O último capítulo- cenas do julgamento: o Direito nas telenovelas

September 1, 2017 | Autor: Gisele Salgado | Categoria: Law And Popular Culture, Filosofia do Direito
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31/01/2015

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O último capítulo­ cenas do julgamento: o Direito nas telenovelas ­ Filosofia ­ Âmbito Jurídico

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Filosofia O último capítulo‐ cenas do julgamento: o Direito nas telenovelas Gisele Mascarelli Salgado Resumo: As telenovelas brasileiras produzem uma série de imagens do judiciário brasileiro ao mesmo tempo em que trazem uma discussão sobre o que é Direito e justiça. O artigo procura analisar como essas imagens e concepções de direito estão presentes nos últimos capítulos de quatro telenovelas. Palavras‐chave: Direito, telenovela brasileira, judiciário Sumário: Introdução, 1. Direito divino e direito dos homens, 2. O direito das novelas ‐ o o lugar de fala e de espetáculo, 3. A novela como transformadora de valores para novos direitos, Considerações Finais, Bibliografia Introdução Alguns estudos de “Direito e cultura popular” trazem análises de filmes e seriados de televisão. Isso é facilitado pelo aumento do interesse de questões jurídicas pelo público, em especial o norte‐americano, que tem uma das maiores indústrias cinematográficas. É difícil listar os incontáveis filmes que abordam de uma maneira direta ou indireta o Direito[1]. Existe inclusive um tipo de filme conhecido como “filmes de tribunal”, em que se aborda diretamente de questões relativas ao Direito. Há diversos seriados que retratam a vida de policiais, advogados, magistrados, médicos legistas, peritos judiciais, etc.. No Brasil cresce de forma tímida a utilização de filmes e séries para a análise do Direito. Alguns desses estudos buscam a análise de filmes estrangeiros que tratam diretamente do direito. Porém, a diferença entre o direito praticado no Brasil e o direito retratado nos filmes internacionais causa um grande problema na análise. A produção cinematográfica brasileira trata de temas relativos ao direito, porém o volume de filmes e o acesso do grande público a eles ainda é muito menor se comparado aos filmes estrangeiros, em especial os norte‐americanos. Devido à difusão desses filmes estrangeiros, forma‐se entre os brasileiros uma expectativa de que os direitos e o judiciário sejam semelhantes. Muitas vezes a expectativa é frustrada quando alguns brasileiros se deparam com o judiciário brasileiro. O Direito aparece nos filmes, séries e documentários brasileiros, mas as telenovelas brasileiras parecem contribuir muito mais para a visão sobre o direito brasileiro. As telenovelas brasileiras são assistidas por milhares de expectadores todos os dias, durante meses. É possível acompanhar pelo menos três telenovelas novas em um único canal de televisão por dia, sem contar nas reprises. A Rede Globo de televisão tem como um dos principais programas de sua programação suas novelas. Outros canais de televisão de alcance nacional também tem se destacado pela produção de novelas diárias. Acompanhar as novelas se tornou uma verdadeira mania nacional, que chega a ser encarado como uma religião. Em telenovelas emblemáticas é possível dizer que o país chega a parar para se assistir os últimos capítulos. Apesar da grande difusão das telenovelas brasileiras, inclusive no exterior, pouco se tem pensado sobre as representações de Direito existente nelas. A telenovela não está só nos espaços privados das residências, ela também está nos espaços públicos, assim como o futebol. As discussões sobre as tramas e temas das telenovelas, ocorrem no espaço de trabalho, de lazer ou mesmo de convivência. Ainda há um grande público de mulheres assistindo telenovelas, porém não se pode dizer que esse é o único público. Ao proporcionar a discussão, sobre algo que muitos assistiram, a telenovela leva a uma situação de debate público, tão rara na sociedade atual. Mesmo com essa grande repercussão as telenovelas ainda não são um tema para a academia, pois há poucos trabalhos sobre o tema. Em pesquisas aponta‐se 26 estudos acadêmicos sobre telenovela na década de 1990 e mais 6 no período de 200‐2003, em todo o país[2]. Porém, cresce o número de iniciações científicas que se utilizam da novela para tratar questões já conhecidas nos meios acadêmicos. Nos estudos de direito das faculdades dificilmente se fala dos direitos nas telenovelas. Há pelo menos duas grandes razões para esse desprezo: a) a telenovela ainda é tida como inferior devido ao seu apelo popular, b) muitas novelas apresentam uma representação de direito que não se assemelha à realidade do direito brasileiro, em especial em representações sobre o judiciário. A representação do Direito nas telenovelas é um campo fértil para as discussões sobre o Direito e deve ser levado em consideração pelos professores de Direito, pois é a partir das telenovelas que grande parte dos alunos tira suas noções do que é o direito brasileiro, quando não tiveram um contato direto. As discussões geradas pelos temas das novelas devem ir para a sala de aula, seja para identificar os conceitos técnicos (corretos ou errôneos) ou para sensibilizar sobre a relação direito e sociedade. Como objeto de estudo selecionou‐se quatro telenovelas brasileiras de grande repercussão entre o público, que tinham como tema a discussão sobre o direito, em especial o último capítulo de cada uma delas. A análise do conteúdo de uma telenovela inteira se mostrou inviável, uma vez que cada uma contém em média 200 capítulos de mais de uma hora de duração cada. Foram destacadas as seguintes novelas: “Selva de Pedra” de 1972 e sua versão de 1986, “Caras e bocas” de 2009 e “Páginas da Vida de 2009”. Todas estas têm em comum retratar uma cena de tribunal em seu último capítulo, facilitando enormemente a análise. A escolha também foi feita levando em consideração o acesso ao material, uma vez que esses capítulos estão disponíveis ao público. Uma outra novela também tinha em seu capítulo final cenas de julgamentos, porém essas cenas não foram encontradas (O julgamento‐ telenovela da Rede Tupi‐ 1976‐1977). Além dessas foi analisado o último capítulo da telenovela “Paraíso Tropical”, que trata de questões relativas ao direito e tem como particularidade não explicitar nenhuma cena de julgamento dos vários crimes e prisões de seus personagens. Essas quatro telenovelas têm algumas diferenças que são levadas em conta na análise, destaca‐se: público ao qual a telenovela estava destinada que é ligada ao horário de veiculação da novela e tempo em que foram produzidas. Das quatro telenovelas, três são destinadas a um público adulto, sendo veiculadas no último horário. Inicialmente esse horário era o das 8 horas da noite, dando nome a essas novelas como novelas das 8. Porém, devido à necessidade de mudança da programação da emissora de televisão e também da adequação do horário para o público destinado, essas novelas ocupam atualmente o horário das 9 horas da noite em diante. A novela “Paraíso tropical”, devido às cenas de violência, nudez e a temática mais adulta. Uma das telenovelas é destinada à um público mais jovem e com isso, tem uma temática mais leve e um aspecto moralizante, com invocação de valores tradicionais. A concepção de direito desse tipo de novela é diferente da novela destinada a um público adulto. Três novelas são relativamente recentes, datando do final dos anos 2000. Como oposição a essa percepção recente, selecionou‐se a telenovela Selva de Pedra, que teve versões de 1972 e 1986. O direito será entendido de forma diferente ao longo das épocas, pois o direito é histórico. Não se quer falar com isso que a telenovela retrata o direito da época, uma vez que isso é verdade apenas em parte. Como a telenovela é uma obra ficcional em que a realidade pode estar presente não como verdade, mas como um direito verossimilhante e por isso não precisa refletir necessariamente o direito da época. Porém, não se pode negar que para ser verossimilhante uma apropriação da concepção de direito da época foi utilizada. O objetivo desse texto é analisar como o direito está presente nas telenovelas, entendido aqui ao mesmo tempo como fruto da sociedade e como instrumento de alteração dessa sociedade. A concepção de direito utilizada é a de direito como instituição imaginária da sociedade. Destaca‐se na análise das telenovelas outros conceitos de direito utilizados, como o direito estatal, o direito divino, o direito dos criminosos, etc.. Ressalta‐se que o objetivo é a análise da concepção de direito, portanto, não se irá recriar a trama da novela, identificando os personagens e sua história[3]. 1. Direito divino e direito dos homens Uma das muitas leituras possíveis da obra Antígona de Sófocles é enxergar nela a oposição entre direito divino e direito dos homens. Essa leitura é muito utilizada por diversos professores de filosofia do direito para ressaltar as diferenças entre essas duas leis, destacando que pode ocorrer a oposição entre elas. De certo modo é uma leitura muito calcada na leitura da obra apresentada por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito[4]. Outros autores preferem uma leitura menos dicotômica, como é a realizada por François Ost[5]. Porém, a versão dicotômica é mais interessante para reforçar a questão da obediência à positividade das leis, que é muito importante no direito atual. Essa dicotomia também permite se falar em dois tipos de justiça: uma divina e outra dos homens. O tema da justiça divina é pouco utilizado entre os juristas atualmente, que tem por foco as leis estatais. Porém, a lei divina é ainda muito utilizada como contraponto às injustiças da justiça dos homens, em especial quando há uma crença em alguma forma de religiosidade. Se a justiça dos homens comete erros, a justiça divina não. Mas essa concepção de justiça divina somente pode ocorrer em formas de religiosidades que admitem que seus deuses não errem. Essa concepção está muito distante da concepção de lei divina da Grécia no período que Sófocles escreve sua Antígona. A oposição entre lei humana e lei divina não era dada pelo par imperfeito/perfeito. Apesar dessa diferença, não é raro se ver a utilização da oposição para casos de injustiças da Justiça ou da lei humana. A injustiça em casos na legislação dificilmente é abordada pelos juristas, uma vez que se formou um consenso no direito moderno que não se discute a injustiça das leis via judiciário. Pode‐se discutir a constitucionalidade da lei, a necessidade de uma outra interpretação, mas é difícil que seja sequer admitida a discussão judicial com base no argumento da injustiça de uma lei. A via para a transformação de uma lei humana que a sociedade reputa injusta tem de ser política. A discussão sobre as injustiças do Judiciário pode ser feita utilizando‐se da oposição à justiça divina. Encontrar um alento em uma possível modificação da situação discutida no judiciário em uma justiça divina é um recurso utilizado quando não se há mais possibilidade de modificação da situação via instrumentos legais. Contudo, esse recurso não deixa de ser uma forma de expressar o inconformismo diante de uma situação. Esse mecanismo é realmente eficaz para aqueles que crêem no transcendente, caso contrário será apenas um recurso de negação. Assim, não se pode estranhar que em um mundo em que foi decretada a morte de Deus[6], a justiça divina seja mais uma vez evocada frente à justiça dos homens.

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A noção de uma justiça divina que pode se opor ou complementar uma justiça humana é uma instituição imaginária social. O recurso à uma justiça divina somente pode ser utilizada pelos homens uma vez que há uma elaboração/criação de tal conceito pelos homens. Desse modo, a justiça divina é uma criação também humana, como tantas outras criações humanas que se referem ao transcendente. Como criação humana a justiça divina é utilizada de uma maneira moralizante, que contém uma situação de revolta ou descrença na justiça dos homens, alegando‐se que há uma instância superior transcendente que deve ser respeitada. Se os homens não olham, há um deus ou mesmo deuses olhando para as ações humanas. Essa utilização moralizante é feita por algumas telenovelas. Uma dessas telenovelas que trata de maneira moralizante a questão da justiça dos homens e a justiça divina é a “Caras e bocas”. O último capítulo da novela busca resolver todos os impasses que ocorreram ao longo de toda trama, seja por um julgamento da justiça dos homens, seja pelo recurso a uma idéia de “justiça divina”. A vilã é julgada e condenada pela Justiça humana em uma cena de tribunal. Apesar de a vilã ser condenada por crime de falsificação em que os objetos falsificados eram quadros de arte, o magistrado que preside o caso profere a condenação como algo grave. A vilã é levada por esse crime ao encarceramento, mostrando com isso que foi realmente castigada. Porém, há referências na telenovela que essa falsificação estaria ligada com o tráfico de animais, ressaltando ainda mais a vilania da personagem. Essa telenovela tem uma abordagem mais leve dos temas e imprime à alguns personagens uma postura caricatural, como é o caso da vilã. Não há matizes no comportamento da vilã, que comete o crime por ser declaradamente má. O mesmo tom caricatural é dado ao julgamento da vilã. O julgamento se dá em uma sala ricamente decorada aos moldes de um palácio antigo, permite um público assista à decisão e tem como principal prova os testemunhos de 7 pessoas, sendo que uma delas é insana. O mesmo tom caricatural é dado à sentença, que profere o magistrado: “‐Prisão máxima, sem direito de redução!”. Fica claríssimo que há uma conduta indesejada pela justiça dos homens, que foi o crime e que essa conduta foi punida com uma sanção que causou um mau à vilã. Às outras personagens foi destinada à justiça divina no julgamento do último capítulo. Os pequenos deslizes, as malandragens, os vícios e os ‘pecados’ não são tão graves para serem julgados na justiça dos homens, porém não são descuidados por uma justiça divina, que se encarrega de punir as condutas não desejadas socialmente, mas não sancionadas pelo direito. Há uma divisão do que é matéria da lei dos homens e o que cabe a lei divina. Essa divisão leva em conta muito a cultura brasileira, uma vez que há dentre as condutas que não foram tidas como crime nessa telenovela, que se olhadas pelo molde da legislação brasileira são consideradas crimes. A telenovela acaba ressaltando um filtro do que é conduta criminosa ou não, que existe na sociedade e que não pode ser levada em consideração nos estudos de direito que tem como dogma a obediência às leis estatais. 2. O direito das novelas ‐ o lugar de fala e de espetáculo O judiciário é um lugar de fala. Conflitos podem ser resolvidos ou pelo menos terminados, mas a ação judicial que é analisada no judiciário é um dos poucos lugares que permite a fala de pessoas comuns. Carlo Ginzburg percebeu no processo medieval de um moleiro italiano perseguido pela inquisição, que o processo era utilizado por Menocchio para expressar suas idéias. Foi através da fala do moleiro que Ginzburg reconstruiu parte da cultura popular em meados do século XVI na Itália. Ao responder o processo Menocchio promete que “falaria tanto que surpreenderia”[7]. O moleiro teve como sentença a morte em um processo que poderia ter se esquivado, mas ele enfrenta o processo e fala. Fala para pessoas que em outras ocasiões não parariam para ouvir‐lo. Dificilmente os juristas entendem o processo como lugar de fala, em que o mais importante é a própria fala para alguém que a escuta. Falar para o judiciário é diferente do falar, pois há um público especializado e atento para a fala. Devido a necessidade de se aumentar a quantidade de processos julgados, muitos magistrados entendem não ser necessária a oitiva das testemunhas, que é parte de muitos processos judiciais. Outras provas são utilizadas e possibilitam “otimizar” o parco tempo dos magistrados para proferir suas inúmeras sentenças. Porém, há questões que chegam ao judiciário que a questão somente é resolvida quando as pessoas falam, sejam estas partes do processo ou testemunhas. Outras vezes é a fala que livra as pessoas da culpa e a fala é parte importante do processo judicial. Porém, não é somente nos tribunais que a fala exerce esse papel. Os juizados de pequenas causas são um espaço de fala por excelência, assim como as delegacias. As telenovelas costumam se utilizar de cenas em lugares em que se discutem o direito para apresentar a fala de seus personagens. É perante o direito e suas autoridades que a verdade aparece, os fatos são esclarecidos e a justiça é feita. A telenovela “Selva de Pedra” obteve uma das maiores audiências quando mostrou uma cena na delegacia em que o mistério que rondava a protagonista foi desvendado. Nessa cena, diversas pessoas param para ouvir a fala da protagonista, feita de uma maneira informal perante os padrões jurídicos. A protagonista revela ter se passado, durante anos, por sua irmã morta em um acidente, agindo dessa maneira por medo de seu marido que a ameaçava de morte. O crime é dito como de falso testemunho, o que não levaria a protagonista à prisão. Porém, o delegado alerta que a protagonista também deverá responder pelo crime de homicídio da irmã no acidente de automóvel. Esse crime não era conhecido pelo delegado e somente foi possível de ser descoberto pela fala da protagonista, que resolveu falar para ser ouvida. A protagonista é ouvida, confrontada com seu marido e testemunhas, em uma sala da delegacia e sem advogado. Depois de tudo dito o delegado propõe que sejam tomadas as declarações da protagonista a termo. A cena retratada acima pertence à primeira versão da telenovela, que foi ao ar em 1972. O direito da novela e o direito estatal brasileiro da época são importantes para se entender o peso dado ao depoimento na delegacia e a suas particularidades. O falar da protagonista de seus crimes em uma época de ditadura militar em que eram respeitados os direitos civis e o procedimento legal para as ações é espantoso. Mesmo diante da sanção da justiça a protagonista precisa falar e fala diante de todos. O público é fundamental para a protagonista falar, porém essa liberdade do escritor da novela dificilmente é encontrada no judiciário ou mesmo nas delegacias, uma vez que o direito positivo vai preservar a pessoa que fala em sua integridade física ou mesmo manter a ordem em um recinto, preservando a possibilidade de fala. Essa mesma telenovela apresenta mais uma cena que a mesma protagonista exercita a sua possibilidade de fala no judiciário. Essa cena se repete de forma muito semelhante nas versões de 1972 e 1986, porém é na última versão que o lugar de fala é mais exercido. Isso provavelmente pode ter ocorrido devido a condições dada pelo contexto histórico em que a novela se desenrolava, que tornara mais importante falar ao judiciário do que ao delegado. Mais uma vez a protagonista fala e livra seu marido, agora no banco dos réus, de um crime. A protagonista narra o que vira na ação e indica que seu marido não teve dolo em um caso de homicídio. Porém, não é somente desse fato que a protagonista fala, pois ela começa falar de como pessoas tentaram impedir que ela falasse ao magistrado, trancando‐a em um porão. Falar era preciso para salvar o marido e também para contar da condição que se encontrava (abatida em uma cadeira de rodas). Na telenovela “Paraíso Tropical” de 2007 ocorre uma ocultação das cenas de julgamento. Em seu último capítulo a telenovela chega a mostrar outros personagens comentando sobre a prisão da protagonista e sua condenação por “crime de falsificação de DNA”. Pelo que deixa entender a trama, trata‐se de um suborno da protagonista para que um técnico de laboratório colocasse no laudo para investigação de paternidade nome de pessoa tida como pai que não tinha compatibilidade com o verdadeiro pai. A perseguição à protagonista é mostrada, porém nada se vê sobre o julgamento. A protagonista que é uma renomada prostituta somente aparece depois de cumprir a pena de um ano, dizendo que voltou a se prostituir e que agora estava sendo investigada por uma CPI, devido a favores que recebera de um político. A cena da CPI é mostrada ao público, porém a protagonista não tem nada a falar. A protagonista não conta seus crimes ao judiciário, não há culpa que precisa ser expiada pela confissão através da fala rasgada. O judiciário é ocultado do público. A CPI que é um espaço de interrogatório da protagonista, também não é espaço de fala, mas sim de exposição da imagem. Ela vê a CPI como um espetáculo midiático, que a irá levar sua imagem ser conhecida pelo Brasil. A protagonista se importa mais com a mídia que cobre o evento do que com àqueles que a questionam, uma vez que é a mídia que pode proporcionar a ela futuros trabalhos, como aparecer em uma revista masculina. O processo inquisitório não é mais o lugar de fala e de expiação da culpa, mas sim do espetáculo. 3. A novela como transformadora de valores para novos direitos O direito é criado pela sociedade e ao mesmo tempo propicia a conformação de uma sociedade tal qual a entendemos. Há uma dupla mão entre direito e sociedade, um constante fluxo de criação. Assim, não tem sentido colocar a questão o que foi criado primeiro, isso porque entende‐se que o direito vai além do direito estatal, abarcando um direito no sentido amplo. Porém, mesmo no Direito estatal é possível ver um fluxo constante entre as concepções de direito e a cristalização do direito estatal em uma legislação. Às vezes as concepções de direito começam a ser alteradas no interior do judiciário, outras vezes isso ocorre na academia, outras por clamor popular diante de um novo fato, etc.. Mas também é possível pensar em uma legislação que irá alterar a sociedade. Isso acontece quando há um desejo social em aceitar essa nova legislação. O legislativo cria com isso a legislação que passa a ser adotada pela sociedade. Mesmo nesse movimento é sempre a criação social, uma vez que as leis são criadas por homens para homens. A novela “Páginas da vida” discute diversos temas controversos como a inclusão das crianças com síndrome de Down e a formação da família via afeto. O último capítulo da novela mostra uma série de discussões sobre a adoção na justiça. O retrato da justiça parece ser muito positivo, apontando como uma esfera em que realmente a justiça é feita e em que os casos são levados a sério. No último capítulo há dois momentos de julgamento, um em primeira instância e outro em um tribunal. A decisão em primeira instância é favorável a mãe adotiva, que fica com a guarda de uma menina com Down. O personagem que desempenha o promotor entende que a adoção não tinha irregularidades e estava de acordo com o ECA e com o novo Código Civil. O ambiente sóbrio e a ausência de público na cena, apontam para uma pesquisa dos escritores que nesse caso complexo se preocuparam com a verossimilhança. Não se pode deixar de notar que o autor da novela incorpora as modificações sociais presente no judiciário e apresenta personagens muito interessantes, como um promotor negro e uma desembargadora preocupada mais com o bem estar da criança do que em somente aplicar a lei. Os advogados também são retratados de forma sóbria e buscando a justiça, em especial à advogada da protagonista. Todas essas personagens não são retratadas segundo seus estereótipos cristalizados, ou seja, do advogado inescrupuloso, do juiz corrupto e insensível aos fatos e do promotor ingênuo. A decisão no tribunal ocorre no fim do último capítulo. A cena retrata um judiciário mais pomposo, porém não excessivamente. O público esta presente, incluindo além das partes, seus amigos e parentes. A desembargadora relatora do caso lê seu voto e é acompanhada pelos dois de seus colegas. Importante ressaltar na fala da desembargadora, que ela diz julgar com base na nova ciência do direito, que entende que o afeto é maior que o vínculo biológico, para resolver um caso de disputa de guarda de duas crianças. Os autores deixam claro que conhecem as inovações das teorias do direito, em especial do direito civil. A telenovela chega a mostrar um casal, que faz parte da trama, que também quer adotar uma criança e vê na luta da protagonista um estímulo para a adoção. O fato relevante é que o casal é formado por dois homens. O casal é retratado como uma família, que para ser completa, diz ser necessário ter filhos e isso seria possível pela adoção. Os dois homens revelam que a adoção por casais gays é difícil, porém falam que vão aceitar o desafio, uma vez que há precedentes. Um dos homens cita o caso do casal Vasco Pedro da Gama Filho e Dorival Pereira de Carvalho Junior que adotaram Theodora, na cidade de Catanduva, interior de São Paulo em 2005. Esse foi o primeiro caso no Brasil de adoção por casais formados de pessoas de um só sexo. A telenovela fez com que a jurisprudência saltasse do âmbito dos estudiosos de direito, para ir para o grande público. A telenovela toca em um ponto controverso na sociedade atual, que ainda não formalizou o casamento e a adoção por casais formados de pessoas de um só sexo. Há uma posição direta dos autores da novela frente à efetivação desses novos direito e da busca pela transformação dos valores de uma sociedade que ainda tem dificuldade de efetivar o direito de igualdade das pessoas independente de sua sexualidade. O novo direito possibilita a adoção de casais homossexuais uma vez que o vínculo familiar é dado pelo afeto. Nesse caso fica evidente a posição política dos autores, em favor da adoção dos casais homossexuais, e da sua atuação para modificar os valores do público. Ainda é grande a postura homofóbica no Brasil em especial para a legalização do vínculo entre os casais homossexuais e para permitir a adoção de crianças. A

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telenovela tem um papel forte na disseminação de valores e os escritores estão aproveitando disso para diminuir os preconceitos e construir bases de aceitação para mudanças legislativas. Essa telenovela tratou das modificações dos direitos, buscando a não discriminação, em especial das pessoas portadoras de deficiências. A trama abordou a inclusão da criança com síndrome de Down na sociedade. O Ministério Público entendendo a força da telenovela para a divulgação de condutas não discriminatórias faz recomendação nº 05/2007/MPF/PR/SP, um pedido de novas cenas aos autores da novela, mostrando uma nova atitude diante da discriminação. Considerações Finais Os estudos de “Direito e cultura popular” podem se valer de muitos tipos de fontes para analisar questões relativas ao direito, inclusive as telenovelas. Essas apresentam um rico material para pesquisa do que a sociedade entende como direito e das transformações desse direito. Nas telenovelas brasileiras geralmente encontra‐se um conceito de Direito que é praticamente o direito estatal, repetindo em muito o conceito hegemônico difundido nas faculdades de direito brasileiras. Porém, algumas telenovelas brasileiras apresentam uma concepção de um direito que não é feito pela justiça dos homens, mas sim de uma justiça transcendente. Ao opor direito/justiça dos homens e direito/justiça divina, as telenovelas ressurgem com uma discussão que típica do jusnaturalismo e que ficou mais apagada com o positivismo jurídico. O judiciário é apresentado nas telenovelas como um lugar de fala ou mesmo de espetáculo. Esses aspectos são pouco ressaltados nos estudos de direito e na própria prática dos profissionais do direito, que geralmente preocupam‐se mais com o resultado e finalização da ação. Outro aspecto relevante que as telenovelas apontam quanto ao direito é na formação de novas demandas por direitos. A telenovela é um meio de difusão de valores, ao mesmo tempo em que propicia um palco para a discussão de muitas questões sociais. As pessoas discutem as temáticas das telenovelas, criando um espaço de discussão interessante, que em muitos casos leva ao questionamento de valores e de direitos. Os estudos de direito tem de começar a se preocupar com questões como a novela, não só para poder estudar a sociedade, mas para entender os conceitos de Direito presentes na sociedade atual.

Bibliografia CAMPEDELLI, Samira. A telenovela. São Paulo: Ática, 1985. FERNANDES, Ismael. Telenovela brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1994. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia das letras, 2006. GLOBO. Autores: História da teledramaturgia. Memória Globo. Rio de Janeiro: Ed. Globo, vol.1e 2, 2008. JACKS, Nilda e SILVA, Lourdes Ana Pereira. Recepção da telenovela: a pesquisa brasileira ao nascer do século XXI. p, 252‐262. HEIDEGGER. A fenomenologia do espírito, vol.II. 4ed. Petrópolis, Vozes, 2007. NIETZCHE, F. Assim falava Zaratustra. Petrópolis, Vozes, 2007. OST, François. Contar a lei. São Leopoldo: Unisinos, 2006. Notas: [1] Para um inventário dos filmes e séries norte‐americanos que abordam o direito, ver coleção Direito e Cultura popular da biblioteca da Universidade do Texas em Austin, disponível no site: http://tarlton.law.utexas.edu/lpop/film.html. Esse site também disponibiliza centenas de textos de “Direito e cultura popular” produzidos por acadêmicos e professores de direito de diversas universidades, utilizando poesias, literatura e filmes. [2] JACKS, Nilda e SILVA, Lourdes Ana Pereira. Recepção da telenovela: a pesquisa brasileira ao nascer do século XXI. p, 253. [3] Para uma identificação da trama, personagens, autores e diretores das telenovelas citadas ver: Almanaque da telenovela brasileira de Nilson Xavier, Telenovela brasileira de Ismael Fernandes, Autores: história da teledramaturgia ou site www.memoriaglobo.com, no item dramaturgia/novelas [4] HEIDEGGER, M. Fenomenologia do Espírito vol. 2 (IV. Espírito, b. Ação Ética. O saber humano e o divino, a culpa e o destino (470). p, 26. [5] OST, François. A Antígona de Sófocles. In: Contar a lei. P, 183‐232 [6] Refere‐se aqui a celebre passagem de Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra” [7] GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. p, 45

Gisele Mascarelli Salgado Pós‐doutoranda em Filosofia do Direito, bolsista Fapesp

Informações Bibliográficas SALGADO, Gisele Mascarelli. O último capítulo‐ cenas do julgamento: o Direito nas telenovelas. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 98, mar 2012. Disponível em: < http://www.ambito‐juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11330 >. Acesso em jan 2015. O Âmbito Jurídico não se responsabiliza, nem de forma individual, nem de forma solidária, pelas opiniões, idéias e conceitos emitidos nos textos, por serem de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es).

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