O travestismo como crise em Polanski

June 1, 2017 | Autor: D. G. Tierro Ramos | Categoria: Cinema, Roman Polanski, Travestismo
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O travestismo como crise em Polanski David José Gonçalves Ramos [email protected]

A descrição fílmica de uma crise da masculinidade em uma situação opressiva aos olhos na representação do homem, homens vestidos como mulheres, a reapresentação do significado psiquiátrico do termo crise, podem ser observadas em duas obras de Roman Polanski; Armadilha do Destino e O Inquilino. A crise é um momento inventado pelo ser humano para reassumir estados inconscientes e infantis de significação, e em geral a crise é identificada com uma histeria, um momento histérico, que costuma ser associado às mulheres. Algumas crises são silenciosas, traduzidas em uma situação de humor forçado e cordialidade, como na cena de uma mulher vestindo um homem de mulher, fazendo com isso alguma alusão ao seu vergonhoso falo passivo. Crise é um sintoma para a psiquiatria porque é a superfície da doença, é a forma como ela se manifesta, e é um sintoma para a psicanálise porque é uma apresentação provisória, uma performance provisória e ineficiente da vida pulsional. A crise incide sobre os comportamentos cotidianos e pode ter o caráter defensivo. É uma forma extrema de construção de respostas a partir das adequações exigidas pela vida pulsional, na defensiva do auto-self, ou diante da coercitividade e imperativos dos relacionamentos. A representação que Polanski apresenta como diretor e ator destas duas imagens técnicas, duas superfícies de súbitos espelhamentos, que fazem o acontecimento mágico de um retorno a emoções recalcadas, fortes o suficiente para suportar a pressão dos acontecimentos sociais e conviver produtivamente com o sistema de coisas de relacionamentos. Mas algumas pessoas colocam para funcionar um contrassistema de comportamentos, desestruturadores das rotineiras emoções, que alimentam a economia psíquica da maioria. Aqueles que precisam recorrer à crise para se apresentar e ante-viver fazem com que esta economia psíquica rompa com os critérios tradicionais do vocabulário de comportamentos corretos, morais, que devemos ter diante de uma humilhação, do descaso, da violência gratuita dos outros. São dois filmes de Polanski em que a crise surge do meio da serenidade, o travestimento brota da tensão política, dos relacionamentos, fazendo sugerir que ha um travestimento neurotizado, ha uma sintomática estética delirante do feminino como recurso do homem na simbolização de seus traumas, de seu adoecimento. A poética de Foucault ao tratar do conceito de crise, em 1975 nos diz que ela é um tema médico popularizado, de início pensado como consequência de uma doença, e posteriormente como uma adequação possível diante da tensão emocional, uma espécie de vitória psíquica;

A crise, tal como foi concebida e posta a operar, não é exatamente o momento em que a natureza profunda da doença vem à superfície e se deixa ver; é o momento em que o processo doentio, por sua própria energia, se libera de seus entraves, se libera de tudo o que poderia impedi-lo de emergir. .*

Incorporando os vários sentidos que a crise pode ter, há esta perspectiva da verdade, que na psicanálise pode ser uma produção inconsciente. As soluções precárias que damos aos conflitos em que estivemos e estaremos envolvidos ao longo de nossas vidas pode ser uma imagem artística, tão sangrenta como a de duas personagens nesses longa-metragens; em extensão e profundidade, enigmas, são dois sujeitos com lindos olhos e representações soberanas dos atores que deram vida a elas, na transição para a estética feminina não fizeram do travestimento uma ocasião para o sexo: se vestiram de mulher para a dança com a morte. As duas personagens construíram suas crises e em algum momento delas, momento da verdade, foram guiadas para a tragédia em ocasiões de travestimento. Uma outra dimensão da construção de gêneros contemporâneos ou momento da doença pessoal de um sujeito? A arte é um estímulo para regiões intensas do cérebro, a sensibilização que as imagens provocam e a narrativa que a criatividade de Polanski conduz como num conto fantástico o cinespectador, em muitas tramas possíveis fazendo o desejo de rever os dois filmes para abordagens mais aproximadas. Desejo comentar os dois filmes citados sob a ótica da construção da crise e da interpretação dos atores, para desenvolver um olhar sobre o travestismo na lírica que são apresentados. O espetáculo que os filmes faz em nossa imaginação e na impressão fílmica, a imagem técnica que percorre a cultura tornando o cinema um produto cultural. Armadilha do destino (1966) apresenta um homem que se veste de mulher no momento de submissão à namorada, e seu travestimento, com vestido, batons, enfeites, acontece em uma manhã de aparente dificuldade relacional, e em meio a um ritual psicótico com um rancor e um nervosismo distante do erotismo, ou diante dos afetos libidinais frustrados. O filme O Inquilino (1987) apresenta o travesti como a personagem da personagem, expressão de uma verdade trágica em uma crise diante do nazismo, ocultismo, territorialismo em excesso na vida de um condomínio pequeno em um prédio francês. A verdade da crise de Simone, nome de guerra da travesti do filme, é sobre o processo de loucura de um estrangeiro em Paris, o martírio de uma cientista e o mecanismo do processo kafkiano que se desenvolve ao redor da manutenção do status das forças sociais. O adoecimento da personagem passa pelo travestimento como atitude final, ao contrário do travestimento do primeiro filme, que seria um rito de início, para a morte.

*. Foucault, Michel. A casa dos loucos. Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. pág. 310.

Polanski nasceu em 1933, e na poesia da sonoridade da língua portuguesa a própria estrutura do sobrenome indica sua nacionalidade, Polonia. Trabalhou em rádio e cinema na França e seus filmes apresentam a gratuidade da violência, em referência filosófica ao contexto europeu da segunda guerra mundial, onde a impossibilidade ética do fascismo e do nazismo foram reais. O momento cultural de produção dos filmes de Polanski presenciou a popularidade da psicanálise como referência para as tomadas da subjetividade de muitas escolas de cinema, no sentido da passagem que a informação cultural pode ter na imaginação, como resultado desta, e, pelo aperfeiçoamento técnico, do detalhamento da narrativa ser organizado na forma fílmica e circular a sociedade, os diálogos e impressões pessoais. A família de Polanski foi dissolvida pela guerra com a morte de sua mãe e irmã. Aos 13 anos começou sua careira no rádio e aos 17 estuda na Escola de Belas Artes de Cracóvia. Seu primeiro filme importante foi Faca na água (1962), na Polônia, que vivia o regime comunista ditatorial, o que o faz imigrar para a França em 1963. Logo em 1964 produz Repulsa ao sexo, também importante em sua filmografia. Os ambientes apertados e abafados ingleses, franceses, as personagens femininas marcantes, o enlouquecimento, são construções estéticas bem desenvolvidas, e Polanski nas obras iniciais tem o feminino e o entrincheiramento como lugares de retorno, talvez porque as mulheres sejam sobreviventes, fazem parte da sobrevivência, que as vezes acontece entrincheirada dentro de apartamentos, ou em ilhas isoladas. A crise é um momento em que a resistência às constantes invasões das pulsões sobre um eu que se desarticula linguisticamente, emocionalmente, psiquicamente. A arte de filmar nessas ambientações, e as tomadas do rosto das personagens em suas desarticulações, apresentando o olhar como campo de confrontação entre o feminino e o masculino na tomada de posição e resistência ao sentido de realidade, que se desfaz. Os ângulos psicologizantes, que nos coloca diante da respiração e do espelho das travestis nestes dois filmes mostra o olhar que vai perdendo o sentido da moralidade, e ao mesmo tempo, pela janela do feminino, naqueles momentos, o homem pode resolver na forma de sua crise, sua vida. As travestis destes dois filmes possuem cenas em que se contemplam em espelhos. A filmagem dessa multiplicidade de sujeitos espelhados a partir de uma figura faz o cinespectador se colocar na cumplicidade, mas, a dinâmica dos olhares sugere a demência que ocorre, num travestimento fatal onde sujeitos bem-educados, quando pressionados em sua loucura se tornam assassinos e suicidas. Por outro lado, sem universalizar as questões psiquiátricas possíveis de serem inferidas nas personagens destes filmes, é preciso pensar a singularidade dos sujeitos, representados no momento do início dos filmes como partindo de um ponto de resolução, uma estabilidade: em Armadilha do destino trata-se de um homem que vende sua empresa e investe num relacionamento amoroso, numa casa luxuosa em uma ilha, mas vê falir a prosperidade deste projeto pela assimetria do próprio

relacionamento. A cena em que sua namorada o veste com uma camisola, e começa o enfeite lembra os ritos fúnebres em sacristias de templos católicos, com seda branca, veludo, feminilidade e morbidez e desencanto. Já em O inquilino o homem é um funcionário com condições de alugar um apartamento em Paris, e que para sobreviver às imposições fascistas e alucinadas de seus vizinhos de prédio suporta generosamente às violências cotidianas e desenvolve uma angustia suicida que passa por uma metamorfose final com um vestido florido, peruca, peças íntimas e discurso feminista. Ao se vestir de mulher, a personagem não surge para si como uma conquista de autoafeto e determinação de gênero. Por essa razão estes filmes ficam no lugar da arte e não no lugar epistêmico para descrições sobre normalidade e patologia, e enquanto arte sim, nos faz pensar que de alguma forma a feminilidade é na cultura ocidental é invadida por uma determinada violência que põe o homem no lugar de “mulherzinha” quando precisa do abuso consensual, numa metáfora livre sobre o acovardamento apresentado pelas duas personagens masculinas centrais nestes filmes. A crise como construção não apenas do sujeito louco, mas também da forma de receber, de participar, de intervir, de fomentar a loucura dos outros, de conviver com a loucura dos outros, essa metáfora, pode ser observada na forma como uma outra personagem Masculina surge na vida da travesti (ou, travestida) do filme Armadilha do destino; um homicida fugitivo investe numa presença violentadora e castrante diante do afeminamento da personagem que se traveste, e surge um flerte entre os dois onde a passividade e a brutalidade convivem numa paz de conveniência, até o momento agudo da crise quando o homicida é finalmente assassinado pelo sujeito histérico. Já Simone, nome adotado pela travesti de Polanski no filme de 1987, é uma encarnação adoecida a partir de vestígios de uma mulher encontrados no apartamento alugado pela personagem, pertencentes a antiga moradora, que também termina por se suicidar. O instante agudo da crise é o travestimento para o suicídio, duplamente encenado, possibilitando o olhar sobre as camadas de significação que o extrato da violência deixa. O cinema permitiu ao ser humano um registro de muitas experiências psíquicas fenomênicas, gerando formas de introspecção, que são formas de conhecimento. Os dois filmes são maestralmente dirigidos e representados, sendo que as artes que compõem o filmico são fundamentais na narrativa, música, locais, cores, sombras, contextualização, atuação, razões. E Polanski participa desse revelamento com estes textos, revela mais o problema, a crise, o instante em que cambia, a fotografia do episódio perturbador que encaminha o ser humano para a tragédia, a tragédia pessoal e a naturalidade como o mundo, se recolhe sem se importar com o esforço, que as duas personagens fizeram, na possibilidade de história pregressa de suas ontologias, para serem cordiais. A cordialidade das personagens poderia ser um fator feminino, e masculino, constituidor

do caráter gentil, diplomático que as sociedades, inclusive machistas, a cordialidade apresentada diante das negativas do mundo afetivo, da namorada, dos vizinhos passa a ser parte de uma tensão, que comove negativamente o cinespectador que aguarda a atitude macha, masculina, máscula das duas personagens, que vão sendo tragadas pelos acontecimentos bizarros, encontrando assim realidade para o surto. O processo doentio de que são vítimas é um fator da loucura, junto a psicogênese pessoal, mas o grande-outro, as invasões não recalcáveis, ou impertinências, ou escândalos sem amor, o contato com o grande-outro pode ser epifânico do enlouquecer, e no caso dos dois filmes, também do travestir. O processo doentio não existiria por si só, de forma que as travestis dos filmes parecem ser o que sobrou de um cansaço da razoabilidade. A não declaração da homoafetividade nos dois casos fazem a referência à transformação em mulher ser uma metáfora do feminino como combustível na loucura de um homem. O desejo de ser mulher não é parte da crise, ou não parece ser parte dela, mas o que surge é imagem de homens vestidos de mulher em uma estática, em uma tensionalidade entre a passividade e a loucura. Com relação à dimensionalidade técnica das duas obras, há uma pós-historicidade presente nos dois filmes, que podem nos dias de hoje provocar o encantamento de uma história bem narrada, no sentido de que são filmes a serem descobertos pelo grande público ainda, como peças arqueológicas de arte, das décadas de 1960 e 1980, que falam da experiência subjetiva dos traços e símbolos com os quais o corpo é envolvido. Há nesse jogo simbólico um discurso suave sobre o ideal do que é a mulher e o homem. São filmes do século XX que provocam grande energia pela forma sensível e delicada que as imagens vão traçando a vastidão psíquica humana, tanto da solidão, como em Armadilha do destino, como na pressão territorial dos indivíduos nos aglomerados urbanos em O inquilino. Belo Horizonte, 2016. 1 semestre

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