O tratamento jurídico dos escravos nas Ordenações Manuelinas e Filipinas

July 26, 2017 | Autor: M. Dias Paes | Categoria: Historia Social, História Do Direito, Escravidão
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O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ESCRAVOS NAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E FILIPINAS SLAVES’ LEGAL TREATMENT IN MANUELINES AND PHILIPPINES ORDINANCES Mariana Armond Dias Paes* Resumo: O presente artigo tem como objetivo identificar os dispositivos das Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas que tratavam da escravidão e como os elementos neles presentes possibilitavam o delineamento da personalidade jurídica dos escravos. Tal análise é cotejada com opiniões doutrinárias de juristas brasileiros do oitocentos e com a produção historiográfica sobre escravidão a fim de se delinear como o instituto da personalidade jurídica dos escravos foi abordado pelos sujeitos históricos na segunda metade do século XIX.

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Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

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Introdução A personalidade jurídica dos escravos, durante o período da escravidão no Brasil, ainda é um tema pouco analisado e sistematizado. As recentes pesquisas historiográficas demonstram que os cativos, principalmente após a segunda metade do século XIX, procuravam a via institucionalizada do Judiciário para garantir direitos que acreditavam possuir e conquistar novos direitos, o que contribuiu para a contestação da legitimidade do domínio senhorial. Assim, parte-se do pressuposto de que os escravos valiam-se do direito brasileiro oitocentista e contribuíam ativamente para sua construção. Nesse contexto, a personalidade jurídica dos escravos era um instituto em constante disputa pelos diversos atores históricos. Atribuir ou não personalidade aos cativos e em que medida tal personalidade deveria ser reconhecida eram questões que permeavam o direito escravista e possuíam uma importância central, pois a personalidade, de certa maneira, delimitaria o âmbito de atuação legal dos escravos. Assim, para melhor compreender os diversos significados que os sujeitos atribuíam à personalidade, é necessário empreender uma análise da legislação, da jurisprudência e das obras jurídicas que versavam sobre a questão escravista. Tal análise deve identificar a historicidade de tais fontes, ou seja, inseri-las nos contextos sócio-temporais dos quais são frutos e identificar as mudanças e permanências que sua utilização sofreu ao longo do processo histórico. Ademais, é importante levar em consideração que tais documentos não possuem significado unívoco: eles foram constantemente apropriados e re-significados de acordo com os diferentes interessem em jogo em um determinado momento histórico. Neste artigo, optou-se por analisar os dispositivos que regulamentavam as relações escravistas nas Ordenações Manuelinas e nas Ordenações Filipinas. Este recorte temático se justifica, pois as Ordenações Filipinas vigeram no Brasil até 1916 e vários de seus dispositivos foram de central importância na delimitação do âmbito de atuação dos sujeitos históricos no contexto da escravidão brasileira. Ressalte-se, ainda, que, apesar de diversas de suas disposições terem sido revogadas ao longo do século XIX, principalmente com o advento do Código Criminal de 1830 e do Código de Processo Criminal de 1832, “o direito civil substantivo continuou sendo o último baluarte das Ordenações” (COSTA, 2002, p. 289). As Ordenações Manuelinas foram analisadas em razão de sua importância como fonte a partir da qual as Ordenações Filipinas foram elaboradas. A legislação possui caráter histórico, ou seja, é produto de contextos sociais específicos e é apropriada de maneira diferente pelos sujeitos históricos nos diferentes contextos temporais de uma sociedade. Tal não poderia ser diferente com as Ordenações. Fruto do absolutismo português, foram aplicadas ao Brasil colonial e continuaram vigorando durante o período imperial. Assim, a aplicação, a interpretação e a apropriação da legislação escravista foram sendo alteradas de acordo com as transformações profundas que a escravidão brasileira passou ao longo de mais de três séculos. Este trabalho, procura se concentrar nas ambiguidades presentes no texto legal em relação à personalidade jurídica dos cativos e como tais ambiguidades possibilitaram conflitos em torno da personalidade dos escravos na segunda metade do século XIX, período escolhido em razão da intensificação da contestação do regime escravista. Assim, a análise dos dispositivos das Ordenações foi cotejada com posições doutrinárias de juristas oitocentistas e com textos historiográficos sobre escravidão, com o intuito de se verificar como o seu texto era apropriado pelos agentes históricos brasileiros na segunda metade do século XIX. Utilizou-se como fonte para o texto das Ordenações a edição comentada por Cândido Mendes de ALMEIDA, publicada no Brasil em 1870, e a compilação da legislação escravista elaborada por Silvia Hunold LARA (2000, pp. 53-136) em “Legislação sobre escravos

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africanos na América Portuguesa”, na qual a autora transcreve os diversos dispositivos legais concernentes à regulamentação da escravidão, no Brasil, entre 1521 e 1822.

As Ordenações As Ordenações Afonsinas, precursoras das Ordenações Manuelinas e Filipinas, foram elaboradas com o objetivo de sistematizar o direito vigente em Portugal no século XV. Podese afirmar que tal anseio por uma consolidação do direito português estava intimamente relacionado com a afirmação do Estado Nacional. De acordo com Mário Júlio de Almeida COSTA (2002, p. 274), há controvérsias a respeito de sua entrada em vigor, mas, estima-se que tenham sido aprovadas no final de 1446 ou início de 1447. As Ordenações são organizadas em cinco livros, divididos em títulos que, por sua vez, são compostos de parágrafos. No livro primeiro, predominam normas de administração judiciária; no segundo, disposições que procuram regulamentar a proteção de certas pessoas e instituições; no terceiro, concentram-se as normas processuais; no quarto, prevalecem dispositivos de direito civil; no quinto trata-se de direito penal. Tal sistematização foi mantida, com pequenas alterações, nas Ordenações subsequentes. No século XVI, iniciou-se a discutir uma reforma das Ordenações Afonsinas. De acordo com COSTA (2002, p. 282), tais discussões tiveram forte influência da introdução da imprensa em Portugal: já que as Ordenações Afonsinas seriam impressas, poder-se-ia, antes, promover sua revisão. Ademais, o autor afirma que Dom Manuel tinha pretensões de ver seu nome vinculado ao diploma sistematizador da legislação portuguesa. As Ordenações Manuelinas começaram a ter seus livros impressos, separadamente, entre 1512 e 1514, porém, a edição definitiva data de 1521. Assim como no caso das Ordenações Afonsinas, é difícil precisar a data da entrada em vigência das Ordenações Manuelinas. Entretanto, a Carta Régia de 15 de março de 1521 determinou que, no prazo de três meses, quem tivesse exemplares anteriores das Ordenações Manuelinas os destruíssem e que os conselhos adquirissem a edição definitiva nesse mesmo prazo. Em relação à técnica legislativa, seus dispositivos seguem o estilo decretório, ou seja, sua redação é feita como se tratasse de lei nova, sem qualquer remissão a normas que estavam apenas sendo atualizadas (COSTA, 2002, pp. 282-284). Durante o período da União Ibérica, Filipe I iniciou um processo de reforma das Ordenações Manuelinas que, de acordo com CASTRO (2002, pp. 282-289), tinha o objetivo político de demonstrar respeito pelo direito português. Apesar das Ordenações Filipinas terem sido concluídas em 1595, somente entraram em vigor em 1603, durante o reinado de Filipe II. Sua vigência durou até 1867 em Portugal e 1916 no Brasil. COSTA (2002, pp. 289291) afirma que as Ordenações Filipinas promoveram uma revisão atualizadora das Ordenações Manuelinas, ou seja, sistematizaram-se as disposições manuelinas e a elas ajuntou-se normas vigentes subsequentes. Enquanto as Ordenações Manuelinas são compostas por 393 títulos, as Ordenações Filipinas possuem 511 títulos. É importante lembrar que as Ordenações Filipinas pertencem ao contexto histórico do absolutismo português, ou seja, à época em que não havia divisão de Poderes, como a conhecemos hoje, entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Havia sim uma hierarquia de poderes senhoriais, da qual o rei ocupava o lugar mais alto. De acordo com LARA (1999, p. 20), para manter essa estrutura hierárquica, era fundamental que o poder do soberano se fizesse presente em todo o Reino por meio de uma estrutura jurisdicional. “Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam elementos inerentes ao poder real” (LARA, 1999, p. 21). É costume pensar que a sistematização e a codificação das leis significam impor limites ao poder monárquico – noção diretamente vinculada à formação das monarquias constitucionais a partir de fins do século XVIII e, sobretudo, ao longo

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do século XIX. Diferentemente, no entanto, a compilação das leis e das ordens emanadas dos sucessivos monarcas e das cortes, reunidas de quando em quando, correspondeu a uma afirmação do poder real. No início da época moderna, o aparecimento de códigos legislativos acompanhou a formação e o fortalecimento das monarquias nacionais, destacando-se o pioneirismo português. Associadas diretamente ao monarca que as promulgou, as chamadas ordenações portuguesas constituíram o corpo legal de referência para todo o Reino e, mais tarde, também para suas Conquistas (LARA, 1999, p. 29).

No Brasil, as Ordenações Filipinas foram impressas pela primeira vez em 1870, em uma edição comentada por ALMEIDA. Samuel Rodrigues BARBOSA (2009, p. 365) afirma que o Direito civil brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 pode ser considerado complexo em razão dos inúmeros atos legislativos existentes, que não formavam um sistema; pela sua mediação por praxistas; e devido à possibilidade de remissão à legislação de outros países. Nesse contexto, os comentários de ALMEIDA às Ordenações constituíram importantes respostas à atuação dos juristas no foro. Seus abundantes comentários, feitos em notas de rodapé, remetiam a outros atos legislativos, expunham o posicionamento doutrinário sobre o tema, discorriam sobre a história de determinados institutos jurídicos, davam notícia de jurisprudência e indicavam a melhor interpretação para cada ordenação (BARBOSA, 2009, pp. 365-369). Em razão de sua importância como meio de difusão do direito vigente, os comentários de ALMEIDA acerca do estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista teria alcançado um considerável número de juristas da época.

Sobre o que diz a lei Foram identificados, ao todo, 71 dispositivos que tratam da escravidão, sendo 23 das Ordenações Manuelinas e 48 das Ordenações Filipinas. Do total, a grande maioria trata de matérias concernentes ao Direito Civil (20 dispositivos) e ao Direito Penal (29 dispositivos). Mas também foram identificadas normas que regulamentam questões de administração judiciária, direito eclesiástico, tráfico e comércio com as colônias, principalmente africanas. Outra característica interessante é que os escravos são mencionados em 64 dispositivos, enquanto os libertos em 10 e os africanos em 11. A grande maioria dos dispositivos analisados nas Ordenações Manuelinas se repetem nas Ordenações Filipinas. Mudanças significativas aparecem nos seguintes casos: 

Na hipótese de vícios nas transações de compra e venda de escravos, as Ordenações Filipinas apresentam uma regulamentação consideravelmente mais minuciosa do que a presente nas Ordenações Manuelinas. Enquanto as Ordenações Manuelinas (Livro IV, título XVI) se limitam a prever a possibilidade de ressarcimento daquele que comprar escravo acometido de doença ou “manqueira”, as Ordenações Filipinas (Livro IV, título XVII) elencam diversas possibilidades de vício, como, por exemplo, o vício de ânimo e a hipótese de o escravo, antes da celebração do contrato, ter cometido crime punível com pena de morte.



No caso de furto de quantia abaixo de $400 réis, as Ordenações Manuelinas (Livro V, título XXXVII, § 2) prevêem que o escravo infrator seria açoitado e desorelhado, enquanto nas Ordenações Filipinas (Livro V, título LX, § 2) está cominada exclusivamente a pena de açoites, não havia mais previsão de cortar as orelhas.

Além de reproduzir os dispositivos presentes nas Ordenações Manuelinas, as Ordenações Filipinas ampliaram, consideravelmente, a regulamentação do elemento servil, principalmente nas matérias concernentes ao Direito Civil: os dispositivos sobre escravidão

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ligados a questões de Direito Civil eram 5 nas Ordenações Manuelinas e passaram a ser 15 nas Ordenações Filipinas. Dentre essas ampliações, merecem destaque: 

A proibição de que os cativos fizessem testamento ou fossem testemunhas de testamentos (Livro IV, título LXXXI, §§ 4 e 6 e Livro IV, título LXXXV).



A proibição de que os escravos fossem tutores ou curadores (Livro IV, título CII, § 1).



A proibição de que os escravos “vivessem por si” e que os negros fizessem bailes em Lisboa (Livro V, título LXX).

As Ordenações não mencionam expressamente a personalidade jurídica dos escravos. Entretanto, é possível, por meio de uma análise crítica, identificar seu tratamento. Para tanto, os dispositivos que regulamentam a escravidão forma reunidos em quatro grupos: 1. Dispositivos que concedem direitos e garantias aos escravos, ou seja, corroboram sua personalidade jurídica, na medida em que, para se adquirir direitos, é necessário possuir personalidade, ainda que limitada. 2. Dispositivos que restringem direitos dos escravos, ou seja, limitam o âmbito de sua personalidade. 3. Dispositivos que punem o cativo, ou seja, reconhecem nele um ser capaz de agir segundo sua própria vontade. 4. Dispositivos que tratam os cativos como bens. Não há grande predominância de uma forma de tratamento sobre as outras. Os números são bastante equilibrados: somando-se os dispositivos das Ordenações Manuelinas com os das Ordenações Filipinas, temos 18 dispositivos que restringem direitos, 16 que concedem direitos, 18 que punem os cativos e 18 que os tratam como bens. A análise numérica de tais dispositivos não é suficiente. Entretanto, indica que a lei escravista era permeada por ambiguidades e disposições que poderiam ser usadas tanto a favor da atribuição da personalidade jurídica dos cativos quanto a favor de sua redução à categoria de propriedade, de ser privado de qualquer grau de personalidade perante a ordem jurídica. Como não basta a análise quantitativa, foram selecionados alguns dispositivos que põem em relevo temas importantes para o debate acerca da personalidade dos escravos perante o ordenamento jurídico brasileiro.

A questão da liberdade Muitos dos dispositivos que, em certa medida, garantem ou concedem direitos aos cativos estão relacionados com a liberdade. Analisar-se-ão alguns dispositivos que versam sobre o tema. Era previsto pelas Ordenações que, durante as férias do Judiciário, podem haver atos em processos sobre a liberdade ou o cativeiro (Ordenações Manuelinas, Livro III, título XXVIII, § 8 e Ordenações Filipinas, Livro III, título XVIII, § 8). Esse dispositivo garantia, assim, que esses processos, em razão da relevância de seu objeto, não fossem retardados em razão das férias judiciais. Caso interessante de ressignificação dos dispositivos normativos é o Livro III, título LXXXII, § 1 das Ordenações Filipinas, que dispõe:

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E se for contenda sobre algum escravo, besta, ou navio, e pendendo a instância da apelação, morresse o escravo, ou besta, ou perecesse o navio, não deixarão por tanto de ir pelo feito em diante; porque ainda que o feito pareça ser findo quanto à coisa principal, que era demandada, não é findo quanto ao interesse e às rendas e proveitos, que dela descenderam; a que poderá ser obrigado o réu, se for vencido no principal. E, portanto, se o autor, ou seus herdeiros quiserem prosseguir, irão pelo feito em diante, até se dar sentença no dito interesse, frutos, ou rendas (ALMEIDA, 2004a, pp. 692-693; LARA, 2000, pp. 96-97).

Nessa ordenação, o escravo é explicitamente tratado como coisa. Porém, em seu comentário, ALMEIDA, citando os comentadores portugueses Manoel BARBOSA, Manoel Gonçalves da SILVA e Jeronymo da SILVA PEREIRA, afirma que tal dispositivo deve ser interpretado extensivamente e ser aplicado em ações que versem sobre a liberdade do escravo. Ou seja, prossegue a ação de liberdade entre o senhor e os herdeiros do cativo, ou outro a quem interessar a causa, mesmo após a morte do escravo parte. Esta interpretação do texto legal é favorável aos herdeiros, pois, em razão do princípio “o parto segue o ventre”, os herdeiros poderiam garantir sua liberdade caso o escravo já morto obtivesse sucesso na ação em curso. O Livro IV, título XXV, § 3 das Ordenações Manuelinas e o Livro IV, título XI, § 4 das Ordenações Filipinas prevêem que quem possuir escravo que seja pedido para resgatar algum cristão cativo em terras mouras é constrangido a entregá-lo e receberá indenização. Nessa ordenação está expressamente previsto que “em favor da liberdade são muitas coisas outorgadas contra as regras gerais”. De acordo com ALMEIDA (2004b, p. 790), o favorecimento da liberdade prevalece mesmo contra outras regras de direito porque, no Direito português, as causas de liberdade são consideradas causas pias e, portanto, “gozando de todo o favor”. Entretanto, cita uma decisão do Supremo Tribunal, de 9 de julho de 1832, que, contrariamente ao disposto nas Ordenações, afirmou que a liberdade não pode ser concedida em prejuízo ao direito de propriedade. Embasando-se em diversas normas que corroborariam o princípio da prevalência da liberdade, o comentarista se posiciona contrariamente a esta decisão: Em vista do que diz este § em seu princípio toda a legislação Romana e Canônica em prol da liberdade dos cativos deve ser aceita e executada; nem seria possível que em uma época de liberdade a legislação outrora executada com tanto favor em prol dos escravos, se tornasse sem nenhum motivo ou lei de repugnante dureza (ALMEIDA, 2004b, p. 790).

Também o benefício do Senatus consulto velleano, segundo o qual a mulher que prestar fiança ou obrigar-se em favor de terceiro não responderá pela obrigação, não se aplica a casos relacionados à liberdade de escravos (Ordenações Filipinas, Livro IV, título LXI, § 1). Assim, se a mulher fosse fiadora em caso de dinheiro para libertação de um escravo, ela não estaria isenta da obrigação. Está expresso no texto legal que tal exceção ao benefício do Velleano foi estabelecido em favor da liberdade.

Restrições de Direito Civil Boa parte dos dispositivos que restringem expressamente direitos dos cativos versa sobre temas de Direito Civil. Escravos não podiam ser testemunhas em processos, salvo quando expressamente determinado pelas normas de Direito (Ordenações Filipinas, Livro III, título LVI, § 3). Apesar de tal limitação para comparecer em juízo, os escravos, assim como as mulheres e os menores, podiam comparecer perante o juízo para justificar a ausência de quem foi citado (Ordenações Filipinas, Livro III, título VII). De acordo com LARA (1988, p. 362), se houvesse necessidade de que algum escravo testemunhasse em processos criminais, o que

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ocorria, na prática, era a sua oitiva como “testemunha por informação”. Desse modo, é possível afirmar que a restrição imposta aos escravos podia ser, na prática, ignorada por meio de brechas na legislação. Os cativos também não podiam ser testemunhas em testamentos (Ordenações Filipinas, Livro IV, título LXXXV), sendo, ainda, proibidos de testar (Ordenações Filipinas, Livro IV, título LXXXI, §§ 4 e 6). Entretanto, ALMEIDA (2004b, p. 909) afirma que o escravo pode testar com o consentimento do senhor, uma vez que não há impedimento algum nesse sentido nas Ordenações e que, entre nós, os escravos não são coisas, como eram perante o Direito Romano. Os escravos tampouco podiam ser tutores ou curadores (Ordenações Filipinas, Livro IV, título CII, § 1). Em seu comentário, ALMEIDA (2004b, p. 996) afirma que, para o português Manoel BORGES CARNEIRO, se o testador nomeou o escravo à tutoria ao mesmo tempo concedendo-lhe a liberdade, ele pode ser tutor. Após ser criticado por Antonio Pereira REBOUÇAS por não mencionar expressamente a proibição ao cativo de ser tutor ou curador, Augusto Teixeira de FREITAS, na segunda edição da Consolidação das Leis Civis, acrescenta em nota ao artigo referente aos impedidos de exercer tutela e curatela: Não mencionei o escravo, porque na 1ª Edição, omiti tudo que pertencia a escravos, o que agora vai suprido. Escravos não podem ser tutores, ou curadores, ainda que nomeados em testamento; mas a Ord. L. 4º T. 102 § 1º nesta parte pode ser conciliada com o Dir. Rom., entendendo-se que a proibição refere-se a escravo, que não pertença ao testador. Pertencendo ao testador, a nomeação é válida, porque importa uma concessão tácita de alforria (FREITAS, 2003, p. 201).

Essas restrições demonstram que o escravo era privado de capacidade civil, o que corrobora o afirmado pela civilística brasileira oitocentista: o escravo é dotado de personalidade natural, o que lhe confere certa gama de direitos, mas não possui personalidade civil, o que lhe impossibilita o exercício de atos civis. Assim, perante o Direito Brasileiro oitocentista, os escravos eram dotados de personalidade jurídica, porém, não gozavam de capacidade civil (DIAS PAES, 2010).

Revogação da alforria por ingratidão O Livro IV, título LV das Ordenações Manuelinas, correspondente ao Livro IV, título LXIII das Ordenações Filipinas, é um exemplo da ambiguidade da legislação em relação ao escravo. Eram consideradas causas gerais de ingratidão: proferir o donatário grave injúria contra o doador; feri-lo; fazer com que o doador tenha “grande perda e dano em sua fazenda”; causar dano ou perigo à pessoa do doador; não cumprir promessa feita ao doador. Em caso de alforria, além destas causas, o dispositivo considera ingratidão que, estando o patrono “em necessidade de fome”, o liberto não o auxilie, caso haja meios financeiros para tal. Entretanto, outra importante previsão desta ordenação é a determinação de que o direito a tal revogação seja exclusividade do senhor, não passando a seus herdeiros quando de sua morte, o que, de certa maneira, era uma garantia de liberdade ao cativo após o decurso de “um prazo”. Ao longo do século XIX, diversos foram os debates doutrinários a respeito da correta interpretação deste dispositivo. Em nota ao artigo 421 da Consolidação das Leis Civis, que elencava as causas de ingratidão pelas quais se podem revogar as doações, FREITAS (2003, p. 300) afirmou que as Ordenações permitiam a revogação das alforrias por ingratidão, entretanto, ela não era possível em relação aos libertos nascidos no Brasil, com base no artigo 6º, §1º e no artigo 94,

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§ 2º da Constituição do Império, que determinavam que o liberto era considerado cidadão brasileiro. A tal nota, REBOUÇAS respondeu: E que tem que os libertos pelo fato de o serem adquiram a qualidade de cidadão, para que deixem de a perder, uma vez que tornados ao cativeiro? O ingênuo é sujeito a perder a qualidade de cidadão, incorrendo nessa pena em qualquer dos casos previstos na Const., por mais que seja impossível deixar de ser ingênuo desde que nascido de ventre livre. E como não perder o liberto a qualidade adventícia de cidadão pelas mesmas razões, por que a pôde perder o ingênuo, a quem a mesma qualidade é inerente; e muito essencialmente perdendo a indispensável qualidade de liberto, e por causa de qualificada ingratidão para com seu libertante? (FREITAS, 2003, p. 300).

Ao que FREITAS (2003, pp. 300-301) respondeu afirmando que a revogação por ingratidão do liberto nascido no Brasil não era possível, pois o artigo 7º da Constituição do Império previa, taxativamente, as hipóteses de perda dos direitos de cidadão brasileiro e, entre elas, não estava prevista a revogação por ingratidão. Entretanto, afirma o autor ser possível a revogação de alforrias em caso de nulidade geral ou de fraude contra os credores do libertante ou contra a meação da esposa. Nesses casos, devem-se considerar escravos os filhos concebidos depois da revogação da alforria e, ingênuos os concebidos antes da revogação. O professor de Direito Civil, Lourenço Trigo de LOUREIRO (1851, pp. 2-3), na primeira edição de sua obra Instituições de Direito Civil brasileiro, afirma que o Livro IV, título LXIII, §§ 7º, 8º e 9º das Ordenações Filipinas ainda estava vigente no Direito brasileiro. Já na segunda edição, afirma que a revogação por ingratidão deve se dar por sentença judicial, respeitado o contraditório e mediante prova plena da ingratidão cometida (LOUREIRO, 1857, p. 4). O jurista Agostinho Marques Perdigão MALHEIRO era peremptoriamente contrário à possibilidade de revogação da alforria por ingratidão. Afirma que a ordenação em questão não foi expressamente revogada, sendo ainda aplicada em algumas decisões judiciais. Entretanto, nos “tempos atuais”, em que a liberdade deve prevalecer mesmo contra as regras gerais de direito, é necessário colocar em dúvida a vigência deste dispositivo. Uma vez que a alforria nada mais é do que a restituição ao escravo da liberdade que lhe foi violentamente suspensa pelo cativeiro, ela não pode ser retirada por motivo algum. Ademais, a revogação por ingratidão era considerada uma pena ao liberto e, atualmente, ela teria caído em desuso, como acontece “com toda lei que excede os limites do justo” (MALHEIRO, 1976, pp. 135-139). Parece-nos que a consciência e a razão de cada um, mesmo Juiz, está respondendo que não; e que essa lei se deve ter por obsoleta, antiquada, e caduca, derrogada ou ab-rogada pelas leis posteriores, pelas idéias do século, e os costumes da nossa época e sociedade, da nossa civilização e progresso. Nem razão de duvidar o não haver lei expressa em contrário. É este um argumento que espíritos timoratos costumam opor. Uma lei não se entende caduca ou não vigente só quando é expressamente revogada por outra. Basta que o Direito superveniente seja tal, que com ela não possa coexistir na devida harmonia, dando lugar a contrassensos, a oposições, a decisões repugnantes em sua aplicação ou de consequências repugnantes (MALHEIRO, 1976, pp. 138-139).

O Livro IV, título LVIII das Ordenações Filipinas estava entre a legislação efetivamente citada nos 402 processos cíveis relativos à liberdade pesquisados por Keila GRINBERG (2006, p. 109). Este dispositivo, usado em favor dos senhores que visavam conseguir a reescravização de libertos, foi citado majoritariamente até o início da década de 1860 (GRINBERG, 2006, p. 111). Na década de 1860, os juízes passaram a aceitar determinados argumentos como válidos, buscando até mesmo instrumentos legais que não guardavam uma correspondência direta com a causa em questão, como é o caso do alvará de 1682.

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Ao mesmo tempo, outros argumentos foram aos poucos perdendo a legitimidade, e os instrumentos jurídicos que os embasavam foram sendo abandonados, como é o caso do título 63 do livro 4 das Ordenações filipinas (GRINBERG, 2006, p. 119).

Ademais, tal dispositivo estabelece obrigações do liberto em relação ao seu ex-senhor, o que demonstra quão tênues eram os limites que separavam a escravidão da liberdade na sociedade escravista brasileira. Estes limites fluidos entre escravidão e liberdade também podem ser destacados no Livro III, título VIII, §§ 1, 7 e 8 das Ordenações Manuelinas, correspondente ao Livro III, título XIX das Ordenações Filipinas, que proibia o liberto de ajuizar ação contra o seu exsenhor, exceto com autorização do juiz.

Escravos e menores A análise das Ordenações demonstra que a restrição de direitos dos escravos, muitas vezes, tinha um correspondente na restrição de direitos dos menores. Assim como os libertos não podiam processar seus ex-senhores, os filhos não podiam processar seus pais (Livro III, título VIII, §§ 1, 7 e 8 das Ordenações Manuelinas e Livro III, título IX das Ordenações Filipinas). De acordo com ALMEIDA (2004a, p. 571), citando o jurista Manoel Alvares PEGAS, a razão de ser desta lei, no caso dos menores, é que o fim do pátrio poder não implica o fim do respeito pelo pai. Transportando tal convicção para o caso do liberto, pode-se concluir, portanto, que a alforria não era suficiente para que os laços de respeito do escravo para com seu senhor fossem definitivamente rompidos. Tal concepção também está presente no debate acerca da possibilidade de revogação da alforria por ingratidão exposto anteriormente. Também não era considerado cárcere privado o aprisionamento do escravo ou do menor em caso de castigos por mau comportamento (Livro V, título LXVIII, § 2 das Ordenações Manuelinas e Livro V, título XCV, § 4 das Ordenações Filipinas). ALMEIDA (2004c, p. 1245) parece ter posicionamento contrário à aplicação desta ordenação, pois, em seu comentário, elenca disposições normativas que procuram coibir o castigo excessivo dos senhores sobre seus escravos. Por outro Decreto de 21 de Janeiro de 1702, se mandou julgar bem e sumariamente na Relação a queixa sobre a maldade de um senhor com uma sua escrava, autorizando os Juízes para punirem o mesmo réu, como julgassem digno, e o obrigassem a vender as escravas que tinha, e declará-lo inábil para ter outras (ALMEIDA, 2004c, p. 1245).

Cita também os seguintes dispositivos legais: decreto de 30 de setembro de 1693, que proibiu a colocação de ferro nos escravos e seu aprisionamento em cadeias mais apertadas a mando de seus senhores e as cartas régias de 20 e 23 de março de 1688 que versavam sobre o castigo excessivo.

Estupro de escravas O Livro V, título XVIII das Ordenações Filipinas punia quem forçosamente dormir com escrava. O Código Criminal de 1830, por sua vez, tipificava o estupro da seguinte maneira: Art. 222. Ter cópula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três a doze anos, e de dotar a ofendida. Se a violentada for prostituta. Penas – de prisão por um mês a dois anos (ALMEIDA, 2004c, p. 1168).

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Para ALMEIDA (2004c, p. 1168), ainda que o Código Criminal não tenha previsto a situação específica de estupro de escrava, a expressão “mulher honesta” deve também abarcar as cativas, pois a condição de escrava não exclui a honestidade. O uso da violência em relações sexuais entre senhores e suas escravas era um tema que despertava, nos tribunais, o debate acerca da personalidade dos cativos. Robert Edgar CONRAD (1997, pp. 273-281) e Lenine NEQUETE (1988, pp. 61-77) citam um processo de defloramento de escrava (artigo 219 do Código Criminal), no qual o advogado da cativa defendia seu direito de comparecer em juízo e ter reconhecida a punibilidade de seu senhor com base em sua personalidade jurídica. O advogado do senhor, por sua vez, afirmava que não havia sido cometido crime, pois a escrava era propriedade e não poderia ingressar em juízo por não gozar de capacidade civil. O jurista Caetano Alberto SOARES, com base nas Ordenações, responde à pergunta “se o senhor que abusa da virgindade da escrava, prometendo-lhe a liberdade, perde o direito a ela”: Seria para desejar que a lei estabelecesse alguma coisa de positivo nesse caso a favor da escrava, e do seu filho, tido do senhor; e que assim como aquele que toma forçosamente posse da coisa e esbulha a pessoa, que dela está de posse, perde o direito qualquer, que nela tinha, Ord. Liv. 4º. tit. 58 princ.; assim também o senhor da escrava, que abusasse de sua honra e virgindade, perdesse o direito dela. Do mesmo feitio seria para desejar, que o filho dessa escrava fosse forro e o pai obrigado a dar-lhe a liberdade; mas ao contrário, a Ord. Liv. 4º. tit. 92, permite que esse filho fique na escravidão. Não achando pois disposição alguma legal, que favoreça a escrava nesse caso entendo que ela nenhuma ação tem para a sua liberdade, e nem o filho, porque este para ter direito contra o pai para o forrar e alimentar seria necessário, que o pai o reconhecesse por seu. Este o meu parecer, que sujeito à emenda dos doutos. – Rio de Janeiro 20 de Julho de 1851 (CAROATÁ, 1867, pp. 54-55).

Percebe-se, portanto, que as ambiguidades das disposições sobre relações sexuais entre senhores e escravas possibilitavam que tais dispositivos fossem utilizados ora em favor das cativas, ora em favor de seus senhores, sendo, portanto, ressignificados no contexto das relações de força entre os agentes históricos.

Proibição de “viver sobre si” O Livro V, título LXX das Ordenações Filipinas proibia os escravos de “viverem sobre si”, mesmo com a anuência de seus senhores, que deveriam pagar multa caso essa ordenação não fosse cumprida, sendo o escravo preso e açoitado no pelourinho. Tampouco podiam os escravos e negros forros fazerem bailes em Lisboa e no raio de uma légua ao redor da cidade. ALMEIDA foi contundente em seu comentário a respeito dessa proibição: “Hoje não tem mais execução esta Ordenação. Os Senhores podem dar a permissão aos escravos que lhes nega aqui o antigo Legislador (ALMEIDA, 2004c, p. 1218)”. A historiografia comprova, de maneira inequívoca, que esta proibição não tinha eficácia na sociedade brasileira. Eram inúmeros os casos de escravos que “viviam sobre si”, essencialmente nos núcleos urbanos. Uma das alternativas mais comuns para escravos que deixavam a casa do dono era alugar um quarto, choça ou casa. Em 1842, a prática de alugar para escravos já era tão comum que se baixou um regulamento proibindo escravos de alugar, mesmo com permissão de seus senhores. Em parte, a polícia temia que escravos morando sozinhos pudessem esconder fugitivos e criminosos em seus cômodos alugados, como de fato o faziam para proteger parentes e amigos. Evidentemente, nem senhores nem escravos obedeceram ao regulamento, pois a polícia ainda se queixava em 1860 do aluguel para escravos (KARASCH, 2000, p. 186).

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O historiador Sidney CHALHOUB, identifica que a prática do “viver sobre si”, usada como embasamento jurídico em ações de liberdade, possuía também significado político na luta pela alforria. Assim, os escravos pareciam precisar de mobilidade para terem condições de pagar os jornais determinados – e aí estaria a origem das autorizações para que escravos morassem em quartos de cortiços ou em casas de cômodos. Por outro lado, isto implicava que tais cativos tivessem “o modo de vida que eles escolherem” (CHALHOUB, 1990, p. 235).

Percebe-se assim que a eficácia da legislação estava condicionada à conjuntura histórica da sociedade. O que era entendido como direito ou como proibição era constantemente reelaborado pelos agentes históricos em suas relações sociais, de acordo com os diversos interesses em jogo.

Batismo de escravos As Ordenações Manuelinas (Livro V, título XCIX) e as Ordenações Filipinas (Livro V, título XCIX) preveem a obrigatoriedade do batismo dos escravos “de Guiné” e dos filhos das “escravas que das partes de Guiné vieram”, nascidos no Brasil, pelos seus senhores. De acordo com ALMEIDA, em seu comentário ao título XCIX do Livro V das Ordenações Filipinas, o descumprimento desta ordenação não é mais considerado crime, uma vez que não há qualquer tipificação nesse sentido no Código Criminal de 1830. Ademais, “a disposição não tinha mais razão de ser” após o fim do tráfico de africanos. Neste comentário, o autor afirma ainda que o alvará de 3 de agosto de 1708 determinou que os filhos dos ingleses não poderiam ser batizados contra sua vontade. O batismo só poderia ser feito na idade de sete anos, por ser a idade em que já se podia escolher sua religião. Percebe-se, portanto, que ALMEIDA era orientado por certa “tolerância religiosa”, num contexto em que a autoridade religiosa sobre assuntos civis estava sendo questionada (GRINBERG, 2001, pp. 37-43). O batismo de escravos era amplamente regulado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1853, nos §§ 50-57. Tais dispositivos ilustram com bastante clareza as tensões existentes entre o catolicismo e as crenças africanas: os escravos filhos de “infiéis” deviam ser afastados de seus pais, pelo senhor, para que não se “pervertam” e para que lhes fosse ensinado “o que é necessário para serem bons Cristãos”. Ademais, em vários momentos afirma-se que os escravos não são capazes de compreender os ensinamentos da doutrina cristã por serem demasiado rudes e boçais.

Tratamento como bens Grande parte dos dispositivos que tratavam os escravos expressamente como bens se referiam a relações comerciais. São exemplos: a compra e venda de cativos (Livro IV, título I, § 2 e Livro IV, título LXX das Ordenações Filipinas), os contratos de compensação que podem ter escravos como objeto (Livro IV, título LXXVIII, §§ 7 e 8 das Ordenações Filipinas) e a sua consideração como bens indivisíveis em inventário (Livro IV, título XCVI, § 5 das Ordenações Filipinas). Exemplo emblemático do tratamento dos cativos como bens é o Livro IV, título XVII das Ordenações Filipinas, que trata dos vícios redibitórios dos escravos. No entanto, mesmo esse dispositivo denuncia a ambiguidade da legislação a respeito do estatuto do escravo: ao elencar a hipótese de vício de ânimo, acaba-se por reconhecer que o escravo podia agir segundo suas próprias vontades, contra as ordens do senhor. Ou seja, o escravo, apesar de

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considerado bem, objeto de transações comerciais, era um ser dotado de agência e, portanto, não podia ser completamente reificado perante o direito.

Conclusão: além do que silencia a lei Da análise dos dispositivos das Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas que regulamentam a escravidão, pode-se concluir que, ainda que não houvesse expressa menção à personalidade jurídica dos escravos, o tema permeava o contexto jurídico da sociedade escravista. A legislação vigente apresentava possibilidades tanto para o reconhecimento da personalidade quanto para a redução do cativo à condição de coisa. Tal ambiguidade era aproveitada pelos diversos atores sociais que, na luta pela prevalência de seus interesses, resignificavam os institutos jurídicos, participando, assim, ativamente, da construção da cultura jurídica brasileira oitocentista. Enquanto arena central de conflito (THOMPSON, 1987, pp. 348-361), a legislação foi tendo sua interpretação alterada por meio dos diferentes usos que dela faziam os grupos sociais, em contextos históricos específicos. Tal característica pode ser particularmente vista nos debates que envolviam a possibilidade de revogação da alforria por ingratidão e nas proibições de “viver sobre si”. Ademais, as disposições normativas presentes nas Ordenações também limitavam o âmbito de atuação dos senhores, estabelecendo certos limites à propriedade senhorial, bem como a determinadas garantias aos escravos e libertos, como, por exemplo, o princípio da prevalência da liberdade sobre normas gerais de direito e a revogação por ingratidão como prerrogativa exclusiva do ex-senhor. É certo que tais limites, garantias e direitos conferidos aos cativos não eram suficientes para se considerar que a escravidão brasileira não foi violenta ou que tenha sido mais “branda” do que em outros locais. Entretanto, tais prerrogativas legais foram importantes na utilização de brechas institucionais para contestação do domínio escravista no final do século XIX. Além disso, conforme demonstrado, as proibições legais, muitas vezes, não tinham eficácia prática e, principalmente nos núcleos urbanos, os escravos e libertos acabavam gozando de uma autonomia maior do que aquela estabelecida na legislação. Mas essa mediação através das formas da lei, é totalmente diferente do exercício da força sem mediações. As formas e a retórica da lei adquirem identidade distinta que, às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos do poder. … Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens: tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado (THOMPSON, 1987, p. 358).

Assim, a realidade jurídica e institucional traçava os limites do possível tanto para os escravos quanto para os senhores. Os escravos procuravam, de diversas maneiras, se apropriar, em prol de maior autonomia e liberdade, de um aparato legal que havia, muitas vezes, sido criado para manter a continuidade do domínio escravista. Da mesma maneira, os senhores procuravam, ao máximo, restringir o reconhecimento de direitos e garantias aos cativos, pelo ordenamento, garantindo, assim, a preponderância de seu direito de propriedade.

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