normas (na maior parte das vezes não escritas, com excepção importante das Ordenações do Reino82) também tratassem da política externa83. Normas fundamentais, de teor substantivo, de política externa marcadas por um princípio da expansão da fé cristã e do Império Português, que, pelo menos retorica e neste caso constitucionalmente, limitava 78

Vide Luís de Albuquerque, “O Descobrimento das Ilhas de Cabo Verde” in: História Geral de Cabo Verde [HGCV], 2. ed., Lisboa/Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical/Direcção-Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 2001-2002, v. I, pp. 23-39. 79 Por todos, cf. José Mattoso & Armindo de Sousa, “A Monarquia Feudal, 1096-1480” in: José Mattoso (coord.), História de Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, v. II, e os escritos de Paulo Mêrea sobre “As Origens de Portugal” in: História e Direito (Escritos Dispersos), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1967, t. I, p. 177 e ss. 80 Sobre a história constitucional de Portugal, cf. Paulo Ferreira da Cunha, Para uma História Constitucional do Direito Português, Coimbra, Almedina, 1995, e as partes relevantes dos principais manuais portugueses, nomeadamente J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 125-188; Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 391-481; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 9. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2011, t. I, pp. 241-332. 81 Veja-se, a propósito, Diogo Freitas do Amaral, “As Sete Constituições Informais da Monarquia Portuguesa Antes do Liberalismo” in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, v. I, pp. 431-448. 82 Defendendo este estatuto jurídico-constitucional das Ordenações do Reino Português, Paulo Ferreira da Cunha, Para uma História Constitucional do Direito Português, p. 154 e ss. 83 Apesar disso, ao contrário da compilação legislativa que lhe terá servido de inspiração, as chamadas Siete Partidas de Afonso X, o Sábio, que dispunha sobre a guerra justa (v. Las Siete Partidas del Sábio Rey D. Alonso, Ignácio Velasco Perez (org.), Valladolid, Maxtor, 2010, Partida II, tít. xxiii) os livros dedicados ao Direito Público das Ordenações não se pronunciaram especificamente sobre a matéria (Ordenações Afonsinas [1446], 2. ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, l. II; Ordenações Manuelinas [1512?], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, l. II; Ordenações Filipinas [1603], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, l. II).

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a guerra a situações em que ela fosse justa84, e organizatório-formal que colocavam nas mãos do soberano a condução da acção externa, a celebração e conclusão de tratados, o envio e a recepção de embaixadores e emissários diplomáticos e a declaração e condução da guerra, bem como a feitura da paz85. Como era tradicional no período, às Cortes do Reino Português86 só era necessário recorrer nesta matéria em caso de necessidade financeira87. No caso da guerra justa são evidências da sua constitucionalização material o facto de os critérios internacionais-naturais da sua definição estabelecerem pontes com o direito interno, tendo em vista que a sua formulação clássica em Santo Tomás de Aquino exigia a presença de autoridade legítima, causa justa e intenção correcta88. Particularmente, os dois primeiros criavam inevitavelmente pontes com a ordem jurídica interna, a qual devia absorver, do ponto de vista de divisão de poderes, a definição da autoridade habilitada para declarar a guerra e, para além disso, fixar um mecanismo decisório que assegurasse causa justa e em menor medida intenção correcta e, nalguns casos, prever meios de controlo dessas decisões. 84

A respeito da guerra justa em Portugal, por todos, Beatriz Perrone-Moisés, Entrada ‘Guerra Justa’ in: Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.), Dicionário de História da Colonização Portuguesa do Brasil, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1994, pp. 386-387, Henrique Quinta-Nova, “A guerra justa ou justiça da guerra no pensamento português”, Nação e Defesa, a. 21, n. 79, 1996, pp. 168-186. 85 Cf. António Pedro Barbas Homem, O Espírito das Instituições.Um Estudo de História do Estado, Coimbra, Almedina, 2006, p. 129 (“Em especial, são direitos reais: - o poder de fazer leis; - o poder de declarar a guerra e fazer a paz; - o poder de negociar e concluir tratados e de nomear e acreditar embaixadores e legados; - o poder de convocar cortes”). Numa perspectiva aplicada ao contexto cabo-verdiano, cf. Ângela Domingues, “Administração e instituições: transplante, adaptação, funcionamento” in: História Geral de Cabo Verde, 2. ed., Lisboa/Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical/Direcção-Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 2001-2002, v. I, p. 43, que, no seu recorte destaca que “incidia fundamentalmente sobre a cunhagem de moeda, a legitimação dos filhos naturais, a criação de cidades, o estabelecimento de leis, a concessão de cartas de perdão e de segurança, a nomeação de tabeliães, as declarações de guerra e as celebrações da paz”, inspirando-se, segundo indicação própria, em António Manuel Hespanha, Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – Séc. XVII, Coimbra, Almedina, 1994, p. 489 (“Para além de garante da justiça, o rei era, também o garante da paz. Daqui decorria, não apenas o seu direito de fazer a guerra, a trégua e a paz (…)”. 86 Por todos, Pedro Cardim, Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Cosmos, 1998; Isabel Graes, Contributo para um Estudo Histórico-Jurídico das Cortes Portuguesas entre 14811641, Coimbra, Almedina, 2005, e AAVV, As Cortes e o Parlamento em Portugal. 750 Anos das Cortes de Leiria de 1274. Actas do Congresso Internacional, Lisboa, Assembleia da República, 2006. 87 No dizer de Joaquim Romero Magalhães, “As Cortes” in: José Mattoso (coord.), História de Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, v. III, p. 72, “Não havia matérias obrigatoriamente sujeitas a apreciação em cortes. Mas desde muito de trás se entendeu, e cumpriu, que a matéria fiscal tinha que ser votada pelos três estados, muito em especial as imposições extraordinárias”. 88 V. Thomae Aquinatis, Secunda Secundae Summa Sacrossanta Theologiae, Lugduni, Apud Haeredes Iacobi Iunctae, MDLXVII, q. 40, Articulus I (Utrum belare fit semper peccatum?”: “Respondeo dicendum, quod ad hoc, quod aliquod bellum fit iustium, tria requiritur: Primo quidi auctoritas principis cuis mandato bellum est gerendum (…). Secundum requiritur causa iusta, ut scilicet illi, qui impugnartur propter aliquam culpa, impugnationem mereantur. (…) Tertio requiritur ut fit intentio bellanda recta (…)”(pp. 239-240).

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Em Portugal, era ao monarca que cabia fazer a guerra, mas intervinham no processo também os seus conselhos89, como ocorreu no caso das campanhas norte-africanas do Reino Lusitano90; em certos períodos, o regime jurídico da guerra justa foi reduzido a lex scripta, aplicável pelo menos na América Portuguesa91. Tudo isso tinha por efeito a redução (ainda que, por vezes, meramente simbólica) da arbitrariedade do Rei na tomada dessas decisões bélicas. Ademais, há a notar a existência de mecanismos de acompanhamento, subordinados ao Rei é certo, mas que podiam controlar a invocação da guerra justa por autoridades menores ou pelo menos aconselhá-lo no caso de haver dúvidas sobre a sua licitude. Centrava-se na Mesa da Consciência e Ordens92, órgão criado no século XVI, cujas competências se estendiam a questões morais, abarcando igualmente, de acordo com a lógica do período, as referentes à guerra justa93. O parecer relativo à invasão do Império Monomotapa (actual Zimbabwe) é exemplo disso94. No mesmo sentido, quando a decisão coubesse A crónica real lusitana faz questão de mostrar as preocupações com a licitude, moralidade e sacralidade desses empreendimentos: “Empero ante que eu nenhuma cousa rresponda que primeiramente saber se estohe serviço de Deos de se fazer.ca por muy grande honrra nem proueito que se me dello possa seguir se nom achar que he seruiço de Deos nom entendo de o fazer. porque soomente aquella cousa he boõa e onesta na qual Deos jinteiramente he servido (…) E porem vos vos hy pera vossas casas e cada hum em sua parte consire quaaesquer duuidas que se possam seguir açerqua de seruiço de nosso Senhor Deos. e entre tanto mandarey chamar meu confessor e assi outros alguns letrados e falarey com elles toda a ordenança deste feito e encomendarlhes ey que prouejam em seus liuros e conçiencias se per uentura terey algumas duuidas em contra do que do que deuo fazer segundo fiel e catolico christão, e eu de minha parte consirarey em ello. e em de todo ao tempo que ouuer dauer sua rresposta nos juntaremos todos e teremos nossa falla, onde se tratara de toda a sustançia deste feito sobre o qual detreminaremos se he bem de se fazer ou nam” conta Gomes Eannes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Lisboa, Clássica, 1942, pp. 22-23, sobre os antecedentes da Tomada de Ceuta. 90 Seguir os diversos pareceres em Monumenta Henricina, Coimbra, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1962, v. IV (1431-1434), e comentários em Margarida Seixas, “Guerra justa e guerra santa: os pareceres da guerra de África (1433-1436)” in: Homenagem ao Prof. Doutor André Gonçalves Pereira, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 107-148. 91 A maior parte dos textos normativos pode ser encontrada em George Thomas, Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640, Padre Jesús Hortal (trad.), São Paulo, Loyola, 1981 (orig: 1968). 92 De acordo com José Manuel Súbtil, “A administração central da Coroa” in: José Mattoso (coord.), História de Portugal, v. III, p. 85, “foi criada por D. João, em finais de 1532, para aconselhar e assistir o monarca nas matérias que tocassem o foro da ‘consciência’ e nas relativas à Igreja, às ordens militares e, depois, à Universidade de Coimbra. 93 Sobre isso dizia recentemente António Pedro Barbas Homem, O Espírito das Instituições.Um Estudo de História do Estado, p. 176, que “os princípes europeus consultam juntas de teólogos sobre os grandes temas do direito internacional, em especial quanto à conquista e guerra na terras descobertas. (…). Esta orientação justifica a criação em 1532, no reinado de D. João III, de uma instituição designada Mesa da Consciência, mais tarde Mesa da Consciência e Ordens, (…)”. 94 Cf. ‘Condições da Guerra Justa: Resolução da Mesa da Consciência sobre as condições em que se podia fazer guerra justa a infiéis e mais concretamente ao imperador do Monomotapa [23 de Janeiro de 1569]’ in: Monumenta Missionaria Africana, 2ª Série, Padre António Brásio (col e anot.), Lisboa, Agência Geral do Ultramar, MCMLVIII (1968), doc. 35, v. I (“África Ocidental 89

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a autoridades regionais, órgãos formais ou informais desse nível podiam intervir. Foi o que aconteceu na América Portuguesa, local do Império onde as leis sobre o cativeiro indígena (que, na maior parte dos casos, tinham como pressuposto o lançamento de guerra justa) eram controladas ou pelos jesuítas ou por órgãos semi-administrativos criados para tratar de questões missionárias95. O Arquipélago de Cabo Verde até ao Século XIX, ora como domínio pessoal do Rei, ora como possessão da Coroa96, tinha características que não favoreciam a aplicação, de forma intensa, de normas portuguesas ou castelhanas sobre a guerra justa. A legitimidade da expansão ultramarina como forma de, concomitantemente (e não necessariamente por esta ordem), expandir a fé e o império português, asseguraram títulos jurídicos mais ou menos sólidos para a incorporação das Ilhas e da região circundante97, que não passavam pela invocação de guerra justa98. Assim, as bulas papais aplicáveis99, o Tratado das Tordesilhas100, o instituto do direito romano da ocupação efectiva da res nullius101, eram suficientes, atendendo ao facto de que, mesmo no continente, o acesso à principal mercadoria transacionada pelos portugueses e luso-cabo-verdianos (1342-1499)”), v. II, doc. 168, pp. 551-557, que vem assinado por Martim Gonçaluez da Camara, Leaõ Enriquez Torres, Duarte Carneiro Rangel, Paulo Afonso, Simaõ Gonçaluez Preto e Gonçalo Diaz de Carvalho. 95 Por exemplo, Paul Wojtalewicz, “The Junta das Missões/Junta de Missiones: A Comparative Study of Peripheries and Imperial Administration in Eighteenth Century Iberian Empires”, Colonial Latin America Review, v. 8, n. 2, 1999, pp. 225-240. 96 A respeito destes estatutos e na pendência de um estudo histórico-jurídico mais aprofundado, cf. Ângela Domingues, “Administração e instituições: transplante, adaptação, funcionamento”, pp. 41-123. 97 André Álvares Almada, um dos cabo-verdianos mais ilustres desse periodo, destaca essa ideia numa das passagens da sua obra magna: “quis escrever algumas coisas dos Rios de Guiné [e] Cabo Verde, começando do Rio Sanagá, até Serra Leoa, que é o limite da Ilha de Santiago” (André Álvares d’Almada, Tratado breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde, António Luís Ferronha (Leitura, introdução, modernização do texto e notas), Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994 [1594], Prólogo, p. 22). 98 Ver o nosso José Pina Delgado, “Os Escrúpulos de um Ilustre Santiaguense nos ‘Tractos’ da Guiné dos Séculos XVI-XVII: o Capitão André Álvares d’Almada e a Questão da Incerteza sobre a Presença dos Títulos Jurídicos da Escravatura” in: Mário Silva; Leão de Pina & Paulo Monteiro Jr. (orgs.), Estudos em Comemoração do Quinto Aniversário do ISCJS, Praia, Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais, 2012, pp. 39-85. 99 ‘[Bula Inter Caetera] Insula Novis Orbis, a Ferdinando Hispanorum Rege et Elisabeth regina repertae et reperiendae, conceduntur eisdem, propagandae fidae christianae causae [4 de Maio de 1493]’ in: Bullarum Diplomatum et Privilegiorum Sanctorum Romanorum Pontificum, s.l., Franco et Henrico Dalmazzo, MDCCCLX, t. V, pp. 361-364. 100 ‘Tratado das Tordesilhas [7 de Junho de 1494]’ Reproduzido in: História Geral de Cabo Verde: corpo documental, Lisboa/Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical/Direcção-Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 1988, v. I, doc. 32, pp. 83-95. 101 Vide discussão em Randall Lesaffer, “Argument from Roman Law in Current International Law: Occupation and Acquisitive Prescription”, European Journal of International Law, v. 16, n. 1, 2005, pp. 25-58.

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o escravo - dispensava a utilização directa da guerra102. Mesmo assim, no caso cabo-verdiano, a principal instituição de representação dos interesses locais em Santiago, a Câmara Municipal da Ribeira Grande103, não deixou de se inserir em questões militares, pese embora num pólo distinto de uma relação bélica, ao participar da defesa das ilhas com as suas mílicias de moradores104. Por sua vez, as Constituições portuguesas dos Séculos XIX e XX, aplicadas também em Cabo Verde, com a excepção da de 1976, de forma incremental foram abarcando a regulação da política externa do Estado, a de paz e a de guerra. Contudo, não chegaram a estabelecer de forma ampla os valores em matéria de política externa e raramente se pronunciaram sobre aspectos substantivos do Direito Internacional. Numa dialéctica entre parlamento e executivo, foram desenhados esquemas de atribuição de competências entre os poderes políticos do Estado português. No tocante a aspectos políticos, menciona-se a nomeação de embaixadores ou a condução da política externa ou a feitura da guerra, e, no quadro de questões com um viés jurídico mais claro, referem-se à celebração de tratados. Assim, por exemplo, a Constituição Portuguesa de 1822 e a de 1836 tentaram timidamente limitar as prerrogativas reais na matéria, submetendo os tratados mais gravosos a aprovação parlamentar105, mas deixando intactos os seus poderes relativamente aos comuns, bem como os de decidir declarar a guerra e fazer a paz106 e, mais obviamente, a de conduzir a política externa e de nomear embaixadores107. Porém, uma revisão da Carta de 1826, cuja versão originária 102 Isto porque os escravos eram adquiridos no litoral de atravessadores ou de líderes africanos locais que, por sua vez, os capturavam no interior (cf. o nosso José Pina Delgado, “Os Escrúpulos de um Ilustre Santiaguense nos ‘Tractos’ da Guiné dos Séculos XVI-XVII: o Capitão André Álvares d’Almada e a Questão da Incerteza sobre a Presença dos Títulos Jurídicos da Escravatura”, pp. 84-87). 103 Cf. Ângela Domingues, “Administração e instituições: transplante, adaptação, funcionamento”, pp. 62-68. 104 Dá-nos conta disso, no quadro dos ataques de corsários e piratas, Ilídio Baleno, “Pressões Externas. Reacções ao Corso e à Pirataria” in: História Geral de Cabo Verde, 2. ed., Lisboa/Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical/Direcção-Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 2001, v. II, pp. 125-188. 105 Assim, a ‘Constituição de 23 de Setembro de 1822’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas – De 1822 ao Texto Actual da Constituição, 5. ed., Lisboa, Petrony, 2004, pp. 29-76, que no seu artigo 103 estabelecia o poder de as “(…) Cortes, sem dependência da sanção Real, (…) aprovar os trabalhos da aliança ofensiva ou defensiva, de subsídios, e de comércio, antes de serem ratificados” (para. VI). 106 Assim, o artigo 123, XIII, de acordo com o qual, “Especialmente competem ao Rei as atribuições seguintes: declarar a guerra, e fazer a paz; dando às Cortes conta dos motivos que para isso tiver” (Ibid.). Neste particular, ver a evolução portuguesa em António Araújo, “Competências constitucionais relativas à Defesa Nacional: as suas implicações no sistema de governo” in: Jorge Miranda & Carlos Blanco de Morais (coords.), O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, Lisboa, Cosmos/Instituto da Defesa Nacional, 2000, p. 149 e ss. 107 Estipulava o mesmo dispositivo que cabia também ao Rei, “VII. Nomear os Embaixadores e mais Agentes diplomáticos, ouvido o Conselho de Estado; e os Cônsules sem dependência de o ouvir; VIII. Dirigir as negociações políticas e comerciais com as nações estrangeiras” (‘Constituição de 23 de Setembro de 1822’, art. 123).

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era a mais desproporcionada108, ocorrida em 1852 – a que, em concreto, permaneceu em vigor por mais tempo109 – foi mais incisiva na tentativa de equilibrar o papel do Monarca Lusitano e o das Cortes nesta matéria110. No período republicano111, para além da existência de uma cláusula pró-arbitragem internacional112, decerto inspirada nas Convenções de Haia, adensa-se o controlo parlamentar sobre os poderes do executivo em matéria de tratados e de feitura da guerra com a Constituição de 1911113 e com as alterações que lhe foram sendo introduzidas114, linha que se mantém, for108

Note-se que o artigo 75 § 8, limitava os tratados que exigiam prévia aprovação das Cortes, ao estipular que “o Rei é o Chefe do Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principais atribuições: Fazer Tratados de Aliança ofensiva e defensiva, de Subsídio, e Comércio, levando-os depois de concluídos ao conhecimento das Cortes Gerais, quando o interesse e segurança do Estado o permitirem. Se os Tratados concluídos em tempo de paz envolverem cessão, ou troca de Território do Reino, ou de Possessões, a que o Reino tenha direito, não serão ratificados, sem terem sido aprovados pelas Cortes Gerais” (‘Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas – De 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 78-102). 109 A este respeito, Jorge Miranda, “As Constituições Portuguesas” in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas – De 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 7-19. 110 No caso concreto, o artigo 10º do ‘Acto Adicional de 5 de Julho de 1852’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas – De 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 103-109, veio dar nova redacção ao parágrafo oitavo do artigo 75: “Todo o tratado, concordata e convenção, que o Governo celebrar com qualquer potência estrangeira será, antes de ratificado, aprovado pelas Cortes em sessão secreta”. Comenta-o o conhecido constitucionalista oitocentista português, José Joaquim Lopes Praça, Direito Constitucional Portuguez [1879], Coimbra, Coimbra Editora, 1997, para. 106. 111 Ver, por exemplo, Mário de Almeida Costa & Rui Figueiredo Marcos, A Primeira República no Direito Português, Coimbra, Almedina, 2010, para uma introdução aos desenvolvimentos jurídicos do período, e Soares Martínez, A República Portuguesa e as Relações Internacionais [1910-1926], Lisboa, Verbo, 2001, para os aspectos ligados à política externa. 112 Encontrava-se estabelecido no artigo 73 que “a República Portuguesa, sem prejuízo do pactuado nos seus tratados de aliança, preconiza o princípio da arbitragem como o melhor meio de dirimir as questões internacionais” (‘Constituição de 21 de Agosto de 1911’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 145-165). 113 Ao Congresso da República cabia tanto “Autorizar o Poder Executivo a fazer a guerra, se não couber o recurso a arbitragem ou esta se malograr, salvo caso de agressão iminente ou efectiva por forças estrangeiras, e a fazer a paz” (Ibid., art. 26, para. 14), como “Resolver definitivamente sobre tratados e convenções” (ibid., art. 26, para. 15), enquanto que ao Presidente da República reservavam-se poderes para “Representar a Nação perante o estrangeiro e dirigir a política externa da República, sem prejuízo das atribuições do Congresso” (Ibid., art. 47, para 5º); e “Negociar tratados de comércio, de paz e de arbitragem e ajustar outras convenções internacionais, submetendo-as à ratificação do Congresso” (Ibid., art. 47, para 7º); ver igualmente o comentário clássico da primeira Constituição Republicana de Marnoco e Sousa, Constituição Política da República Portuguesa. Comentário [1913], J. J. Gomes Canotilho (org.), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, passim. 114 A ‘Lei nº 891, de 22 de Setembro de 1919’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 168-171, limita-se a alterar a expressão “Congresso” por “poder legislativo” nas competências do Presidente da República (art. 1º), e a ‘Lei nº 1005, de 7 Agosto de 1920’ in: Ibid., pp. 171-174, previa que “É da exclusiva competência do

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malmente pelo menos, com a Constituição aprovada em 1933115, mesmo após as revisões sofridas nas décadas seguintes116. Não deixa de ser curioso, todavia justificável, que foi na vigência da ‘Constituição de Salazar’ que se (re) introduziu117 uma referência textual ao território terrestre de Portugal, incluíndo o “Arquipélago de Cabo Verde”118, assim como uma proibição da Congresso da República fazer as leis orgânicas coloniais e os diplomas legislativos coloniais que abrangerem: a) cessão de direitos de soberania ou resolução sobre limites do território da Nação; b) Autorização ao Poder Executivo para fazer a guerra ou a paz; c) Resoluções sobre tratados e convenções (…)”. 115 São especialmente relevantes o artigo 81 (7), de acordo com o qual “Compete ao Presidente da República (…) Representar a Nação e dirigir a política externa do Estado; ajustar convenções internacionais e negociar tratados de paz e aliança, de arbitragem e de comércio, submetendoos à aprovação da Assembleia Nacional” e o artigo 91 redigido da seguinte forma: “Compete à Assembleia Nacional: “6. Autorizar o Chefe de Estado a fazer a guerra, se não couber o recurso à arbitragem, ou esta se malograr, salvo caso de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, e a fazer a paz; 7. Aprovar, nos termos do nº 7 do artigo 81º, as convenções e tratados internacionais” (‘Constituição de 11 de Abril de 1933’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 185-216; para comentários, ver Marcello Caetano, A Constituição de 1933. Estudo de Direito Político, Coimbra, Coimbra Editora, 1956, pp. 50-52, 97-98. 116 No caso concreto, a ‘Lei nº 1885, de 23 de Março de 1935’ in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 225-230, alterou a redacção do artigo 81 (7) para “Representar a Nação e dirigir a política externa do Estado, Ajustar convenções internacionais e negociar tratados de paz e de aliança, de arbitragem e de comércio”. Dez anos depois viria a conceder-se poderes ao Governo para, “em caso de urgência, aprovar as convenções e os tratados internacionais” (‘Lei n.º 2009, de 17 de Setembro de 1945’ in: Ibid., pp. 238-243). 117 A Constituição de 1822 já continha regra no sentido de que “A Nação Portuguesa é a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. O seu território forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e compreende: I. Na Europa, o reino de Portugal, que se compõe das províncias do Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo, e reino do Algarve, e das Ilhas adjacentes, Madeira, Porto Santo, e Açores: II. Na América, o Reino do Brasil, que se compõe das Províncias do Pará e Rio Negro, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Baía e Sergipe, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso, e das Ilhas de Fernando de Noronha, Trindade, e das mais que são adjacentes àquele reino; III. Na África ocidental, Bissau e Cacheu; na Costa de Mina, o forte de S. João Baptista de Ajudá, Angola, Benguela e suas dependências, Cabinda e Molembo, as Ilhas de Cabo Verde, e as de S. Tomé e Príncipe e suas dependências: na Costa oriental, Moçambique, Rio de Sena, Sofala, Inhambane, Quelimane, e as Ilhas de Cabo Delgado; IV. Na Ásia, Salsete, Bardez, Goa, Damão, Diu, e os estabelecimentos de Macau e das Ilhas de Solor e Timor. A Nação não renuncia o direito, que tenha a qualquer porção de território não compreendida no presente artigo” (‘Constituição de 23 de Setembro de 1822’, art. 20); alguma discussão adicional poderá ser encontrada em Cristina Nogueira da Silva, “Nação, Territórios e Populações nos Textos Constitucionais Portugueses do Século XIX”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, a. 3, n. 5, 2002, pp. 43-86. 118 Previa-se que “O território de Portugal é o que actualmente lhe pertence e compreende: 1º - Na Europa: o Continente e o Arquipélago da Madeira e dos Açores; 2º - Na África Ocidental: Arquipélago de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e suas dependências, S. João Baptista da Ajudá, Cabinda e Angola; 3º - Na África Oriental: Moçambique; 4º - Na Ásia: Estado da Índia e Macau e respectivas dependências; 5º - Na Oceânia: Timor e sua dependências. A Nação não renuncia aos direitos que tenha ou possa vir a ter sobre qualquer outro território” (‘Constituição de 11 de Abril de 1933’, art. 1º).

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sua alienação119, e a adopção de princípios mais abrangentes das relações internacionais, nomeadamente da limitação internacional da soberania, da cooperação, da busca da paz, visando o progresso da humanidade120, para além da referência à arbitragem prevista pela Constituição de 1911121; por fim, já em 1971, na última revisão dessa lei fundamental de matriz corporativa, introduziu-se um dispositivo sobre a incorporação de normas convencionais no ordenamento jurídico de Portugal122. III. Constituições de Transição no Século XX: Criação de Estados de Direito Democráticos e Consolidação do Sistema SemiPresidencial de Governo Não deixa de fazer parte deste percurso histórico que influencia a criação do sistema constitucional cabo-verdiano o acquis resultante de várias experiências de transição para a democracia do Século XX, antes e depois da II Guerra Mundial, e de desenvolvimentos constitucionais envolvendo sistemas de governo. Em relação ao primeiro caso, apresentaremos sucintamente a experiência da célebre Constituição de Weimar e da Constituição Espanhola de 1931, como representantes do período do interregno bélico europeu, e as do Japão, Itália e Alemanha, ilustrando os desenvolvimentos posteriores à Guerra de 1939-1945; por fim, menção por motivos diferentes será feita à Constituição Gaulesa de 1958. 3.1. Transição e Ilusão no Entre-Guerras: As Constituições de Weimar e da Espanha O processo tem o seu início com uma lei fundamental que, sem embargo do seu arrojo dogmático e da influência concreta que exerce, directa ou indirectamente, no constitucionalismo europeu continental, não conseguiu cumprir o seu papel principal, garantir a estabilidade do sistema político ger119

“Nenhuma parcela do território nacional pode ser adquirida por Governo ou entidade de direito público de país estrangeiro, salvo para instalação de representação diplomática ou consular, se existir reciprocidade em favor do Estado Português” (Ibid., art. 2º). 120 De acordo com o texto constitucional, “A Nação Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania só reconhece como limites, na ordem interna, a moral e o direito, e, na internacional, os que derivem das convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito consuetudinário livremente aceite, cumprindo-lhe cooperar com outros Estados, na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da humanidade” (Ibid., art. 4º). 121 “Portugal preconiza a arbitragem, como meio de dirimir os litígios internacionais” (Ibid., art. 4º, para. único). 122 Assim, a redacção introduzida pela ‘Lei nº 3/71, de 16 de Agosto’ (in: Jorge Miranda (org.), As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, pp. 266-280), ao artigo 4º (“As normas de direito internacional vinculativas do Estado Português vigoram na ordem interna desde que conste de tratado ou de outro acto aprovado pela Assembleia Nacional ou pelo Governo e cujo texto haja sido devidamente publicado”).

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mânico123. Trata-se da Constituição do Reich Alemão, aprovada em Weimar, no ano de 1919124. Resultado de um contexto de pós-I Grande Guerra Mundial125, fazia parte de um pacote que incluía vários instrumentos internacionais, nomeadamente o Tratado de Versalhes e o Pacto da Sociedade das Nações126. Assim, seria natural que essa lei fundamental incluísse referências à paz e uma norma sobre a inserção do Direito Internacional no ordenamento interno. No entanto, nos dois casos representam a timidez dessa Constituição e as contradições internas nessa matéria das elites políticas teutónicas do Pós-I Guerra em relação ao passado recente. A questão da paz é mencionada somente no Preâmbulo, combinada com vários valores, objectivos e visões constitucionais, (“a vontade de renovar e consolidar o seu Estado em liberdade e justiça, servir a paz interna e exterior, e fomentar o progresso social”127). Por seu turno, a redacção utilizada pelo artigo 4º da Constituição germânica do Entre-guerras, estipulando que “as regras do Direito Internacional, universalmente reconhecidas, obrigam como parte integrante do Direito do Império Alemão”128, recobria somente normas costumeiras, mas não as de origem convencional129. Deve-se, sobretudo, ao facto de essa constituição, no fundo, representar a transição entre o modelo novecentista do tratamento do Direito Internacional, focado na distribuição de poderes constitucionais entre os órgãos de Estado, mas ainda pouco 123

Discutem o contexto, David Abraham, The Collapse of the Weimar Republic. Political Economy and Crisis, 2. ed., New York, Holmes & Meyer, 1986 e, em especial, Arthur Jacobson & Bernhand Schlink (eds.), Weimar. A Jurisprudence of Crisis, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2000; John McCormick, “The Crisis of Constitutional Social-Democracy in the Weimar Republic”, European Journal of Political Theory, v. 1, n. 1, 2002, pp. 121-128. 124 Ver texto original em ‘Die Verfassungs des Deutsches Reichs [von 11 August 1919]’, Reichs Gesetzblatt, n. 152, Jahrgang 1919, pp. 1383-1418; comentários ao texto normativo e algumas avaliações de autores consagrados como Walter Jellinek, Ottmar Bühler e Costantino Mortati estão disponíveis em La Constitución de Weimar (texto de la constitución alemana de 11 de Agosto de 1919), Madrid, Tecnos, 2010. 125 Acompanhar com Anthony Carty, “Interwar German Theories of International Law: The Psychoanalitical and Phenomenological Perspectives of Hans Kelsen and Carl Schmitt”, Cardozo Law Review, v. 16, n. 3-4, 1995, pp. 1235-1292, e id., “The Evolution of International Legal Scholarship in Germany during the Kaiserreich and the Weimarer Republik (1871-1933)”, German Yearbook of International Law, v. 50, 2007, pp. 29-90. 126 Ver também Antonio Cassese, “Modern Constitutions and International Law”, pp. 357-360, que destaca a influência do contexto nas opções fundamentais da Constituição de Weimar. 127 “(…) von dem Willen beseelt, sein Reich in Freiheit und Gerechtigkeit zu erneuern und zu festigen, dem inneren und dem äußeren Frieden zu dienen und den gesellschaftlichen Fortschritt zu fördern (…)” (‘Die Verfassungs des Deutsches Reichs [von 11 August 1919]’, Präambel). 128 “Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechts gelten als bindende Bestandteile des deutschen Reichsrechts” (Ibid., art. 4). 129 Veja-se o comentário de Ottmar Bühler, “Artikle 4” in: La Constitución de Weimar (texto de la constitución alemana de 11 de Agosto de 1919), pp. 157-158, e o estudo de Antonio Cassese, “Modern Constitutions and International Law”, p. 359, que conclui não haver razões conhecidas que explicam esta omissão.

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desenvolvido no que toca ao sistema de incorporação de normas internacionais no direito interno130 e o modelo desenvolvido no Século XX. Se se puder cruzar as principais teorias consolidadas nesse período, se a Constituição de Weimar não adopta o modelo preconizado por Heinrich Triepel131 e que representava bem a generalidade das Constituições do Século XIX das duas ordens jurídicas (internacional e interna) separadas (dualismo)132, também não representava integralmente o monismo radical, defendido por Hans Kelsen133 ou sequer o mais moderado da lavra de Alfred Verdross134, outro importante internacionalista austríaco135, precisamente o que se terá revelado mais decisivo na modelação futura dos sistemas constitucionais do Pós-Guerra136. 130

Pode-se encontrar interessante discussão complementar no internacionalista brasileiro, George Bandeira Galindo, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira, Belo Horizonte, Del Rey, 2002, pp. 9-72. 131 Heinrich Triepel (1868-1946) um dos mais importantes publicistas germânicos da Alemanha Guilhermina e do período da República de Weimar (v. Ralf Poscher, “Heinrich Treipel” in: Arthur Jacobson & Bernhand Schlink (eds.), Weimar. A Jurisprudence of Crisis, pp. 171-175, e Carlos-Miguel Herrera, “Heinrich Triepel et la critique du positivisme juridique à Weimar” in: Jean-François Kervegan (org.), Crise et pensée de la crise en droit. Weimar, sa republique et ses juristes, Lyon, ENS Éditions, 2002, pp. 87-112), já havia apresentado a sua tese em 1899 (Völkerrechts und Landsrecht, Leipzig, C.L. Hirschfeld, 1899, § 5), mas reiterou-a anos depois, em 1923, numa conferência proferida na Academia de Direito Internacional de Haia (“Les rapports entre le droit interne et le droit international”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 1, 1923, pp. 77-121). 132 Com a notória excepção do caso dos países influenciados pelo sistema anglo-saxónico – Estados Unidos e Grã-Bretanha – ilustrado pelas dificuldades que o autor tem para enquadrar e afastar as evidências monistas dos mecanismos de incorporação do Direito Internacional nos ordenamentos jurídicos internos desses países (Heinrich Triepel, Völkerrechts und Landsrecht, § 5, in fine). 133 Hans Kelsen, “Les rapports de système entre le droit interne et le droit international public”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 14, 1927, pp. 227-331, é uma apresentação importante do ponto de vista do génio austríaco, mas profundamente marcada pela necessidade de compatibilizar o modelo com as premissas jusfilosóficas da sua teoria pura do direito (v. Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, João Baptista Machado (trad.), São Paulo, Martins Fontes, 1998, e, para alguma discussão relacionada, François Rigaux, “Kelsen et le Droit International”, Revue Belge de Droit International, n. 2, 1996, pp. 381-408). Neste sentido, conscientemente, a força descritiva de Hans Kelsen da lex lata é mínima. Isso não significa que não tenha criado as bases filosóficas para alguns desenvolvimentos mais ousados dos modelos de tratamento do Direito Internacional pelo Direito interno ocorridos no Pós-Guerra. 134 Ver a síntese dessa concepção em Alfred Verdross, Derecho Internacional Público, Antonio Truyol y Serra (trad.), Madrid, Aguillar, 1972, pp. 63-73, destacando que “solo puede dar conta de la realidad jurídica una teoría que, reconociendo desde luego la posibilidad de conflictos entre el DI y el derecho interno, advierta que tales conflictos no tienen carácter definitivo y encuentran su solución en la unidad del sistema jurídico. Doy a esta teoría el nombre de monismo moderado sobre la base de la primacía del DI porque mantiene la distinción entre el DI y el derecho estatal, pero subraya al proprio tiempo su conexión dentro del sistema jurídico unitario basado en la constitución de la comunidad jurídica internacional (…)”. 135 Uma pequena nota biográfrica e bio-bibliográfica pode ser encontrada em “Alfred Verdross (1890-1980): Biographical Note and Bibliography”, European Journal of International Law, v. 6, n. 1, 1995, pp. 103-115. 136 A respeito da influência de Verdross, de um dos seus discípulos mais famosos, Bruno Simma, “The Contribution of Alfred Verdross to the Theory of International Law”, European Jour-

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A referência concreta a tratados somente ocorre neste texto constitucional na parte da distribuição de competências orgânicas em matéria de política externa entre o Presidente e o Reichstag (Parlamento) e entre a Federação e os länder137. Na primeira dimensão, que mais nos interessa, ao Chefe de Estado cabe o poder de representação internacional do Estado Alemão138, de enviar e receber embaixadores e outros representantes diplomáticos139, e, por fim, o de celebrar tratados140. A estes, pode-se acrescentar o poder de declarar a guerra e de concluir a paz na qualidade de comandante supremo das forças armadas141. Por sua vez, remete-se ao Parlamento a aprovação da declaração de guerra por lei142; com base numa solução que viria a ser adoptada, por influência da Constituição da República Portuguesa de 1976, pela maior parte dos países lusófonos, constitui-se uma reserva de competência para os tratados que recaem sobre “matérias próprias da legislação do Reich” em benefício do Parlamento143. Antes da II Guerra, na realidade, a lei fundamental que se mostrou mais radical144 nesta matéria foi a Constituição Republicana Espanhola de 1931145, outra que foi atacada fatidicamente por movimentos anti-democráticos146. nal of International Law, v. 6, n. 1, 1995, pp. 33-54, que considera esta parte do pensamento do austríaco uma das três contribuições que tiveram maior impacto na doutrina jusinternacionalista e no Direito Internacional em geral (p. 35). 137 A redacção é esta: “Die Pflege der Beziehungen zu den auswärtigen Staaten ist ausschließlich Sache des Reichs. In Angelegenheiten, deren Regelung der Landesgesetzgebung zusteht, können die Länder mit auswärtigen Staaten Verträge schließen; die Verträge bedürfen der Zustimmung des Reichs.Vereinbarungen mit fremden Staaten über Veränderung der Reichsgrenzen werden nach Zustimmung des beteiligten Landes durch das Reich abgeschlossen. Die Grenzveränderungen dürfen nur auf Grund eines Reichsgesetzes erfolgen, soweit es sich nicht um bloße Berichtigung der Grenzen unbewohnter Gebietsteile handelt. Um die Vertretung der Interessen zu gewährleisten, die sich für einzelne Länder aus ihren besonderen wirtschaftlichen Beziehungen oder ihrer benachbarten Lage zu auswärtigen Staaten ergeben, trifft das Reich im Einvernehmen mit den beteiligten Ländern die erforderlichen Einrichtungen und Maßnahmen”. (‘Die Verfassungs des Deutsches Reichs [von 11 August 1919]’, art. 78). 138 “Der Reichspräsident vertritt das Reich völkerrechtlich” (Ibid., art. 45 (1)). 139 “Der Reichspräsident (…) beglaubigt und empfängt die Gesandten” (Ibid.). 140 “Der Reichspräsident (…) im Namen des Reichs Bündnisse und andere Verträge mit auswärtigen Mächten” (Ibid., para. 3). 141 “Der Reichspräsident hat den Oberbefehl über die gesamte Wehrmacht des Reichs”(Ibid., art. 47). 142 “Kriegserklärung und Friedensschluß erfolgen durch Reichsgesetz” (Ibid., art. 45, para. 2). 143 “Bündnisse und Verträge mit fremden Staaten, die sich auf Gegenstände der Reichsgesetzgebung beziehen, bedürfen der Zustimmung des Reichstags” (Ibid., para. 3). 144 Cf. a tese de Antonio Cassese, “Modern Constitutions and International Law”, p. 360 (“A great advancement was made in Spain in 1931. The socialist and democratic majority that drafted the constitution aimed not only at setting up a fully democratic State, but also intended to extent freedom, the majority principle, and the rule of law to the conduct of Spain in the international relations”). 145 Ver texto em Constitución de la República Española de 9 de Deciembre de 1931, s.l, s.d. 146 Para discussões, ver Javier Corcuera Atienza, “El constitucionalismo de entreguerras y la Constitución Española de 1931”, História Contemporánea, v. 6, 1991, pp. 15-45, que atribui o seu insu-

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Não só havia uma renúncia à guerra como instrumento de política nacional147, nos termos do coevo Pacto Briand-Kellog (1928), como também, integrava uma obrigação de obediência ao Direito Internacional, por meio da sua “incorporação” ao Direito Espanhol148. Com as devidas adaptações, no entanto, formulações semelhantes já apareciam na Constituição de Weimar. No que o texto espanhol se vai mostrar realmente inovador é na inserção de uma proibição de celebração de tratados secretos149, na conexão necessária entre o Direito Internacional que regula o uso da força e o sistema constitucional de declaração de guerra150, proibindo-se tal acto ao Rei se não se tivesse observado os procedimentos previstos e o Pacto da Liga das Nações151. 3.2. Renegando a Guerra e Abraçando o Direito Internacional: As Constituições do Japão, Itália e Alemanha As constituições do Pós-Guerra, particularmente as adoptadas pelas antigas potências do Eixo, reforçam soluções ainda pouco consolidadas, mas já existentes no Direito Comparado152, que se encaminhavam para uma visão cesso em parte à inspiração weimariana que terá guiado os seus proponentes, mas, sobretudo, aos desafios que todas as democracias continentais foram confrontadas naquele período histórico. 147 A redacção é esta: “España renuncia a la guerra como instrumento de política nacional” (Constitución de la República Española de 9 de Deciembre de 1931, art. 6º). 148 De acordo com o artigo 7º, “El Estado español acatará las normas universales del Derecho internacional, incorporándolas a su derecho positivo” (Ibid.). 149 Dispõem-se que “Los Tratados y Convenios secretos y las cláusulas secretas de cualquier Tratado o Convenio no obligarán a la Nación” (Ibid., art. 76 (6)) 150 Destaca esse papel específico, o estudo histórico-constitucional de Javier García Fernández, “Guerra y Derecho Constitucional. La formalización del inicio de la guerra mediante la declaración en Derecho internacional y en Derecho interno” in: Raúl Morodo & Pedro Vega (dirs.), Estudios de Teoría del Estado y Derecho Constitucional en Honor a Pablo Lucas Verdú, México, DF/ Madrid, Instituto de Investigaciones Jurídicas – UNAM/Servicio de Publicaciones Facultad de Derecho - Universidad Complutense de Madrid, 2001, t. II, pp. 1037-1086: “La Constitución española de 1931 merece un partado próprio en esta breve historia de la regulación constitucional de la guerra pues es el texto constitucional del período 1918-1939 que mejor reflejó (y por ende, llevó a Derecho interno) la evolución del Derecho internacional del período e la búsqueda de nuevos instrumentos que aseguraran la paz” (p. 1077). 151 “El Presidente de la República no podrá firmar declaración alguna de guerra sino en las condiciones prescritas en el Pacto de la Sociedad de las Naciones, y sólo una vez agotados aquellos medios defensivos que no tengan carácter bélico y los procedimientos judiciales o de conciliación y arbitraje establecidos en los Convenios internacionales de que España fuere parte, registrados en la Sociedad de las Naciones” (Constitución de la República Española de 9 de Deciembre de 1931, art. 77 (1)). 152 Para além da Espanha, a Constituição das Filipinas de 1935, já continha dispositivo de acordo com o qual “The Philippines renounces war as an instrument of national policy, and adopts the generally accepted principles of international law as a part of the law of the Nation” (‘The Constitution of 1935’, Official Gazette, May 14 1935, art. II, sec. 3), documento disponível em http:// www.gov.ph/the-philippine-constitutions/the-1935-constitution/, acesso a 19 de Julho de 2013.

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anti-belicista ou de submissão ao Direito Internacional153. A Japonesa de 1946 adoptou esta perspectiva de forma clara, por uma via pacifista154, através da famosa renúncia à guerra contida no seu artigo 9º155 e anteriormente aflorada no próprio Preâmbulo156, por via da adopção de um conjunto de princípios associados a esta matéria e a visão de uma ordem internacional pacífica e justa157, e pela inserção de garantias contra a manutenção de forças armadas terrestres, aéreas e navais158. Não sendo claramente uma renúncia integral159, uma vez que se dirige somente “à guerra enquanto direito soberano de uma nação e a ameaça do uso da força como meio de solucionar controvérsias internacionais”160, 153 Paul de Vischer, “Les tendances internationalles des Constitutions Modernes”, p. 533, tinha estas consagrações pacifistas, pró-humanistas ou internacionalistas por inúteis, a menos que houvesse concomitantemente a adopção de mecanismos internos de garantia. 154 Como sustenta o estudo de John Maki, “The Constitution of Japan: Pacifism, Popular Sovereignity, and Fundamental Human Rights”, Law & Contemporary Problems, v. 53, n. 1, 1990, pp. 73-88. 155 “Aspiring sincerely to an international peace based on justice and order, the Japanese people forever renounce war as a sovereign right of the nation and the threat or use of force as means of settling international disputes. In order to accomplish the aim of the preceding paragraph, land, sea, and air forces, as well as other war potential, will never be maintained. The right of belligerency of the state will not be recognized” (‘The Constitution of Japan [3 of November 1946]’, disponível na página oficial do governo do Japão: http://www.kantei.go.jp/foreign/constitution_and_government_of_japan/constitution_e.html, acesso a 18 de Maio de 2013); para comentários, cf. Hitoshi Nasu, “Article 9 of the Japanese Constitution Revisited in Light of International Law”, Japanese Law Journal, v. 9, n. 18, 2004, pp. 51-66; John Haley, “Waging War: Japan’s Constitutional Constraints”, Constitutional Forum, v. 24, n. 2, 2005, pp. 18-34; Michael Kelly, “Article 9 Pacifism Clause and Japan’s Place in the World”, Wisconsin International Law Journal, v. 25, n. 3, 2007, pp. 491-506. 156 As referências à paz são notórias e disseminadas no Preâmbulo do texto constitucional, como se pode depreender facilmente da sua leitura: “We, the Japanese people, desire peace for all time and are deeply conscious of the high ideals controlling human relationship, and we have determined to preserve our security and existence, trusting in the justice and faith of the peaceloving peoples of the world. We desire to occupy an honored place in an international society striving for the preservation of peace, and the banishment of tyranny and slavery, oppression and intolerance for all time from the earth. We recognize that all peoples of the world have the right to live in peace, free from fear and want” ((‘The Constitution of Japan [3 of November 1946]’, Preamble) (ênfase adicionada). Em específico sobre o direito a viver em paz na Constituição Nipónica, Kinji Urata, “Pacifism in the Constitution of Japan, 1946 – The Meaning of the Right to Live in Peace”, Waseda Bulletin of Comparative Law, v. 1, 1981, pp. 3-11. 157 “Aspiring sincerely to an international peace based on justice and order” (‘The Constitution of Japan [3 of November 1946]’, art. 9 (1)). 158 “In order to accomplish the aim of the preceding paragraph, land, sea, and air forces, as well as other war potential, will never be maintained” (Ibid., art. 9 (2)). 159 Em todo o caso, a prática constitucional posterior afastou-a deste sentido mais absolutista, como atestam desenvolvimentos mais recentes. Ver Akiho Shibata, “Japan: moderate commitment within legal strictures” in: Charlote Ku & Harold Jacobson (eds.), Democratic Accountability and the Use of Force in International Law, pp. 207-230, e Mika Hayashi, “The Japanese Law Concerning the Special Measures on Humanitarian and Reconstruction Assistance in Iraq: Translator’s Introduction”, Pacific Rym Law & Policy Journal, v. 13, n. 3, 2004, pp. 579-609 (com texto traduzido da lei). 160 ‘The Constitution of Japan [3 of November 1946]’, art. 9 (1).

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e estando submetido a forte pressão tendente à sua flexibilização textual161, foi uma etapa importante para a consagração de uma das mais decisivas facetas do Direito Público Japonês do Pós-Guerra, que ficou conhecida por “pacifismo constitucional”162. O Império do Sol Nascente havia participado na II Guerra Mundial na sequência de uma política sistemática de agressão e anexação de território163, que levou à responsabilização criminal de vários dos seus dirigentes164, processo ainda em curso no momento de feitura da Constituição e que teve o seu impacto sobre dirigentes e opinião pública165, e à ocupação do seu território pelos Estados Unidos da América166. Classificado, a par da Ale161 Cf. Mark Chinen, “Article 9 of the Constitution of Japan and the Use of Procedural and Substantive Heuristics for Consensus”, Michigan Journal of International Law, v. 27, n. 1, 2005, pp. 56-114. 162 Vide Kinji Urata, “Pacifism in the Constitution of Japan, 1946 – The Meaning of the Right to Live in Peace”, pp. 3-11; Akihiko Kimijima, “Global Constitucionalism and Japan’s Constitutional Pacifism”, Ritsumeikan Annual Review of International Studies, v. 23, n. 3, 2011, pp. 43-61. 163 Especificamente R.P. Anand, “Family of ‘Civilized’ Nations’ and Japan: A History of Humiliation, Assimilation, Defiance, and Controntation”, Journal of the History of International Law, v. 5, n. 1, 2003, pp. 1-75. 164 Em concreto por crimes de agressão (ou contra a paz), violações às leis e costume de guerra e crimes de agressão, nos termos da Carta do Tribunal Militar para o Extremo Oriente (v. ‘Charter of the International Tribunal for the Far East [26 April 1946]’ in: Neil Bolster & Robert Cryer (eds.), Documents on the Tokyo International Military Tribunal: Charter, Indictments and Judgments, Oxford, UK, Oxford University Press, 2008, pp. 7-11, que no seu artigo 6º estipulava que “The following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of the Tribunal for which there shall be individual responsibility: (a) Crimes against peace: namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or a war in violation of international treaties, agreements or assurances, or participation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing; (b)War crimes: namely, violations of the laws or customs of war. Such violations shall include, but not be limited to, murder, ill-treatment or deportation to Wave labour or for any other purpose of civilian population of or in occupied territory, murder or ill-treatment of prisoners of war or persons on the seas, killing of hostages, plunder of public or private property, wanton destruction of cities, towns or villages, or devastation not justified by military necessity; (c)Crimes against humanity: namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war, or persecutions on political, racial or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated. - Leaders, organizers, instigators and accomplices participating in the formulation or execution of a common plan or conspiracy to commit any of the foregoing crimes are responsible for all acts performed by any persons in execution of such plan”), que levaram a acusações a envolver as campanhas da China/Manchúria, União Soviética, Pacífico, Indochina, Tailândia, Singapura, Filipinas, Indonésia, etc (para os factos e as sentenças, Ibid., passim; pode ser encontrado em versão aberta na página da rede http://www. ibiblio.org/hyperwar/PTO/IMTFE/index.html#index, acessado pela última vez a 6 de Agosto de 2013; os outros julgados importantes aparecem esparsamente nos Law Reports of Trials of War Criminals, London, United Nations War Crimes Commission, 1947-1948, vs. 3, 4 e 5. 165 Ver Madoka Futamora, “Japanese Societal Attitude towards the Tokyo Trial: From a Contemporary Perspective” in: Yuki Tanaka; Tim McCormack & Gerry Simpson (eds.), Beyond Victor’s Justice? The Tokyo War Crimes Trial Revisited, Leiden/Boston, Brill, 2011, pp. 35-53, para quem, por passividade ou de forma a afastar qualquer indício de culpa colectiva pelos acontecimentos da II Guerra, houve uma aceitação geral do facto. 166 Sobre esta questão, no geral, Mark Meltzer, “Occupation” in: William Tsutsui (ed.) A Companion to Japanese History, Malden, Mass, Blackwell, 2007, pp. 265-280.

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manha, pela Carta das Nações Unidas como um “Estado inimigo”167 contra o qual se podia adoptar medidas excepcionais não coartadas pelo princípio da proibição do uso da força, o Japão foi o Estado que de forma mais abrangente incorporou esse ideal e as categorias conceptuais do instrumento constitutivo da Organização das Nações Unidas168, mormente o seu artigo 2 (4)169. Como se sabe, no entanto, essas soluções eram japonesas somente na forma, pois o projecto de Constituição, aprovado pela Dieta Nipónica, fora aprovado pela Autoridade Suprema Aliada que ocupava a Ilha e exigia a sua desmilitarização 167

Lembremo-nos do artigo 54 (1) (“O Conselho de Segurança utilizará, quando for caso, tais acordos e organizações regionais para uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade. Nenhuma acção coercitiva será, no entanto levada a efeito em conformidade com acordos ou organizações regionais sem autorização do Conselho de Segurança, com excepção das medidas contra, um Estado inimigo, como está definido no n.º 2 deste artigo, que forem determinadas em consequência do artigo 107 ou em acordos regionais destinados a impedir a renovação de uma política agressiva por parte de qualquer desses Estados, até ao momento em que a Organização possa, a pedido dos Governos interessados, ser incumbida de impedir qualquer nova agressão por parte de tal Estado”), e o artigo 107 da Carta das Nações Unidas, de acordo com o qual “Nada na presente Carta invalidará ou impedirá qualquer acção que, em relação a um estado inimigo de qualquer dos signatários da presente Carta durante a 2ª Guerra Mundial, for levada a efeito ou autorizada em consequência da dita guerra pelos governos responsáveis por tal acção”) (por não se encontrar publicado no jornal oficial da República de Cabo Verde, citámos a partir de Diário da República [Portuguesa], I Série, n. 117, 22 de Maio de 1991, pp. 2746-2784. Quem eram esses Estados inimigos referidos por esses dispositivos? O artigo 54 (2) tenta fixar um conceito ao estabelecer que “O termo ‘Estado inimigo’, usado no n.º 1 deste artigo, aplica-se a qualquer Estado que, durante a 2.ª Guerra Mundial, tenha sido inimigo de qualquer signatário da presente Carta”. Apesar de não se os identificar especificamente, não custa muito concluirse, por exemplo com Victor-Yves Ghebali, “Article 107” in: Jean-Pierre Cot; Alain Pellet & Mathias Forteau (dir.), La Charte des Nations Unies. Commentaire article par article, 3. ed., Paris, Economica, 2005, p. 2182, que “dans le faits, la notion de ‘État ennemi’ s’appliqua aux trois grandes puissances de l’Axe (Allemagne, Italie et Japon), ainsi qu’aux satellites de l’Axe avec lesquels les Alliés signèrent des traités de paix en 1947 – soit la Bulgarie, la Finlande, la Hongrie et la Roumanie”; para o contexto, ver igualmente Gerry Simpson, Great Powers and Outlaw States. Unequal Sovereigns in the International Legal Order, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2004, pp. 254-277. 168 Ver Akihiko Kimijima, “Global Constitucionalism and Japan’s Constitutional Pacifism”, p. 52 (“Article 9 of the Japanese Constitution and Article 2 Clause 4 of the UN Charter share the spirit of the age”) e Hitoshi Nasu, “Article 9 of the Japanese Constitution Revisited in Light of International Law”, p. 52 (“More importantly, the renunciation of war prescribed in Article 9 of the Japanese Constitution is reportedly consistent with Article 2 (4) of the U.N. Charter from the historical context leading up to the drafting of this provision”); Craig Martin, “Binding the Dogs of War: Japan and the Constitutionalizing of the Jus ad Bellum”, University of Pennsylvania Journal of International Law, v. 30, n. 1, 2008, pp. 289-297; passim, discute pormenorizadamente como o artigo 9º vai incorporar o Direito Internacional do seu tempo. 169 “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas” (‘Carta das Nações Unidas’, art. 2 (4)).

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e democratização170. Apesar disso, essas concepções hetero-induzidas acabaram por ser absorvidas pelo povo japonês171, ainda que contestadas por vários elementos da elite política. Não só! O Estado Nipónico agasalhou ainda um princípio de obediência ao Direito Internacional172, cuja relevância não pode ser descurada no desenvolvimento geral da Constituição Internacional173. E a visão Japonesa fez escola, porque a Constituição da Itália do ano seguinte introduziu princípios semelhantes174. Também confrontada com um histórico recente de expansionismo e de violação disseminada a normas internacionais nessa matéria, especialmente nos Anos Trinta175, a Itália, através do artigo 11 da sua nova Constituição, demonstra o repúdio transalpino pela utilização “da guerra como instrumento de ofensa à liberdade de outros povos e como meio de solução de controvérsias internacionais”176 e a possibilidade 170

A respeito deste processo, veja-se Craig Martin, “Binding the Dogs of War: Japan and the Constitutionalizing of the Jus ad Bellum”, pp. 289-306; ver igualmente Frederich Schauer, “On the Migration of Constitutional Ideas”, pp. 907-919; Kyoko Onoue, MacArthur’s Japanese Constitution: a Linguistic and Cultural Study of its Making, Chicago, The University of Chicago Press, 1991, pp. 6-37; Dale Hellegers, We, The Japanese People: World War II and the Origins of the Japanese Constitution, Stanford, Cal., Stanford University Press, 2002. 171 Cf. Craig Martin, “Binding the Dogs of War: Japan and the Constitutionalizing of the Jus ad Bellum”, e Michael Panton, “Politics, Practice, and Pacifism: Revising Article 9 of the Japanese Constitution”, Asian-Pacific Law & Policy Review, v. 11, n. 2, 2010, pp. 163-218, para quem “There are, however, vast numbers of the general population and policy makers who have genuinely internalized the ideals of Article 9 and take great pride in what it stands for” (p. 173). 172 De acordo com o artigo 98 (2), “The treaties concluded by Japan and the established laws of nations shall be faithfully observed”, ao qual se pode acrescentar, pelo menos para efeitos simbólicos e hermenêuticos, a curiosa formulação jusnaturalista do Preâmbulo, de acordo com a qual “We believe that no nation is responsible to itself alone, but that laws of political morality are universal; and that obedience to such laws is incumbent upon all nations who would sustain their own sovereignty and justify their sovereign relationship with other nations”. Para comentários, Shin Hae Bong, “Japan” in: Dinah Shelton (ed.), International Law and Domestic Legal Systems. Incorporation, Transformation, and Persuasion, pp. 360-384. 173 Este valor é-lhe reconhecido por vários intérpretes dessa cláusula. Seguir Craig Martin, “Binding the Dogs of War: Japan and the Constitutionalizing of the Jus ad Bellum”, pp. 267-358. 174 Cita-se a partir da versão original (‘Costituzione della Repubblica Italiana [27 Diziembre 1947]’, disponível em http://www.senato.it/documenti/repository/relazioni/libreria/Costituzione_anastatica.pdf; acesso a 4 de Agosto de 2013). 175 Sobre este caso, recomenda-se Karl Strupp, “Problèmes soulevés a l’occasion de l’annexion, par le Italie, de l’Empire Éthiopien”, Revue Générale de Droit International Public, v. 44, 1937, pp. 43-50 (essencialmente tratando dos aspectos jurídicos ligados à anexação da Etiópia pela Itália); Quincy Wright, “The Test of Aggression in the Italo-Ethiopian War”, American Journal of International Law, v. 30, n. 1, 1936, pp. 45-56; John Gooch, “Re-conquest and Suppression: Fascist Italy’s Pacification of Lybia and Ethiopia, 1922-39”, The Journal of Strategy Studies, v. 28, n. 6, 2005, pp. 1005-1032. 176 De acordo com este dispositivo da Constituição da República Transalpina, “L’Italia ripudia la guerra come strumento di offesa alla libertà degli altri popoli e come mezzo di risoluzione delle controversie internazionali (‘Costituzione della Repubblica Italiana [27 Diziembre 1947]’, art. 11)”. Cf. igualmente Aldo Bernardini, “L’art. 11 della Costituzione Revisitato”, Rivista di Diritto Internazionale, v. 3, 1997, pp. 609-683, e Giuseppe de Vergottini, Guerra e costituzione. Nuovi confliti e sfide alla democrazia, Bologna, Il Mulino, 2004, ambos tratando das mutações dessa cláusula ao longo do tempo.

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de, num quadro de reciprocidade, haver a transferência de soberania necessária a construção de um ordenamento internacional destinado a assegurar a paz e a justiça entre os povos, designadamente através da criação de organizações internacionais177; no artigo 10, dispõe sobre a obediência ao Direito Internacionalmente reconhecido de forma geral178. A mais influente, a Lei Fundamental de Bona de 1949179, descontando os aspectos federais que, neste momento, não são tão importantes180, reforça ou introduz aspectos centrais para a constitucionalização da política externa e para a criação de um sistema de incorporação do Direito Internacional181, no sentido já desenvolvido pelas constituições do pós-guerra que lhe antecederam. No primeiro plano, há que se reconhecer uma continuidade com a Constituição de Weimar no tocante à divisão geral de poderes entre o órgão executivo e o legislativo, no entanto, com uma diferença substancial. O sistema de 177 “Consente, in condizioni di parità con gli altri Stati, alle limitazioni di sovranità necessarie ad un ordinamento che assicuri la pace e la giustizia fra le Nazioni; promuove e favorisce le organizzazioni internazionali rivolte a tale scopo” (‘Costituzione della Repubblica Italiana [27 Diziembre 1947]’, art. 11). Aliás, Giuseppe de Vergottini, Guerra e costituzione. Nuovi confliti e sfide alla democrazia, p. 12, aponta para o confronto na actualidade entre esta e a parte inicial do artigo 11, levando necessariamente à necessidade de haver algum tipo de ponderação entre esses dois princípios (“(…) la lettura odierna dell’articolo 11 ne comporta una interpretazione organica che tenga conto non solo del principio-valore della pace, che traspare con evidenzia dal ripudio della guerra, ma anche del chiaro inserimento dell’Italia nel tessuto dei rapporti internazionale che comporta la promozione e partecipazione a organismi di sicurezza e a coalizione occasionali implicanti limitazione di soveranità” . 178 “L’ordinamento giuridico italiano si conforma alle norme del diritto internazionale generalmente riconosciute” ((‘Costituzione della Repubblica Italiana [27 Diziembre 1947]’, art. 11), foi a redacção escolhida pelo legislador constituinte italiano. Uma interpretação geral desta questão pode ser encontrada em Giuseppe Cataldi, “Italy” in: Dinah Shelton (ed.), International Law and Domestic Legal Systems. Incorporation, Transformation, and Persuasion, pp. 328-359. 179 Para uma introdução, cf. Nuno Rogeiro, “O sistema constitucional da Alemanha” in: A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, pp.11-110, que também integra o texto traduzido com anotações, e um dos seus diversos comentários de autoria de Hans Jarass & Bodo Pieroth, Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland Kommentar, 12. auf., München, Beck, 2012. 180 No geral, a orientação nesta matéria continua, na linha da Constituição de Weimar, com uma reserva da política externa geral para a Federação, mas concedendo-se alguns poderes limitados nesta matéria às unidades federadas. De acordo com o artigo 32, “1. As relações internacionais são conduzidas pela Federação; 2. Antes da conclusão de um tratado que afecta especialmente as circunstâncias de um Länder, esse Länder deve ser consultado com a antecedência; 3. Na medida dos seus poderes legislativos, os Länder podem celebrar tratados com Estados estrangeiros com o consentimento da Federação” (cf. ‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’ in: Deutschen Verfassungen, 20. auf., München, Goldmann Verlag, 1985, pp. 137-188. 181 No geral, sobre esta questão específica na Lei Fundamental, Albert Bleckmann, Grundgesetz und Völkerrecht, Berlin, Duncker & Humblot, 1975.

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governo erigido em Bona182 reduz o poder presidencial de modo apreciável183, ficando com uma função mais honorífica184, ao passo que o Governo conduz efectivamente a política geral do país185, sendo, no entanto, acompanhado pelo Parlamento Federal. De acordo com o sistema constitucional germânico, numa fórmula muito próxima da Constituição de Weimar, mas com muito menos densidade normativa, caberia ao Presidente da República representar o Estado nas relações internacionais, acreditar e receber enviados e concluir tratados186, porém, sem poderes simbólicos ou operativos em matéria de defesa. Há, sem dúvida, uma arrumação paradigmática dos foreign powers no quadro de um regime parlamentar, completada, para além dos poderes reservados ao Presidente, com a sua atribuição natural ao poder executivo, neste caso da Federação, mas com participação do Bundestag187. A condução da acção externa do Estado cabe ao Governo, assim como a negociação de tratados e a iniciativa, nos estritos limites em que isso é possível na Alemanha, de usar a força, designadamente a defensiva. O Parlamento, por sua vez, acompanha a execução da política externa, autoriza a vinculação a tratados e, por fim, permite a utilização de forças militares188. Complementarmente, o Tribunal Constitucional Federal, no quadro dos seus poderes gerais de 182

Cf. Juan Schneider, “El regimen parlamentario” in: Ernesto Benda; Werner Maihofer; Conrado Hesse et al. (org.), Manual de Derecho Constitucional [Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Studienausgabe], António Lopez Pina (trad.), Madrid, Marcial Pons, 1996, pp. 325-387. 183 Na doutrina nacional, Aristides Lima, Estatuto Jurídico-Constitucional do Chefe de Estado. Um Estudo de Direito Comparado, Praia, Alfa, 2004, p. 42 (“Comparandos os poderes do Presidente Federal com os poderes que a República de Weimar atribuiu ao Presidente do Reich, nota-se claramente que a LF dotou o Chefe de Estado de reduzidas competências jurídico-constitucionais directas”). 184 Vide Donald Kommers, The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, 2. ed., Durham/London, Duke University Press, 1997, p. 149 (“Under article 59 (1), the President concludes treaties, receives envoys, and represents the federation in its international relations. But these roles are largerly ceremonial”). 185 Este poder geral é representado pela Constituição na parte em que se diz que o “Chanceler determina e responsabiliza-se pelas directrizes gerais de política [Der Bundeskanzler bestimmt die Richtlinien der Politik und trägt dafür die Verantwortung]” (‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 65). 186 Na fórmula da Lei Fundamental, “Der Bundespräsident vertritt den Bund völkerrechtlich. Er schließt im Namen des Bundes die Verträge mit auswärtigen Staaten. Er beglaubigt und empfängt die Gesandten” (Ibid., art. 59 (1)). 187 De acordo com o artigo 59 (2), “Verträge, welche die politischen Beziehungen des Bundes regeln oder sich auf Gegenstände der Bundesgesetzgebung beziehen, bedürfen der Zustimmung oder der Mitwirkung der jeweils für die Bundesgesetzgebung zuständigen Körperschaften in der Form eines Bundesgesetzes. Für Verwaltungsabkommen gelten die Vorschriften über die Bundesverwaltung entsprechend” (Ibid.). 188 Cf. George Nolte, “Germany: Ensuring political legitimacy for the use of military forces by requiring constitutional accountability” in: Charlote Ku & Harold Jacobson (eds.), Democratic Accountability and the Use of Force in International Law, pp. 231-253, tratando da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal que consagrou essa interpretação da Constituição.

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interpretação, poderá intervir no processo, fiscalizando a compatibilidade entre convenções internacionais e a Lei Fundamental189. Provavelmente, o mais importante desenvolvimento introduzido no sistema constitucional da Nova Alemanha, ainda submetida a ocupação militar190, é também compreensivelmente contextual. Trata-se da assumpção de uma posição pacifista, cooperativa e favorável ao Direito Internacional, em jeito de antítese normativa do Regime Nazi191 e de alguma tradição marcial das elites germânico-prussianas192, com o seu belicismo, arianismo e desconsideração de qualquer limite jurídico (interno ou internacional) à conduta do Estado193. Mais até do que o Japão e a Itália, a Alemanha fora acusada e os seus líderes responsabilizados individualmente194 pelo lançamento de guerras contrárias ao Direito Internacional (crimes contra a paz) e, mais grave ainda, pelo cometimento de crimes graves contra a humanidade e crimes de guerra195. Não sendo 189

De acordo com os 93 (1) (“Das Bundesverfassungsgericht entscheidet: 1. über die Auslegung dieses Grundgesetzes aus Anlaß von Streitigkeiten über den Umfang der Rechte und Pflichten eines obersten Bundesorgans oder anderer Beteiligter, die durch dieses Grundgesetz oder in der Geschäftsordnung eines obersten Bundesorgans mit eigenen Rechten ausgestattet sind”) e 100 (2) (“Ist in einem Rechtsstreite zweifelhaft, ob eine Regel des Völkerrechtes Bestandteil des Bundesrechtes ist und ob sie unmittelbar Rechte und Pflichten für den Einzelnen erzeugt (Artikel 25), so hat das Gericht die Entscheidung des Bundesverfassungsgerichtes einzuholen”). 190 Cf. sobre este período, Frederick Taylor, Exorcising Hitler. The Occupation and Denazification of Germany, London, Blunsbury, 2011. 191 Veja-se, igualmente o reconhecimento constitucional da libertação do nacional-socialismo e do militarismo na Lei Fundamental “Die zur ‘Befreiung des deutschen Volkes vom Nationalsozialismus und Militarismus’ erlassenen Rechtsvorschriften werden von den Bestimmungen dieses Grundgesetzes nicht berührt” (Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 139). 192 Seguir, e.g., Jeffrey Verhey, The Spirit of 1914. Militarism, Myth, and Mobilization in Germany, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2000. 193 Para desenvolvimentos, Virginia Gott, “The National Socialist Theory of International Law”, American Journal of International Law, v. 32, n. 4, 1938, pp. 704-718; Detlev Vagts, “International Law in the Third Reich”, American Journal of International Law, v. 84, n. 3, 1990, pp. 661-704, e Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany, 1914-1945, Thomas Dunlop (trad.), Oxford, UK, Oxford University Press, 2004, pp. 408-431, assim como id., “Against Universalism – German International Law under the Swastika: Some Contributions to the History of Jurisprudence 1933-1945”, German Yearbook of International Law, v. 50, 2007, pp. 91-110. 194 Por todos, veja-se o nosso José Pina Delgado & Liriam K. Tiujo, “O princípio da responsabilidade penal individual nos estatutos do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e do Tribunal Penal Internacional”, Direito & Cidadania, a. 4, n. 12-13, 2001, pp. 177-195. 195 Acompanhar com ‘Charter of the International Military Tribunal’ in: Trial of Major War Criminals before the International Military Tribunal, Nuremberg, International Military Tribunal, 1947, v. I7, pp. 10-16, especialmente o dispositivo a fixar as condutas incriminadas a serem julgadas pelo Tribunal, em concreto o seu artigo 6º:“The Tribunal established by the Agreement referred to in Article 1 hereof for the Trial and punishment of the major war criminals of the European Axis countries shall have the power to try and punish persons who, acting in the interests of the European Axis countries, whether as individuals or as members of organiza- tions, committed any of the following crimes. The following acts, or any of them, are crimes coming within

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todas inovações histórico-jurídicas, o facto é que não deixam de ser decisivas as referências principiológicas à proibição da guerra de agressão196, ao controlo público do fabrico e circulação de armamento197, à participação em mecanismos de solução internacional de controvérsias198 e a sistemas de segurança colectiva199 e à possibilidade de transferência de poderes para qualquer organização internacional200. the jurisdiction of the Tribunal for which there shall be individual responsibility: (a) CRIMES AGAINST PEACE: namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or a war in violation of international treaties, agreements or assurances, or participation in a Common Plan or Conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing; (b) WAR CRIMES: namely, violations of the laws or customs of war. Such violations shall include, but not be limited to, murder, ill-treatment or deportation to slave labor or for any other purpose of civilian population of or in occupied territory, murder or ill-treatment of prisoners of war or persons on the seas, killing of hostages, plunder of public or private property, wanton destruction of cities, towns, or villages, or devastation not justified by military necessity; (c) CRIMES AGAINST HUMANITY: namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war, or persecutions on political, racial, or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of domestic law , of the country where perpetrated. Leaders, organizers, instigators, and accomplices participating in the formulation or execution of a Common Plan or Conspiracy to commit any of the foregoing crimes are responsible for all acts performed by any persons in execution of such plan”. Ver também Nazi Conspiracy and Aggression. Opinion and Judgement, Washington, United States Government Printing Office, 1947, para um relato das acusações, relatos e sentenças, e os julgamentos menores em Law Reports of Trials of War Criminals, 6. v., e Trials of War Criminals before Nuernberg Military Tribunal under Control Council Law nº 10, Nuernberg, Nuernberg Military Tribunals, s.d., 5. v. 196 “Handlungen, die geeignet sind und in der Absicht vorgenommen werden, das friedliche Zusammenleben der Völker zu stören, insbesondere die Führung eines Angriffskrieges vorzubereiten, sind verfassungswidrig. Sie sind unter Strafe zu stellen” (‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 26 (1)). Para alguma discussão sobre a questão na Lei Fundamental, Karl-Andreas Hernekamp, “Der Schutz des Internationalen Friedens im Grundgesetz – Vergleichende Betrachtungen” in: Francisco Fernández Segado (ed.), The Spanish Constitution in the European Constitutional Context, Madrid, Dykinson, 2003, pp. 1483-1502. 197 “Zur Kriegführung bestimmte Waffen dürfen nur mit Genehmigung der Bundesregierung hergestellt, befördert und in Verkehr gebracht werden. Das Nähere regelt ein Bundesgesetz” ((‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 26 (2)). 198 “Zur Regelung zwischenstaatlicher Streitigkeiten wird der Bund Vereinbarungen über eine allgemeine, umfassende, obligatorische, internationale Schiedsgerichtsbarkeit beitreten (Ibid.,art. 24 (3)). 199 “Der Bund kann sich zur Wahrung des Friedens einem System gegenseitiger kollektiver Sicherheit einordnen; er wird hierbei in die Beschränkungen seiner Hoheitsrechte einwilligen, die eine friedliche und dauerhafte Ordnung in Europa und zwischen den Völkern der Welt herbeiführen und sichern” (Ibid., art. 24 (2). 200 “Der Bund kann durch Gesetz Hoheitsrechte auf zwischenstaatliche Einrichtungen übertragen” (Ibid., art. 24 (1)).

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O tratamento do Direito Internacional é também objecto de um reforço com a Lei Fundamental de Bona201, assente na fórmula adoptada pelo seu artigo 25 de acordo com a qual “as regras gerais do Direito Internacional são parte do Direito Federal”202. Apesar de o texto não ser muito claro em relação à incorporação de normas convencionais, já que se limita a utilizar a expressão “regras gerais de Direito Internacional” (allgemeinen Regeln des Völkerrechtes), a prática constitucional e a jurisprudência posterior esclareceu a posição constitucional ao considerar que a referência feita no artigo também cobre as normas de origem convencional203. Ademais, de notória importância foi a posição hierárquica atribuída às normas jurídicas internacionais, reconhecendo-se a sua força supralegal204. Tais soluções, relativamente à política externa e em particular sobre o Direito Internacional, valeram à Lei Fundamental o epíteto de “Constituição amiga do Direito Internacional” (Volkerrechtsfreundlichkeit)205. 3.3. Sob o Signo da Indecisão Jurídica e da Afirmação Política no Sistema Semi-Presidencial de Governo: a Constituição da República Francesa de 1958 Outro texto fundacional que, por motivos distintos, veio a somar às que operaram transições no pós-guerra foi a Constituição Francesa de 1958206, particularmente porque inseriu elementos para se conceber a divisão de poderes em matéria de política externa num sistema semi-presidencial, não obstante as formulações muito menos fortes que vieram a vingar no ordenamento jurídico-constitucional cabo-verdiano207. Há uma clara quase-presidencialização do 201

No geral, seguir Hans-Peter Folz, “Germany” in: Dinah Shelton (ed.), International Law and Domestic Legal Systems. Incorporation, Transformation, and Persuasion, pp. 240-258. 202 “Die allgemeinen Regeln des Völkerrechtes sind Bestandteil des Bundesrechtes. (…)”(‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 25) 203 No sumário feito por Hans-Peter Folz, “Germany”, p. 245 (“According to the constant Jurisprudence of the Federal Constitutional Court, the Basic Law in founded on the assumption that the entire German legal order has the objective of fulfilling the requirements imposed on the German State by International Law”). 204 “Die allgemeinen Regeln des Völkerrechtes (…) gehen den Gesetzen vor und erzeugen Rechte und Pflichten unmittelbar für die Bewohner des Bundesgebietes (…)”(‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 25). 205 Por todos, Daniel Lovric, “A Constitution Friendly to International Law: Germany and its Volkerrechtsfreundlichkeit”, Australian Yearbook of International Law, v. 25, 2006, pp. 75-104. 206 A respeito do contexto, cf. Yves Guchet, Histoire Constitutionelle de la France, 1789-1974, pp. 287-333. 207 Por todos, Jorge Carlos Fonseca, “Sistema de Governo na Constituição da República de Cabo Verde de 1992” in: Cabo Verde. Constituição – Democracia – Cidadania, Praia/Lisboa, ISCJS/Almedina, 2011, pp. 135-151, que classifica o modelo cabo-verdiano de “semi-presidencialismo fraco” (p. 149); Mário Ramos Silva, “Sistema de Governo: A Singularidade Cabo-verdiana” in: Jorge Bacelar Gouveia (Coord.), I Congresso de Direito de Língua Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 197-240, chama a atenção para a influência do modelo francês em Cabo Verde (p. 200).

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sistema de governo208 no que toca à política externa e de defesa209, assumida especificamente pelo Presidente da República, que, para além disso, nomeia os embaixadores da França e acredita os estrangeiros210 e comanda o exército211, apesar da condução quotidiana da política de defesa caber ao Governo. A guerra, aliás, exige igualmente, pelo menos do ponto de vista das primeiras versões da Constituição212, participação parlamentar, ao nível da necessidade de uma autorização213, e a coordenação entre o Chefe de Estado e o Governo214. 208 Veja-se a consagração deste princípio no artigo 5º da Constituição da V República: “Le Président de la République veille au respect de la Constitution. Il assure, par son arbitrage, le fonctionnement régulier des pouvoirs publics ainsi que la continuité de l’État. Il est le garant de l’indépendance nationale, de l’intégrité du territoire et du respect des traités” (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, disponível em http://www.senat.fr/evenement/revision/texte_originel.html#VI, acesso a 23 de Julho de 2013). Para comentários gerais, cf. Didier Maus, “La repartition de competences en matière de politique étrangère dans la élaboration de la Constitution de la Ve Repúblique” in: Dmitri-Georges Lavroff (dir.), La Conduite de la Politique Étrangère de la France sous la Ve Repúblique, Bordeaux, Presses Universitaires de Bordeaux, 1997, pp. 107-149. 209 Apresenta a lógica do sistema um dos principais trabalhos sobre a questão de autoria de Dmitri- Georges Lavroff, “La practique de la conduite des affaires etrangères sous la Ve Repúblique” in: Ibid., pp. 79-105 (“on constate deux situations significatives: d’une parte, que le president de la Repúblique joue un rôle principal dans la détermination la politique étrangère de la France; d’autre part, que le president de la Repúblique et le gouvernment collaborant pour la mise en ouevre de la politique étrangére de la France”) (p. 83). 210 Diz-se que “Le Président de la République accrédite les ambassadeurs et les envoyés extraordinaires auprès des puissances étrangères; les ambassadeurs et les envoyés extraordinaires étrangers sont accrédités auprès de lui” (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, art. 14). 211 “Le Président de la République est le chef des armées. Il préside les conseils et les comités supérieurs de la défense nationale” (Ibid., art. 15). 212 Esta questão é especialmente tratada por Jean Paucot, “Le pouvouir d’engager les hostilités en France”, Pouvouirs. Revue Française d’Études Constitutionelles et Politiques, n. 10, 1979, pp. 65-78; Raphaël Hadas-Lebel, “La Ve Repùblique et la Guèrre”, Pouvouirs. Revue Française d’Études Constitutionelles et Politiques, n. 58, 1991, pp. 5-24; Michel Voelckel, “Faut-il encore declarer la guerre?”, Annuaire Français de Droit International, v. 37, 1991, pp. 7-24, Yves Boyer; Serge Sur & Olivier Fleurence, “France: Security Council Legitimacy and Executive Primacy” in: Charlote Ku & Harold Jacobson (eds.), Democratic Accountability and the Use of Force in International Law, pp. 280-299. 213 A redacção é esta: “La déclaration de guerre est autorisée par le Parlement” (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, art. 35). No entanto, como indicam Yves Boyer; Serge Sur & Olivier Fleurence, “France: Security Council Legitimacy and Executive Primacy”, p. 294, este papel foi limitado não só pela prática constitucional concreta, como também pela mesma expressão que em outras paragens foi usada, mas que, quando confrontada com o seu real e mais exíguo significado jurídico-internacional, reduz significativamente qualquer possibilidade de controlo parlamentar da guerra (“The use of force internationally does not require a formal declaration of war by the legislature as provided for in article 35 of the Fifth Republic’s Constitution. When the executive consults the legislature it is because of concern for public opinion. Even with declaration of war, the powers of the National Assembly and Senate have eroded to become more of a historical vestige than a real codecisional power on questions concerning the commitment of French troops. This is especially true since legislative authorisation is not required for the implementation of existing international obligations”). 214 Que resulta dos poderes governamentais previstos pelo artigo 20 da Constituição da República Francesa (“Le Gouvernement détermine et conduit la politique de la Nation.

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Relativamente aos tratados, a lógica do sistema é preservada, reservandose, num quadro de partilha de poderes, um protagonismo mais acentuado ao Presidente da República, entidade à qual se atribuiu um poder de negociação e de ratificação215, mas que, na prática, só assume o segundo216, com base numa lógica que parte da distinção entre tratados e acordos internacionais. Nestes, há um dever de informação ao Presidente da República217, mas a competência é do Governo218. Intervém, neste caso, o parlamento, em relação a certos tipos de tratado219, com o critério a ser fixado rationae materiae da matéria, reservando-se à lei a autorização para a vinculação e preservando-se, assim, as competências parlamentares nesses domínios220. O Conselho Constitucional pode ser chamado a participar do processo de celebração de tratados para fiscalizar a sua constitucionalidade, estabelecendo a Lei Fundamental as entidades com legitimidade processual activa para a requerer (o Presidente da República; o Il dispose de l’administration et de la force armée”), completada pela primeira parte do artigo 21 (“Le Premier Ministre dirige l’action du Gouvernement. Il est responsable de la Défense Nationale (…)”) (Ibid.). A prática da V República fez pender a correlação de forças claramente para o Presidente da República como, de resto, é sumarizado numa longa passagem de Yves Boyer; Serge Sur & Olivier Fleurence, “France: Security Council Legitimacy and Executive Primacy”, p. 292, que reproduzimos pelo seu interesse: “According to article 20 of the Constitution, the Government is entitled to develop, decide on, and implement national policies. To this end, it utilizes the administration and the armed forces. This provision gives the government a role in the implementation of the use of force. The prime minister, as head of goverment, should thus be an important actor. In practice, however, prime ministers have usually had a very limited influence on the decision to use force internationally. During the first coahabitation, when Jacques Chirac was prime minister, President Mitterrand withdrew from political scene to focus on external relations. To preserve a smooth cohabitation (which the Constitution has not envisaged, leaving the politicians forced to find their way), the prime minister then refrained from intervening in this field and left the president enjoying vast powers. This practice set a precedent that greatly influenced the following periods of cohabitation. Thus, power in the area of foreign policy and the defense still lies with the president, with an important role also played by the minister of foreign affairs”. 215 Estipula a Lei Fundamental gaulesa que “Le Président de la République négocie et ratifie les traités” (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, art. 52 (1). 216 Siga-se Dmitri-Georges Lavroff, “La practique de la conduite des affaires etrangères sous la Ve Repúblique”, p. 99. 217 “Il est informé de toute négociation tendant à la conclusion d’un accord international non soumis à ratification” (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, art. 52 (2)). 218 Ibid. 219 “Les traités de paix, les traités de commerce, les traités ou accords relatifs à l’organisation internationale, ceux qui engagent les finances de l’État, ceux qui modifient les dispositions de nature législative, ceux qui sont relatifs à l’état des personnes, ceux qui comportent cession, échange ou adjonction de territoire, ne peuvent être ratifiés ou approuvés qu’en vertu d’une loi” (Ibid., pp. 53 (1)). 220 Decorre deste segmento: “Si le Conseil Constitutionnel, saisi par le Président de la République, par le Premier Ministre ou par le Président de l’une ou l’autre assemblée, a déclaré qu’un engagement international comporte une clause contraire à la Constitution, (…)” (Ibid., art. 54).

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Primeiro Ministro; ou o presidente de uma das casas parlamentares)221. Por fim, a Constituição dispõe ainda sobre a obrigação de se consultar a população em casos de qualquer transferência de território222, o momento da entrada da norma convencional internacional na ordem interna223, a posição jurídica supra-legal do tratado224 e a vinculação um tratado julgado inconstitucional, sem previamente haver uma revisão constitucional225. IV. As constituições dos Estados socialistas e dos países recémindependentes de Ásia e África, em especial a Constituição da República da Guiné-Bissau de 1973 Poderá espantar a muitos trazer à colação Constituições que, à primeira vista, não teriam nada a ver com o nosso actual sistema de valores fundamentais. Não deixa de ser uma inferência correcta. Porém, não se pode esqueçer que, por um lado, durante o período do nosso primeiro constitucionalismo há uma identidade, ainda que parcial, com sistemas não ocidentais de organização do Estado, e que, por outro, mesmo a Lei Fundamental que mais de perto influenciou os desenvolvimentos constitucionais cabo-verdianos – falámos da Constituição da República Portuguesa de 1976 – na sua versão originária recebeu, a certos níveis, influxos das mesmas fontes, alguns dos quais contínuaram a integrá-la mesmo depois da ocidentalização promovida a partir da sua primeira revisão. Daí a presença de alguns desenvolvimentos materiais, particularmente ligados a princípios de condução da política externa, a visão sobre as relações internacionais resultantes de declarações dessa índole das leis magnas de Estados socialistas e em particular nas leis fundamentais das novas nações independentes nos continentes asiático e africano, o mais próximo, sendo o exemplo da República da Guiné-Bissau de 1973. Descontando a realidade de serem, como muitas soluções em países sem tradição de contenção do uso do poder, interna ou externamente, na maior parte dos casos, mera retórica, e, de ser factual que os princípios anti-belicistas não são novidade do Século XX, 221

Ibid. Acompanhar com Michel Fromont, “Le controle de la constitutionnalité des traités internationaux en Espagne et en France” in: Francisco Fernández Segado (ed.), The Spanish Constitution in the European Constitutional Context, pp. 943-964. 222 “Nulle cession, nul échange, nulle adjonction de territoire n’est valable sans le consentement des populations intéressées (‘Constitution [Française] de 4 de Octobre 1958 – Texte Original’, art. 53 (3)). 223 “Ils ne prennent effet qu’après avoir été ratifiés ou approuvés” (Ibid., art. 53 (2)). 224 “Les traités ou accords régulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application par l’autre partie” (Ibid., art. 55). 225 “Si le Conseil Constitutionnel, (…), a déclaré qu’un engagement international comporte une clause contraire à la Constitution, l’autorisation de le ratifier ou de l’approuver ne peut intervenir qu’après la révision de la Constitution” (Ibid., art 54).

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já as referências abrangentes a princípios relacionados ao anti-imperialismo, anti-colonialismo e opção pelo não-alinhamento que, naquela altura, faziam parte integrante das concepções de política externa constitucionalizadas pelo chamado Bloco Socialista e pelo Terceiro Mundo, tiveram essa importância. Ênfase maior era dada a esses valores, por motivos naturais, nas Constituições dos países que tinham ascendido de forma não consensual à independência. 4.1 – Constitucionalismo Marxista-Leninista e as directrizes antibelicistas e anti-imperialistas em matéria de política externa Algumas constituições socialistas começam a apresentar, com teor programático, matéria de política externa226. A da República Democrática da Alemanha de 1949227 já dispunha, no seu artigo 5º, que o Direito Internacional geralmente reconhecido vincula todas as autoridades do Estado e todos os cidadãos228, que era dever de todas as autoridades do Estado manter e cultivar relações amigáveis com a generalidade dos povos229 e que nenhum cidadão podia participar em acções beligerantes, destinadas a oprimir qualquer povo230. No momento inicial de sua existência231, eram posições de um Estado com um estatuto controverso na Comunidade e no Direito Internacional232, pretendendo renegar o passado e qualquer associação com o nazismo233, preocupação 226

Desconsideramos nesta apresentação específica o tratamento sistemático do Direito Internacional nas constituições socialistas, já que, nesta matéria, a sua influência não foi tão notória. 227 Ver ‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 7 Oktober 1949]’ in: Deutsche Verfassungen, pp. 189-216. 228 Assim, o seu número 1 (“Die allgemein anerkannten Regeln des Völkerrechts binden die Staatsgewalt und jeden Bürger” (Ibid.)). 229 “Die Aufrechterhaltung und Wahrung freundschaftlicher Beziehungen zu allen Völkern ist die Pflicht der Staatsgewalt” (Ibid., art. 5 (2)). 230 De acordo com o artigo 5 (3), “Kein Bürger darf an kriegerischen Handlungen teilnehmen, die der Unterdrückung eines Volkes dienen”. 231 Veja-se a periodificação usada por Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, German Yearbook of International Law, v. 50, 2007, p. 153, dividindo a história do Direito Internacional na República Democrática da Alemanha em: primeiro período, do estabelecimento da zona de ocupação à fundação da RDA (1945-1949); segundo período, deste evento à transferência de soberania (1949-1954/5); terceiro período, que segue até à normalização das relações entre as duas partes da Alemanha e a sua admissão à Organização das Nações Unidas (1954/5-1972/3); e, finalmente, quarto, que decorre desse momento até à unificação (1972/3-1990). 232 Não se pode esquecer que a República Democrática da Alemanha era chamada de “entidade” (Gebild) ou de “fenómeno” ou, em todo o caso, tida por um corpo estranho, não-soberano (cf. Ibid., pp. 189-191). 233 Seguir a este respeito Christoph Burchard, “The Nuremberg Trial and its Impact on Germany”, Journal of International Criminal Justice, v. 4, n. 4, 2006, pp. 800-829, denomina-a de “AntiNazi” (“the anti-Nazi Constitution of the GDR was intended to have effects outside East Germany”) (p. 818) e conclui que a “GDR transformed antifascism to a collective ideology that was to have an effect profuturo” (p. 820).

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partilhada com a República Federal, mas assumida de forma mais ampla e com muito menos ambiguidades234. Todavia, foi a de 1968235 (particularmente na sua versão de 1974236) que introduziu um desenvolvimento maior no concernente à regulação da acção externa do Estado, bem como, em geral, do tratamento constitucional do Direito Internacional237. Com efeito, é a “Lei Básica” de 1968 que sistematiza esta dimensão do texto constitucional, no artigo 6º, no qual, para além de formulações mais contextuais, ligadas ao passado nazi da Alemanha238 – maugrado alguma ligação com ela – adoptou-se o ideário de uma política externa socialista e pacífica, promotora da amizade e da segurança internacionais239, cujos desdobramentos propugnavam por uma associação com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas240 e com a Comunidade Socialista com base no internacionalismo socialista241. Consagrava igualmente directrizes de política 234

Cf. Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, p. 199, e, em especial, Christoph Burchard, “The Nuremberg Trial and its Impact on Germany”, passim, que analisa a rejeição dos chamados “princípios de Nuremberga” pela República Federal e a sua aceitação plena pela República Democrática. 235 Cf. ‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 6 April 1968]’ in: Deutsche Verfassungen, pp. 242-249, para o texto (excertos), Michael Bothe, “The 1968 Constitution of East Germany. A Codification of Marxist-Leninist Ideas of Law and State”, American Journal of Comparative Law, v. 17, n. 2 1969, pp. 268-291, para uma apresentação geral dos seus princípios, e Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, passim, que coloca esse desenvolvimento num momento de maior estabilização do Estado da Alemanha Oriental enquanto membro reconhecido e independente da Comunidade Internacional. 236 ‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 6 April 1968; 7 Oktober 1974]’ in: Deutschen Verfassungen, pp. 217-241, eliminando sobretudo referências à nação alemã, fruto do ambiente da evolução da relação entre as duas instituições, como nos dá conta Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, p. 183. 237 Seguir Walter Poeggel, “The Development of Teaching and Research in the Field of Public International Law at the Universities of the Former German Democratic Republic”, German Yearbook of International Law, v. 50, 2007, pp. 139-148. 238 “Die Deutsche Demokratische Republik hat getreu den Interessen des Volkes und den internationalen Verpflichtungen auf ihrem Gebiet den deutschen Militarismus und Nazismus ausgerottet” (‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 6 April 1968; 7 Oktober 1974]’, art. 6 (1)). 239 “Sie betreibt eine dem Sozialismus und dem Frieden, der Völkerverständigung und der Sicherheit dienenden Außenpolitik” (Id.). 240 “Die Deutsche Demokratische Republik ist für immer und unwiderruflich mit der Union der Sozialistischen Sowjetrepubliken verbündet” (Id., art. 6 (2)), é a fórmula; complementarmente sobre esta matéria a doutrina da Alemanha Oriental representada aqui por Peter-Alfons Steiniger, “Die Grundprinzipen des Völkerrechts der Gegenwart” in: Völkerrecht. Lehrbuch, Berlin, Staatsverlag der Deutschen Demokratischen Republik, 1973, pp. 155-199, especialmente 188199, o mais influente manual de Direito Internacional do país (v. Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, p. 152). 241 “Die Deutsche Demokratische Republik ist untrennbarer Bestandteil der sozialistischen Staatengemeinschaft. Sie trägt getreu den Prinzipien des sozialistischen Internationalismus zu ihrer Stärkung bei, pflegt und entwickelt die Freundschaft, die allseitige Zusammenarbeit und den gegenseitigen Bestand mit allen Staaten der sozialistischen Gemeinschaft” ((‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 6 April 1968; 7 Oktober 1974]’, art. 6 (2)).

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externa242 amparadas numa postura anti-colonialista e na promoção de relações de cooperação com todos os Estados na base da igualdade e no respeito mútuo243. Por fim, outros focos denunciadores de uma visão constitucional para a construção da ordem internacional estável e pacífica são as referências à criação de um sistema de segurança colectiva na Europa, a advocacia de uma ordem pacífica no Mundo e o apoio ao desarmamento geral244. Neste caso, verifica-se também, com facilidade, a absorção pela Constituição de desenvolvimentos da política externa concreta da Alemanha Oriental245. Curiosamente, este desenvolvimento da Constituição Internacional somente foi (re)absorvido pelo principal líder do mundo comunista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas246, em 1977247, haja em vista que o texto fundamental de 1936248 praticamente não tratou da matéria249. A Constituição de Estaline correspondeu a um hiato que, em certa medida, contrariava a tradição de integrar formulações princípiológicas em textos com valor fundamental. Foi o que aconteceu com a Constituição Russa de 1918, que, no seu artigo 3º, de forma bastante interessante, apostou na indicação de objectivos gerais de política externa, nomeadamente a “libertação da humanidade do capitalismo e do imperialismo”250 e, mais específicos, relacionados ao fim da I Guerra Mun242

Cf. Karlfried Hofmann, “Die staatlichen Organe für auswärtige Beziehungen” in: Völkerrecht. Lehrbuch, p. 407 (“Die grundlegende Orientirung für den Inhalt und die Methode der sozialistichen Diplomatie der DDR is in Artikel 6 der Verfassung der DDR (…)”). 243 “Die Deutsche Demokratische Republik unterstützt die Staaten und Völker, die gegen den Imperialismus und sein Kolonialregime, für nationale Freiheit und Unabhängigkeit kämpfen, in ihrem Ringen um gesellschaftlichen Fortschritt. Die Deutsche Demokratische Republik tritt für die Verwirklichung der Prinzipien der friedlichen Koexistenz von Staaten unterschiedlicher Gesellschaftsordnungen ein und pflegt auf der Grundlage der Gleichberechtigung und gegenseitigen Achtung die Zusammenarbeit mit allen Staaten” ((‘Die Verfassung der Deutschen Demokratischen Republik [vom 6 April 1968; 7 Oktober 1974]’, art. 6 (3)). 244 “Die Deutsche Demokratische Republik setzt sich für Sicherheit und Zusammenarbeit in Europa, für eine stabile Friedensordnung in der Welt und für allgemeine Abrüstung ein” (Ibid., art. 6 (4)). 245 Veja-se Theodor Schweisfurth, “The Science of Public International Law in the GDR”, passim. 246 Para um contexto geral, cf. Peter Kenez, A History of the Soviet Union from the Beginning to the End, 2. ed., Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2006. 247 ‘Constitution of the USSR of 7 October 1977’ in: William B. Simmons (ed.), Constitutions of the Communist World, Alphen an den Rijn, Sijthoff & Noordhoff, 1980, pp. 352-392. 248 Aceder ao texto em tradução inglesa em ‘Constitution (Fundamental Law) of the Union of Socialist Soviet Republics [December 5 1936, as amended]’ in: Amos Jenkins Peaslee (ed.), Constitutions of Nations, The Hague, Martinus Nijhof, 1956, v. III, pp. 485-501. A respeito da chamada ‘Constituição de Estaline”, cf. ‘The New Soviet Constitution’, International Law and Relations, v. 6, n. 10, 1937, pp. 1-5, e John Hazard, “The Soviet Constitution: An Introduction”, pp. 37-42. 249 Para uma comparação de todos esses textos constitucionais e para uma apresentação geral do constitucionalismo soviético, veja-se Igor Kavass & Gary Cristian, “The 1977 Soviet Constitution: A Historical Comparison”, Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 12, 1979, pp. 533-662; complementarmente ver John Hazard, “The Soviet Constitution: An Introduction”, pp. 27-42. 250 “Expressing its fixed resolve to liberate mankind from the grip of capital and imperialism, which flooded the earth with blood in its present most criminal of all wars, (...)” (‘1918 Constitution of the Russian Soviet Federated Republics, Adopted by the 50th Congress of Soviets [July

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dial, embora nalguns casos com consequências mais prolongadas, de vedar os tratados secretos, organizar a confraternização de trabalhadores e camponeses de todos os exércitos beligerantes e o propósito de se garantir uma paz democrática sem indemnizações e anexações, baseada na auto-determinação dos povos251. Tudo isto resulta na formulação de um princípio anti-imperalista e anti- exploração capitalista dos povos não-europeus, que vai passar a fazer parte do léxico político e constitucional dos países marxistas do Leste da Europa252 e na tomada de posições concretas em relação à Finlândia, Pérsia e Arménia253. A Constituição de 1924 continuou com essas incursões, com as considerações preambulares a conter vários princípios e valores da acção externa da recém criada União Soviética, nomeadamente mencionando a co-existência pacífica254, e particularmente a ideia de que “o novo Estado Federal será o corolário dos princípios adoptados desde Outubro de 1917 da co-existência pacífica e da colaboração fraternal dos povos que servirão como baluarte contra o Mundo Capitalista e marca um passo decisivo da união dos trabalhadores de todos os países numa República Socialista Soviética Global”255. Foi, então, somente a quarta constituição soviética que articulou de forma abrangente esses princípios e formulações, embora fossem tão radicais quanto as formulações hiper-cosmopolitas de 1924. Num clima pós-stalinista256, afastado de algumas linhas de política externa e concepção sobre o Direito Inter10 1918]’, disponível na página da rede http://www.marxists.org/history/ussr/government/ constitution/1918/index.html, acesso a 7 de Agosto de 2013, art. 1 (4)). 251 “(…) the Third Congress of Soviets fully agrees with the Soviet Government in its policy of abrogating secret treaties, of organizing on a wide scale the fraternization of the workers and peasants of the belligerent armies, and of making all efforts to conclude a general democratic peace without annexations or indemnities, upon the basis of the free determination of peoples” (Ibid.). 252 “It is also to this end that the Third Congress of Soviets insists upon putting an end to the barbarous policy of the bourgeois civilization which enables the exploiters of a few chosen nations to enslave hundreds of millions of the working population of Asia, of the colonies, and of small countries generally” (Ibid., art. 1 (5)) 253 “The Third Congress of Soviets hails the policy of the Council of People’s Commissars in proclaiming the full independence of Finland, in withdrawing troops from Persia, and in proclaiming the right of Armenia to self-determination” (Ibid., art. 1 (6)). 254 Para uma apresentação geral, John Hazard, “The Soviet Constitution: An Introduction”, pp. 34-37. No proémio desta Constituição faz-se referências a aspectos da acção externa do Estado, nomeadamente quando se diz a abrir que “Here, in the camp of socialism: reciprocal confidence and peace, national liberty and equality, the pacific co-existence and fratemal collaboration of peoples” (‘The Constitution of the USSR [31 January 1924]’, disponível em http://mailstar.net/ ussr1924.html, acesso a 7 de Agosto de 2013). 255 Ibid., Preamble. 256 A respeito deste novo período, Robert English, “Old Thinking and New: Khruschev and Gorbachov” in: Abott Gleason (ed.), A Companion to Russian History, Oxford, Blackwell, 2007, pp. 429-450.

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nacional257 seguidas pelo principal líder soviético do período da II Guerra e do início da Guerra Fria258, fê-lo de forma abrangente, como se de um programa ou de uma estratégia se tratasse259. Neste sentido, o artigo 28 sublinha a prossecução de uma política “leninista”260 de paz e a defesa do reforço da segurança das nações e a uma cooperação internacional abrangente261, mas desce ao pormenor quando destaca que o objectivo da política externa do país destina-se a garantir condições favoráveis para a construção do comunismo na URSS, consolidar as posições do socialismo global, apoiar a luta dos povos pela libertação nacional e progresso social, prevenir guerras de agressão e atingir o completo desarmamento universal e de forma consistente implementar o princípio da coexistência pacífica dos Estados dos diferentes sistemas sociais262, proibindo-se, 257

Para uma apresentação representativa deste período, Serge Krylov, “Les notions principales du droit des gens (la doctrine soviétique du droit international)”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 70, 1948, pp. 407-476, e, para um enquadramento geral, Richard Erickson, International Law and the Revolutionary State. A Case Study of the Soviet Union and Customary International Law, Dobbs Ferry, NY/Leiden, Oceana/Sijthoff, 1972, passim. 258 Apesar de a doutrina insistir na existência de um hiato estalinista no que diz respeito à sua doutrina do Direito Internacional (por exemplo, Victor Karpov, “The Soviet Concept of Peaceful Coexistente and Its Implications for International Law” in: Hans Baade (ed.), The Soviet Impact on International Law, Dobbs Ferry, NY, Oceana, 1965, p. 14, dizia que “from its very inception the Soviet state proclaimed peaceful coexistence as the basic principle of its foreign policy”), na verdade, como sustenta Warren Lerner, “The Historical Origins of the Soviet Doctrine of Peaceful Coexistence” in: Ibid., pp. 21-26, este princípio sempre teve uma relação tensa com o princípio oposto da “Revolução Mundial”, e como defende Leon Lipson, “Peaceful Coexistence” in: Ibid., pp. 27-37, a sua utilização instrumental foi evidente durante a História da União Soviética. 259 Para apresentações gerais, Christopher Osakwe, “The Theories and Realities of Modern Soviet Constitutional Law: An Analysis of the 1977 USSR Constitution”, University of Pennsylvania Law Review, v. 127, n. 5, 1979, pp. 1382-1384, e Igor Kavass & Gary Christian, “The 1977 Soviet Constitution: A Historical Comparison”, pp. 533-534. 260 Não deixava ser significativa a menção, já que associada à representação de algum corte com o período estalinista. Ver a respeito, Christopher Osakwe, “The Theories and Realities of Modern Soviet Constitutional Law: An Analysis of the 1977 USSR Constitution”, p. 1352 (“Even though Stalin died in 1953, the constitution that bore his name continued to guide the development of the Soviet state for the next twenty-four years. While accepting the basic premise of the 1936 Soviet constitution, however, the post Stalin Soviet rulers soon began the process of political exorcism that was intended to purge the 1936 constitution of all of the undesirable relics of the cult of Stalin’s personality”). 261 “The USSR steadfastly pursues a Leninist policy of peace and stands for strengthening of the security of nations and broad international co-operation” (‘Constitution of the USSR of 7 October 1977’, art. 28). 262 “The foreign policy of the USSR is aimed at ensuring international conditions favourable for building communism in the USSR, safeguarding the state interests of the Soviet Union, consolidating the positions of world socialism, supporting the struggle of peoples for national liberation and social progress, preventing wars of aggression, achieving universal and complete disarmament, and consistently implementing the principle of the peaceful coexistence of states with different social systems” (Ibid.)

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a este propósito, a propaganda de guerra263. As formulações, como se pode facilmente antecipar, são largamente tributárias de desenvolvimentos políticos264 e doutrinários soviéticos265 que, nessa altura, já estavam bem sedimentados nas práticas internacionais do país266 e que, em certa medida, estenderam a sua influência sobre outras paragens e não só no mundo socialista267. Os princípios explicitados no artigo seguinte foram: a igualdade soberana; renúncia mútua do uso ou ameaça da força; a inviolabilidade de fronteiras; a integridade territorial dos Estados; a solução pacífica de controvérsias; a não-intervenção nos assuntos internos; o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; a igualdade de direitos entre os Estados e o seu direito de decidir o seu próprio destino; a cooperação entre os Estados e o cumprimento de boa-fé das obrigações resultantes dos princípios geralmente reconhecidos e das regras do Direito Internacional e dos tratados internacionais assinados pela URSS268. Por fim, essa lei fundamental consagrava orientações relativas ao espaço de integração do país do leste europeu, definida em termos ideológicos, ao invés de político-geográficos. Menciona-se, a propósito, a pertença da URSS ao sistema mundial socialista e a uma Comunidade Socialista e neste âmbito à promoção da amizade, cooperação, assistência mútua em relação a outros países socialistas na base do internacionalismo socialista e à sua participação na integração económica socialista e na divisão internacional socialista do trabalho269. 263

“In the USSR war propaganda is banned” (Ibid.). Neste sentido, Igor Kavass & Gary Christian, “The 1977 Soviet Constitution: A Historical Comparison”, pp. 533-534, chamando a atenção para os discursos de Nikita Kruschev e para acontecimentos coevos à adopção da Constituição. 265 Para uma apresentação representativa deste período e do seu proponente mais influente, Grigory Tunkin, “Co-Existence and International Law”, Recueil des Cours de l’Acádemie de Droit International, v. 95, 1959, pp. 1-81, bem como ainda Victor Karpov, “The Soviet Concept of Peaceful Coexistence and Its Implications for International Law”, pp. 14-20. 266 Conforme destaca Christopher Osakwe, “The Theories and Realities of Modern Soviet Constitutional Law: An Analysis of the 1977 USSR Constitution”, p. 1383, “these provisions are more a declaration that established policies rise to a constitutional level, rather than a statement of new guiding principles”. 267 Ver, por exemplo, os textos compilados por Hans Baade (ed.), The Soviet Impact on International Law, passim, e John Quigley, Soviet Legal Innovation and the Law of the Western World, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2007, Parte III. 268 “The USSR’s relations with other states are based on observance of the following principles: sovereign equality; mutual renunciation of the use or threat of force; inviolability of frontiers; territorial integrity of states; peaceful settlement of disputes; non-intervention in internal affairs; respect for human rights and fundamental freedoms; the equal rights of peoples and their right to decide their own destiny; co-operation among states; and fulfilment in good faith of obligations arising from the generally recognised principles and rules of international law, and from the international treaties signed by the USSR” (‘Constitution of the USSR of 7 October 1977’, art. 29). 269 “The USSR, as part of the world system of socialism and of the socialist community, promotes and strengthens friendship, co-operation, and comradely mutual assistance with other socialist countries on the basis of the principle of socialist internationalism, and takes an active part in socialist economic integration and the socialist international division of labour” (Ibid., art. 30). 264

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4.2 – Constitucionalismo Africano Pós-Colonial e Política Externa: Promoção da Independência Política, Não-Alinhamento Internacional e Unidade Continental As influências socialistas não deixaram de se fazer sentir em África270, mormente em países saídos de processos de libertação nacional não-consensuais271, embora sofrendo, no caso, alguma adaptação à realidade e aos interesses locais. Neste sentido, por exemplo272, a primeira Constituição da República da Guiné (Conakry) de 1958273, país onde se localizou a sede política e as principais bases militares do movimento de libertação nacional274, para além da cláusula da obediência ao Direito Internacional275, de regras de divisão de poderes em matéria de tratados276, contava com um artigo, prevendo a possibilidade de transferência de poderes para a realização da unidade africana277. Os princípios de condução da política externa e os relativos às relações internacionais são arrolados na parte preambular do documento constitutivo, relacionando-se à adesão à Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal dos Direitos Humanos278, à realização da unidade africana279 e até dos “Esta270

No geral, ver Ziyad Motala, “An Evaluation of the Constitutions and the Influence of Soviet Constitutional Law on Afro-Marxist Countries: Has it Provided for a Viable Model of Government for African Countries?”, Capital University Law Review, v. 19, 1990, pp. 187-210, e, em especial, o estudo de Maurice Kamto, Pouvoir et Droit en Afrique Noire. Essai sur les fondements du constitutionnalism dans les Etats d’Afrique noire francophone, Paris, LGDJ, 1987, passim. 271 Especificamente, Georges Fischer, “L’indépendance de la Guinée et les accords franco-guinéens”, Annuaire Français de Droit International,v. 4, 1958, pp. 711-722. 272 Para o caso concreto, cf. John Hazard, “Guinea’s Non-Capitalist Ways”, Columbia Journal of Transnational Law, v. 5, n. 2, 1966, pp. 231-262. 273 Ver ‘Constitution de la Repúblique de Guiné de 10 Novembre 1958’, disponível em http:// mjp.univ-perp.fr/constit/gn1958.htm, acesso a 23 de Julho de 2013. 274 Seguir, por exemplo, José Vicente Lopes, Cabo Verde, Os Bastidores da Independência, 2. ed., Praia, Spleen, 2002, cap. 14. 275 “La République de Guinée se conforme aux règles du droit international” (‘Constitution de la Repúblique de Guiné de 10 Novembre 1958’, art. 31). 276 Estipula a Constituição que “Sous réserve des dispositions de l’article 33, le président de la République négocie les traités” (Ibid, art. 32), prevendo o artigo 33 que “Les traités relatifs à l’organisation internationale, les traités de commerce, les traités de paix, les traités qui engagent les finances de l’État, ceux qui sont relatifs à des personnes, ceux qui modifient des dispositions de nature législative ainsi que ceux qui comportent cession, échange, adjonction de territoire, ne peuvent être ratifiés qu’n vertu d’une loi. Ils ne prennent effet qu’après avoir été ratifiés” (Ibid.). 277 De acordo com disposição constitucional, “La République peut conclure avec tout État africain des accords d’association ou de communauté, comprenant abandon partiel ou total de souveraineté en vue de réaliser l’unité africaine” (Ibid., art. 34). 278 “L’Etat de Guinée apporte son adhésion totale à la Charte des Nations Unies et à la Déclaration Universelle des Droits de l’Homme” (Ibid., Preâmbulo, para. 2) 279 “Il affirme sa volonté de tout mettre en oeuvre pour réaliser et consolider l’unité dans l’indépendance de la Patrie Africaine” (Ibid., Preâmbulo, para. 4).

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dos Unidos de África”280 e ao combate ao chauvinismo que lhe é contrária281, ao desejo de manter relações de amizade com todos os povos com base nos princípios da igualdade, do interesse recíproco e do respeito mútuo pela soberania nacional e pela integridade territorial282. Com a célebre Constituição da Guiné-Bissau (de Medina do Boé)283, no entanto, é que se observou a ligação mais forte ao nível político e, em decorrência disso, em relação a opções do foro constitucional. Desde logo, porque essa lei fundamental tinha como um dos seus princípios, para além do anticolonialismo e do anti-imperialismo, a “(…) luta pela libertação total, pela unidade da Guiné-Bissau e do Arquipelágo de Cabo Verde (…)”284, tendo o Estado, a partir dali como “(…) objectivo a liberdade total da Guiné e Cabo Verde do colonialismo (…)”285. Para além disso, dirigindo os seus objectivos em matéria de política externa à definição de uma relação especial com o continente286, com os combatentes de libertação nacional287 e amigável com todos os outros Estados288. Do ponto de vista da divisão dos foreign affairs powers, explicitamente a sua condução cabia ao Presidente do Conselho de Estado289 e a este deferia-se a “ratificação de tratados e convenções internacionais”290 e 280 “Il soutient sans réserve toute politique tendant à la création des États-Unis d’Afrique, à la sauvegarde, à la consolidation de la paix dans le Monde” (Ibid., Preâmbulo, para. 6). 281 “Pour ce faire, il combattra toutes tendances et toutes manifestations de chauvinisme qu’il considère comme de sérieux obstacles à la réalisation de cet objectif” (Ibid., Preâmbulo, para. 4). 282 “Il exprime son désir de nouer des liens d’amitié avec tous les Peuples sur la base des principes d’égalité, d’intérêts réciproques et de respect mutuel de la Souveraineté Nationale et de l’intégrité Territoriale” (Ibid., Preâmbulo, para. 5). 283 Ver ‘Constituição da República da Guiné-Bissau [24 de Setembro de 1973]’, Boletim Oficial da República da Guiné-Bissau, n. 1, pp. 4-6, e comentários gerais em Emílio Kafft Kosta, O Constitucionalismo Guineense e os Limites Materiais de Revisão, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1997, p. 185 e ss; Filipe Falcão Oliveira, Direito Público Guineense, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 112-115, e António Duarte Silva, Invenção e Construção da Guiné-Bissau. Administração Colonial/Nacionalismo/Constitucionalismo, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 183-193. 284 ‘Constituição da República da Guiné-Bissau [24 de Setembro de 1973]’, art. 1º. 285 Ibid., art. 3º. 286 Definindo que “O Estado da Guiné-Bissau é parte integrante da África e luta pela libertação do continente africano do colonialismo, do racismo e do neo-colonialismo, pela unidade dos povos africanos no seu conjunto ou por regiões do continente, na base do respeito da Liberdade, da Dignidade e do direito ao Progresso político, económico e cultural desses povos” (‘Constituição da República da Guiné-Bissau [24 de Setembro de 1973]’, art. 9º). Ver igualmente Filipe Falcão Oliveira, Direito Público Guineense, p. 114, para quem “o vector ideológico da Constituição era bastante pronunciado, compreendendo o pan-africanismo e recorrendo a expressões acentuadamente ideológicas (…)”. 287 “O Estado da Guiné-Bissau sente-se estreitamente ligado a todos os combatentes pela libertação nacional em África e no Mundo inteiro” (‘Constituição da República da Guiné-Bissau [24 de Setembro de 1973]’, art. 10º). 288 “Ele considera como seu dever (…) o estabelecimento de relações iguais em direitos com todos os Estados na base do Direito Internacional” (Ibid.). 289 Ibid., art. 39. 290 Ibid., art. 40 (3).

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o poder de “declarar a guerra e fazer a paz”291, muito embora no geral poderia haver intervenção da Assembleia ao abrigo do seu estatuto de “órgão supremo do Poder do Estado”292 e do seu poder geral de deliberar “sobre questões fundamentais da política interna e externa do Estado”293. Num momento próximo da data da emancipação política de Cabo Verde e da aprovação da sua primeira constituição, a Constituição Algerina de 1976294, outro país que absorveu alguma influência socialista295, referia-se a várias directrizes de política externa296, as quais integram, como é natural, as práticas seguidas pelo país297. Os princípios gerais de sua condução seriam o da igualdade, do interesse mútuo e da não-ingerência nos assuntos internos298, com uma concomitante adesão aos princípios da Carta das Nações Unidas, da Organização de Unidade Africana e da Liga Árabe299. Adopta, complemen291

Ibid., art. 40 (4). Ibid., art. 28. 293 Ibid., art. 29. No dizer de António Duarte Silva, Invenção e Construção da Guiné-Bissau. Administração Colonial/Nacionalismo/Constitucionalismo, p. 186, “pode-se dizer, em síntese, que existia uma presunção de competência, embora a ANP apenas devesse deliberar sobre questões fundamentais da política interna e externa”. 294 É verdade que a Constituição Algerina de 1963 (disponível no sítio http://www.conseilconstitutionnel.dz/indexFR.htm, acesso a 20 de Julho de 2013) já continha algumas formulações neste domínio. Assim, no seu artigo 10 fazia referência à “l’elimination de tout vestige de colonialism” e à “paix dans le monde” como objectivos fundamentais da República, para além de conter preceito de acordo com o qual “La République donne son adhésion à la Declaration universelle des droits de l’Homme. Coinvancue de la necessité de la cooperation internationale, elle donnera son adhésion a toute organisation internationale répondant aux aspirations du peuple algérien”(art. 11) e de, no Preâmbulo, dizer-se que “La révolution se concretisé par: une politique internationale, basé sur l’independence nationale, la cooperation internationale, la lutte anti-imperialiste et le soutien effective aux mouvements en lutte pour l’independence ou la libération de leur pays”. Cf. para comentários, L. Fougère, “La Constitution Algérienne”, Annuaire de l’Afrique du Nord, v. 2, 1963, pp. 9-21. 295 No geral, John Hazard, “The Residue of Marxist Influence in Algeria”, Columbia Journal of Transnational Law, v. 9, 1970, pp. 194-225, e id., “Socialism and Law in Algeria”, Review of Socialist Law, v. 7, n. 3, 1981, pp. 243-260. 296 Ver o texto em http://www.conseil-constitutionnel.dz/Constituion1976_6.htm, acesso a 19 de Maio de 2013, e comentários gerais em Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, Annuaire Français de Droit International, v. 23, 1977, pp. 75-94, que sumariza o impacto destas normas no todo constitucional ao salientar que “l’une des principales originalités de la Constitution algérienne de 1976, par rapport a celle de 1963 autant que par référence à celle de très nombreux autres pays, réside dans la place donnée aux principes de politique étrangère (…)”(p. 85). 297 Cf. Nicole Grimaud, La politique exterieure de l’Algérie: 1962-1978, Paris, Khartala, 1984. 298 “Le renforcement de la coopération internationale et le développement de relations amicales entre les Etats sur la base de l’égalité, de l’intérêt mutuel et de la non ingérence dans les affaires intérieures, sont des principes de base de la politique nationale” (‘Constitution de 1976’, art. 85). 299 “La République algérienne souscrit aux principes et objectifs figurant dans les Chartes des Nations Unies, de l’Organisation de l’Unité Africaine et de la Ligue Arabe” (Ibid., art. 86). Diz o comentário clássico de Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, p. 84, “c’est lá une affirmation du respect des trois Chartes, lesquelles situent les trois sphères auxquelles l’Algérie entend appartenir simultanément et dans lesquelles elle veut inscrire toute sa politique extérieure”. 292

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tarmente, os princípios e objectivos do não-alinhamento, da paz, da não-ingerência e da coexistência pacífica entre os povos300, renunciando, nos termos das normas internacionais aplicáveis, à guerra e optando pela solução pacífica de controvérsias301. Sem deixar de apresentar uma forte formulação da sua soberania e independência302 (dirigida, sobretudo, para Norte, e para a definição decisiva das relações com a França303), a Constituição orienta o sentido da política externa em certas matérias relacionadas ao reforço da Unidade Árabe e Magrebina304 e Africana305, e para a luta contra o colonialismo, o neocolonialismo, o imperialismo e a discriminação racial306, bem como a solidariedade em relação ao combate dos povos africanos, asiáticos e latino-americanos pela libertação política e económica e pelo seu direito à autodeterminação e independência307. Por fim, a Constituição proíbe o “abandono” de qualquer parte 300

“Fidèle aux principes et aux buts du non-alignement, l’Algérie milite pour la paix, la coexistence pacifique et la non-ingérence dans les affaires intérieures des Etats” (‘Constitution de 1976’, art. 90). 301 “Conformément aux Chartes des Nations Unies, de l’Organisation de l’Unité Africaine et de la Ligue Arabe, la République algérienne se défend de recourir à la guerre pour porter atteinte à la souveraineté légitime et à la liberté d’autres peuples. Elle s’efforce de régler les différends internationaux par des moyens pacifiques” (Ibid., art. 89). 302 Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, p. 86, denomina-o de um “culte de l’independence nationale”. 303 Nicole Grimaud, La politique exterieure de l’Algérie: 1962-1978, passim. 304 “L’unité des peuples arabes est inscrite dans la communauté de destin de ces peuples. Là ou les conditions sont mûres pour une unité fondée sur la libération des masses populaires, l’Algérie s’engage à promouvoir les formules d’union, d’intégration ou de fusion susceptibles de répondre pleinement aux aspirations légitimes et profondes des peuples arabes. L’unité des peuples maghrébins, conçue au profit des masses populaires, s’identifie à une option fondamentale de la Révolution algérienne” ((‘Constitution de 1976’, art. 87). 305 “La réalisation des objectifs de l’Organisation de l’Unité Africaine, la promotion de l’unité entre les peuples du continent, constituent un impératif historique et s’inscrivent comme une constante de la politique de la Révolution Algérienne” (Ibid., art. 88). 306 “La lutte contre le colonialisme, le néo-colonialisme, l’impérialisme et la discrimination raciale, constitue un axe fondamental de la Révolution” (Ibid., art. 92), aspectos denominados de “weltanschaung” da Constituição Algerina (Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, p. 88). 307 “La solidarité de l’Algérie avec tous les peuples d’Afrique, d’Asie et d’Amérique Latine dans leur combat pour la libération politique et économique, leur droit à l’autodétermination et à l’indépendance , est une dimension essentielle de la politique nationale” ((‘Constitution de 1976’, art. 92). Mais uma vez, usamos Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, p. 90, que interpreta a formulação nos seguintes termos: “L’Algèrie nourrit en effet une conscience aiguë que la colonisation algèrienne ne représentait dans la chaine internationale de la servitude, qu’un maillon dont la rupture appelait celle des autres anneaux. En tout cas, la lutte pour l’independence de l’Algérie a, par expérience, rendu les Algériens particulièrement attentifs à la grande rumeur des peuples asservis. C’est porquoi tout naturellement l’Algérie indépendant n’a ménagé aucun effort pour venir en aide, matériellement, politiquement et diplomatiquement, aux movements de libération nationale”.

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do território nacional308. Como se poderá ver, as semelhanças com a Constituição de 1980 são evidentes. V. A Versão Originária da Constituição da República Portuguesa de 1976 Como muitas outras constituições de matriz ocidental, os efeitos plenos e específicos da Constituição Portuguesa de 1976 sentir-se-ão mais tarde, aquando da elaboração da Constituição de 1992. Contudo, por um lado, em função de tradição jurídica que não foi abandonada no período imediatamente a seguir à independência, e, por outro, pela própria textura híbrida da versão originária dessa lei fundamental lusitana é possível encontrar pontes tanto com a Constituição de 1980, como com a de 1992309. É verdade que a Constituição de Portugal, aprovada em 1976, já continha as sementes da amizade ao Direito Internacional310, que mais tarde se vão consolidando, e o gérmen das soluções próprias de uma Constituição Internacional de um Estado de Direito Democrático, a forma, mais tarde, assumida plenamente pela República Portuguesa311. No início, porém, o Estado era classificado como um “Estado Democrático (…) que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação das condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras”312. A Lei Fundamental portuguesa caracterizava-se por ter uma dimensão semi-revolucionária313, ainda que de teor pacífico314, institucionalmente representada pela existência do Conselho da Revolução, que 308 “En aucun cas, il ne peut être abandonné une partie du territoire national” ((‘Constitution de 1976’, art. 91), um princípio que se atribui, no caso concreto, ao diferendo fronteiriço com o Marrocos (Mohammed Bedjaoui, “Aspects internationaux de la Constitution algèrienne”, p. 77). 309 ‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, Diário da República, I Série, n. 86, 10 de Abril de 1976, pp. 737-775; para comentários a esta versão, cf. Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1978, que, no entanto, em boa parte das questões, não faz uma avaliação positiva do texto constitucional na sua versão de 1976. Apesar do que se se permitir considerar sobre este olhar, o facto é que, dentro do quadro deste artigo, a sua leitura é relevante para mostrar que certos analistas observaram claramente que a origem de várias das formulações sobre a política externa vertidas para a lei fundamental não se encontrava propriamente no constitucionalismo ocidental, fosse liberal ou autocrático. 310 Por exemplo, ver José Joaquim Gomes Canotilho, “Offenheit vor dem Völkerrecht und Völkerrechtsfreundlichkeit des portugiesischen Rechts”, Archiv des Völkerrechts, v. 34, n. 1, 1996, pp. 47-71. 311 Usámos aqui expressão emprestada de Maria Lúcia Amaral, A forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2005. 312 ‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 2º. 313 Como diz Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, p. 497, “O sentido inicial da CRP ficou profundamente marcado pela proximidade da Revolução de 1974, com todas as consequências que daí puderam derivar, segundo o espírito revolucionário que assim perduraria”. 314 Nos termos da Constituição, está deveria ocorrer de forma pacífica: “A aliança entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos e organizações democráticos assegura o desenvolvimento pacífico do processo revolucionário” (Ibid, art. 10 (1)).

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assumia poderes importantes, designadamente em matéria de política externa315, e garantia uma posição privilegiada às forças armadas316. Depois de se referir a aspectos fundacionais e simbólicos do Estado, nomeadamente com a adopção de uma fórmula de auto-invocação soberana317, de um preceito a definir o território318 e outro a nacionalidade319 e identificar os símbolos nacionais320, a versão originária da Constituição Portuguesa, no artigo 7º, integrava um conjunto de princípios, visões e directrizes em matéria de política externa e de relações internacionais321. Os princípios e directrizes são enunciados no número 1, abarcando a independência nacional, o direito dos povos à auto-determinação e à independência, a solução pacífica dos conflitos internacionais, da não-ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os povos para a emancipação e o progresso da humanidade322, que, no fundo, se justificam por motivos contextuais (por 315

Trataremos desses poderes com um pouco mais de pormenor infra. Assim, de acordo com a versão originária da Constituição da República, “O Movimento das Forças Armadas, como garante das conquistas democráticas e do processo revolucionária, participa, em aliança com o povo, no exercício da soberania, nos termos da Constituição” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 3 (2). Para uma contextualização, José Medeiros Ferreira, “Um corpo perante o Estado: Militares e Instituições Políticas” in: Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal. O Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1989, pp. 427-451, e Vasco Rato, “O Movimento das Forças Armadas e a Democracia Portuguesa, 1974-1982”, Nação e Defesa, 2ª Série, n. 94, 2000, pp. 123-162; para o tratamento constitucional, Francisco Lucas Pires, “As Forças Armadas e a Constituição” in: Estudos sobre a Constituição, Lisboa, Petrony, 1977, v. I, pp. 321-331, que assim sumariza de: “As Forças Armadas detêm, assim, uma espécie de poder moderador dissimulado, capaz defender a Constituição da excessiva abertura ou confiança nos destinatários de certas das suas normas, não correspondendo, por isso, o seu poder, como acontece com os restantes poderes constitucionais, a um órgão específico de suporte”, e Diogo Freitas do Amaral, “A Constituição e as Forças Armadas” in: Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal. O Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, pp. 647-661, cobrindo, no entanto, os períodos posteriores à primeira versão da Constituição da República Portuguesa. 317 “Portugal é uma República soberana (…)” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 1º). 318 Aponta-se que “1. Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. 2. O Estado não aliena qualquer parte do território português ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce, sem prejuízo de rectificação de fronteiras. 3. A lei define a extensão e o limite das águas territoriais e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos. 4. O território de Macau, sob administração portuguesa, regese por estatuto adequado à sua situação especial” (Ibid., art. 5º). Para comentários, seguir Jorge Miranda, “O Território” in: Estudos sobre a Constituição, v. II, pp. 73-111. 319 “São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional”, é a fórmula (Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 4º). 320 Aponta-se que “1. A Bandeira Nacional é a adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. 2. O Hino Nacional é A Portuguesa” (Ibid., art. 11). 321 No geral, seguir António Costa, “A Constituição e a Política Externa” in: Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal. O Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, pp. 675-682. 322 A redacção completa é “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do direito dos povos à autodeterminação e à independência, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nas assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da Humanidade” (Ibid., art. 7 (1)). 316

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exemplo, o direito dos povos à auto-determinação323) ou pela integração de desenvolvimentos jurídicos (da Carta das Nações Unidas) ou políticos (Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional Relativos a Relações Amigáveis e Cooperação entre Estados Conforme a Carta das Nações Unidas de 1970324). Mais estritamente, no número 3, definem-se eixos concretos da política externa portuguesa e as posições constitucionalmente conformes, ao dizer-se que “Portugal reconhece o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo, e mantém laços especiais de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa” 325. Por sua vez, apresenta-se a visão de mundo da República Portuguesa326, associando-a à “abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão, o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”327. Ainda antes da inserção eu323

A este respeito, seguir Miguel Galvão Teles & Paulo Canelas de Castro, “Portugal and the Right of People’s to Self-Determination”, Archiv des Völkerrechts, v. 34, n. 1, 1996, pp. 2-46. 324 ‘Declaration on Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and Co-operation among States in accordance with the Charter of the United Nations’, AG/R/2625 (XXV), 24/10/70. Existe um comentário fundamental do jurista brasileiro António Augusto Cançado Trindade, Princípios do direito internacional contemporâneo. Brasília, Editora da UNB, 1981. 325 ‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 7 (3). Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 21, dizia, no quadro das suas críticas, que a “não-ingerência nos assuntos internos dos outros Estados não se concilia com o reconhecimento do direito dos povos à insurreição” e que “os países de língua portuguesa deveriam merecer do legislador constitucional um pouco mais do que duas linhas pouco expressivas e quase perdidas num número dominado pelo reconhecimento do direito à insurreição”. No entanto, contrapõe, com razão, António Costa, “A Constituição e a Política Externa”, p. 676, que “a sua inclusão [fala de todo o dispositivo] no texto constitucional não é porém desplicenda. (…) O texto denuncia aqui claramente a função ‘fundacional’ do acto constitucional, procedendo externamente à declaração solene da posição de Portugal no contexto internacional e, internamente, traduzindo a sua preocupação de desde logo proceder à vinculação finalistica do novo poder político incumbido de redefinir e conduzir a nova política externa portuguesa decorrente da ruptura com o quadro constitucional de inserção de Portugal no Mundo”. 326 A este respeito, ainda que cobrindo versões mais recentes da Constituição da República Portuguesa, vide Paulo Canelas de Castro, “Portugal’s World Outlook in the Constitution of 1976”, Boletím da Faculdade de Direito de Coimbra, v. 71, 1995, pp. 469-473, e, no período em que ocorreu a sua aprovação e vigência, o caústico comentário de Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 21, sustentando que a afirmação constitucional (…) “afigura-se inadequada. Porque os textos legais e, por maioria de razão, os de ordem constitucional, não se destinam à formulação de votos generosos, mas a enfrentar realidades; e a defender, através delas, os interesses da nação”. 327 ‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 7 (2). Mais uma vez, é de se notar a reacção provocada em Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 21, para quem “Quanto à dissolução dos blocos militares que este artigo 7º também preconiza, parece incompatível com a posição assumida e mantida por Portugal num desses mesmos blocos – a NATO ou OTAN. E como, na vigência da Constituição de 1976, Portugal continua a ser membro daquele bloco político-militar, daí termos que extrair duas conclusões. Ou o nº

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ropeia de Portugal, a referência aos países de língua portuguesa é o único eixo especificamente referido na Constituição para a inserção privilegiada do Estado Português. E, por motivos também naturais, dá-se especial destaque a Macau e a Timor Leste, embora por razões diferentes, respectivamente ligadas ao estatuto administrativo especial da cidade328 e à situação particular ou, como dissseram alguns, “dramática”329, do segundo território330, submetido a ocupação militar e anexação ilícita pela Indonésia331. De sua parte, os foreign affairs powers são divididos por vários órgãos de soberania previstos na Constituição332, o Presidente da República, a Assembleia 2 do artigo 7º da Constituição não reflecte os interesses e o sentir da comunidade portuguesa; ou esta comunidade se acha integrada na NATO contra o seu sentir e contra os seus interesses. Mais ainda, todos os actos jurídicos, quer legislativos quer administrativos, respeitante à nossa participação na NATO poderão ser arguidos de inconstitucionalidade”. 328 Previa-se, no mesmo artigo sobre o território, que “o território de Macau, sob administração portuguesa, rege-se pelo estatuto adequado à sua situação especial” (Ibid., art. 5 (4)), que se completava com referências adicionais no artigo 306, de acordo com o qual “1. O estatuto do território de Macau, constante da Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro, contínua em vigor; 2. Mediante proposta da Assembleia Legislativa de Macau, e precedendo parecer do Conselho da Revolução, a Assembleia da República pode aprovar alterações ao estatuto ou a sua substituição; 3. No caso de a proposta ser aprovada com modificações, o Presidente da República não promulgará o decreto sem a Assembleia Legislativa de Macau se pronunciar favoravelmente” (Ibid.). Jorge Miranda, “O Território”, pp. 89-90, também discute esta questão, contendo reflexões adicionais. 329 Ibid., p. 91. 330 Assim, na parte das disposições transitórias, a Constituição estabelecia que “1. Portugal continua vinculado às responsabilidades que lhe incumbem, de harmonia com o direito internacional, de promover e garantir o direito à independência de Timor Leste. 2. Compete ao Presidente da República, assistido pelo Conselho da Revolução, e ao Governo praticar todos os actos necessários à realização dos objectivos expressos no número anterior” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 307). 331 Seguir Roger Clark, “The ‘Decolonization’ of East Timor and the United Nations Norms on Self-Determination and Aggression”, Yale Journal of World Public Order, v. 7, n. 1, 1980, pp. 2-44; Paula Escarameia, Formation of Concepts in International Law. Subsumption under Self-Determination in the Case of East Timor, Lisboa, Fundação Oriente/Centro de Estudos Orientais, 1993; Richard Burchill, “The ICJ Decision in the Case Concerning East Timor: The Use of Force Validated?”, Journal of Conflict & Security Law, v. 2, n.1,1997, pp. 1-22; Jani Purnawanty, “Various Perspectives in Understanding the East Timor Crisis”, Temple International Law & Comparative Law Journal, v. 14, n. 1, 2000, pp. 61-73; Roger Clark, “East Timor, Indonesia, and the International Community”, Temple International Law & Comparative Law Journal, v. 14, n.1, 2000, pp. 75-87; Thomas Grant, “East Timor, the U.N. System, and Enforcing Non-Recognition in International Law”, Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 33, n. 2, 2000, pp. 273-210, e, por fim, os textos compilados em Jorge Miranda (org.), Timor e o Direito, Lisboa, AAFDL, 2000. 332 Em específico sobre esta questão, Jorge Miranda, “As competências constitucionais em matéria de política externa”, Nação e Defesa, a. 5, n. 14, 1980, pp. 35-42, e António Costa, “A Constituição e a Política Externa”, pp. 677-679, que sumariza a lógica do sistema (“Podemos dizer que a Constituição de 1976 consagra um modelo institucional de definição e condução da política externa assente na interdependência das competências distribuídas pelos três órgãos políticos de soberania [a análise é feita depois da extinção do Conselho da Revolução], sem prejuízo da competência genérica atribuída ao Governo como responsável pela condução da política geral do país”).

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da República, o Conselho da Revolução e o Governo333. A condução da política externa cabe ao Governo334, mas o Presidente é considerado representante da República Portuguesa335, tendo, ademais, competência específica de nomear embaixadores e enviados extraordinários e acreditar representantes diplomáticos estrangeiros, claro está mediante iniciativa e proposta do Governo336. No fundo, tanto nesta, como em outras dimensões deste domínio, impera uma intenção constitucional de coordenação e colaboração entre esses dois poderes do Estado337. O mesmo ocorre em sede de declaração de guerra338, uma vez que, não obstante a Constituição não ser clara, haveria iniciativa governamental, no quadro dos seus poderes gerais de condução da política do país339, mas a declaração seria feita pelo Presidente da República340. No entanto, com uma diferença notável em relação ao sistema actualmente em vigor: a entidade habilitada para a autorizar não era o Parlamento, mas o Conselho da Revolução341. A questão dos tratados é mais complexa e contém maiores particularismos. Parte-se de uma distinção entre acordos e tratados. A iniciativa cabe ao 333 “São órgãos de soberania o Presidente da Republica, o Conselho da Revolução, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 113), é a expressão. Comenta o dispositivo Jorge Miranda, “Art. 113 (Órgãos de Soberania)” in: Estudos sobre a Constituição, v. I, pp. 380-384. 334 Decorre da sua natureza de órgão executivo, nos termos do artigo 185 (“O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública”), a que acresce outras fórmulas usadas ao longo do texto constitucional, designadamente o artigo 203 (“1. Compete ao Conselho de Ministros: a) Definir as linhas gerais da política governamental, bem as de sua execução”) ou o 202 (“Compete ao governo, no exercício de funções administrativas: (…) d) dirigir os serviços e a actividade directa e indirecta do Estado e superintender na administração autónoma”) ("Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]"). 335 “O Presidente da República representa a República Portuguesa (…)” é a redacção (Ibid., art. 123). 336 Previa o artigo 138 a), “Compete ao Presidente da República, nas relações internacionais nomear os embaixadores e os enviados extraordinários, sob proposta do Governo, e acreditar os representantes diplomáticos estrangeiros” (Ibid.). 337 Ver Jorge Miranda, “As competências constitucionais em matéria de política externa”, p. 41, (“corolários imediatos do acenado princípio da interdependência dos órgãos de soberania – decorre transparentemente a necessidade de uma concertação prática entre Presidente e Governo no domínio da política externa”). 338 Especificamente sobre esta questão, António Araújo, “Competências constitucionais relativas à Defesa Nacional: as suas implicações no sistema de governo”, pp. 154-166. 339 Ver supra, nota 323. 340 De acordo com o texto constitucional, “Compete ao Presidente da República, nas relações internacionais declarar a guerra em caso de agressão efectiva ou iminente e fazer a paz (…)” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 138 c)). 341 A quem cabia: “Autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e a fazer a paz” (art. 145 (b)). Tratava-se, nos termos usamos por Jorge Miranda, “As competências constitucionais em matéria de política externa”, p. 37, de função exercida como órgão de condicionamento do Presidente.

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Governo em qualquer situação342, porém, consoante o caso, competiria autorização ao próprio Governo343 ou à Assembleia da República, estabelecendo-se uma reserva de tratado em relação a matérias da competência legislativa do Parlamento344. A excepção a este esquema seriam os acordos em matéria militar, cuja aprovação cabia ao Conselho da Revolução345. Por fim, a vinculação internacional é atribuída ao Presidente da República346, embora não aparentemente só recobrisse os tratados e não os acordos347. As normas internacionais são objecto de tratamento no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa348, dividido em dois parágrafos, um referente ao mecanismo de recepção de normas convencionais, e o outro relativo a normas convencionais. No primeiro caso, é automática349, no segundo, condicionada350. Nem uma palavra se diz, no entanto, sobre a posição 342 Conforme dispõe a Lei Fundamental Lusitana, “Compete ao Governo, no exercício de funções políticas (…) negociar e ajustar convenções internacionais”, com esta expressão a ser utilizada para abarcar tanto os tratados, quanto os acordos (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 200 (b)). 343 Nos termos do artigo 200 (c), “Compete ao Governo, no exercício de funções políticas (…) Aprovar os acordos internacionais, bem como os tratados cuja aprovação não seja da competência do Conselho da Revolução ou da Assembleia da República ou que a esta não tenham sido submetidos”. 344 A Constituição está redigida deste modo na parte relevante: “Compete à Assembleia da República: aprovar os tratados que versem matéria de sua competência legislativa exclusiva, os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa e de rectificação de fronteiras e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe” (Ibid., art. 164 (1) (f)). 345 De acordo com o artigo 148 (1) (b), “Na qualidade de órgão político e legislativo em matéria militar, compete ao Conselho da República aprovar tratados ou acordos internacionais que respeitem a assuntos militares”. 346 Prevê-se que “compete ao Presidente da República, nas relações internacionais, ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados” (Ibid., 138 (b)). 347 No dizer de André Gonçalves Pereira, “O Direito Internacional na Constituição de 1976” in: Estudos sobre a Constituição, v. I, p. 46, “(…) tal disposição refere-se apenas aos tratados solenes (…)”. 348 Especificamente sobre esta questão, reservando grande discussão aos aspectos formais e orgânicos, Ibid., pp. 37-47; Nuno Bessa Lopes, A Constituição e o Direito Internacional, Porto, CODECO, 1979, e Paulo Canelas de Castro, “Portugal’s World Outlook in the Constitution of 1976”, pp. 485-543 (desconsiderando-se, para os propósitos estritos deste artigos, os comentários que se estendem para além de 1982 e focam versões subsequentes à originária). 349 “As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 8 (1)), solução generalizadamente aplaudida pela doutrina portuguesa, com a excepção da visão mais soberanista e realista de Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 22, para quem “integrar no direito português as normas e os princípios do direito internacional geral ou comum – passado, presente e futuro – sem qualquer restrição ou dependência de livre aceitação, poderá representar a incorporação no texto constitucional de preceitos incompatíveis com as suas normas fundamentais. Ou até mesmo incompatíveis com a essência da Nação e com a independência portuguesa”. 350 De acordo com o texto fundacional português, “2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 8 (2)).

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hierárquica dessas normas internacionais recebidas no ordenamento jurídico português, seja nas suas relações com a Constituição, seja com as leis ordinárias351. De resto há a notar a intervenção do Conselho da Revolução no quadro da fiscalização da constitucionalidade de normas de tratados352. Os decretos, designadamente os que visassem a aprovação de tratados, deveriam ser enviados concomitantemente ao Presidente da República e ao Conselho da Revolução353, podendo este órgão, no caso de dúvidas, intervir, moto proprio ou a pedido do Chefe de Estado, para fiscalizar preventivamente a constitucionalidade das suas normas354. Cabia ainda fiscalização abstracta sucessiva mediante solicitação do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro Ministro, do Provedor de Justiça, do Procurador Geral da República e, em situações determinadas, das assembleias das regiões autónomas355, cabendo, neste caso, a decisão à Comissão Constitucional356, o órgão que antecedeu ao actual Tribunal Constitucional357. Todas elas podiam 351

Como disse André Gonçalves Pereira, “O Direito Internacional na Constituição de 1976”, p. 40, na sua avaliação do artigo 8º da versão originária, “não contém a Constituição indicação do lugar das convenções internacionais na hierarquia das fontes de direito, não se integrando, assim, no grupo daquelas constituições modernas (…)”. 352 Recorda-se que, “na qualidade de garante do cumprimento da Constituição, compete ao Conselho da Revolução: (…) c) Apreciar a constitucionalidade de quaisquer diplomas publicados e declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do artigo 281” (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, art. 146 (c)). 353 A fórmula é esta: “1. Todos os decretos remetidos ao Presidente da República para serem promulgados como lei ou Decreto-lei ou que consistam na aprovação de tratados ou acordos internacionais serão simultaneamente enviados ao Conselho da Revolução, não podendo ser promulgados antes de passarem cinco dias sobre a sua recepção no Conselho” (Ibid., art. 277 (1)). 354 Essencialmente, ver o número 4 do artigo 277, de acordo com o qual “Deliberada pelo Conselho ou requerida pelo Presidente da República a apreciação da constitucionalidade de um diploma, o Conselho da Revolução terá de se pronunciar no prazo de vinte dias, que poderá ser encurtado pelo Presidente da República, no caso de urgência” (Ibid.). 355 Previa a Lei Fundamental lusitana na sua versão originária que “O Conselho da Revolução aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, precedendo solicitação do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça, do Procurador-Geral da República ou, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 229, das assembleias das regiões autónomas” (Ibid., art. 281 (1)). 356 “Sempre que os tribunais se recusem a aplicar uma norma constante de lei, decreto-lei, decreto regulamentar, decreto regional ou diploma equiparável, com fundamento em inconstitucionalidade, e uma vez esgotados os recursos ordinários que caibam, haverá recurso gratuito, obrigatório quanto ao Ministério Público, e restrito à questão da inconstitucionalidade, para julgamento definitivo do caso concreto da Comissão Constitucional; 2. Haverá também recurso gratuito para a Comissão Constitucional, obrigatório quanto ao Ministério Público, das decisões que apliquem uma norma anteriormente julgada inconstitucional por aquela Comissão; 3. Tratando-se de norma constante de diploma não previsto no n.º 1, os tribunais julgam definitivamente acerca da inconstitucionalidade (Ibid., art. 282 (1)). 357 A composição do Conselho Constitucional, órgão associado ao Conselho da Revolução, estava prevista pelo artigo 283 (“1. Junto do Conselho da Revolução funciona a Comissão Constitucio-

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aplicar-se a normas constantes de tratados358, muito embora nem sempre uma decisão de inconstitucionalidade equivaleria a um impedimento à entrada dessa norma convencional no ordenamento jurídico359. Considerações finais: Linhas gerais da evolução do tratamento constitucional da política externa e as influências sobre a Constituição Cabo-Verdiana de 1980 O tratamento que a política externa e o Direito Internacional receberam ao longo da história constitucional cabo-verdiana é o resultado da absorção de diversas fontes materiais e formais, de matriz política e jurídica. Primeiro, porque o desenvolvimento desta matéria advém de um percurso universal do constitucionalismo de matriz ocidental com a duração de centenas de anos que foi tendencialmente incorporando novas áreas e abordagens, nomeadamente a divisão dos poderes em matéria de política externa, os mecanismos de incorporação de normas internacionais, a adopção de princípios para reger a nal. 2. Compõem a Comissão Constitucional: a) Um membro do Conselho da Revolução, por ele designado, como presidente e com voto de qualidade; b) Quatro juízes, um designado pelo Supremo Tribunal de Justiça e os restantes pelo Conselho Superior da Magistratura, um dos quais juiz dos tribunais da Relação e dois dos tribunais de primeira instância; c) Um cidadão de reconhecido mérito designado pelo Presidente da República; d) Um cidadão de reconhecido mérito designado pela Assembleia da República; e) Dois cidadãos de reconhecido mérito designados pelo Conselho da Revolução, sendo um deles jurista de comprovada competência. 3. Os membros da Comissão Constitucional exercem o cargo por quatro anos, são independentes e inamovíveis e, quando no exercício de funções jurisdicionais, gozam de garantias de imparcialidade e da garantia de irresponsabilidade própria dos juízes”) e as suas competências no artigo 284º (“Compete à Comissão Constitucional: a) Dar obrigatoriamente parecer sobre a constitucionalidade dos diplomas que hajam de ser apreciados pelo Conselho da Revolução, nos termos do artigo 277.º e n.º 1 do artigo 281.º; b) Dar obrigatoriamente parecer sobre a existência de violação das normas constitucionais por omissão, nos termos e para os efeitos do artigo 279º; c) Julgar as questões de inconstitucionalidade que lhe sejam submetidas, nos termos do artigo 282º”); sobre o seu papel e funcionamento a partir de 1974 e transição para o Tribunal Constitucional, Miguel Lobo Antunes, “A Fiscalização da Constitucionalidade das Leis no Primeiro Período Constitucional: a Comissão Constitucional”, Análise Social, v. 20, n. 81-82, 1984, pp. 309-336; José Manuel Cardoso da Costa, “O Tribunal Constitucional Português: a sua Origem Histórica”; Armindo Ribeiro Mendes, “O Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional na Fiscalização da Constitucionalidade das Leis (19761983)” in: Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal. O Sistema Político e Constitucional, 1974-1987, pp. 913-923; 925-940; António Araújo, “A Construção da Justiça Constitucional Portuguesa: o Nascimento do Tribunal Constitucional”, Análise Social, v. 30, n. 134, 1995, pp. 881-946, e André Ventura, “A Comissão Constitucional: História, Memória e Actividade Jurídica. Um Trabalho de Análise Jurisprudencial”, Anuário Português de Direito Constitucional, v. IV, 2004-2005, pp. 187-259. 358 Seria possível imaginar uma fiscalização concreta de uma norma costumeira internacional, porém a expressão “diploma equiparável” utilizada pelo artigo 282 (1) da (‘Constituição da República Portuguesa [10 de Abril de 1976]’, aparentemente abarcava somente as resultantes de um tratado . 359 Havia preceito, de acordo com o qual “A inconstitucionalidade orgânica ou formal de convenções internacionais não impede a aplicação das suas normas na ordem interna portuguesa, salvo se a impedir na ordem interna da outra ou das outras partes” (Ibid., art. 280 (3)).

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política externa do Estado e a divulgar a sua visão sobre as relações internacionais e até para auto-restringir a sua capacidade bélica na esfera internacional. Num processo que caminha em simultâneo com os afloramentos tanto da democracia, como dos direitos fundamentais, no quadro do Estado de Direito Democrático, tenta-se, na medida do possível, submeter decisões fundamentais para a vida de uma comunidade política a algum tipo de controlo democrático, efectuado pelos representantes do povo, ou a algum tipo de checks and balances360. No entanto, sobre o constitucionalismo cabo-verdiano não se projectam somente espraiamentos universais de origem ocidental. Estando marcado por um percurso próprio, seja naquele que ocorre depois da independência, seja pós-democratização, certas experiências, desafios e valores, justificaram uma aproximação a constructos constitucionais diversos, o que se vai notar, particularmente no que toca à inserção de certos elementos principiológicos sobre a política externa, adoptados pelo constitucionalismo de matriz marxistasocialista e por aquele que, resultando de movimentos similares de libertação mundial, tentou apresentar, inclusivé em matéria de política externa, uma via alternativa. Nesta matéria, aliás, há que se ter em conta que a experiência constitucional portuguesa, que mais se aproximou da nossa, ficou marcada pela incorporação de elementos alternativos inspirados em larga medida nessas fontes. O desenho da constituição internacional, no entanto, não se pode desprender da realidade concreta da sua aplicação. Assim sendo, se não pode desconsiderar os valores próprios da comunidade política projectando-o para a esfera externa, também não pode dispensar algum realismo, traduzido na existência de alguma liberdade de acção para aqueles que conduzem a política externa do Estado361. O mesmo ocorre com os desenvolvimentos políticos e particularmente jurídicos-internacionais que podem ter algum impacto na ordem constitucional interna, mormente os que se ligam à feitura de tratados, a assumpção de poderes normativos por organizações internacionais, a inserção do país em comunidades de integração regional, à evolução do Direito Internacional que regula o uso da força ou o que fixa normativamente o regime do mar ou do ar, etc. 360

Por exemplo, ver John Sparks, “Checks and Balances in American Foreign Policy”, Indiana Law Journal, v. 52, n. 2, 1977, pp. 433-447. 361 Cf. o nosso José Pina Delagado, “Constituição de Cabo Verde de 1992 - Fundação de uma República Liberal de Direito, Democrática e Social” in: José Pina Delgado & Mário Ramos Silva (orgs.), Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição da República de Cabo Verde, Praia, Edições ISCJS, 2013, pp. 148-152, destacando o realismo constitucional.

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Sendo necessário aplicar, em específico, todo este quadro ao desenvolvimento constitucional cabo-verdiano362, não é um objectivo que nos propusemos nesta ocasião, ficando para futura ocasião tanto fazer a sua ligação ao nosso primeiro constitucionalismo (de 1975 a 1992), como ao segundo, que decorre de 1992 até à actualidade.

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Veja-se Mário Silva, Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde, Praia, 2012, Mimeo (arquivado com o autor).

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