O Tropicalismo na esteira do projeto nacional-desenvolvimentista: um estudo de economia e cultura

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O TROPICALISMO NA ESTEIRA DO PROJETO NACIONALDESENVOLVIMENTISTA: UM ESTUDO DE ECONOMIA E CULTURA Rafael Giurumaglia Zincone Braga1 Bruno Nogueira Ferreira Borja2 Resumo: O presente artigo tem como propósito relacionar o objeto da cultura com a análise econômica a partir da metodologia do materialismo histórico marxista e do conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Adoto como recorte a movimentação cultural tropicalista na MPB e o padrão de desenvolvimento econômico brasileiro com base, a priori , na substituição de importações de bens de consumo duráveis: de JK ao “milagre econômico” . Discuto a partir da visão de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, o conteúdo e o posicionamento político da Tropicália no esteio da indústria cultural no Brasil. Por fim, ressaltarei o elemento contraditório do Tropicalismo em comum com o modelo de desenvolvimento da economia brasileira.

Palavras-chave: tropicalismo, indústria fonográfica, nacional-desenvolvimentismo. I.Introdução

A partir da minha monografia de conclusão de curso Economia e Cultura: tropicalismo, indústria cultural e desenvolvimentismo brasileiro, apresento este artigosíntese com o propósito de discutir a música tropicalista na esteira no desenvolvimento da indústria fonográfica entre as décadas de 1960 e 1970 no bojo do modelo de desenvolvimento em percurso no Brasil destes mesmos anos. Defendendo a hipótese da estética tropicalista como uma alegoria das contradições

do

Brasil

de

seu

tempo

(desenvolvimento/subdesenvolvimento,

arcaico/moderno, contra-cultura/tradição, urbano/rural), apresento a controvérsia em torno da autenticidade do elemento crítico tropicalista num contexto de ditadura e de um acelerado desenvolvimento capitalista no Brasil. Para tanto, apresento as contribuições

1

Mestrando em Mídia e Cotidiano na UFF e pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA/UFRJ). [email protected]. 2 Revisão. Professor da UFRRJ e pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA/UFRJ). [email protected]

teóricas de Roberto Schwarz, de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves e, por fim, a visão de Carlos Nelson Coutinho.

II - Materialismo histórico: uma questão de método

Pensar a problemática da alegoria tropicalista, "o Brasil como absurdo", na música popular brasileira sem ter como pano de fundo as contradições inerentes do modelo de desenvolvimento levado a cabo no país entre os Anos JK e o "milagre econômico" seria, para fins da minha pesquisa, um esforço sem muita relevância. Parto, assim, da premissa de que o campo da cultura e da economia estão compreendidos em uma mesma totalidade, ou seja, por mais que exista uma relativa autonomia na produção musical por exemplo, ela somente se viabiliza concretamente dentro das possibilidades materiais de seu tempo. Cito Marx:

Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independente da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, [1859] 2008, p.47)

A partir desta mesma lógica, aproveito o conceito de indústria cultural desenvolvido por Adorno e Horkheimer no artigo homônimo A Indústria Cultural (1947) para discutir a viabilidade crítica da Tropicália no esteio da indústria cultural. Os pensadores da Escola de Frankfurt argumentam que a indústria cultural, por meio de todo seu aparato técnico, expressa a visão social de mundo de seus detentores, ou seja, da classe burguesa. Para eles, o termo indústria significa a estandardização do produto cultural que uma vez massificado seria idêntico sob o domínio do monopólio e assim, o artista não seria mais sujeito de sua obra e sim as grandes corporações. Com base nesta postulação, discutirei em seguida a efetiva crítica da Tropicália nos parâmetros de indústria.

III - A indústria fonográfica brasileira no contexto do "milagre econômico".

Analiso, neste artigo, os contornos da indústria fonográfica no Brasil entre os anos de 1968 e 1973, período entre a impressão do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses e o disco Araçá Azul de Caetano Veloso 3. Nesse recorte espaço-temporal, tem lugar no Brasil, primeiramente, o desenvolvimento de um parque industrial com base em bens de consumo duráveis e de altas rendas. O desenvolvimento industrial era a peça central do modelo de desenvolvimento econômico entre o Plano de Metas do governo JK e o "milagre econômico" dos anos de chumbo da ditadura. Além desta característica principal de industrialização, tal modelo priorizou o segmento de bens duráveis (discos, televisão, aparelhos toca-discos, carros, etc.) cujo mercado consumidor se delimitava entre os ricos e a alta classe média. Ademais, a industrialização do período foi protagonizada pelo grande capital estrangeiro, corporações multinacionais como Wolkswagen, Ford, GM, Philips, etc. O desenvolvimento da indústria fonográfica entre as décadas de 1960 e 1970 apresentou grande crescimento e apresentou os mesmos contornos do modelo de desenvolvimento em que analisei na minha monografia conforme já listados acima:, (i) concentração de capital, (iii) protagonismo do capital estrangeiro, (iv) mercado consumidor de altas rendas. Com base na consulta do artigo Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nas décadas de 60 e 70 de Eduardo Vicente, o autor defende a ideia de uma cristalização dos padrões de consumo e organização da indústria fonográfica no Brasil no intervalo dessas duas décadas. Combinado a um extraordinário crescimento desse segmento de mercado, Vicente aponta a preponderância da empresa transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a de orientação única – independente. Embora o mercado de LPs ainda não fosse massificado e, portanto, restrito à população de altas rendas, a música nacional apresentou, segundo Vicente, significativa hegemonia nesse segmento na década de 1960, com destaque para os anos de 1968 e 1969 – no calor da manifestação tropicalista. Contudo, julgo importante observar que a música importada ganha significativa participação no repertório dos brasileiros consumidores de LP, fração essa que se consolida na década de 1970. Assim, o 3

Conforme discografia apresentada no final deste artigo.

mimetismo cultural4 das classes de alta renda fica cada vez mais evidente no mercado fonográfico, conforme se verifica entre os anos de 1970 e 1973. O efeito-demonstração sobre a classe consumidora de bens de consumo duráveis não se verifica apenas no fato de se comprar LPs, mas também em consumir música no mercado estrangeiro. Vicente então explica que com o objetivo de compensar essa diferença e incentivar a gravação de música nacional, uma lei de incentivos fiscais foi promulgada em 1967 facultando às empresas "abater do montante do Imposto de Circulação de Mercadorias os direitos comprovadamente pagos a autores e artistas domiciliados no país" (Idart, 1980: 118). Segundo o autor, as gravações beneficiadas recebiam o selo "Disco é Cultura". Assim, nesse período – e, sobretudo, na década de 1970 -, os artistas de maior projeção na música popular brasileira concentravam-se nas gravadoras multinacionais, principalmente na Philips, que passou a congregar nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia, Jorge Ben, Elis Regina, entre outros. A alegoria tropicalista, por seu posto, conjugava o arcaico e moderno em sua metáfora de Brasil. O parque industrial e o monumento do planalto central do país estavam num só corpo – a nação – imbrincados ao sertão, à rua antiga estreita e torta e à criança sorridente feia e morta. Da mesma forma que Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e Francisco de Oliveira defendem em seus trabalhos o moderno e o arcaico como determinações de um mesmo desenvolvimento capitalista tardio e dependente, identifico estes opostos reunidos na construção tropicalista de um só Brasil. Sua roupagem moderna evidencia estes opostos unidos em uma mesma unidade e não como contrapartes estanques. Mesmo que aparentemente alegre em sua forma, a ironia de um Brasil que se desenvolve de forma autoritária e empobrecedora está dada. Da mesma forma que a intelectualidade de esquerda debateu o modelo de desenvolvimento do Brasil entre meados das décadas de 1960 e 1970, a concepção de música popular brasileira (e seus rumos) também estiveram em discussão no final dos anos 1960 – especialmente em 1967 e 1968. Discutia-se o que era e o que não era música popular brasileira. Se guitarra elétrica era música popular brasileira, se Caetano Veloso era música popular brasileira, se Roberto Carlos era música popular brasileira e assim seguia a discussão em espaços artísticos, partidários e acadêmicos. A hipótese por mim esboçada – da Tropicália como alegoria irônica de um capitalismo periférico, autoritário e dependente do Brasil de seu tempo – antes de ser 4

Celso Furtado.

um consenso se inscreveu na larga controvérsia que apresento na quarta sessão deste trabalho. Encaminho, portanto, algumas questões: a Tropicália foi capaz de construir uma crítica antropofágica em relação ao consumo da estética pop internacional? A Tropicália apontou alternativas não-alienadoras de consumo dos produtos – não somente culturais – originados nos grandes centros imperialistas? No estudo desta controvérsia, aproveitei a questão da dimensão cultural e ideológica das nações imperialistas sobre o padrão de desenvolvimento dos países capitalistas periféricos, pensada por Furtado e reforçada por Cardoso e Faletto.

IV - A controvérsia em torno da mensagem tropicalista: as contribuições de Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Nelson Coutinho. IV.I – Roberto Schwarz e a tese do "esnobismo de massas"

Em seu Cultura e Política: 1964-1969, SCHWARZ ([1969] 2009) indagou qual era o lugar social do tropicalismo, e também, qual era o fundamento histórico de sua alegoria sincretista – a combinação entre extremos e absurdos: "para obter seu efeito artístico e crítico o Tropicalismo trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa fracassada de modernização nacional". A respeito de seu locus social, informa: Diante de uma imagem tropicalista, diante do disparate aparentemente surrealista que resulta da combinação que descrevemos, o espectador sintonizado lançará mão das frases da moda, que se aplicam: dirá que o Brasil é incrível, é a fossa, é o fim, o Brasil é demais. Por meio dessas expressões, em que simpatia e desgosto estão indiscerníveis, filia-se ao grupo dos que tem senso do caráter nacional. Por outro lado, este clima, esta essência imponderável do Brasil é de construção simples, fácil de reconhecer ou produzir. Trata-se de um truque de linguagem, de uma fórmula de visão sofisticada ao alcance de muitos. (SCHWARZ, [1978] 2009, p. 31)

Schwarz quer com isto dizer que o Tropicalismo no campo musical – através de uma linguagem simples e de fácil reprodução – alcança públicos diversos: tanto um público letrado e consciente das referências e intertextualidades presentes em suas letras e atinge também aqueles que irão simplesmente apreciá-las e reconhecê-las em estilos que lhes são familiares – o pop internacional e a própria música popular do Brasil5. Em outras palavras, Schwarz defende que o

5

Um exemplo que considero interessante é a música 2001 dos Mutantes , presente no álbum que leva o nome do grupo: Mutantes (1968). A música faz referencia direta à música caipira brasileira, bastante difundida entre a classe trabalhadora daquela época – principalmente do campo. A música alia a estética

tropicalismo, através de um estilo compatível com o gosto popular, atinge um público amplo entre aqueles – uma minoria – que compreenderiam a alegoria de Brasil de seu tempo e aqueles – a grande maioria – que estariam em contato com sua obra sem, contudo, reconhecer

sua imanente metáfora: de um Brasil que conforma seus absurdos, o arcaico e o moderno. No entanto, o Tropicalismo, na visão de Schwarz, não discutia diferentes possibilidades para o Brasil, bem como não vislumbrava alternativas engendradas pela esquerda. A desigualdade social existente no país, os resquícios não superados de um passado colonial – as relações servis de trabalho no campo e o grande latifúndio, por exemplo - eram para o movimento, características inerentes ao país, intrínsecas à excolônia continental da América do Sul, que conviveria com uma mistura mantenedora de todos esses traços no esteio da modernização do país. Assim, questiona se a modernização realizada pelo regime civil-militar do Brasil seria necessariamente boa – questionamento este que para ele estava ausente na Tropicália. Diferentemente, Schwarz indica no cinema contemporâneo ao Golpe uma alternativa verdadeiramente crítica ao status-quo: uma estética da fome em Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis – respectivamente de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra. Tal estética tem suas linhas de força na oposição direta à modernização tecnológica e econômica vigente no país e é neste ponto que a direção tomada pelo Tropicalismo é contrária para Schwarz: registra o atraso do país como coisa aberrante, tomando como contrapontos a vanguarda e a moda internacionais. Desta feita, pude então concluir que o Tropicalismo é na ótica de Schwarz um microcosmos do processo de modernização do Brasil, que corrobora o arcaísmo e aproveita-se dele para o crescimento da economia, para a promoção da infraestrutura, além de uma grande promessa do regime: a manutenção do status quo. Cito o autor:

(...) Na metáfora tropicalista os termos opostos de um Brasil existiam alegremente lado a lado, igualmente simpáticos, sem perspectivas de superação. (SCHWARZ, 2012, p.99)

de origem estrangeira presente no cotidiano urbano do Brasil de 1968 e faz referência direta ao ritmo de A Marvada Pinga composta por Ochelsis Laureano em 1937, que ficou célebre na voz de Inezita Barroso.

IV.II – Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves: o tropicalismo e a inter(mídia)ção da indústria cultural.

Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves apontam tanto o Cinema Novo quanto a Tropicália como "linha evolutiva" do processo cultural desse período. Definem o primeiro como tendo um papel de frente no campo da reflexão política e estética além de retratar as contradições do intelectual-político no contexto de ditadura. Já o segundo, seria para eles a renovação da canção popular no Brasil tendo como eixo temático os impasses e inquietações da situação pós-1964. Além disso, argumentam que a vanguarda cinematográfica influenciou diretamente aquilo que em 1968 se constituiria em movimento - o Tropicalismo - com a impressão do álbum manifesto Tropicália ou Panis et Circenses (1968) . Em suas palavras: De fato, é significativa a influência da informação cinemanovista na estética tropicalista. O corte, a justaposição, o uso do fragmento e do flashback, a narrativa onírica, presentes na produção cinematográfica, pareciam atrair a atenção não apenas do “grupo baiano”, mas de expressivos setores da juventude interessados pela cultura. (HOLLANDA&GONÇALVES, [1982] 1987, p.52)

Para Hollanda e Gonçalves, o que separava o Tropicalismo do projeto revolucionário pré-64 defendido pela intelectualidade brasileira era a revisão da defesa do nacionalismo – especificamente na esfera cultural - e sua idealização de uma cultura popular “moderna”. Uma autêntica cultura popular brasileira seria, para os autores, aquela capaz de elaborar criticamente as diversas informações dispostas em sua realidade objetiva – o que compreende elementos originais da formação cultural brasileira desde os tempos de colônia e as inovações, de origens estrangeiras, concretamente dispostas em território brasileiro. Isso tudo sem que se esquecesse da nova dinâmica de dependência do Brasil, ou seja, o caráter do modelo de desenvolvimento econômico que toma corpo nos fins dos anos 1960 e que se desdobra no “milagre”. A problemática do tropicalismo estava para os autores no seguinte ponto: seria possível combinar exigência política e a solicitação da indústria cultural? Ao contrário de Adorno, respondem que sim e que o tropicalismo operou nesta chave. Argumentam que tanto a arte engajada quanto a adequação aos sistemas de consumo de massa foram redimensionadas sobretudo para o eixo comportamental:

Na opção tropicalista o foco da preocupação política foi deslocado da área da Revolução Social para o eixo da rebeldia, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural essa nova forma de conceber a política veio a se traduzir numa explosiva capacidade de provocar áreas de atrito e de tensão não apenas no plano específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos visuais/corporais que envolviam suas apresentações. (HOLLANDA &GONÇALVES, p. [1982] 1987, p.66)

Portanto, a simbiose de arte engajada e indústria cultural não foi, para os tropicalistas ao final dos anos 1960, uma impossibilidade como postulava grande parte da militância de esquerda daquele tempo. Em linhas gerais, apresentaram sua arte crítica em todas as estruturas (imprimindo discos pela Phillips ou se apresentando no Cassino do Chacrinha) metaforizando um Brasil que se modernizava corroborando seus arcaísmos – o que valia tanto para um modelo econômico quanto para uma sociedade, sobretudo a classe média, que consumia o “moderno” e reproduzia a cultura hegemônica dos grandes centros sem deixar de flertar com valores conservadores6. IV.III – Carlos Nelson Coutinho: o tropicalismo como um amadurecimento da cultura nacional-popular.

Em seu Cultura e Sociedade no Brasil: ensaio sobre ideias e formas, presente no seu livro homônimo Cultura e Sociedade no Brasil de 1979, Coutinho defende a ideia de que o processo de transformação social no Brasil através da conciliação de suas classes dirigentes – a modernização conservadora “prussiana” - marca de diversas formas o conteúdo da cultura brasileira. Surgem nesse contexto manifestações próprias da ideologia prussiana – expressões ideológicas excludentes das massas populares de qualquer participação ativa nas grandes decisões nacionais (Cf. COUTINHO, [1979] 2011, p.41). Esse modus pensandi se verificava, para o autor, não só em pensadores autoritários e de direita, mas também em pensadores liberais moderados e até progressistas em construções irracionalistas. Para o autor, a construção irracionalista estaria em combinar princípios ideológicos incompatíveis no corpo de uma mesma defesa, intelectual ou artística. O que é importante observar nesta reflexão é a relação que faz entre a conciliação social e política e sua expressão no plano das ideias – o que inclui o plano 6

Tomo como exemplo A Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964) que reuniu diversos segmentos da classe média brasileira, sobretudo ligados ao clero, e que se opunham as reformas de base propostas pelo então Presidente João Goulart.

cultural. Coutinho trata das diversas pressões das condições objetivas – de um sistema político autocrático além da própria economia de mercado – que artistas e pensadores sofrem, direcionando-os para sínteses ecléticas (e acríticas da realidade brasileira) em seus trabalhos que diminuiriam seus caracteres progressistas. Seria o caso do Tropicalismo? Assim, responde:

Vejamos um exemplo concreto: sob muitos aspectos, o movimento tropicalista em seus inícios – na medida em que tendia desistoricizar as contradições concretas da realidade brasileira e a eternizá-las numa abstração alegórica e irracionalista (o Brasil como “absurdo” etc.) – pode ser considerado expressão do “intimismo”. Mas não se deve deixar de registrar a presença, na evolução do tropicalismo, de um saudável esforço no sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios expressivos e, sobretudo, de figurar uma nova temática, resultante do modo prussiano de implementação do CME 7 entre nós (coexistência de um sofisticado capitalismo de consumo com a conservação do atraso nos meios rurais e nas periferias urbanas). (COUTINHO, 2011, p.67).

Para além disso, Coutinho defende a ideia de que a visão tropicalista contribuiu para superar os evidentes limites de um populismo ingênuo presente nos grandes festivais da canção. Para o autor tratava-se do canto de um otimismo ingênuo que pudesse pretensamente apagar a repressão dos anos de chumbo. Assim, argumenta que o tropicalismo se contrapôs ao que chamou de doença senil do nacional popular ou nacionalismo

infantil

quando

seus

melhores

representantes

abandonam,

progressivamente, a alegoria irracionalista (neutralizadora) e optam por uma dura crítica , nada populista nem ingênua, da cotidianidade moderna, portando, da modernização conservadora da ditadura. V – Considerações Finais Tomando como base a controvérsia existente entre os trabalhos de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Heloísa Buarque de Hollanda e Márcio Gonçalves, procurei discutir ao longo deste trabalho o Tropicalismo na Música Popular Brasileira 7

Capitalismo monopolista de estado. Conceito utilizado por Carlos Nelson Coutinho para caracterizar a particularidade do modo de produção capitalista no Brasil sobretudo após a ditadura, quando o Estado assume importante papel coordenador das atividades econômicas no país.

de acordo com o seu recorte espaço-temporal: o Brasil nos anos de endurecimento na ditadura civil-militar e insurgência do bastante alardeado “milagre econômico”. Busquei assim demonstrar que o produto musical da Tropicália – os LPs produzidos por Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé, Mutantes e outros – assim como a produção da M.P.B tradicional eram frutos de um padrão de desenvolvimento econômico baseado na indústria de bens de consumo duráveis para um mercado consumidor restrito – ainda não massificado e reprodutor da cultura mercadológica dos grandes centros capitalistas. Nesse sentido, a Tropicália se materializou em acordo com a modernização conceituada por Celso Furtado: a promoção da moderna indústria - sustentada pela reprodução do padrão de consumo do mercado de massa das potências capitalistas pelas elites locais – coexistente à manutenção do arcaísmo brasileiro. Em concordância com as visão de Coutinho e o trabalho conjunto de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, identifico na música tropicalista uma crítica contundente e irônica em relação momento político e social de seu tempo que não pode ser menosprezada pelo simples fato de se constituir como um produto da grande indústria fonográfica e por incorporar o elemento estrangeiro em sua estética. A M.P.B tradicional operou nos mesmos meios da Tropicália: ambos os lados imprimiam seus discos na Phillips-Phonogram e se dirigiam a um mesmo segmento de mercado, um mercado consumidor muitas vezes crítico, porém burguês. Concluo essa análise retomando, antes de mais nada, a ideia de que a arte necessariamente organiza os elementos que estão dispostos em sua realidade objetiva e de diferentes formas. A manifestação musical tropicalista, inserida no contexto de endurecimento do regime militar e nas proximidades do amadurecimento do modelo de desenvolvimento brasileiro abordado nesta análise, constituiu em sua metáfora a representação do Brasil de seu contexto: o arcaico de mãos dadas com o moderno, questionando o papel de satélite cultural de um Brasil cujas classes média e alta reproduziam, através de um consumo chapado e alienante, os comportamentos ditados pelos centros hegemônicos. O elemento estrangeiro em meio ao amálgama cultural brasileiro foi assumido pelos tropicalistas de forma original, isso sem que eles deixassem de dizer onde estavam e em que contexto viviam. “Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso, não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim.

Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem ... Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!” (É proibido proibir, Caetano Veloso)8

V – Bibliografia

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8

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Discografia: Caetano Veloso – Caetano Veloso (1967) Philips Caetano Veloso – É Proibido Proibir (1968) Philips Caetano Veloso – Araçá Azul (1973) Philips Gal Costa – Gal Costa (1969) Gal Costa – Gal (1969) Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968) Philips Gilberto Gil – Questão de Ordem (1969) Philips Grupo Baiano – Tropicália ou Panis et Circenses (1968) Philips Os Mutantes – Os Mutantes (1967) Polydor Os Mutantes – Mutantes (1968) Polydor Tom Zé – Tom Zé (1968) Rozemblit

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