O triunfo do Casamento por amor: Jane Austen e o Matrimônio

September 19, 2017 | Autor: Elen Biguelini | Categoria: Jane Austen, História das Mulheres, Casamento, História Do Casamento, História Do Amor
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELEN BIGUELINI

O TRIUNFO DO CASAMENTO POR AMOR: JANE AUSTEN E O MATRIMÔNIO

CURITIBA 2009

ELEN BIGUELINI

O TRIUNFO DO CASAMENTO POR AMOR: JANE AUSTEN E O MATRIMÔNIO

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Paula Vosne Martins.

CURITIBA 2009

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que auxiliaram com a escrita de minha monografia, em especial minha orientadora Prof. Dra. Ana Paula Vosne Martins e minha família, bem como todos aqueles que fizeram parte de minha caminhada pelo curso de História, meus colegas e professores sem os quais não conseguiria ter conseguido mais esta conquista.

Jane Austen is weirdly capable of keeping everybody busy. The moralists, the Eros-and-Agape people, the Marxists, the Freudians, the Jungians, the semioticians, the deconstructors – all find an adventure playground in six samey novels about middle-lass provincials. And for every generation of critics, and reader, her fiction effortlessly renews itself. (Martins Amis)

RESUMO As mulheres, ao longo da História, tiveram poucas oportunidades de expor suas formas de ver e compreender o mundo que as cercava. Desta forma, não foram muitas AS que conseguiram escrever e publicar suas obras. Jane Austen foi uma destas poucas autoras, tendo deixado uma vasta obra na qual deixou suas impressões sobre a sociedade inglesa do fim do século XVIII e início do XIX. Através de três das obras finalizadas de Austen (Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito e Persuasão), esta monografia teve como objetivo compreender as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que se aventuraram pela escrita no fim do século XVIII e sobre o que escreveram. Ao mesmo tempo foi preciso conhecer qual a problematização sobre a família presente na historiografia que trata do sistema familiar inglês. A autora se posicionou através de personagens estereotipadas, que permeiam toda a obra austeniana.

Palavras Chave: família, casamento, literatura.

ABSTRACT Through History, women had little opportunities to expose their ways of seeing and understanding the world around them. Not many of them could write and publish their work. Jane Austen was one of this little group of authoress, having left us with a vast work in which the author left her impressions of the English society during the ending of the eighteenth century and beginning of the nineteenth. Through three of her finished books (Sense and Sensibility, Pride and Prejudice and Persuasion), this monography had the objective of understanding which were the difficulties encountered by female writers during the end of the eighteenth century and what they wrote about. At the same time, it was needed to comprehend the problematization made about family by the historiography about the English family system. Through stereotyped characters, which can be found all through Austen’s works, the author demonstrated her opinions about marriage.

Key-words: family, wedding, literature.

SUMÁRIO SUMÁRIO....................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ............................................................................................................7 1. COMO PODE UMA MULHER ESCREVER? ........................................................11 2. FAMÍLIA E CASAMENTO NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XVIII e XIX ..........20 3. O TRIUNFO DO CASAMENTO POR AMOR ........................................................35 CONCLUSÃO............................................................................................................45 REFERÊNCIAS.........................................................................................................47 OBRAS CONSULTADAS ..........................................................................................49

INTRODUÇÃO

“Men have had every advantage of us in telling their own story. Education has 1 been theirs in so much higher a degree; the pen has been in their hands.”

As mulheres, ao longo da História, tiveram poucas oportunidades de expor suas formas de ver e compreender o mundo que as cercava. Desta forma, não foram muitas que conseguiram escrever e, principalmente publicar suas obras. Mesmo assim enfrentaram muitas dificuldades para publicar, enfrentando uma crítica severa, não só dos homens como também das mulheres que liam suas obras e ou não viam com bons olhos as mulheres que escreviam profissionalmente. A escrita destas mulheres do passado não faz parte de uma tradição literária, embora algumas das temáticas utilizadas pelas mulheres sejam semelhantes às obras não constituem uma unidade estética nem mesmo histórica. As mulheres escreviam sobre seu cotidiano, mas de forma muito diversa umas das outras. Mary Woolstonecraft escreveu literatura, ensaios filosóficos sobre a situação da mulher e de seus direitos; Austen escreveu sobre o cotidiano feminino através de romances com um ponto de vista muito próprio sobre o amor; Mary Shelley escreveu uma obra que pode ter iniciado a escrita ficcional-científica; Elizabeth Gaskell escreveu sobre a Inglaterra em plena Revolução Industrial; e as irmãs Brontë produziram diversas formas de literatura. Desta forma, não se percebe uma unidade entre suas literaturas. A única semelhança entre elas é a de terem sido inglesas que recebiam dinheiro, mesmo sendo pouco, por suas publicações. A Inglaterra do início do século XIX é onde estas escritoras viveram, escreveram e publicaram numa época em que a escrita de mulheres começava a ser mais aceita, o que pode ser percebido pela grande quantidade de publicações de mulheres nesta época. As obras destas autoras, como de muitas outras tratam do cotidiano a partir de um ponto de vista exclusivo delas, que nos foi deixado através de seus textos. Desta forma, a literatura produzida por elas nos dá acesso à percepção de outro ponto de vista da História e da criação literária: o destas

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“Homens tem toda a vantagem em contarem sua história. Educação foi sempre deles em maior grau, a caneta/pena tem estado em suas mãos”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p.225.

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mulheres que se casavam ou não, mas que dependiam do dinheiro que a escrita lhes gerava como forma de sustento. Dentre estas autoras Jane Austen talvez seja a mais conhecida atualmente fora da academia. Suas obras receberam uma vasta quantidade de adaptações, tanto filmes quanto minisséries. “Orgulho e Preconceito”, por exemplo, já teve sete, dentre delas uma minissérie para televisão, filmada pela ABC britânica em 1995, que tinha Colin Firth e Jennifer Ehle como protagonistas; um filme de Bollywood, chamado “Noiva e Preconceito” e uma adaptação de Hollywood, estreada por Keyra Knigley e Matthew Macfadyen. Austen deixou as impressões de sua sociedade em seis obras acabadas, duas inacabadas e uma vasta quantidade de textos curtos, escritos ainda em sua infância. Este vasto conjunto de obras trata de uma grande quantidade de assuntos, entre eles o amor, o casamento, a família e a amizade. Através de três das obras finalizadas de Austen, esta monografia teve como objetivo compreender quais eram as dificuldades enfrentadas pelas autoras do fim do século XVIII e sobre o que escreviam ao mesmo tempo em que foi preciso conhecer qual o modelo aceito pela historiografia para definir o sistema familiar presente na Inglaterra deste período. O modelo de família moderna é compatível com a obra de Austen por apresentar características que podem ser percebidas em sua obra, tais como a maior intimidade entre os membros da família, a clara divisão entre feminino/privado e masculino/público e a importância dada ao indivíduo. Este modelo de família também nos levou a uma outra questão tratada igualmente pela historiografia e pela autora, o casamento por amor. Desta forma, para compreender os assuntos tratados por Austen e a forma como a autora se relaciona com eles, foi necessário compreender em linhas gerais a organização da sociedade inglesa na qual ela viver e sobre a qual ela também escreveu. Desta forma, esta monografia foi dividida em três capítulos que trataram inicialmente da sociedade na qual se inseria Austen, sobre a escrita de algumas mulheres e, finalmente, sobre a temática do casamento na obra de Austen, abordando questões relacionadas ao casamento por amor como oposição ao casamento por dinheiro. A divisão foi a seguinte: “Cap. 1. Como pode uma mulher escrever?”, “Cap. 2. Família e Casamento na Inglaterra dos Séculos XVIII e XIX” e “Cap. 3: O triunfo do casamento por amor”.

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O primeiro capítulo da monografia foi destinado à discussão sobre a escrita de mulheres. Durante um longo período as vozes femininas na literatura foram escassas, mas após o século XVIII um número cada vez maior de mulheres conseguiu deixar provas de sua existência no tempo, muitas vezes através da própria escrita, tanto de diários e cartas, quanto da escrita literária ou filosófica. Desta forma, este capítulo tratou da escrita de algumas destas mulheres, tais como Austen e Woolstonecraft, de suas dificuldades e dos meios encontrados por elas para poderem escrever. O objetivo deste capítulo foi discutir a possibilidade da escrita feminina e as dificuldades que algumas delas que conseguiram publicar enfrentaram. Para esta discussão recorremos às autoras que refletiram sobre tais questões tanto a partir da crítica literária feminista, como a obra de Aparecido Donizete Rossi sobre a falta de unidade na escrita de mulheres, quanto da literatura de Virginia Wolfalém da teoria de gênero e da História das mulheres. Sobre a obra de Austen, especificadamente Janet Todd e Mary Poovey escreveram sobre a autora de um ponto de vista da crítica literária. Desta forma, para compreender as dificuldades encontradas pelas mulheres que decidiram escrever, foi necessário conhecer estudos do campo literário. Também para compreender a literatura austeniana foi necessário conhecer sua vida, através de biografias deixadas por seus sobrinhos (Austen-Leight). No segundo capítulo foram discutidos temas como o casamento e a família, que são reiterados nos textos escritos por mulheres neste período, pois eram temas presentes no cotidiano das mulheres e faziam parte de suas expectativas sociais. Obras como as de Jane Austen culminam em um casamento feliz, pois o matrimônio era o destino esperado de uma mulher que fosse sua contemporânea. Tendo em vista a presença marcante do casamento e da família tanto na vida de Jane Austen e de muitas outras autoras do século XVIII, quanto em suas obras, este capítulo procura apresentar as maneiras como casamento e família eram tratados na sociedade inglesa dos séculos XVIII e XIX, como também discute a necessidade do matrimônio para as mulheres e das especificidades do sistema matrimonial inglês. Para esta discussão foi necessário conhecer a historiografia referente à História da Família. Segundo algumas interpretações o momento em que Austen viveu seria contemporâneo à constituição da família moderna, conceito presente em Phillip Ariès, Edward Shorter e James Casey, mas também na obra de Austen. As

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especificidades encontradas na Inglaterra, neste período, foram tratadas por Alan McFarlane, segundo o qual a escolha de casar, não casar, ou com quem casar era do indivíduo. Para o autor, as pressões sociais não são relevantes para esta escolha na Inglaterra daquele período. No entanto, a obra de Jane Austen demonstrou que estas pressões existiam e influenciavam a escolha do indivíduo. O terceiro capítulo desta monografia foi dedicado ao casamento na obra austeniana. Nele foram discutidas as idéias de Austen quanto ao casamento por amor e por dinheiro. A autora recorreu ao uso de estereótipos para descrever quais seriam as melhores formas de união matrimonial e neste capítulo analisamos três livros de Jane Austen, selecionando suas interpretações e críticas sobre o casamento, fosse através do ponto de vista de suas personagens, ou através da análise dos próprios personagens e/ou de suas famílias.

1. COMO PODE UMA MULHER ESCREVER?

“A liberdade intelectual depende de coisas materiais. E as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos 200 anos, mas desde o começo dos 2 tempos” .

Durante um longo período as vozes femininas foram escassas, mas após o século XVIII um número cada vez maior de mulheres conseguiu deixar provas de sua existência no tempo, muitas vezes através da própria escrita, tanto de diários e cartas, quanto da escrita literária ou filosófica. Desta forma, este capítulo trata da escrita de algumas destas mulheres, de suas dificuldades e dos meio encontrados por elas para poderem escrever. O objetivo deste capítulo é discutir a possibilidade da escrita feminina e das dificuldades que algumas das mulheres que conseguiram publicar suas obras enfrentaram. A literatura é predominantemente masculina e poucas foram às mulheres que puderam ou conseguiram ir bater contra esta noção se aventurando no campo da literatura. Virginia Woolf3 sublinhou a necessidade da mulher ter um teto todo seu para que pudesse escrever. Na verdade, o que Woolf argumenta é que as mulheres não podiam escrever, em grande parte, porque não tiveram a autonomia financeira necessária para tal. As mulheres que optaram pela escrita sofreram com as pressões e críticas que lhes eram colocadas pela sociedade. Devido a isso, poucas mulheres fizeram esta escolha, sendo que boa parte delas optou por permanecer anônima4, uma forma de sofrer menos represálias. Assim mesmo alguns nomes de mulheres conseguem se destacar ao longo da História. As autoras renascentistas, por exemplo, tinham freqüentemente uma figura paterna que as encorajavam aos estudos ou que as educava. Isto permitiu que estas mulheres tivessem contato com assuntos que seriam considerados predominantemente masculinos, tais como a filosofia e o amor5. Desta forma, estas autoras conseguiram escorrer sobre temáticas que foram tão distantes para outras mulheres de sua época. 2

WOLF, Virginia. Um Teto todo seu. p 132. Op. Cit. 4 História das Mulheres. Vol.3. p 459. 5 Ambos os assuntos tratados por Tullia D´Aragona, cortesã e filha de outra cortesã, cujo pai encorajou os estudos. D´Aragona não foi a única mulher humanista a escrever. 3

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O apoio paterno esteve presente na educação de muitas autoras em diferentes épocas. Entre elas se encontra Jane Austen, que viveu em um período no qual a escrita feita por mulheres já era mais aceita pela sociedade e no qual até mesmo a “profissão” de autora lhes era permitida. Durante o século XVIII, algumas mulheres conseguiram até mesmo serem sustentadas por seus ganhos editoriais. No entanto, escrever não era uma profissão honrável para a mulher. As profissões assim consideradas ainda eram aquelas apontadas por Mary Woolstonecraft: preceptora, governanta, dama de companhia e modista6. A autoria literária não se encontra entre elas mesmo que a escrita tenha sido a escolha de “um número crescente de mulheres de classe médias desesperada”

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que tiveram que escrever

como forma de sustento. Foram poucas, no entanto, as autoras que conseguiram sucesso com a publicação de suas obras. Elizabeth Montagu, Emily Boscawen, Hester Chapone e Hannah More são exemplos de mulheres cuja reputação não foi abalada com a publicação de seus livros e que conseguiram obter sucesso. “Thus they helped elevate what had been genteel amateurism into an acceptable professional carrear”8 e, desta forma, facilitar o caminho percorrido por escritoras posteriores. Mas o sucesso não é a regra. Jane Austen, por exemplo, não conseguiu se manter com a venda de seus livros, e tanto ela quanto sua irmã Cassandra permaneceram solteiras e foram sustentadas por seus irmãos que destinavam uma renda mensal para elas. Austen, entre outras mulheres que escreveram no fim do século XVIII, optou pelo anonimato em suas obras. Como as publicações são uma ocupação pública, ela entrou em choque com os papeis de esposa, mãe e filha que cabem às mulheres, atacando as características mais frisadas da educação de uma moça deste período: a modéstia e a castidade9. E aquelas mulheres que publicam sob seu verdadeiro nome tentavam justificar a publicação com razões financeiras10. Escrever, segundo Poovey, seria “assume the initiative of creator, to imitate the Creator; and, as Sandra Gilbert and Susan Gubar have pointed out, it is to usurp 6

HUFTON, Olwen. Mulheres, trabalho e família. In. DUBY; PIERROT . História das Mulheres. p.69. 7 Idem 5. 8 “Desta forma elas ajudaram a elevar o que era um amadorismo refinado a uma carreira profissional aceitável”. Tradução Livre. POOVEY, Mary. The Proper Lady and the Women Writer. p. 37. 9 Castidade “Foi o resquício do sentimento de castidade que ditou o anonimato às mulheres até mesmo no século XIX”. WOLF. Op. Cit. p.63. 10 POOVEY. Op. Cit. p.39.

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the male instrument of power, the phallus that the pen may symbolize”11. Desta forma, ao escrever, as mulheres estariam incomodando12 e usurpando um espaço essencialmente masculino, mesmo que não o percebessem, pois as mulheres que cruzaram esta linha “tough of themselves as text book Proper Ladies even as they boldly crossed the borders of that limited domain”13. Além das dificuldades impostas pela sociedade, as mulheres que optaram pela publicação de suas obras se deparavam com uma grande dificuldade no próprio meio editorial. Janet Todd explicou as quatro possíveis formas de publicação no século XVIII: a primeira seria “sell the copyright and avoid further anxiety over production and sales”, de forma que a autora abria mão de todos os direitos sobre a obra; a segunda consistiria em “persuade a publisher to underwrite cost and share profits”; o terceiro método era o mais comumente usado por mulheres “get a subscription list to pay for publication; relying on friends, relatives, and patrons”; ou a quarta opção, mais rara “publish on commission, so paying for the book production, receiving profits minus a commission, and accepting any lost” 14. Poovey lembra que além da dificuldade de conseguir patrocinadores15, as mulheres que publicavam seus livros muitas vezes sofriam também com os maltratos e grosserias de seus editores, além do ar de superioridade da crítica. Segundo a autora:

“the kind of critical indulgence male reviewers accorded women served to keep them in their proper place more effectively than even the most hostile criticism would have; it flattered the more tractable women into complaisance 16 and humiliated the more discerning” .

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“assumir a iniciativa de criador, imitar o Criador; e, como Sandra Gilbert e Susan Gubar colocaram, isto é usurpar o instrumento masculino de poder, o falo que a pena pode simbolizar”. Tradução Livre. Op. Cit. P.36. 12 “As mulheres escritoras incomodam”. Grifo da autora. MACHADO, Lia Zanotta. Estudos de Gênero: para além do jogo entre intelectuais e feministas. p.100. 13 Estas mulheres “se consideram perfeitas damas corretas mesmo que tenham bravamente cruzado as linhas deste domínio limitado” que cabe a mulher. Tradução Livre. POOVEY. Op. Cit. p.40. 14 “Vender o direito autoral e não mais se preocupar com produção e vendas. (...), persuadir um editor a diminuir custos e dividir lucros (...), conseguir uma lista de assinantes que pagassem pela obra; dependendo de amigos, parentes ou patronos (...), publicar através de comissão, pagando pela produção do livro, recebendo os lucros com a exceção de uma comissão, e aceitando quaisquer perdas”. Tradução Livre. TODD, Janet. A Cambridge Introduction to Jane Austen. p. 11. 15 Já que as mulheres não tinham liberdade financeira, elas necessitavam de patrocinadores que eram normalmente membros da família, que falassem como os editores e financiassem suas obras. 16 “o tipo de crítica masculina dada às mulheres servia para mantê-las em seu lugar mais efetivamente do que a crítica mais hostil faria; lisonjeavam as mulheres mais tratáveis e humilhava a que mais compreendia”. Tradução livre. POOVEY. Op. Cit. p.39.

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Jane Austen, que após sua morte teve tanto sucesso, conseguiu a comissão de Razão e Sensibilidade no valor de apenas £110, a mesma quantidade que recebeu pelos direitos autorais de Orgulho e Preconceito. Se a autora tivesse optado pela venda desta última obra através de comissão ela teria tido um lucro muito maior, mas a autora ainda não havia recebido os lucros de sua primeira publicação quando vendeu Orgulho e Preconceito. Austen ficou conhecida na literatura inglesa por uma linguagem característica: a ironia, que é a maneira utilizada pela autora para desafiar o sistema patriarcal. A ironia é o que Rossi chamaria de subtexto17, a marca invisível deixada “na solidez de uma superfície que um dia foi escrita, posteriormente apagada, e então reescrita”

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.

Ou seja, Rossi caracteriza a escrita de mulheres como repleta de subtextos que são perceptíveis apenas por leitoras mulheres, pois aos olhos da literatura masculina as subjetividades do texto feminino seriam algo inferior, opaco e indefinido19. Para compreender o texto das mulheres é preciso compreender que “o diálogo entre [esse] texto e seus subtextos, entre o dito e o não dito, entre significantes e significados é infinito, gerando uma pluralidade de experiências que reproduzem a descoberta das pluralidades do corpo 20 feminino e de outros corpos” .

Desta forma, a escrita de mulheres é complexa, assim como o próprio corpo feminino e, logo, difícil de ser compreendido pelos homens. Assim como tudo que é estranho, a escrita feita por mulheres – e a própria mulher – gera ansiedade e medo aos homens, que, ao não poderem controlar e submeter suas vozes, acabam olhando para sua escrita como inferior. A crítica masculina, no entanto, é apenas mais um entre os obstáculos encontrados

pelas

mulheres

que

optaram

pela

escrita,

assim

como

as

contrariedades da sociedade e as dificuldades de publicação. No entanto, a tradição da escrita masculina coloca outro impedimento na escrita feita por mulheres: a angústia da autoria21. Como a escrita de mulheres não se encontra dentro de uma tradição, as mulheres que escreveram não se encontravam amparadas por suas antecessoras, 17

“é no subtexto, em suma, que se articulará um Feminismo que tentará minar as oposições patriarcais”. ROSSI. Pena como Metáfora para o Falo. p.31. 18 Op. Cit. p.33 19 Op. Cit. p.32 20 Op. Cit. p.39 21 Tradição e angústia da autoria são termos colocados por ROSSI. Op. Cit.

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desta forma, segundo Rossi, esta falta de bases teóricas causaria nelas “um medo da incerteza, o medo de ser uma voz única gritando” 22. Já que a criatividade é masculina e as imagens de mulheres trazidas pela literatura tradicional são “fantasias masculinas”

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que se transformam em

estereótipos da figura feminina24 é negado à mulher o poder de criar suas próprias imagens de feminilidade, da mesma forma que a dificuldade de encontrar traços que as liguem entre si não permite uma “tradição de escrita feminina”. As mulheres que escreveram trataram de uma grande pluralidade de temáticas e usaram formas de linguagem que não permitem unificá-las, a não ser pelas subjetividades e pela presença do subtexto colocado por Rossi. Essa “arma” contra a hostilidade da sociedade aparece em diversas maneiras, algumas como mais ou menos sucesso e pode também ser perceptível na vida de algumas autoras. “Centenas de mulheres começaram, no decorrer do século XVIII, a contribuir para o provimento das despesas pessoais ou ir em socorro da família, fazendo traduções ou escrevendo os inúmeros semanais de má qualidade”25 e, desta forma, foram vagarosamente adentrando um espaço predominantemente masculino. Mas as mulheres que assim o fizeram não poderiam simplesmente passar a escrever sobre vários assuntos e várias temáticas. Os campos da filosofia e da política ainda eram produzidos para uma dama correta e, por mais que algumas autoras como Woolstonecraft o tenham feito, escrever sobre esses assuntos demandava um alto conhecimento destas áreas, conhecimento este que não fazia parte da educação feminina. Desta forma, a política e a filosofia não fazem parte desta grande produção de literatura escrita por mulheres no fim do século XVIII. Um tema freqüente para um livro feminino são os manuais de educação, um gênero literário que aumentou o poder da figura da “proper lady” (dama correta) colocada por Poovey26. Estes manuais, mesmo escritos por mulheres, reproduziam os mesmos estereótipos da figura feminina encontrado na literatura e nos manuais 22

Op. Cit. p.25. MOI, Toril. Sexual/Textual Politics p.57. 24 Estes estereótipos seriam, para Eilmann: “formlessnes, passivitiy, instability, confinement, piety, materiality, spirituality, irracionality, compliancy and finally the `two incorrigible figures´ of the Witch and the Shrew”. (“falta de estilo, passividade, instabilidade, confinamento, devoção, materialismo, espiritualidade, irracionalidade, submissão e finalmente as duas figures incorrigíveis da Bruxa e da Megera”. Tradução Livre). EILMAN. Apud. MOI, Toril Sexual/Textual Politics p. 34. 25 WOLF. Op. Cit. p.81. 26 POOVEY. Op. Cit. 23

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escritos por homens. Woolstonecraft, em Vindications of the right of women, que também é um manual, critica os manuais de educação que a precedem (tanto escrito por mulheres quanto por homens) justamente, pois continuavam trazendo estas figuras estereotipadas. Estes manuais eram, na maioria das vezes, muito conservadores. Jane Austen, através de uma de suas personagens, colocou o quão radicais eram alguns destes livros ou algumas de suas leitoras. Através dos manuais de educação feminina, as moças eram educadas a serem boas, castas e prendadas. Em Orgulho e Preconceito, Mary Bennet (irmã da heroína, Elizabeth Bennet) segue a risca estes manuais de educação feminina e, desta forma, percebe-se que as leitoras deste tipo de literatura acabam não tendo personalidade e identidade próprias, agindo exatamente como a sociedade esperava delas, sem criatividade e sem qualquer independência. Outro gênero das escritoras mulheres eram as novelas, bastante lidas por elas. Woolstonecraft é contra a leitura deste tipo de literatura, justamente porque ela “aliena” as mulheres e, segundo Poovey, ao invés de encorajá-las a perceber sua posição social, lhes dá uma compensação, uma gratificação que não permite que olhem para si27. Mas a própria Woolstonecraft percebe a função didática do romance. Ao escrever Mary, a fiction: or the Wrongs of Women a autora tenta educar as mulheres através dos erros de sua personagem28. Jane Austen defendeu o romance e até mesmo dedicou uma obra parodiando os romances góticos que eram tão lidos por suas contemporâneas. Northanger Abbey29 é tanto uma crítica aos exageros do estilo gótico, quanto uma homenagem a eles. Segundo Dulong, “o gênero romanesco, aquele a que se dedicavam de preferência as mulheres escritoras, poderia, no entanto, ter-lhes permitido audácias disfarçadas. Mas não! As suas heroínas não se afastavam das normas de decência impostas

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POOVEY. Op. Cit. p.38. Ou dela própria, sendo que a obra tem muitos caracteres autobiográficos. 29 Northanger Abbey foi a primeira obra finalizada e vendida por Austen (ainda intitulada Susan). Com a demorada publicação da obra, Austen comprou o manuscrito novamente, e o livro só foi publicado, então com o atual título, após sua morte. Catherine Morland,a heroína, é uma ávida leitora de romances góticos. Ela, como é muito inocente, tem dificuldade em separar aquilo que é realidade do que é imaginação. 28

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ao seu sexo e era preciso uma violação para que elas perdessem a 30 inocência” .

Ou seja, o romance permitiria à autora um grande choque com a sociedade da época, mas isto não acontecia. Uma explicação para isto seria a necessidade de lucro e se a crítica não aceitasse o livro ou a sociedade o categorizasse como impróprio, ela não teria sucesso editorial, o que era de grande importância para as autoras do século XVIII que passavam a escrever como forma de sustento. Foi grande o número de mulheres que escreveu estes romances chamados por Virginia Wolf de “semanais de má qualidade”

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que não iam além do que era

permitido pela sociedade. A maior parte destas mulheres se tornou desconhecida e foi esquecida ao longo da história. No entanto, alguns nomes conseguem transcender esquecimento e são conhecidas até hoje. A obra de Jane Austen, por exemplo, cruzou as fronteiras da Inglaterra com uma inúmera quantidade de traduções e de adaptações tanto televisivas quanto cinematográficas, enquanto a obra de Mary Woolstonecraft ficou marcada na literatura feminista, tendo sua obra sido considerada precursora do feminismo, com sua crítica a educação das meninas. Para ela, a educação feminina era inteiramente baseada na visão masculina e patriarcal o que seria, segundo críticas feministas, centrado no medo do homem da sexualidade feminina. Esse medo leva a criação de regras que controlam a mulher e acabam criando uma imagem dicotômica: a mulher que é louca, histérica ou que representa o mal se opõe à figura da mãe, símbolo de modéstia e figura angelical32. Para Mary Woolstonecraft as meninas são educadas para agradar aos homens33, sendo assim apenas um brinquedo34 destes, mas se fossem educadas de modo diferente as mulheres conseguiriam executar tarefas diversas daquelas que no século XVIII eram permitidas executar, pois as mulheres eram educadas da mesma maneira que uma nobre, se a necessidade as levasse ao trabalho, não tinham

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DULONG, Claude. Da Conversação a Criação. In. DUBY; PIERROT. História das Mulheres. Vol. 3. p.488. 31 Idem 22. 32 A imagem angelical das mulheres do século XVIII é tratada por Poovey, que a coloca como uma idealização da figura da mulher, uma imagem angelical e assexuada: “Angelical women, superior to all physical appetite, resides the`female`sexuality that was authomatically assumed to be the defining characteristic of female nature”. POOVEY. Op. Cit. p.19. 33 Primeiro ao pai e aos irmãos, depois ao marido. 34 Juguete na tradução para o espanhol. WOOLSTONECRAFT. Vindicacciones de los derechos de las mujeres. p.148.

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opção. Sua educação, então, podia levá-las, segundo Woolstonecraft, à prostituição comum e legal35, pois não as defendia do acaso e da necessidade. A obra apaixonada e revoltada desta escritora não foi aceita pela sociedade do século XVIII, sendo criticada quando publicada e esquecida por muitos anos. Com o advento do feminismo, a escrita de Woolstonecraft voltou a ser lembrada pela crítica literária feminista. Uma autora que passou a escrever pouco após a morte36 de Woolstonecraft foi Jane Austen, que não fez sucesso em sua própria época, mas não foi esquecida pela literatura inglesa, tendo sido inserida no rol de escritores ingleses. Sua obra também foi criticada no período em que foi publicada, como a de Woolstonecraft, mas a crítica foi muito mais branda e amigável com a escrita austeniana que é menos radical que a de sua antecessora. Jane Austen, nascida em 16 de Dezembro de 1175, em Steventon37, condado de Hampshire, no sul da Inglaterra, dedicou-se à escrita desde sua infância. Suas primeiras obras, chamadas pelos especialistas de Juvenilia,consistem de contos, são estes: Love and Friendship (Amor e Amizade), The Three Sisters (As três irmãs), Frederik & Elfrida, Jack & Alice, Leslie Castel e Henry & Eliza, entre outros. Austen teve seis irmãos e uma irmã, Cassandra, para os quais enviava os rascunhos de seus livros pedindo sua opinião38. Tanto Jane quanto Cassandra permaneceram solteiras, embora muitos estudiosos afirmem que ela tivesse negado muitos pedidos de casamento. Sua família se mudou para a cidade de Bath em 1801, mas quatro anos depois, com a morte do pai, mudou-se para Southampton e logo depois para a casa de um de seus irmãos, em Chawton. Esta última morada é o local onde Austen produziu sua obra mais madura, enquanto a estada em Bath, que fica na costa da ilha inglesa e era visitada pela alta sociedade no verão ou em caso de doenças devido a suas águas medicinais, ficou marcada na obra austeniana. Bath é sempre mencionada em suas obras e parte de Northanger Abbey e Persuasão se passa no local. Em 1816 a saúde da autora ficou debilitada, o que levou a família de Austen a mais uma mudança, desta vez para Winchester, onde Jane Austen morreu em 1817. A autora deixou uma obra que se compõe de sua Juvenilia, seis obras acabadas e 35

Op. Cit. p.322 e 323. Woolstonecraft morreu no parto de sua filha Mary Shelley, autora de Frankenstein. 37 Em uma casa paroquial, na região onde seu pai exercia a profissão de pároco. 38 Assim como fazia com amigos e conhecidos. 36

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três inacabadas. Os quatro livros publicados ainda em vida foram, em ordem de publicação, Sense and Sensibility (Razão e Sensibilidade), Pride and Prejudice (Orgulho e Preconceito), Emma e Mansfield Park (traduzido como Palácio das Ilusões em filme de 1999). Persuasion (Persuasão) e Northanger Abbey foram publicados após sua morte por seu irmão Henry Austen. Nas quatro obras publicadas ainda em vida da autora, os livros são assinados “by a lady”39, mas quando Northanger Abbey e Persuasão foram publicadas em 1817, seu irmão explicou a autoria de todas as obras austenianas através de um prefácio assinado por ele. Austen tratou em suas obras do cotidiano da vida feminina. Sempre através de uma heroína, a autora traçou o cotidiano de um grupo familiar, seus amigos e vizinhos. Além desta descrição da sociedade, Austen faz através da voz de suas personagens uma crítica aos costumes de sua época, dos exageros e da situação feminina.

Através

de

um

grande

número

de

figuras

estereotipadas40

e,

principalmente, de uma linguagem irônica, Austen transforma atitudes exageradas, egoístas ou ultrapassadas em situações cômicas. Assim, o leitor corrobora a crítica a algumas das atitudes do meio social enfocado por Austen. Os seis livros da autora se iniciam num ambiente familiar, no qual um de seus membros será o foco principal da obra, a heroína. Esta pode ou não ter olhos críticos sobre sua própria família, mas é através dos pequenos acontecimentos do dia-a-dia que Austen tratou das pressões sociais presentes naquele meio familiar e freqüentes no cotidiano dos séculos XVIII e XIX. Já inserida em um período no qual o individuo é de grande importância, suas obras trazem questões referentes ao indivíduo dentro de seu meio social e de uma busca pelo ser que culmina, em todas as suas obras, com o casamento. Quando sua heroína aprendeu tudo que deveria aprender com a sociedade é que Austen a une com seu futuro marido. Ou seja, quando suas heroínas estão prontas para ver seus próprios erros ou os erros daqueles que estão próximos a ela, é que seu amor poderá ser completo. A felicidade e o casamento são então ligados, na obra austeniana, através do sentimento amoroso. 39

A autora assinava com “By a woman” (por uma mulher) ou como pela autora de Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito. 40 Figuras estas que se assemelham à crítica colocada por Mary Woolstonecraft à sociedade, mesmo que não haja comprovação do conhecimento da obra de Woolstonecraft nas obras e cartas deixadas por Austen.

2. FAMÍLIA E CASAMENTO NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XVIII e XIX

It is a truth universally acknowledged that a single man, in possession of 41 good fortune, must be in want of a wife .

Temas como o casamento e a família são comuns em textos femininos, pois são discussões freqüentes no cotidiano das mulheres e fazem parte de suas expectativas sociais. Obras como as de Jane Austen culminam em um casamento feliz, pois o matrimônio era o destino esperado de uma mulher que fosse sua contemporânea. Tendo em vista a presença marcante do casamento e da família tanto na vida de Jane Austen e de muitas outras autoras do século XVIII quanto em suas obras, este capítulo trata da presença destes temas na sociedade inglesa dos séculos XVIII e XIX, além de uma discussão sobre a necessidade do matrimônio para as mulheres e das especificidades do sistema matrimonial inglês. O século XVIII foi definido pela historiografia como um momento de transição no qual novas formas de pensamento começaram a se configurar. Os países nos quais estas mudanças podem ser mais bem percebidas foram a Inglaterra e a França. A França foi um dos lugares de maior expressão do Iluminismo. A Inglaterra, por sua vez, começa um período de aceleradas mudanças sociais, como aquelas proporcionadas pela distribuição das terras, que era até então a maior fonte de dinheiro e poder. Ao mesmo tempo em que o país sofria mudanças políticas, também aconteceram mudanças sociais que influenciam o cotidiano inglês, desde suas atividades públicas quanto as mais privadas, relacionadas ao meio familiar. Para definir o século XVIII, os historiadores de família descrevem um modelo de família presente tanto na Inglaterra quanto no resto da Europa, o da família tradicional. Por este modelo, a família, segundo Shorter, seria “muito mais uma unidade produtiva e reprodutora do que uma unidade emocional”

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, ou seja, o

coletivo seria mais importante do que o individual, sendo que a comunidade estaria

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“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, que possua uma boa fortuna, deve estar à procura de uma esposa”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.1 42 SHORTER. A formação da Família Moderna. p.10.

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acima das ambições e desejos pessoais. As sociedades nas quais este modelo era percebido, davam grande importância à honra e à pureza. A honra de uma família garantiria seu prestígio e as famílias que a perdessem também perderiam sua credibilidade. O mesmo poderia ser dito sobre a pureza que unida à honra eram valores importantes para a moral linhagista, visto que “o mundo tradicional optou por reforçar a monogamia vitalícia e por impor o cálculo racional do interesse objectivo da família à paixão sexual, um impulso que se temia por irracional e que todos sabiam achar-se logo abaixo da superfície” 43. A figura paterna, neste modelo tradicional, seria o seu centro que consistia não somente de pai, mãe e filhos44, mas ao qual também pertencem amigos, tios, avós, sobrinhos, primos e servos. Todos habitando a mesma casa, em um sistema definido como família tronco, por englobar todo um tronco familiar e suas ramificações na mesma moradia. Família tronco é um termo de Le Play, e é descrito por Casey como: “Em princípio, um filho herdaria a propriedade paterna, para administrá-la em escala suficiente para manter os velhos progenitores pelo resto de seus dias e ainda apoiar os irmãos mais moços” 45. Desta forma, os membros da família se ajudam entre si e o bem da família como um todo é sempre o mais importante, o que explicaria não somente algumas das características destas famílias como a forma que elas tratam e pensam o casamento. Para estes grandes grupos familiares, o matrimônio não seria a união entre dois indivíduos, mas sim a união de duas linhagens familiares masculinas46. Este modelo de família tradicional não parece mais se adequar às mudanças que começavam a ocorrer nos séculos XVIII e XIX. Embora a transição entre um modelo e outro seja gradual, diferentes configurações familiares poderiam ser percebidas, principalmente nas classes mais ricas da sociedade. Com as mudanças no modelo de família, a historiografia referente ao assunto criou uma forma de definir estas famílias: o modelo de família moderna, formada por núcleos, que não mais englobariam várias gerações convivendo no mesmo ambiente.

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SHORTER. Op. Cit. p.26-27. Como no sistema moderno, que se reduz a um pequeno núcleo familiar. 45 CASEY, James. História da Família. P.27. 46 Sendo que as mulheres não fazem as escolhas da família, são sempre o pai e os irmãos mais velhos que poderiam escolher. 44

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A obra de Jane Austen apresenta este modelo de família sendo filha de um casal de classe média, na qual este modelo já poderia ser percebido no momento em que a autora nasceu. Desta forma, a obra da autora permite perceber algumas características descritas por Phillip Ariès, Edward Shorter e James Casey. Diferente do que é observado nas famílias medievais, a família se volta para seu próprio interior. As noites em família, ou com pequenos grupos de convidados mais próximos, seriam mais freqüentes e não é mais para a sociedade que os membros da família se voltam na busca pela distração. Na sociedade moderna se percebe uma maior importância para a individualidade, sendo que, segundo Casey, “a família moderna cresceu em torno dos conceitos de autonomia e disciplina” 47. Para a família tradicional, na qual o bem coletivo e da linhagem seriam melhor que o do indivíduo, os membros não teriam autonomia em suas escolhas. Mas a família moderna permitiria um maior espaço para a individualidade, logo a importância do coletivo não seria mais tão notável e os indivíduos poderiam fazer algumas escolhas próprias e ter o domínio sobre si. Isto permite, por exemplo, que Jane Austen tenha descrito uma heroína independente como Elizabeth Bennet, cuja independência foi criticada por outros personagens no próprio livro, o que a torna uma das heroínas mais lembradas da literatura inglesa. Ainda assim, o indivíduo não teria domínio total sobre suas escolhas, pois as pressões da sociedade continuavam a ser exercidas sobre o indivíduo. Historiadores da família, tais como Ariès e Casey situam esta transição, entre o modelo tradicional de família e o moderno, no século XVIII. McFarlane retrocedeu este momento de transição, afirmando que características do sistema moderno de casamento inglês já podiam ser observadas no século XII. Tendo esta transição ocorrido anteriormente ou não, a historiografia concorda que a Inglaterra é uma exceção comparada ao resto da Europa, pois é nela que pode ser percebida a maior parte das características do sistema matrimonial moderno já enraizado na aristocracia ao final do século XVII. Segundo Ariès, No século XVII, a família começou a manter a sociedade à distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa da vida familiar. A organização da casa passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa moderna, que 47

CASEY, James. História da Família. p.175. Grifos do autor.

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assegurava a independência dos cômodos, fazendo-os abrir para um 48 corredor de acesso.

Desta forma, teriam se desenvolvido as noções de conforto e intimidade. Através dos cômodos, cada um com uma função especializada, a casa se tornaria um lugar pertencente apenas ao núcleo familiar e costumes como o de visitar amigos, freqüente na sociedade tradicional, passariam a ser muito mais regrados do que haviam sido no passado. O cotidiano das famílias tradicionais era repleto de atividades sociais, sendo que grande parte da vida dos familiares acontecia no meio social. Embora a família moderna não tivesse excluído a sociabilidade, a intimidade familiar teria se tornado mais importante para os membros da família. Desta forma, as visitas seriam mais regradas de forma a manter a intimidade e excluíram-se todos aqueles que não teriam ligação direta com o núcleo familiar, tais como criados, clientes e amigos 49. Ao se tornar mais íntima, ela também se tornaria mais barulhenta. Um exemplo disso é o uso de apelidos, que aparecem em Orgulho e Preconceito, no qual Elizabeth Bennet é chamada de Lizzie e Catherine de Kitty. Nesta mesma obra, Austen descreveu um meio familiar alegre e risonho. O riso fazia parte do cotidiano da família Bennet. A intimidade dos membros da família aconteceria no ambiente familiar. O lar é o lugar no qual estes indivíduos passavam a maior parte do seu tempo lendo, estudando, comendo, dormindo, jogando cartas ou administrando a casa, fazendo todas aquelas atividades privativas que cabem apenas aos membros da família ou aos amigos mais próximos. Logo, tudo que se refere ao núcleo familiar e à casa alude a um meio privado que se opõe a tudo aquilo que se refere à sociedade, ao meio público que é aberto à observação. Esta dicotomia entre público e privado é discutida por Richard Sennet, segundo o qual, o equilíbrio entre eles é que formava as relações sociais presentes à volta do indivíduo. A vida pública do século XVIII compreenderia todas aquelas atividades que não tinham relação com a família. No espaço público é que uma grande quantidade de pessoas, de diferentes classes sociais e formas de pensar se encontram; além de ser um local de constante observação por parte do outro. Na vida em sociedade, o indivíduo estava freqüentemente à mercê da fofoca, dos comentários maliciosos e 48 49

ARIÈS. História Social da Infância e da Família. p.265. Op. Cit. p.267.

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das mentiras. Desta forma, a família e o fechamento dos espaços privados teriam sido uma forma de proteção, um escudo contra o meio público e social. Mas esta dicotomia entre o que é público e o que é privado não estaria apenas no âmbito social. A própria família estava sujeita a esta dicotomia, pois aos homens cabia o meio público da vida em sociedade e da organização política e econômica, enquanto às mulheres cabiam as atividades mais privadas da casa, tais como a educação dos filhos e a administração dos empregados diretamente relacionados ao lar. O lugar do homem era o espaço público. Era neste que o homem construía seu nome e sua reputação social, enquanto a casa seria o espaço no qual o homem se protegia da sociedade e realizava sua função natural, a paternidade. As mulheres poderiam, sim, participar tanto da vida pública quanto da vida privada, mas as restrições que se impunham a cada um destes meios eram maiores. A casa era seu ambiente de domínio, mas ela não era afastada de todo da sociedade. A esposa de um membro da corte inglesa também poderia participar das atividades da corte, assim como as mulheres dos gentlemen participavam de eventos sociais tais como bailes ou passeios em parques, além de freqüentar a igreja e fazer caridade. Toda aparência pública era regrada, o mesmo acontecia com as famílias do fim do século XVIII. Tanto homens quanto mulheres seguiam as normas da sociedade, através do vestuário e formas de agir. Mas as regras para as mulheres e principalmente para as moças solteiras eram muito mais rigorosas. Um exemplo destas regras foi colocado por Poovey: “a woman is not to betray knowledge of sexuality (or even, in compromising circunstances, the absence of knowledge, which may be read as knowledge disguised)50”. Ao mesmo tempo, a mulher deveria ser modesta e culta, inteligente e recatada, pois a imagem do marido dependia da imagem da esposa. As mulheres, desde usa infância, eram educadas para exercer este papel de boa esposa, pois era ele que determinaria a sua posição como membro da sociedade, sendo que a partir do momento que nasce a mulher é definida através de sua relação com os homens: ela é mãe, esposa, filha e/ou irmã. Elas deveriam se

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“uma mulher não deve trair conhecimento da sexualidade (ou ainda em circunstâncias comprometedoras, a falta de conhecimento, que pode ser lida como conhecimento omitido”. Tradução Livre. POOVEY. The Proper Lady and the Woman Writer. p.26.

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manter dentro de um padrão ideal de feminilidade, a proper lady. Segundo Mary Poovey, “by the end of the eighteenth century the Proper Lady was a familiar household companion” 51, devendo ser uma mulher perfeita, capaz de exercer várias atividades propriamente femininas, mas que não poderiam se chocar com as opiniões e desejos masculinos. Em Orgulho e Preconceito, Jane Austen colocou na voz de suas personagens esta questão tão presente na vida da mulher: ‘All young ladies accomplished! My dear Charles, what do you mean?’ ‘Yes, all of them, I think. They all paint tables, cover screens and net purses. I scarcely know anyone who cannot do all this, and I am sure I never heard young lady spoken of for the first time, without being informed that she was very accomplished’. ‘Your list of the common extent of accomplishments’, said Darcy, ‘has too much truth. The word is applied to many a woman who deserves it no otherwise than by netting a purse, or covering a screen. But I am very far from agreeing with you in your estimation of ladies in general. I cannot boast of knowing more than half a dozen, in the whole range of my acquaintance, that are really accomplished’. ‘Nor I, I am sure’, said Miss Bingley. ‘Then’, observed Elizabeth, ‘you must comprehend a great deal in your idea of an accomplished woman’. ‘Oh, certainly!’ cried his faithful assistant. ‘No one can be really esteemed accomplished who does not greatly surpass what is usually met with. A woman must have a through knowledge of music, singing, drawing, dancing and the modern languages to deserve the word; and besides all this, she must possess a certain something in her air and manner of walking, the tone of her voice, her address and expressions, or the word will be but half deserved’. ‘All this she must possess’, added Darcy, ‘and to all this she must yet add something more substantial, in the improvement of the mind by extensive reading’. ‘I am no longer surprised at your knowing only six accomplished women. I rather wonder now at your knowing any’. ‘Are you so severe upon your own sex, as to doubt the possibility of all this?’ ‘I never saw such a woman, I never saw such capacity, and taste, and 52 application, and elegance, as you describe, united’. 51

“ao final do século XVIII, a ‘dama correta’ era uma companheira familiar do lar”. Tradução Livre. POOVEY. Op. Cit. p3. 52 “‘Todas as moças prendadas! Meu querido Charles, o que você quer dizer? ‘Sim, todas elas, eu acho. Todas elas pintam mesas, enchem telas e bordam bolsas. Eu quase não conheço ninguém que não possa fazer tudo isso, e eu tenho certeza de nunca ter ouvido pela primeira vez de uma moça sem que tivessem me informado que ela é muito prendada’. ‘Sua lista da extensão comum das realizações de uma moça’, disse Darcy, ‘tem muita verdade. A palavra é aplicada a muitas mulheres que não a merecem mais do que por ter bordado uma bolsa ou ter preenchido uma tela. Mas eu estou muito longe de concordar com a sua avaliação das damas em geral. Eu não posso me gabar de conhecer mais do que meia dúzia, entre todos meus conhecidos, que sejam realmente prendadas’. ‘Nem eu, eu tenho certeza’, disse Senhorita Bingley. ‘Então’, observou Elizabeth, ‘você deve englobar muito em sua idéia de uma mulher prendada’. ‘Oh, certamente!’ gritou sua assistente fiel. ‘Ninguém pode realmente ser chamada de prendada se ela não supera em muito o que é normalmente encontrado. Uma mulher deve ter um conhecimento completo de música, canto, desenho, dança e das línguas modernas para merecer a

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Esta longa discussão sobre os accomplishments de uma dama mostra o alto grau de perfeição que lhes era imposto tanto pelo ideal puritano, quanto pela sociedade patriarcal. Uma grande quantidade de manuais de educação feminina disseminou este modelo de atitude feminina que mostra uma mulher casta e pronta para agradar a todos. A castidade é uma das características mais marcantes da proper lady, pois é uma forma de defesa da união conjugal, mantendo sua legitimidade através da pureza do sangue. Logo, esta característica é uma das mais importantes na educação de uma dama, que fará dela uma boa filha e uma boa mãe. O cotidiano das mulheres nos séculos XVIII e XIX era repleto de referências à maternidade e ao casamento. Uma menina era educada para ser uma boa esposa e para conseguir um bom marido, de forma que quando tivesse idade para se casar sua preocupação era encontrar um marido. Depois do casamento ela passava a se preocupar com a maternidade53, principalmente se fizesse parte de uma família nobre, na qual havia a necessidade de um primogênito homem que pudesse manter a linhagem da família. Após ter filhos, sua preocupação recaía sobre a educação e sobre o matrimônio de seus filhos. Até mesmo depois de ver seus filhos casados, os olhos da mulher ainda poderiam continuar voltados para o casamento, através do matrimônio de amigos e vizinhos. Esta preocupação das esposas com a necessidade de casar suas filhas é assunto freqüente nas obras de Jane Austen. Em Orgulho e Preconceito, a necessidade de casar as cinco senhoritas Bennet é freqüentemente sublinhada pela

palavra; e além de tudo isso, ela deve possuir um certo algo a mais no seu ar e na sua maneira de andar, no tom de sua voz, sua forma de discursar e de se expressar, ou a palavra só será merecida pela metade’. ‘Tudo isso ela deve possuir’, adicionou Darcy, ‘e a tudo isso ainda deve ser adicionado algo ainda mais considerável, o progresso da mente através da leitura extensiva’. ‘Não mais me surpreende que você conheça apenas seis mulheres prendadas. Eu no entanto me surpreendo que você conheça alguma’. ‘Você é tão severa com seu próprio sexo, que duvida da possibilidade de tudo isso?’ ‘Eu nunca vi tal mulher, Eu nunca vi tal capacidade, e bom gosto, e aplicação, e elegância, tais como você descreve, unida’”. Grifos da Autora. Tradução Livre. AUSTEN, Pride and Prejudice. p.39-40 53 Até mesmo na Inglaterra, que McFarlane confirma ser um país no qual o casamento não visa exclusivamente a procriação, a necessidade de ter filhos (homens) é recorrente na vida das mulheres, pois uma mulher que não podia ter filhos não era verdadeiramente uma mulher.

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Sra. Bennet, que sofre por não ter tido um filho homem que pudesse garantir a segurança futura dos pais e suas irmãs54. Outra passagem de Austen que também demonstra a presença freqüente do casamento na vida cotidiana das mulheres se encontra em Razão e Sensibilidade, na descrição da personagem Sra. Jennings. She had only two daughters, both of whom she had lived to see respectably married, and she had now, therefore, nothing to do but marry all the rest of 55 the world .

Através desta personagem, que é quase uma caricatura de ricas viúvas casamenteiras, Austen demonstrou o quanto o casamento estava presente na vida das mulheres. Mas a melhor demonstração da importância do matrimônio para uma mulher do início do século XIX pode ser encontrada em outra personagem de Austen: Charlotte Lucas, vizinha e melhor amiga da heroína de Orgulho e Preconceito. Charlotte é a filha mais velha da família Lucas; uma moça inteligente e sensível, mas que aos vinte e sete anos ainda não se casou. Como as moças com idade maior de vinte e seis anos seriam consideradas spinsters56, a amiga de Elizabeth não teria muitas chances de sucesso matrimonial. Desta forma, a personagem é a representação de um tipo de mulher que foge aos padrões da sociedade, aquela que não cumpre sua função social de esposa e mãe. Ainda assim, se não houvesse se casado ela também não seria de todo excluída da sociedade, sendo que na Inglaterra setecentista houve muitas mulheres que não se casaram por diversas razões57. Senhorita Lucas era filha de um Sir, mas não muito rico, logo, não tinha um dote muito grande, o que seria um atrativo no ‘mercado matrimonial’, nem

era muito bela. A realidade de um futuro sem

perspectivas, além de continuar sendo um fardo para seus pais,58 afasta de Charlotte quaisquer pensamentos românticos que ela poderia ter tido quando mais 54

A família Bennet estava judicialmente conectada a um entailment, que proíbe a uma mulher herdar a propriedade da família. 55 “Ela tinha apenas duas filhas, ambas que ela havia vivido para ver respeitavelmente casadas, e agora ela não tinha, portanto, nada mais que fazer do que casar todo o resto do mundo”. Tradução Livre. AUSTEN. Razão e Sensibilidade. p.34-35 56 Solteironas. 57 Tais como a escolha por permanecer solteira, escolha feita por Jane Austen, ou não haver encontrado um marido, ou como no caso da irmã de Austen, por seu noivo ter falecido antes do casamento. 58 As filhas mulheres não podiam se sustentar ou trabalhar, pois isto seria mal visto pela sociedade, desta forma, mulheres que permaneciam solteiras teriam que ser sustentadas pelos seus pais por um período maior do que aquele que seria comum.

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jovem. Ela não acreditava em casamento como forma de alcançar a felicidade. Para ela o matrimônio era uma necessidade. É pelo pensamento desta personagem que Austen escorreu uma frase que denota o quão importante o casamento se apresentava para a segurança física e econômica de uma moça: Without thinking highly either of men or matrimony, marriage had always been her object, it was the only honorable provision for well-educated women of small-fortune, and however uncertain of giving happiness, must be their 59 pleasantest preservative from want.

Para Charlotte Lucas o casamento e a posição de esposa não significam felicidade, mas sim uma forma de não necessitar da ajuda alheia para seu sustento. O casamento era uma das poucas oportunidades para garantir certo grau de independência para as mulheres, pois a partir do momento que estavam casadas elas tinham uma posição de poder e de domínio dentro do ambiente familiar, como chefe da casa60 e como mãe. A ênfase de Austen na necessidade do casamento para a mulher coloca problemas à interpretação de McFarlane quanto ao modelo de casamento inglês. Segundo o autor, que escreveu sobre o casamento malthusiano na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, o casamento seria uma escolha, tanto para o noivo quanto para a noiva. Para ele, na Inglaterra o casamento não era uma necessidade imposta pela sociedade e as pressões de amigos e familiares não influenciariam a decisão do novo casal. No entanto, ele não analisa outra grande pressão exercida sobre aqueles que optam pelo não casamento: o resultado de não casar. Um jovem, filho mais velho de um aristocrata inglês que não se casasse, não daria continuidade à sua linhagem, devido a isso ele provavelmente iria sofrer pressões por parte de sua família para que encontrasse uma noiva. Ao mesmo tempo, uma moça, filha de uma família proprietária de terras, mas não muito rica (como é o caso da família Bennet, de Orgulho e Preconceito) perceberia o casamento de uma forma semelhante à Charlotte Lucas como uma forma de garantir um futuro seguro. Não casar implicaria em ser sustentada pelos pais e irmãos, como

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“Sem pensar favoravelmente nem dos homens nem do matrimônio, o casamento sempre havia sido seu objeto, ele era a única provisão honrável para uma moça bem educada de pequena fortuna, e embora duvidando de prover felicidade, deve ser a forma mais agradável de se preservar da falta.” Tradução Livre. AUSTEN.Orgulho e Preconceito. p. 123 60 Abaixo do poder do marido, mas acima de qualquer outro poder dentro do ambiente familiar.

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aconteceu com Jane Austen e sua irmã, ou em exercer alguma das funções apontadas por Mary Woolstonecraft. Além disso, é através do casamento que uma mulher passa a fazer parte da sociedade. Até então ela é apenas filha de alguém. Embora Austen trate da necessidade do casamento através de personagens que estão presentes no cotidiano de suas heroínas61, as personagens principais de suas obras não mostram este tipo de preocupação. Como afirma Janet Todd, as heroínas de Austen não tendem a olhar para o futuro. Para a autora, a personagem Anne Elliot, de Persuasão, vive no passado, comparando ações do presente com aquelas que já havia presenciado: “the present of the book begins with Sir Walter contemplating the fixed image of himself in the Baritonage, past words controlling his present. His daughter Anne mirrors him for she is equally static, as fixed in the Navy List”62. Elizabeth Bennet vivia no presente, não olhando nem para o futuro, nem para o passado. Devido a isso as heroínas de Austen não parecem perceber que seus ideais românticos poderiam vir a dificultar sua segurança futura. Mesmo que a temática da solteirona seja recorrente na obra da autora suas personagens parecem fazer uma escolha, de apenas se casarem se sentirem um forte sentimento que as una com seus amados. A possibilidade de não encontrar um amado ou de não se casar, não aparece63 nos livros de Austen. Peculiarmente na Inglaterra, para McFarlane, o casamento é algo que se refere apenas ao casal que irá se unir. O autor trata as razões pelas quais a Inglaterra teria sido tão diferente do resto da Europa em matéria de sistema matrimonial. Para ele os ingleses se diferenciavam por não terem aderido ao modelo canônico de regras relacionadas ao casamento. O país teria continuado a seguir práticas muito antigas que teriam sido abandonadas pelos outros países do continente europeu.

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Assim como em Orgulho e Preconceito, Emma também trouxe uma personagem sobre a qual se pode discutir a necessidade do casamento para a mulher e a figura da solteirona: a Senhorita Bates. A partir desta personagem se poderia fazer uma análise sobre como a sociedade percebe as mulheres que não se casam e ficam dependentes da ajuda alheia. 62 “o presente do livro começa com Sir Walter contemplando a imagem fixa de si próprio no Baritonage, palavras passadas controlando seu presente. Sua filha Anne o espelha, pois ela também esta estagnada, tão fixa quanto ele na Lista Naval”. Grifos da Autora. Tradução Livre. TODD, Janet. The Cambridge Introduction to Jane Austen. P.122. 63 Apenas em Emma, obra na qual a personagem discorre sobre o que aconteceria caso Knigtley não se casasse com ela. Como Emma era uma rica herdeira, o problema da segurança futura não foi levantado na obra.

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Enquanto no resto da Europa os pais escolhiam pretendentes para seus filhos e interferiam no casamento, no sistema inglês observa-se a não necessidade do consentimento paterno para a oficialização jurídica do matrimônio. Segundo McFarlane, por mais que houvesse pressões por parte da família e dos amigos do casal, o consentimento não era necessário para a validação da união. Se um casal não obtivesse o consentimento de seus parentes, poderia realizar o casamento da mesma forma como se obtivesse, e o não consentimento não seria razão para desfazer os votos matrimoniais. No entanto, por mais que o casamento sem a aprovação paterna fosse permitido, a possibilidade deste casamento ocorrer eram escassas, devido tanto às pressões colocadas pela sociedade, quanto à necessidade da ajuda econômica garantida pelo apoio paterno. Embora a falta da ajuda econômica não impedisse o casamento, ela dificultaria o sucesso na vida conjugal do casal, sendo que muitas vezes os filhos dependiam de seus pais para conseguir manter suas casas. Filhos mais velhos de uma família proprietária de terras, por exemplo, poderiam ser deserdados por seus pais caso se casassem com uma moça que não fosse aceita e aprovada pela família, como acontece com Edward Ferrars, em Razão e Sensibilidade64. Orgulho e Preconceito, em uma primeira leitura, dá a impressão de que o casamento de Elizabeth Bennet e Sr. Darcy é uma ruptura com este modelo, sendo que Darcy não se preocupa com a opinião de sua tia, Lady Catherine, a respeito da escolha de sua esposa. Apesar da aparente ruptura com a família, Darcy não rompe com os padrões de sua época, pois ele é dono de terras, cujo pai já faleceu e que não necessita do apoio econômico nem político de sua tia. Mas Darcy é uma exceção, pois a maior parte dos jovens gentleman em idade de casar ainda necessitava da ajuda econômica de seus pais. Este é o caso do primo de Darcy, Richard Fitzwilliam. Em uma passagem de Orgulho e Preconceito Coronel Fitzwilliam fala com a heroína sobre as suas possibilidades de casamento: ‘Younger sons cannot marry where they like’. ‘Unless where they like women of fortune, which I think they often do’. ‘Our habits of expense make us too dependent, and there are not many in my 65 rank of life who can afford to marry without some attention to money’

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Ao assumir seu noivado com Lucy Steele a família de Edward Ferrars o deserda, deixando o papel de herdeiro para seu irmão mais novo, que ironicamente é quem casou com Lucy. 65 “‘Filhos mais novos não podem casar como quiserem’.

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Nesta discussão se percebe que o coronel não cogita a possibilidade de um casamento com uma mulher pobre, ou de classe inferior, pois ele é economicamente dependente do desejo e do aval de seus pais, mesmo tendo uma profissão. As mulheres, por sua vez, necessitavam ainda mais da ajuda paterna, que viria através do dote, pois este poderia facilitar ou dificultar sua inserção no mercado matrimonial. O valor do dote não era estipulado com o nascimento de uma filha, mas sim ao longo de sua vida, desta forma, o dote podia ser maior ou menor de acordo com o desejo ou com a disponibilidade dos pais. Em Orgulho e Preconceito o dote das senhoritas Bennet é pequeno porque seus pais esperavam a chegada de um filho e nunca perceberam a necessidade de economizar para um dote maior. Isto não impediu que algumas das senhoritas encontrassem bons maridos, mas ao mesmo tempo levou uma das filhas à ruína66. O dote é abertamente discutido nas obras de Austen, pois um dote maior facilitava o encontro de um marido, enquanto um dote menor dificultava. Esta discussão aparece em Northanger Abbey, no qual a informação errada quanto ao dote da heroína leva aos acontecimentos mais importantes da obra. Já em Razão e Sensibilidade, o valor do dote de Elinor e Marianne foi discutido por seu meio irmão e sua esposa, pois Sr. John Dashwood havia prometido a seu pai, Henry Dashwood, que garantiria a segurança67 de suas irmãs. A discussão entre o senhor e a senhora Dashwood se refere a quanto deve ser destinado às suas irmãs e embora inicialmente Mr. Dashwood pretendesse dar cerca de mil libras a cada uma de suas irmãs, ao longo dos três primeiros capítulos do livro a quantia acaba diminuindo de tal forma que as senhoritas Dashwood recebem, juntas, uma quantia que embora não as deixassem na miséria, diminuiu consideravelmente o conforto ao qual estavam acostumadas durante a vida de seu pai. Ao mesmo tempo, deixando-as com um dote muito baixo, isto dificultava a possibilidade de que encontrassem um marido.

‘A não ser que queiram se casar com mulheres com um dote alto, o que em minha opinião eles fazem frequentemente’. ‘Nossos hábitos econômicos nos fazem muito dependentes, e não conheço muitos de minha classe/forma de vida que podem se casar sem cogitar questões monetárias’”. Tradução Livre. AUSTEN.Orgulho e Preconceito. p. 184. 66 No caso da fuga de Lidia Bennet com Sr. Wickham. 67 O termo segurança, neste caso, refere-se à segurança econômica das senhoritas Dashwood, sendo que a propriedade na qual moravam foi deixada como herança para o filho de John Dashwood e a elas foi reservada apenas uma pequena quantia no caso da morte de seu pai.

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O dote poderia variar de grandes quantias a apenas algumas libras e no caso das classes trabalhadoras poderia ser conseguido pela própria moça, que trabalharia durante alguns anos para conseguir juntar uma quantia suficiente para seu casamento. Isto levava a um casamento tardio e explica a idade média do casamento inglês nestas classes para mulheres, 26 anos. Para McFarlane os ingleses não se casavam com o fim exclusivo de ter filhos. Segundo o autor isto também foi uma peculiaridade do sistema inglês e permitiu outra característica deste sistema, o casamento por afeto, ou por amor. O sistema de casamento inglês, para McFarlane, era um contrato privado entre duas pessoas que optaram pela companhia mútua durante o resto de suas vidas, não um contrato de moral linhagista com o propósito de continuar uma linhagem familiar. Desta forma, este sistema permitiria a ascensão através do casamento já que neste país o status provinha da riqueza e da posse de terras, que poderiam ser conseguidas ao longo da vida de um indivíduo. Pela hipótese de McFarlane, casamentos como o de Elizabeth Bennet com Fitzwilliam Darcy poderiam ser explicados, assim como o casamento de uma filha de um lorde com um coronel da marinha. Mas a obra de Jane Austen, embora mostre uma leve ascensão social de suas heroínas, não apresenta nenhuma ruptura real com o modelo tradicional de casamento, que não permite casamentos entre classes diferentes. Elizabeth é filha de um dono de terras e casa com um dono de terras mais rico, mas ainda assim um membro de sua classe, como afirma a própria personagem durante uma discussão com a tia de Darcy: ‘In marrying your nephew, I should not consider myself as quitting that sphere. He is a gentleman; I am a gentleman’s daughter; so far we are 68 equal’

Em Persuasão, obra na qual se percebe a maior ruptura com este modelo, ainda que Anne (filha de um Lorde) se case com um marinheiro, o casamento só pode acontecer após a vitória de Waterloo, na qual o prestígio dos marinheiros havia aumentado, e após seu amado ter se tornado rico, ao mesmo tempo em que a família da heroína ficou mais pobre. No início do livro, quando Wentworth ainda é

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“Ao se casar com seu sobrinho, não me consideraria como deixando esta esfera. Ele é um cavalheiro e eu sou filha de um cavalheiro. Até aqui somos iguais”. Tradução Livre. AUSTEN.Orgulho e Preconceito. p. 351.

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pobre, o casamento dos dois não é sancionado pela família, justamente devido às diferenças sociais entre ambos. As uniões entre as heroínas de Austen e um homem mais rico não contrariavam a sociedade, embora pudessem ser criticadas por ela, enquanto o casamento de uma moça mais rica com um homem pobre faria com que esta moça fosse afastada da sociedade de seus amigos, pois com o casamento a mulher começaria a fazer parte da classe do marido. Sendo o casamento indissolúvel, mesmo que a reforma anglicana permitisse o divórcio, a mulher que se casasse com um homem de uma classe inferior ficaria para sempre separada de seus amigos. Judicialmente havia três formas de conseguir o divórcio: a separação judicial (que não permitia um segundo casamento), o divórcio propriamente dito (que era custoso e mais difícil de ser conseguido) e, por último, a prática de wife-selling69. Ainda que houvesse maneiras de conseguir a separação de um casal, o divórcio propriamente dito era muito raro e os casamentos teriam o propósito de durar toda a vida do casal. Assim como a indissolubilidade, o sistema de casamento inglês também era muito rígido. “O adultério foi sempre visto como uma forma de roubo, particularmente um roubo dos direitos exclusivos à companhia sexual do parceiro” 70, ferindo assim a relação igualitária entre marido e mulher, principalmente nos casos em que uma criança era gerada. Desta forma, percebe-se que o adultério cometido pela mulher era considerado muito mais grave71. O adultério da esposa era uma das razões que permitia o divórcio judicial, mas são raros os casos em que uma mulher conseguia a separação de seu marido quando este era o adúltero. Na Inglaterra marido e mulher teriam uma relação de companheirismo durante toda sua vida de casados. Com a morte de um dos esposos, então, pode-se perceber na Inglaterra mais uma peculiaridade: após a morte de um dos membros do casal, o segundo casamento não era somente permitido, como indicado. Não somente um marido que perde sua esposa iria provavelmente procurar uma nova mãe para seus filhos, como sua falecida esposa, em muitos casos, teria

69

Op. Cit. p.234-235. A prática da wife-selling (venda da esposa) consiste naquela na qual o casal podia estabelecer seu próprio divórcio, sem envolvimento judicial. 70 MCFARLANE. Op. Cit. p.250. 71 Segundo McFarlane este ‘duplo critério’ era evidente nas classes ricas e no direito inglês, mas não há provas de que também existiria nas classes trabalhadoras.

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lhe pedido que assim o fizesse. Até mesmo para as mulheres um segundo casamento era permitido pela sociedade inglesa. Autores como Casey, Tocqueville, Le Play e Durkheim concordam que houve realmente peculiaridades no sistema matrimonial inglês, inclusive a existência do sentimento conjugal. Embora McFarlane exagere o poder da escolha dos membros do casal, uma escolha baseada no sentimento amoroso, não se pode negar a existência de uma relação de amizade, carinho, companheirismo e amor entre marido e mulher na Inglaterra. Shakespeare já havia escrito sobre o amor muito antes da ascensão do amor romântico. O desejo e o sentimento do casal já faziam parte do sistema matrimonial inglês quando Austen escreveu suas obras. Na Inglaterra, o casamento baseava-se numa combinação, ou compromisso, entre as necessidades econômicas, de um lado, e as pressões psicológicas e biológicas, do outro. A união deveria brotar de uma atração pessoal – física, 72 social e mental – de aparência e temperamento .

Desta forma, o casamento deveria unir pretensões econômicas e sentimento amoroso. Mas nem sempre este casal se unia a partir destas motivações, sendo que a dicotomia entre casamento por amor e casamento por dinheiro estava presente no cotidiano durante o século XVIII e principalmente na obra de Austen.

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Op.Cit. p.326.

3. O TRIUNFO DO CASAMENTO POR AMOR

When one lives in the world, a man or a woman’s marring for money is too 73 common to strike one as it ought . A man does not recover from such a devotion of the hearth to such a woman! 74 - he ought not – he does not!

Os três livros utilizados como fonte desta monografia tratam do casamento por amor. Mesmo que Austen também mencione outras formas de chegar ao casamento, que não pelo sentimento mútuo, ela acaba diferenciando as formas de matrimônio. Para a autora o casamento só era completo quando houvesse afeição mútua. O casamento por amor e o casamento por dinheiro são frequentemente discutidos pelas personagens de Austen, pois esta era, de certa forma, uma temática recorrente no cotidiano das famílias do século XIX, cujos filhos escolhiam seus parceiros movidos pelos sentimentos (como analisado por Alan McFarlane). Desta forma, este capítulo discute a posição e a opinião de Jane Austin quanto às formas de matrimônio. Charlotte Lucas, que em Orgulho e Preconceito representa as mulheres que necessitam se casar, disse para Elizabeth, quando Jane havia recentemente conhecido Sr. Bingley, a necessidade de que Miss Bennet demonstrasse mais sentimento do que tinha para “conseguir” um marido: “In nine cases out off one, a woman better show more affection than she feels”, e ainda “when she is secure of him, there will be leisure for fallin in love as much as she chooses”75. Ou seja, para a personagem, que muitas vezes recria uma opinião mais racional do que a da heroína da obra, o sentimento entre marido e mulher iria surgir após o casamento, não antes. Ao mesmo tempo, para ela, seria função da mulher convencer o noivo de

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“Quando uma pessoa vive no mundo, um homem ou uma mulher se casarem por dinheiro é muito comum para afetar-nos como deveria”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p.193. 74 “Um homem não se recupera de tal devoção do coração para com tal mulher! Ele não deve- ele não o faz!”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p.176. 75 “Em nove casos em um, uma mulher deve demonstrar mais afeição do que ela sente” e “quando ela estiver segura dele haverá tempo suficiente para se apaixonar o quanto ela quiser”. Tradução Livre. Grifos da Autora. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.22.

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que ela tem sentimentos por ele. É desta forma que Charlotte agiu em relação a seu próprio casamento76. Uma opinião semelhante a essa é colocada por Marianne, em Razão e Sensibilidade, mas ela não via este futuro para si, pois para ela um casamento por necessidade não era verdadeiramente um matrimônio. Marianne descreve um possível casamento do Coronel Brandon com uma moça de 27 anos: `A woman of seven-and-twenty`, said Marianne, after pausing a moment, `can never hope to feel or inspire affection again, and if her home be uncomfortable, or her fortune small, I can suppose that she might bring herself to the offices of nurse, for the sake of the provision and security of a wife. In his marrying such a woman, therefore, there would be nothing unsuitable. It would be a compact of convenience, and the world would be satisfied. In my eyes it would be no marriage at all, but that would be nothing. To me it would sum only a commercial exchange, in which each wished to be 77 benefited at the expense of the other`

Ou seja, um casamento unicamente pautado na conveniência era muito mais uma transação econômica do que um matrimônio. Como o dinheiro seria uma necessidade para jovens do século XVIII, a dependência dele e daqueles que o “garantem” fazia com que muitos jovens optassem por se casarem de forma a aumentar ou garantir sua fortuna78. Mesmo que o casamento por dinheiro fosse criticado, era uma escolha de muitos jovens, até mesmo na obra austeniana; como foi o caso de Sr. Willoughby, de Razão e Sensibilidade. Ao perder a herança que receberia de sua tia, ele acaba noivando com uma moça rica e deixando de lado a mulher que o ama, Marianne Dashwood, que tem um dote pequeno, mas que Willoughby trata abertamente como noiva79.

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O que fica subentendido, já que Austen não descreve o pedido de casamento entre Sr. Collins e Charlotte. 77 “‘Uma mulher de vinte e sete anos’ disse Marianne, após pausar por um momento, ‘ não pode esperar causar ou sentir afeição novamente e, se seu lar for desconfortável e sua fortuna pequena, eu posso imaginar que ela se transforme em uma enfermeira, para obter uma provisão. Ao se casar com tal mulher, logo, não haveria nada impróprio. Seria um contrato de conveniência, e o mundo estaria satisfeito. A meus olhos isso não seria um casamento, mas isso não é nada. Para mim seria apenas uma troca comercial, na qual os dois se beneficiariam um do outro’”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade. p.36. 78 Fortune é o termo usado por Austen. 79 Haveria intimidades entre eles, que podiam ser observadas pelo resto da família, e que somente existiam entre pessoas muito próximas, tais como noivos e ou irmãos. São estas intimidades: o uso do primeiro nome (p.55) e o fato de que Marianne teria dado a Willoughby um fio de seu cabelo, para que ele guardasse (p.55-56). Isto leva a Sra. Dashwood ter certeza de que eles eram noivos “escondidos”.

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Quando Marianne está à beira da morte80, Willoughby tenta explicar suas ações a Elinor. Segundo ele: “With my head full of your sister, I was forced to play happy lover to another woman!”81. Afirmou ainda: “Preparations! Day! In honest words, her money was necessary to me, and in a situation like mine any thing was to be done to prevent a rupture”82. Suas necessidades financeiras o obrigaram a casar com uma mulher rica e por isso, Willoughby é visto como o vilão do livro. Marianne teve que aprender a amar outro homem, mais digno de seu amor. Não só Willoughby é um vilão, como seu casamento aparece como um dos maus casamentos da obra austeniana. A autora utiliza estereótipos de matrimônio para defender a melhor forma de casamento. Desta forma, os casamentos que ela descreve como ruins, ou “defeituosos”, são aqueles que surgiram de sentimentos não tão verdadeiros, ou que não houvesse certa igualdade entre marido e mulher83. O casamento de Willoughby não demonstra uma igualdade entre os noivos justamente devido à diferença econômica entre eles, que o obriga a casar84. Outro exemplo de um modelo matrimonial que “não dá certo”, na obra de Austen, é o casamento entre Sr. e Sra. Bennet. Pela fala de Elizabeth Bennet Austen descreveu a relação do casal: Had Elizabeth’s opinion been all drawn from her own family, she could not have formed a very pleasing picture of conjugal felicity or domestic comfort. Her father captivated by youth and beauty, and that appearance of good humor, which youth and beauty generally give, had married a woman whose weak understanding and illiberal [ill-bread] mind had very early in their marriage put an end to all real affection of her. Respect, esteem and confidence had vanished forever; and all his views of domestic happiness 85 were overthrown .

80

Em um momento que lembra uma morte romântica por amor, pois Marianne é a sensibilidade excessiva. 81 “Com minha cabeça cheia de sua irma, fui forçado a personificar o amante feliz a outra mulher!”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade. p.289 82 “Preparações! Dia! Honestamente, seu dinheiro era necessário para mim, e em uma situação como a minha qualquer coisa tinha que ser feita para prevenir uma ruptura”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade. p.290 83 É preciso compreender que a igualdade entre marido e mulher esperada por Austen não é a mesma que atualmente se espera. Para ela, há a necessidade de respeito entre eles, mas ela não questiona a posição da mulher dentro do sistema patriarcal. 84 Até o momento do casamento Willoughby faz tudo que sua noiva lhe pede, para garantir o casamento, devido a sua fortuna. Até mesmo a carta que ele escreve a Marianne é na verdade ditada por sua noiva. 85 “Se a opinião de Elizabeth tivesse sido criada a partir de sua própria família, ela não poderia ter formado uma opinião muito agradável de felicidade conjugal ou conforto doméstico. Seu pai cativado por juventude e beleza, e aquela aparência de bom humor que juventude e beleza normalmente trazem, havia se casado com uma mulher cuja fraca inteligência e vulgar (mal-educada) mente havia cedo em seu casamento terminado com toda real afeição que ele tinha por ela. Respeito, estima e

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Sr. Bennet havia se casado com sua esposa apenas devido a sua beleza. Logo, ele acabou se “desencantando” de sua esposa, cujos comentários ele achava frívolos e de cuja companhia ele logo se cansou. Percebe-se, então, que o sentimento amoroso que Austen descreve como perfeita união entre marido e mulher não é a paixão, principalmente aquela despertada pelo físico. O amor, para Austen, consistia em um sentimento mútuo que nasce da igualdade de pensamento, da companhia harmoniosa, da dependência e da confiança entre marido e mulher. Em um sentimento que é unido por razão e por sensibilidade. Assim como as heroínas de Austen são exemplos desta união, assim são os casamentos que representam as uniões bem feitas em sua obra. A paixão que Darcy demonstrou em sua primeira proposta de casamento86 não teria que ser diminuída, mas para que sua felicidade fosse alcançada ele teria que aprender a aceitar aquela que ama e tudo aquilo que faz parte da vida dela. Logo, Darcy não estava ainda pronto para amar verdadeiramente Elizabeth, pois ele não a conhecia e sim interpretava erroneamente suas falas e ações, ao mesmo tempo em que não respeitava sua família e precisava superar seu orgulho exagerado. Mas quando conseguiu superá-lo, Elizabeth descreveu a união entre os dois como ideal: She began now to comprehend that he was exactly the man, who in disposition and talents, would most suit her. His understanding and temper, though unlike her own, would have answered all her wishes. It was a union that must have been to the advantage of both by her ease and liveness, his mind might have been softened, his manners improved and from his judgment, information and knowledge of the word, she mush have received 87 benefit of greater importance.

confidência haviam sumido para sempre, e todas suas visões de felicidade doméstica haviam sido perdidas”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.234. 86 “In vain I have struggled. It will not do! My feelings will not be repressed. You must allow me to tell you how ardently I admire and love you. Almost from the earliest moments of your acquaintance, I have come to feel for you a passionate admiration and regard, which despite my struggles, has overcome every rational objection. And I beg you, most fervently, to relieve my suffering and consent to be my wife”. “Em vão tentei lutar. Não posso mais! Meus sentimentos não podem ser reprimidos. Você deve me permitir lhe dizer o quão ardentemente eu lhe admiro e amo. Quase desde os primeiros momentos em que nos conhecemos, eu tenho sentido por você uma apaixonada admiração e estima, que embora meu sofrimento, superou toda objeção natural. E eu lhe imploro, fervente mente, que você retire minha dor ao aceitar ser minha esposa”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.157. 87 “Agora ela começava a compreender que ele era exatamente o homem, que em disposição e talentos, iria mais se adequar a ela. Sua inteligência e temperamento, embora diferentes dos seus, iria responder a todos os seus desejos. Era uma união que seria para a vantagem de ambos: pelo conforto e vivacidade dela, a mente dele iria ser suavizada, e suas maneiras melhoradas, enquanto

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Desta forma, o amor de Darcy e de Elizabeth seria verdadeiro e os levaria a uma boa vida conjugal, pois eles se complementavam e aprenderiam um com o outro. Da mesma forma, tendo o sentimento de Elizabeth surgido da gratidão, Austen afirma: If gratitude and esteem are good foundations of affection, Elizabeth’s change of sentiment will be neither improbable nor faulty. But if otherwise, if the regard springing from such sources is unreasonable or unnatural, in comparison of what is so often described as arising on a first interview with its object, and even before two words have been exchanged nothing can be said in her defense, except that she had given somewhat of a trial to the latter method, in her partiality for Wickham, and that it’s ill-success might perhaps 88 authorize her to seek the other less interesting mode of attachment.

Nesta passagem, Austen se referiu à existência do “amor à primeira vista”, mas como para ela o sentimento amoroso tem que ser completo (união entre razão e sensibilidade). Elizabeth é mal sucedida nesta forma de amor ao começar a se apaixonar por Wichkham, cuja aparência de bondade esconde seu verdadeiro caráter, e desprezar Darcy, cuja aparência de orgulho esconde sua bondade. Toda a temática de Orgulho e Preconceito se revolve sobre as primeiras impressões89, sendo que a conclusão da obra é a de que as primeiras impressões enganam e de que é apenas conhecendo bem uma pessoa o amor pode surgir. A paixão à primeira vista, então, não é o verdadeiro sentimento amoroso, mesmo que possa fazer parte dele. Outro momento na obra de Jane Austen no qual a paixão aparece como inferior ao amor pode ser percebido em Razão e Sensibilidade. Neste, o primeiro noivado de Edward Ferrars é fruto de um sentimento inconseqüente e juvenil. Desta forma, ele acaba se prendendo a Lucy Steele e causando a perda da sua herança devido ao seu noivado, que ele não mais deseja, mas que sua honra não permite

do julgamento dele, de sua informação e conhecimento do mundo, ela teria recebido benefícios de grande importância”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p. 306-307. 88 “Se gratidão e estima são boas bases para a afeição, a mudança de sentimento de Elizabeth não seria nem improvável nem faltosa. Mas se ao contrário, se o sentimento que surge destas fontes for irracional ou não natural, em comparação com o que é tão frequentemente descrito como tendo surgido de uma vista do objeto, e antes que duas palavras sejam ditas em sua defesa, exceto que ela havia testado este método, em seu relacionamento com Wickham, e que sua falta de sucesso talvez pudesse ter autorizado que ela procurasse modos menos interessantes de se apaixonar”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.274. 89 O livro foi inicialmente intitulado Primeiras Impressões, mas foi publicado com o nome Orgulho e Preconceito, após ser modificado pela autora.

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abandonar. O amor que Sr. Ferrars sentia por Elinor Dashwood foi o final triunfante, mas apenas devido à vaidade de Lucy90. Ao contrário da paixão, o sentimento amoroso para Austen é durável, não desaparecendo com o tempo. Em Persuasão a autora tratou de uma grande discussão sobre a durabilidade do amor e sobre a constância, em um debate entre Anne Eliot e Capitão Harville, amigo de Coronel Wentworth: ‘It would not be the nature of any woman who truly loved’[ esquecer quem ela ama] (…). ‘We certainly do not forget you, so soon as you forget us. We live at home, quiet, confined, and our feelings prey upon us. You are forced on exertion. You have always a profession, pursuits, business of some or other, to take you back into the world immediately, and continual occupation and change soon weaken impressions’. [Capitão Harville responde:] ‘No, no, it is not man’s nature. I will not allow it to be more man’s nature than woman’s to be inconstant and forget those they do love, or have loved. I believe the reverse. I believe in a true analogy between our bodily frames and our mental; and that as our bodies are strongest, so are our feelings, capable of bearing most rough usage and riding out the heaviest weather’. ‘Your feelings may be the strongest’ replied Anne, ‘but the same spirit of 91 analogy will authorize me to assert that our are the most tender’

A temática também é freqüente na obra, pois o amor de Anne e de Wentworth não somente é duradouro como consegue superar obstáculos tais como a persuasão. A constância é para Austen essencial ao amor e ao casamento, pois enquanto o sentimento for constante, marido e mulher irão ter um matrimônio “saudável”, ao contrário do casamento entre Sr. e Sra. Bennet, em Orgulho e Preconceito, cujo amor e respeito se extinguiram. Da mesma forma seria necessária a amizade entre o casal, e esta só poderia ser alcançada através do respeito mútuo.

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Que se casa com Robert Ferrars, irmão mais novo de Edward, que herda sua fortuna quando este é deserdado. 91 “ ‘Não seria da natureza de nenhuma mulher que realmente ama’. (...) ‘Nós certamente não esquecemos vocês, tão cedo quanto vocês nos esquecem. Vivemos em casa, quietas, confinadas, e nos somos vitimas de nossos próprios sentimentos. Vocês são forçados pelo cansaço. Vocês sempre têm profissões, tarefas a cumprirem, ocupações de uma forma ou outra, que os levam de volta ao mundo imediatamente, e atividades continuas e mudança logo diminuem as impressões’ ‘Não, não, não é da natureza masculina. Eu não irei permitir que a inconstância e o esquecimento daqueles que se ama, ou amava, seja mais da natureza masculina que da natureza feminina. Acredito no contrário. Acredito numa verdadeira analogia entre nosso corpo e nossa mente; e como nossos corpos são mais fortes, também o são nossos sentimentos, capaz de agüentar o tratamento mais rude ou o tempo mais fechado’. ‘Seus sentimentos podem ser o mais forte’ respondeu Anne, ‘mas o espírito da analogia permite que eu afirme que os nosso são os mais ternos’” . Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p. 224.

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Nesta mesma obra, outro casal aparece como um exemplo de sucesso matrimonial, a família Gardiner. Cada vez que o casal aparece, demonstram amizade respeito mútuo, ao contrário da forma que Sr. Bennet tratava sua esposa: Elizabeth, however, had never been blind to the impropriety of her father’s behavior as a husband. She had always seen it with pain; but respecting his abilities, and grateful for his affectionate treatment of herself, she endeavored to continual breach of conjugal obligation and decorum which, in exposing his wife to the contempt of her own children, was so highly reprehensible. But she had never felt so strongly as now the disadvantages which must attend the children of so unsuitable a marriage, nor ever be so fully aware of this evils arising from so ill-judged a direction of talents, talents which rightly used, might at least have preserved the respectability of his daughters, eve if 92 incapable of enlarging the mind of his wife.

Desta forma, na opinião de Elizabeth, o descaso que Sr. Bennet demonstrou para com sua família teria sido também parte da causa da desgraça de Lydia. Logo, o casamento baseado apenas em um sentimento de paixão, pautado apenas na aparência física, não é um bom casamento sendo que a paixão logo desaparece e a convivência familiar se tornaria ruim quando não houvesse respeito entre marido e mulher. Em uma fala de Sra. Gardiner, que aparece na obra como mulher inteligente, ela informa sua sobrinha Elizabeth que se apaixonar por Wickham não seria prudente: You are too sensible a girl, Lizzy, to fall in Love merely because you are warned against it; and, therefore, I am not afraid of speaking openly. Seriously, I would have you be on your guard. Do not involve yourself, or endeavor to involve him, in any affection which the want of fortune would make so very imprudent. I have nothing to say against him, he is a most interesting young man; and if he had the fortune he ought to have, I should think you could not do better. But as it is – you must not let your fancy run 93 away with you. You have sense, and all expect you to use it . 92

“Elizabeth, no entanto, nunca havia sido cega para a falta de propriedade no comportamento de seu pai como marido. Ela sempre houvera observado com dor, mas respeitando suas habilidades, e grata pela afeição que ele demonstrava para com ela, ela não tentava acabar com a contínua quebra de obrigações conjugais e decoro, que ao expor a mãe ao desdém de suas próprias filhas, era tão altamente repreensível. Mas ela nunca havia sentido tanto quanto agora as desvantagens as quais as filhas de um casamento tão inadequado sofreriam, nem havia percebido completamente estes maus, que nasciam de uma direção de talentos tão mal feita, talentos que se tivessem sido usados corretamente, ao menos teriam preservado a respeitabilidade de suas filhas, mesmo que não fossem capaz de aumentar a mente de sua esposa”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p. 234-235. 93 “Você é uma moça muito sensível, Lizzy, para se apaixonar puramente porque foi avisada contra; e, logo, não tenho medo de lhe falar abertamente. Falando seriamente, eu quero que você tome cuidado. Não se envolva, ou tente envolvê-lo, em alguma afeição cuja falta de fortuna faria tão imprudente. Eu não tenho nada contra ele, ele é um jovem muito interessante; e se ele tivesse a fortuna que ele deveria ter, acho que você não poderia encontrar um melhor. Mas a situação é esta – você não deve deixar sua imaginação correr solta. Você tem senso/ razão, e todos esperamos que você a use”. Tradução Livre. Grifos da Autora. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.144.

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A partir deste extrato, percebe-se que grande parte da razão esperada de Elizabeth está relacionada à segurança econômica, que é uma necessidade para as mulheres com pouco dote e que iriam depender do marido para seu sustento. Parte da inteligência de Elizabeth se relaciona ao fato de que ela sabe que não seria prudente se apaixonar por um homem mais pobre. Embora traga certas inovações em matéria de independência feminina nenhuma das heroínas de Austen se permite apaixonar por alguém que não esteja em sua esfera social, ou que não pudesse sustentá-la. O mais próximo que uma personagem de Austen chegou de fazer isso foi a filha mais nova da família Bennet, mas ela se casou obrigada com o homem que a desonrou e durante todo o livro não demonstra nenhuma racionalidade. Lydia Bennet é um exemplo do que pode acontecer com uma moça que não respeita as regras que a sociedade lhe impõe, sendo definida por Jane Austen como uma silly girl94. O casamento entre Lydia e Wickaham aconteceu devido aos esforços de Darcy95, logo este matrimônio não foi como o de Elizabeth. Ao ser obrigado a se casar por dinheiro o casal não apresenta nenhuma das características que fariam da união bem sucedida, na concepção de Austen. Até mesmo as personagens da obra descrevem a união como imprudente e Sr. Collins, com suas opiniões conservadoras, em carta a Sr. Bennet, falou: ‘The death of your daughter would have been a blessing in comparison to this’ (…). They [Lady Catherine, tia de Darcy, e Charlotte] agree with me in apprehending that this false step in one daughter will be injurious to the fortunes of all the others, for who, as Lady Catherine herself condescendingly 96 says, will connect themselves with such family?’

O casamento de Lydia poderia significar não somente a ruína de suas irmãs, o que não acontece em Orgulho e Preconceito, pois o casamento de Darcy com Elizabeth e de Jane com Bingley de certa forma “abafa” a fuga de Lydia. O matrimônio do casal não foi baseado no respeito mútuo, do sentimento amoroso e

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Garota tola. Que procurou Wickham e Lydia quando eles fugiram e se esconderam em Londres. 96 “‘A morte de sua filha teria sido uma benção se comparada com o que aconteceu’ (...). Elas concordam comigo em compreender este falso passo em uma de suas filhas como sendo uma injuria contra a fortuna de todas as outras, pois quem, como a própria Lady Catherine condizentemente diz, irá se conectar com tal família? ’”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. p.291292. 95

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da racionalidade, logo não pode ser compreendido como um bom casamento para Austen. Através destes modelos de casamentos bem sucedidos, ou não, Austen acaba legitimizando uma prática já existente na Inglaterra, a do casamento por amor.

Mas, ao contrário do que escreveu McFarlane, as escolhas feitas pelos

indivíduos são não apenas sentimentais, sendo também racionais. Desta forma, observa-se que a obra de Austen não trata de um amor arrebatador, que derrubaria todas as barreiras sociais e econômicas. As heroínas de Jane Austen encontram o amor sem perder completamente a razão. Marianne Dashwood, de Razão e Sensibilidade é a que menos demonstrou racionalidade em suas escolhas, mas quando ela descobre que Willoughby resolvera se casar por dinheiro, ao invés de com, a heroína que representa a sensibilidade na obra acaba por descobrir que o amor também deve ser em parte racional. Logo, amor sem razão não é verdadeiro, para Austen. Ao mesmo tempo, o matrimônio por motivos apenas racionais não é bom. No entanto, ele existe, tanto no cotidiano da autora quanto em suas obras. Logo, ela não nega sua existência e em alguns casos, como o de Charlotte Lucas, não nega sua veracidade. O casamento por dinheiro não é ruim para a autora apenas não é tão bom quanto o casamento por amor, sendo que leva a uma felicidade incompleta. Como é o caso de Charlotte, cuja felicidade se resume a um aposento que não é usado pelo marido, permitindo a ela momentos de privacidade, sem Collins, cuja presença não lhe trás muito agrado. As heroínas de Austen não se contentavam com uma felicidade incompleta, desta forma, assim como a própria autora o fez, preferiam não se casar a serem esposas de um homem que não amassem e respeitassem. Elizabeth Bennet recusou duas propostas de casamento, uma delas de Darcy, e Anne Elliot fala sobre Sr. Elliot97: She never could accept him. And it was not only that her feelings were still adverse to any man save one; her judgment, on a serious consideration of the 98 possibilities of such a case, was against Mr. Elliot.

97

Seu primo que iria herdar o estado e o título de seu pai, e que lhe demonstra interesse. “Ela nunca poderia aceitá-lo. E não era devido ao fato de que seus sentimentos eram contra qualquer outro homem que não um; seu julgamento, em sérias considerações sobre o caso, era contra Sr. Elliot”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p. 154.

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Anne não respeitaria seu primo como marido, pois ela não confia em seu caráter; mesmo sendo ele herdeiro da nobreza. Anne Eliott via valores morais acima da classe, o que pode ser perceptível através de seu romance. Ela, filha de um Sir, apaixona-se por um marinheiro e se torna amiga de marinheiros. Anne Elliot dava mais valor aos seus amigos marinheiros e suas esposas do que ao primo que herdaria o título de seu pai. É deste grupo da marinha que Austen mostra outro exemplo de matrimônio bem sucedido. A irmã de Coronel Wentworth, Sra. Croft, se casa com um marinheiro. Ela optou por viajar com seu marido sempre que ele era enviado para o mar, com exceção de quando ela estivesse grávida, pois a gravidez era um momento de fragilidade na vida daquelas mulheres e por mais que a sociedade permitisse que as esposas viajassem com seus maridos, a viagem no período da gravidez não seria aceita. Sra. Croft não desejava deixar seu marido só durante suas viagens, pois “there is nothing as bad as separation” 99 para os casais. Os matrimônios que aparecem na obra de Austen podem, então, ser divididos entre casamentos bons e ruins. Os ruins são aqueles que não unem razão e sensibilidade, ou seja, são as uniões que surgiram unicamente de razões econômicas ou de uma paixão, um sentimento unicamente físico. Já os bons casamentos são aqueles que surgem de um amor que une estes dois motivos. Austen não nega a necessidade do casamento por dinheiro, mas a autora coloca sim um modelo de casamento ideal que não prevê esta necessidade. O casamento por amor é o grande vencedor na obra de Austen, pois suas heroínas têm que merecê-lo, aprendendo ao longo da obra a respeitar seus maridos e a saber diferenciar uma paixão de um sentimento verdadeiro. Jane Austen, então, faz de suas personagens exemplos para as mulheres de sua época, mas não apenas como modelos de indivíduos que unem razão e sensibilidade em seu cotidiano, mas que também utilizam estes sentimentos para encontrar seus maridos. A obra austeniana não cria o casamento por amor, mas legitima sua veracidade. Austen não vê o casamento por necessidade como errado, mas se ele fosse respaldado pelo sentimento amoroso verdadeiro ele poderia ser perfeito. A felicidade das personagens de Jane Austen estava no sentimento amoroso e no final que ele almejava: o casamento entre iguais que se respeitavam entre si.

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“Não há nada tão ruim quanto a separação”. Tradução Livre. AUSTEN, Jane. Persuasão. p. 69.

CONCLUSÃO

Ao longo dos três capítulos desta monografia percebemos que Austen deu grande importância ao casamento como destino para a mulher, por mais que a própria autora não tivesse casado. Através de algumas personagens e situações a autora tratou do matrimônio como uma necessidade para as mulheres de sua época, ao mesmo tempo em que demonstrou como o dinheiro, que poderia vir das uniões matrimoniais através do dote, representava um fator de grande relevância para os jovens, tanto homens, quanto mulheres, que optavam por se casar. Da mesma forma, através da obra literária é possível perceber como as pressões sociais atuavam e eram reiteradas ao longo da juventude principalmente das mulheres. Estas pressões poderiam influenciar o destino das personagens de Austen especialmente quando elas necessitavam de dinheiro ou se manter de acordo com os padrões sociais. Contudo, as heroínas de Austen não parecem sofrer tais pressões. Elas demonstram certo grau de autonomia e de racionalidade em suas escolhas que as levam a alcançar o final romântico e feliz que desejam. Desta forma, por mais que Austen recorra às personagens secundárias para demonstrar o efeito das pressões para casar e as necessidades das personagens para atender ao que dela se esperava socialmente, suas heroínas não parecem sofrer tais pressões, ou pelo menos a construção das personagens de Austen apontam para um posicionamento crítico em relação a estas questões. No entanto é preciso ressaltar que mesmo que Austen permita às suas heroínas questionar algumas convenções sociais, elas o fazem de uma forma ponderada e procurando manter o equilíbrio entre escolhas individuais e convenções sociais, ou seja, suas personagens não fazem nenhuma ruptura com os códigos sociais de gênero e de classe. Desta forma, em “Persuasão”, Anne Elliot só pode se casar com Wentworth quando ele enriqueceu e em “Orgulho e Preconceito”, Elizabeth só pode se casar com Darcy porque ele é rico e chefe de sua família, não tendo ninguém acima de si a quem deveria prestar deferência e obediência. Através da leitura da obra de Austen se pode perceber que a autora cria uma divisão entre as formas de casamento: o bom e o mau. O bom casamento é por amor, enquanto o mal é resultado de interesses materiais somente. Seus textos

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demonstram uma superioridade do casamento por amor. É preciso lembrarque para Austen o casamento por amor é governado pela razão e não pelas paixões, pois as uniões resultantes do desejo sexual imediato não seriam uniões pautadas numa consideração racional, mas momentânea e, portanto, fadada ao fracasso. Para a autora, ambas as escolhas, o dinheiro e o amor, eram válidas. Mas para ela era o verdadeiro amor que levaria a um casamento verdadeiramente feliz. No entanto, o conceito de amor para Austen não se refere apenas a um sentimento afetivo amoroso. Para ela o amor deveria unir razão e sensibilidade, não sendo nem paixão sensual, nem a atração das aparências, nem unicamente uma troca mercantil feita entre marido e mulher, através do dote. Através de personagens estereotipadas, que permeiam toda a obra austeniana, a autora demonstrou como um casamento que não se realizasse pelo equilíbrio entre a razão e os sentimentos nobres não teria sucesso. Para concluir podemos dizer que os livros de Austen não apresentam uma nova visão sobre o casamento, mas sim legitimam uma forma de matrimônio que já estava começando a se configurar na Inglaterra, a saber, a escolha do indivíduo sobre casar ou não e a razão pela qual se casar, sendo o amor a razão mais legítima, segundo Jane Austen e um número crescente de seus contemporâneos. Também é importante ressaltar que o uso da fonte literária nos possibilitou adentrar pelos terrenos da imaginação e da criação da escrita produzida por uma mulher como Austen, com uma inserção social bem delimitada e para quem as pressões para o casamento eram reais e reiteradas. A fonte literária também é um recurso notável para os historiadores porque é reveladora na criação da escrita, sem dúvida, mas igualmente da recriação das realidades sociais, como muito bem o fez Jane Austen ao recriar o meio social inglês com hierarquias e rígidos valores culturais, mas também a ascensão de novos valores e a possibilidade de mudança, mesmo sem rupturas, mas acentuando a autonomia dos indivíduos, sua capacidade de crítica e escolha.

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