O triângulo Faial- Pico-São Jorge como paisagem cultural marítima insular (séculos XVI a XX): uma primeira aproximação

June 7, 2017 | Autor: José Bettencourt | Categoria: Maritime Archaeology, Atlantic history, Underwater Archaeology, Azores, Maritime Cultural Landscapes
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O triângulo Faial-Pico-São Jorge como paisagem cultural marítima insular (séculos xvi a xx): uma primeira aproximação por  José Bettencourt * Patrícia Carvalho *

Introdução O “Projecto Integrado de Requalificação e Reordenamento da Frente Marítima da Cidade da Horta – 1.ª Fase”, desenvolvido entre 2009 e 2013, que compreendeu a construção de um novo terminal portuário a norte da baía da Horta, incluiu diversas fases de estudo e implementação de medidas de minimização do impacto sobre o património cultural subaquático, asseguradas pelo CHAM (Bettencourt e Carvalho, 2010; Bettencourt, 2012). Estes trabalhos permitiram localizar vários sítios de naufrágio e outros vestígios que documentam a navegação desde o século xvi e constituem o ponto de partida para uma abordagem à paisagem do triângulo, que surgiu como imperativo ao estudo dos vários sítios arqueológicos encontrados, mas também como desenvolvimento lógico dos nossos interesses científicos (Bettencourt, 2013). Na verdade, mais do que ver os sítios de naufrágio como “cápsulas do tempo”, na definição mais tradicional, esta pesquisa procura entender estes vestígios nos seus contextos naturais e culturais. De uma forma simplificada, esta abordagem, no âmbito da arqueologia da paisagem, foca-se na análise das evidências arqueológicas no seu quadro ambiental. Ou seja, o tema de interesse é a manifestação material das inter-relações entre o homem e o espaço ao longo do tempo, visando a compreensão da correspondência entre aspectos da cultura e os constrangimentos impostos pelo ambiente. Durante muito tempo, a arqueologia da paisagem pautou-se, por isso, por uma dicotomia entre uma aproximação mais ecológica (ecology approach), que descreve o ambiente como o sistema onde homem se adapta, e outra que vê a paisagem como um produto do homem, com significados e símbolos relacionados *

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com a sua percepção do espaço e numa perspectiva necessariamente diacrónica (Carter, 2012: 6-7). Em arqueologia marítima, esta abordagem ao território enquadra-se em duas perspectivas teóricas que se assumiram nas últimas décadas como contraponto ao excessivo interesse pelos sítios de naufrágio das primeiras décadas da disciplina, onde dominava o estudo do navio numa perspectiva de história das técnicas, e nas quais procuramos enquadrar a nossa investigação – aproximação regional e paisagem cultural marítima . Na primeira, proposta por Larry E. Murphy, privilegia-se uma perspectiva global sobre os sítios localizados numa determinada área, em vez da aproximação individual mais comum. A aproximação regional baseia-se na noção de que a determinação de “região” tem implícita a ideia de que uma concentração de naufrágios não é um acaso, mas sim uma amostra da navegação e dos navios utilizados numa área determinada, estruturada por factores naturais e culturais. Ou seja, os sítios arqueológicos subaquáticos disponíveis numa zona representam as actividades navais, interacções e conflitos, de todas as culturas marítimas que estiveram activas nessa área ao longo do tempo (Murphy, 1993: 374). A segunda alarga o campo da arqueologia ao estudo da paisagem cultural marítima (maritime cultural landscape), conceito proposto pela primeira vez por Christer Westerdahl durante prospecções efectuadas na Suécia entre 1975 e 1980 (Westerdahl, 1992). Este trouxe à arqueologia do meio aquático o instrumento que faltava à integração dos naufrágios no seu contexto náutico, promovendo-se a unidade entre os vestígios culturais de carácter marítimo localizados em terra ou em meio aquático, mas também os aspectos cognitivos, culturais e sociais das actividades marítimas na área de estudo (Westerdahl, 1994). Esta unidade e o alargamento da investigação a temas de carácter cognitivo tiveram consequências nos parâmetros a investigar, promovendo a análise de aspectos como a toponímia, as estruturas portuárias, as actividades costeiras, os sistemas defensivos, o registo arqueológico em sítios costeiros, a relação entre o povoamento e os portos ou a localização de naufrágios (Fig. 1). Estes parâmetros de carácter cultural, com localização terrestre e subaquática, são analisados no quadro de um ambiente em constante mutação, por vezes devido a alterações naturais (ecológicas, geomorfológicas ou hidrográficas), outras devido à pressão antrópica, que dão forma à linha de costa, aos cursos de água ou a outros constrangimentos às actividades humanas. Perspectiva-se e privilegia-se assim a análise diacrónica, numa abordagem contextualista e interdisciplinar, que procura organizar e analisar as fontes disponíveis, que podem ser escritas, iconográficas (em desenho ou fotografia), cartográficas, arqueológicas, orais e de carácter etnográfico. Nas últimas décadas, e também no quadro do nosso projecto, o estudo destas fontes faz-se numa perspectiva de análise do território, através da gestão dos dados numa base em Sistemas de Informação Geográfica (SIG) em constante actualização,

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Fig. 1 – Alguns parâmetros de análise das paisagens culturais marítimas.

onde se cruzam os diferentes temas disponíveis. Estes dados podem depois ser questionados de várias maneiras, como veremos a seguir, em exemplos que constituem apenas uma primeira abordagem, nesta fase muito centrada nos naufrágios e no Faial e no Pico, uma vez que os dados disponíveis para São Jorge não estão ainda devidamente sistematizados. Nas rotas do Atlântico Com a análise espacial da distribuição de naufrágios históricos (Fig. 2) nota‑se uma concentração junto aos principais portos do triângulo, sobretudo do porto da Horta, ou, como acontece no Topo (S. Jorge), em zonas perigosas para a navegação, os transit points de Christer Westerdahl (1992), pontos de transição importantes nas rotas de navegação.

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Fig. 2 – Distribuição dos naufrágios históricos no triângulo (dados base em Monteiro, 2000, revistos, para o Faial, noutras fontes consultadas pelos autores).

Numa perspectiva regional, esta concentração ganha especial relevância porque demonstra uma alteração significativa nas dinâmicas portuárias no arquipélago. De facto, apesar de uma tendência geral para o aumento dos naufrágios em todas as ilhas (Fig. 3), verifica-se um decréscimo do número de ocorrências na

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Fig. 3 – Distribuição em intervalos de 50 anos dos naufrágios nos três principais centros económicos do arquipélago registados nas fontes escritas (dados base em Monteiro, 2000, revistos, para o Faial, noutras fontes consultadas pelos autores).

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ilha Terceira a partir da primeira metade do século xvii e de um aumento na ilha do Faial ao longo da segunda metade do século xviii, com a sua máxima expressão no século xix, quando é a segunda ilha com mais naufrágios no arquipélago, só suplantada por São Miguel, o principal centro económico açoriano (Meneses, 2005). Verifica-se assim que os registos de naufrágios confirmam que a centralidade do porto da Horta no apoio à navegação no Atlântico se fez sobretudo a partir do século xvii, com o desenvolvimento do comércio com o Brasil ou das rotas mercantis Britânicas, entre a Europa e as suas colónias nas Antilhas, Nova Inglaterra e Terra Nova (Costa, 2011, 74; Duncan, 1972), mas sobretudo no século xix, com a baleação americana (Costa, 2012). A par de estudos históricos recentes (Meneses, 2005; Costa, 2005), a documentação da Capitania do Porto da Horta existente no Arquivo Central da Marinha é a este respeito bastante elucidativa (Corsépius, 2001; Corsépius, 2008). A análise estatística dos mapas de entradas e saídas do porto da Horta entre Janeiro de 1845 e Dezembro de 1850 (Corsépius, 2008) permite verificar que entre um total de 1430 navios, não contabilizando a navegação costeira, 759 eram americanos (53% do total), 388 eram portugueses (27%) e 204 eram britânicos (14%), sendo os restantes franceses (4%) e esporadicamente brasileiros, espanhóis, dinamarqueses, italianos, suecos ou de outras nacionalidades. A análise dos mesmos dados mostra também a sazonalidade de ocupação do porto da Horta, que tinha o seu expoente entre Julho e Setembro, quando era base de apoio essencial às frotas baleeiras, que aí abasteciam, faziam pequenas reparações ou descarregavam o óleo de baleia. Olhando para a paisagem, a distribuição dos vestígios arqueológicos subaquáticos conhecidos nos Açores parece confirmar o papel central no apoio à navegação no Atlântico dos portos de Angra nos séculos xvi e xvii e da Horta nos seguintes. Em Angra, na ilha Terceira, são vários os sítios de naufrágio dos séculos xvi e xvii, dos quais poderíamos destacar Angra F, Angra B ou Angra D, os últimos dois possivelmente navios espanhóis envolvidos na Carreira das Índias (Bettencourt e Carvalho, 2009; Bettencourt, 2011). No Faial o mais antigo sítio de naufrágio conhecido corresponde aos restos, dispersos (Fig. 4), da nau da Carreira Nossa Senhora da Luz, que naufragou em Porto Pim em 1615 quando voltava de Goa pela Rota do Cabo (Bettencourt, 2008). Mas neste caso, a aproximação ao porto da Horta pode ser vista como “escala providencial”, aproveitando a classificação do Doutor Ricardo Madruga da Costa, com outros exemplos documentados nas fontes durante o século xvi e nas primeiras décadas do século xvii (Costa, 2011, 69-80). A partir do século xviii assistimos a uma cada vez maior expressão do registo material faialense. Destaca-se, para a primeira metade, o naufrágio do marfim, um navio britânico que operava no Atlântico nas primeiras décadas do século xviii e que transportava uma carga de marfim africano na sua última viagem (Bettencourt e Carvalho, 2010), e para a segunda, BH003, onde se recuperou uma dezena de

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Fig. 4 – Porcelana chinesa recuperada no sítio de naufrágio da Nossa Senhora da Luz.

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canhões em ferro, também ingleses, mas mais recentes, da segunda metade do século xviii. O porto da Horta assumiu-se como uma escala técnica essencial para o império marítimo britânico e as fontes arqueológicas confirmam esta dimensão há muito reconhecida pela historiografia. Esta importância estratégica, de porto atlântico, manteve-se nas centúrias seguintes. Até há pouco tempo, os vestígios arqueológicos do século xix correspondiam apenas a abundantes materiais dispersos localizados no fundeadouro durante o acompanhamento das dragagens. Estes trabalhos permitiram porém localizar os restos de pelo menos dois navios construídos em madeira no século xix. O primeiro, Baía da Horta 4 (BH-004), foi localizado em 2010 e corresponde a um fragmento do costado que nos remete, pela sua pequena dimensão e pela ausência de outros depósitos arqueológicos, para o reaproveitamento da madeira de naufrágios, muitas vezes leiloados, possibilitada pela proximidade da costa e fácil acesso através da praia. O naufrágio ganha uma dimensão de oportunidade para as

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comunidades locais, facto confirmado pela correspondência da Capitania já referida, documentado em fotografia histórica ou demonstrado na paisagem por vários reaproveitamentos de madeiras na construção de habitações na cidade da Horta, como os fragmentos de uma quilha (Fig. 5) e de várias balizas existentes em Porto Pim (freguesia das Angústias).

Fig. 5 – Fragmento de uma quilha reaproveitado na construção de um edifício no Pasteleiro, freguesia das Angústias.

O segundo sítio de naufrágio oitocentista foi localizado em 2012 devido à alteração da cota de dragagem do novo terminal de passageiros, que obrigou ao alargamento da área de implantação da bacia de manobra. Os vestígios de Baía da Horta 6 (BH-006), parcialmente destruídos pelas dragagens, apresentam parte de um navio em madeira forrado a cobre, tecnologia que se divulgou sobretudo no século xix, na Europa e no continente americano, enquanto protecção das obras vivas dos navios que navegavam em águas mais quentes. O estudo deste sítio (Bettencourt et al., 2014), registado em Julho de 2013 (Fig. 6), ainda está numa fase muito inicial mas ganhou especial interesse quando recebemos os primeiros resultados da análise taxonómica das madeiras utilizadas na construção do navio, efectuadas por Teresa Quilhó, do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT). Carvalho de espécie indeterminada nas balizas; pinho de várias espécies nos forros. Mas o que torna mais interessantes estes resultados é que as amostras BH006 AM6

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Fig. 6 – O navio Baía da Horta 6 durante os trabalhos de registo de 2013 (foto: Friederike Kremer-Obrok).

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e BH006 AM9 se enquadram claramente na estrutura de P. strobus e P. lambertiana, espécies originárias do continente americano (América do Norte) (Quilhó, 2014). Este resultado, que poderá sugerir uma origem americana para o navio, é também interessante porque vai de encontro às fontes escritas. Por exemplo, das vinte e nove perdas ocorridas no porto da Horta entre 1839 e 1862, estão registados onze naufrágios americanos, sobretudo baleeiras, nove portugueses, quatro ingleses, três franceses e dois brasileiros (Corsépius, 2001). Sendo ainda cedo para conclusões definitivas, é para já possível levantar a hipótese de BH-006 corresponder ao que resta de uma baleeira americana, ganhando especial relevância enquanto vestígio material de uma fase crucial da afirmação do porto da Horta e da identidade açoriana, marcada pela emigração para a América ou pela introdução da baleação costeira em finais do século xix (Costa, 2012). Nas outras duas ilhas do triângulo, os sítios de naufrágio já documentados também são importantes. Em São Jorge, destacam-se os restos da fragata inglesa HMS Pallas, que serviu a coroa britânica durante 26 anos em inúmeras missões militares ao longo da costa ocidental africana, no Mediterrâneo e nas Caraíbas, e que naufragou na Calheta em Fevereiro de 1783, quando escoltava uma frota que viajava entre Halifax e Inglaterra. A perda do navio em São Jorge deveu-se a uma tempestade que o impediu de aportar à Horta, onde procurava refúgio devido ao mau estado do casco que se revelara durante a viagem (Garcia, 2002; Flynn, 2006).

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No Pico, onde foram localizados dois sítios, destacam-se os vestígios da barca francesa Caroline, que naufragou na Meia Broa, na Madalena, a 3 de Setembro de 1901, devido a um erro e ao mau funcionamento dos seus instrumentos de navegação (Quaresma, 1999). Neste exemplo, a localização do sítio arqueológico não tem relação com as dinâmicas portuárias do triângulo, mas revela o papel dos Açores enquanto ponto de passagem da navegação transoceânica, neste caso da Rota do Salitre que ligava a Iquique, no norte do Chile, permitindo abastecer a Europa de  salitre (nitrato de sódio), utilizado como fertilizante agrícola e no fabrico de pólvora1. Mas o aspecto mais interessante deste sítio diz respeito ao impacto a nível local. Na altura, todos os 36 tripulantes foram salvos devido à ajuda dos marítimos da Madalena e da Areia Larga, entre os quais se destaca a família dos “Chatinhas”. Este episódio preserva-se, por isso, na memória colectiva destas comunidades, encontrando-se ainda hoje conservados vários objectos recuperados na altura do naufrágio em casa dos seus descendentes. São exemplos um prato com a bandeira da Compagnie A-D Bordes, actualmente na posse de Manuel Rodrigues Marcos de Medeiros (Fig. 7), ou os planos do navio recentemente entregues ao Museu do Pico a pedido do João do Tio Alberto Xatinha, imigrado na Califórnia.

Fig. 7 – Prato com o monograma da Compagnie A-D Bordes.

431 Sobre o salitre ver, por exemplo, Steenhuis (2007).

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Complementaridades

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Além do impacto na paisagem e nas tradições locais legado pela passagem de navios envolvidos nas rotas oceânicas que cruzavam o Atlântico, a investigação até agora efectuada revelou uma paisagem costeira profundamente marcada pelas actividades marítimas. A complementaridade económica assumida pelas ilhas do arquipélago e a centralidade portuária da Horta, reconhecida pela investigação historiográfica, explica, no triângulo, a existência de uma multiplicidade de pequenos portos envolvidos em actividades pesqueiras ou comerciais. A existência desta rede portuária remonta ao início do povoamento, sendo difícil estabelecer a sua evolução, embora a descrição das costas do Faial, Pico e São Jorge de Gaspar Frutuoso dê conta da existência em finais do século xvi de pelo menos 16 portos (Frutuoso, 1998). A Porto Pim, na ilha do Faial, considerado o melhor porto das ilhas, contrapunham-se outros que não passavam de pequenos embarcadouros. Por exemplo, na costa sul da ilha do Pico, a maior parte das mercadorias comerciadas, gado e madeira, eram embarcadas na Calheta do Nesquim, onde não entravam navios acima de 15 ou 20 toneladas (Frutuoso, 1998: 127). Em muitos, as cargas eram atiradas ao mar, como acontecia na Ponta de André Rodrigues, entre as Lajes e São Caetano, onde se escoava madeira “deitando-a da rocha em baixo, no mar” (Frutuoso, 1998: 128). Outros eram embarcadouros e desembarcadouros de utilização sazonal ou temporária, dependente das condições de mar, como acontecia em Santo Amaro ou no Porto da Vila das Lajes (Barra das Lages). Depreende-se pelas descrições que estas unidades não possuíam estruturas de apoio na maior parte dos casos, excepto em São Roque onde existia um cais e um porto “que se fez ao picão” e onde se podia utilizar aparelhos para varar barcos grandes de 15 a 20 moios de pão (Frutuoso, 1998: 129). No século xvi, estes e outros portos do Pico (Calheta de Nesquim, Santa Cruz (Ribeiras), Portinho do Oleiro (Lajes), Criação Velha, Madalena, Ponta de André Gonçalves dos Lajidos, Furna de Santo António, Enseada debaixo da Igreja de São Roque, Piedade ou Santo Amaro), eram sobretudo utilizados para escoar madeira e gado. No caso da Piedade acrescentava-se o vinho e o trigo. No início do século xix esta rede portuária era muito mais densa, destacando-se uma multiplicidade de unidades existentes na fronteira com o Faial que permitia escoar o vinho do Pico, desde Santa Luzia até São Mateus (Fig. 8). Alguns destes portos continuam hoje em actividade, outros apenas perduram como topónimos, em cartografia antiga ou na tradição oral, ou como vestígios arqueológicos de inegável interesse científico e patrimonial. Destacamos, como exemplo, o porto do Mingato, entre o Monte a Candelária (concelho da Madalena), referido em cartografia de 1810-1812 (Fig. 8), e onde se encontram vestígios arqueológicos de uma unidade de produção de vinho, situada estrategicamente junto ao mar, que incluía vários arruamentos e construções, algumas com dois pisos (Fig. 9).

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Fig. 8 – Pormenor da rede portuária entre São Mateus e São Roque do Pico – Atanásio Adler, “Carta topographica da Ilha do Pico (…)” (1810-1812), Horta, 2 de Dezembro de 1862 (Biblioteca Nacional de Portugal).

433 Fig. 9 – Vista geral das estruturas existentes no Porto do Mingato.

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Uma visita recente revelou a existência de materiais arqueológicos de superfície, constituídos sobretudo por cerâmica comum de fabrico regional, embora se tenham também identificado fragmentos de faiança, cerâmicas vidradas ou produções em grés, já industriais. Um fragmento vidrado a verde é particularmente interessante nesta fase porque tem paralelos em alguidares de fabrico Sevilhano, conhecidos como lebrillos ou bacín na bibliografia anglo-saxónica e espanhola, e atribuídos por vários autores a um período entre 1490 e 1630 (Deagan, 1987: 28; Ponsford e Burchill, 1995: 316-317). A confirmar-se esta hipótese, a cronologia do Porto do Mingato poderia recuar ao século xvii ou mesmo xvi, tornando-se assim num contexto arqueológico com muito interesse para o estudo das estratégias de povoamento costeiro na ilha do Pico durante a época Moderna. Esta rede de pequenas unidades portuárias, que incluía também vários portos em São Jorge, ligadas entre si ou ao porto da Horta, que funcionava como porto principal, fazia-se com pequenas embarcações sobre as quais não temos evidências arqueológicas mas que conhecemos através dos registos históricos, de documentação iconográfica ou evidências etnográficas. Gaspar Frutuoso refere-se à utilização de fogueiras para sinalizar a existência de passageiros na costa do Pico que desejavam atravessar o canal em pequenos batéis do porto da Horta (Frutuoso, 1998:132). Os barcos do canal aparecem depois referidos em vários textos de viajantes, como é exemplo as Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, de início do século xx (1.ª ed. em 1926). Na documentação iconográfica, são representados na Vista da Baía da Cidade da Horta na Ilha do Faial de Purrington & Russel (c. 1842), do New Bedford Whaling Museum, ou mais recentemente em inúmeras fotos, algumas em arquivos familiares que documentam aspectos do quotidiano insular. Estes dados remetem‑nos para um património marítimo que ocupou uma função essencial na vida dos habitantes do triângulo até há poucas décadas, e que se encontra hoje em risco devido à falta de medidas de salvaguarda dos últimos vestígios de uma tradição construtiva com raízes no povoamento que terá perdurado durante quase cinco séculos. Esta rede de pequenos portos era também a base para actividades de exploração de recursos marítimos, como a pesca. A documentação escrita e cartográfica revela não só a existência de áreas propícias a esta actividade, como também algumas espécies pescadas ao largo do arquipélago. Na ilha do Faial, Gaspar Frutuoso assinala a existência de pesqueiros junto à costa, como por exemplo, o pesqueiro de Tilme, o pesqueiro Longo, o de Bastião Nunes, o de João Dias e o de Barba Feita (Frutuoso, 1998: 119). Na ilha do Pico o cronista destaca o Portinho do Oleiro, na zona das Lajes, e uma baía próxima da Prainha do Norte (Frutuoso, 1998: 127, 129). Raul Brandão descreve no Pico o baixio de São Mateus e a zona entre a Ponta Negra e a Ponta do Hospital (Brandão, 2001: 125-126).Os pesqueiros dispunham de recursos variados, segundo por exemplo a documentação do Convento de S. Francisco, que apesar das múltiplas referências genéricas à compra de pescado também menciona algumas espécies específicas. Salientam-se o chicharro branco, as bicudas

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e as cavalas, embora também se encontrem alguns crustáceos como caranguejos e lagostas. Além destas, encontram-se também menções ao arenque, à tainha e à sardinha. Informação desta natureza, apesar de lacunar, pode ser interessante para os estudos das espécies marinhas e do seu consumo na longa duração, uma vez que as referências estão associadas a determinados meses do ano e podem traduzir alguma sazonalidade nas capturas2. As fontes são também interessantes porque permitem estudar as artes de pesca. Raul Brandão, refere, por exemplo, que as bogas eram apanhadas com uma rede em forma de saco (enxalavara), a cavala à linha e anzol (à cana e à agulheira) e a dourada e os írios com um fio muito comprido com um grande anzol (alinhavão ou a pau) (Brandão, 2001: 126). De referir, também, que a partir de finais do século xix alguns destes portos foram a base para a caça à baleia a partir de terra, tema que tem sido estudado nos últimos anos (Dutra e Porteiro, 2010) e que resultou em várias estruturas em todas as ilhas do arquipélago3. Considerações finais O estudo das Paisagens Culturais Marítimas dos Açores abrange numerosas problemáticas que colocam as ilhas nas paisagens marítimas globais mas que encerram ainda um interesse para o estudo da história local. No que ao triângulo diz respeito, a historiografia e a documentação disponível revelam aspectos que não pudemos tratar aqui. A influência do mar no povoamento, nomeadamente das fajãs de São Jorge, a fortificação do território e infra-estruturação portuária, o impacto na paisagem da amarração dos cabos submarinos ou da passagem pela Horta dos navios de guerra durante os dois conflitos mundiais são apenas alguns exemplos.

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Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça, Convento de S. Francisco, Administração – 1665-1677, cx.8, livro 1. 3 Esta investigação passou pela inventariação dos vestígios nesta actividade em todo o arquipélago no quadro do projecto “IPBIA - Inventário do Património Baleeiro Imóvel dos Açores”, desenvolvido pelo Observatório do Mar dos Açores. 2

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