O último poema de Ferreira Gullar

July 18, 2017 | Autor: J. Paiva | Categoria: Ferreira Gullar
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O último poema de Ferreira Gullar1 João Guilherme Paiva2

"quando é o presente?" Rilke para Lou Andreas-Salomé, 11 de fevereiro de 1922

I Demorou muito tempo para que o adolescente Ferreira Gullar descobrisse o modernismo. Nada fazia mais sentido para um Brasil, qualquer que fosse, situado a mais de mil quilômetros da capital Rio de Janeiro. O simbolismo havia criado raízes no interior do país, foi o verdadeiro movimento da virada do século, completamente de acordo com a monotonia da vida campestre ou pesqueira, que ainda era predominante na nova república. Para um tal estilo de vida, num país de vasta beleza, o simbolismo resolvia toda contradição entre um anseio arrebatado pelo infinito e a dureza de uma vida infinitamente repetida. Já o molde parnasiano era natural para os homens de letras mais preocupados com um certo anseio de “civilização”, sobretudo aqueles mais envolvidos com as lições do latim e do francês. Mas se o simbolismo representava uma nostalgia metafísica, o parnaso representava uma nostalgia estética, sendo ambas insolúveis. Apesar do apego do jovem Gullar às formas parnasianas, é possível que, no fundo, sua alma vibrasse mais às sugestões provocadas pelo simbolismo. No entanto aquele simbolismo anacrônico, tal qual pôde conhecer, não dava respostas ao que ansiava nem ao que esperava. Por isso, qual não deve ter sido a sua reviravolta ao 1 Publicado no livro do V Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea. // Org. Dau Bastos et al. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2015. ISBN: 978-85-7511-358-5 2 Mestrando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

deparar-se com as Elegias de Duíno do tcheco Rainer Maria Rilke! Aquele conjunto de dez poemas não era apenas uma resposta a sua profunda insatisfação com a poesia do momento (algo revelado pela sua atitude seguinte como poeta), como também uma severa pergunta para o futuro dessa poesia. O tom hierático harmonizava-se com o seu hábito parnasiano, e a força e a violência daquelas elegias não poderia deixá-lo pouco perturbado. Estaria aberto, com Rainer Maria Rilke, um enorme ciclo, ou espiral, na poesia do maranhense José Ribamar Ferreira, futuramente reconhecido como Gullar. II O conteúdo do último livro de Ferreira Gullar, publicado em 2010, pode ser lido como uma série de indagações do poeta sobre a arte, o tempo e a vida. As perguntas, que às vezes encontram suas respostas, soam como devaneios que o acompanharam através dos anos, enquanto caminhava pelas ruas da cidade. O leitor acaba se perdendo entre a Rua Duvivier, o cemitério São João Batista, uma velha quitanda no Maranhão e assim por diante. Aliás, Ferreira Gullar raramente despista os lugares, as datas, os nomes; parece que se recusa a dizer que algo ali é fictício – seriam invenções? Nas entrevistas também costuma repetir essa mesma frase: "a vida é inventada". Um adágio moderno, pode-se dizer, que faz pensar na descoberta repentina de alguém que por muito tempo tentou imaginar saídas para os homens e para os seus próprios versos, talvez alguém que tenha convivido com a mentira também, e o acaso. o poema antes de escrito não é em mim mais que um aflito silêncio ante a página em branco

São os primeiros versos de Em alguma parte alguma. Há uma variedade de poemas com o mesmo motivo. É o caso de “O jasmim”, “Adendo ao poema desordem” e “Novo adendo ao poema desordem”, por exemplo. Estes poemas tratam de certa

manhã onde o poeta sentiu um agressivo cheiro de jasmim enquanto caminhava pelo bairro do Flamengo. Ele saiu da Rua Senador Eusébio, com aquele punhado de flores nas mãos, e chegou à Rua Duvivier; quem sabe ali não passou por uma banca de jornal e relembrou os mísseis que caíam sobre Bagdá ao mesmo tempo que as folhas do jasmineiro sobre a calçada. Essa é a impressão causada pelos poemas, que nascem assim: quando atravessa um bairro ou a porta do banheiro. O estilo também flui (calmo, veloz), feito aqueles pensamentos que deslizam e logo se despedem nas ruas cheias de gente. Ao registrá-las o poeta inscreveu sua própria história nessas ruas. Também estabelece um mudo diálogo com espaços longínquos, galáxias, estrelas. (Possivelmente a partir do seu observatório particular, que deve ser uma janela tão anônima como qualquer outra). Ocorre que o conjunto do livro se parece mais com inquietações, nascidas do espanto, que com belos poemas líricos (daqueles cuja força reside principalmente na linguagem e na procura de palavras). No caso de Em alguma parte alguma, onde o poeta se utiliza de uma proeza técnica natural para dar sonoridade e fluidez ao que escreve, persiste a necessidade de registrar suas indagações constantemente reencontradas. Mas há uma certa pressa ou impaciência na obra, como se a vontade de dizer atropelasse a forma em certos momentos. É como se na hesitação, entre som e sentido, falada por Valéry, o pêndulo se demorasse um pouco mais nesse último. Por isso que o livro funciona bem por inteiro, quando a maior parte dos poemas não daria tão certo separadamente. Essas considerações podem ser feitas como uma crítica geral, mas não correspondem à quarta e última parte de Em alguma parte alguma. Os poemas “Volta a Santiago do Chile” e “Rainer Maria Rilke e a morte” são peças que cuidam, sozinhas, de si mesmas. Apesar das reflexões e versos, muitas vezes profundos, que encontramos ao longo do livro, é finalmente nessa parte que assistimos o tom dos poemas ficarem 1/8 mais grave. E isso acontece desde o início de “Volta a Santiago do Chile”: O avião sobrevoa a cidade que apesar de tudo continua lá (a cidade que dentro de mim é incêndio e perda)

Uma das principais preocupações de Ferreira Gullar é angústia da simultaneidade do tempo. Aquilo que, segundo Borges, atrapalha-nos a narrar e encadear os fatos numa ordem. Isso está presente ao longo deste e de outros livros do autor. (“arranquei flores de um jasmineiro/ no Flamengo [...]/enquanto foguetes Tomahawk caíam sobre Bagdá”, escreve em “O jasmim”). Em “Volta a Santiago do Chile” há uma revisitação do passado, o poeta retorna aos dias de “incêndio e perda” quando a cidade foi palco de um golpe militar contra Salvador Allende. O conteúdo emocional daqueles momentos vividos dentro de um tempo específico e um espaço específico (Santiago do início dos anos 1970), guardados na lembrança do poeta, sob uma vontade de lirismo, de repente se perturba com a revisitação à mesma cidade, em outro tempo, quando tudo aquilo desapareceu. Embora, ainda, permanecesse intenso na memória. O choque desse contraste e, mais que isso, a diferença entre o jovem esperançoso, rodeado por um continente esperançoso, com o velho Ferreira Gullar, décadas depois, cansado de “esperanças maiores”, prolonga as inquietações da simultaneidade do tempo. Não é simplesmente o contraste entre um momento fugaz vivido com intensidade, no bairro do Flamengo, ao deparar-se pela manhã com um jasmineiro – tema de poesia – e a conclusão, perplexa, no absurdo de saber que em Bagdá mísseis caíam e destruíam inocentes no mesmo instante. Nem mesmo trata-se da difícil aceitação da pequenez humana, quando desperta para as galáxias distantes, para a amplitude de estrelas, que demoram 250 milhões de anos num giro. E que nos remete às analogias recorrentes entre a vida humana e uma poeira cósmica. No poema “Volta a Santiago do Chile” os problemas são multiplicados; existe a angústia de saber que naquela cidade a vida foi vivida, longe de seus olhos, enquanto ele estava a maior parte do tempo no Rio de Janeiro, que a cidade se transfigurou, “consumida juntamente com o gás de cozinha e o leite/ no café da manhã”. Mas existe também um problema maior que a simultaneidade exterior dos acontecimentos. Ou, melhor dizendo, um problema maior entre a simultaneidade de um instante de lirismo subjetivo e um drama objetivo ocorrendo em outra parte do mundo. O tema de “Volta a Santiago do Chile” é a simultaneidade de dois Ferreiras Gullar, um jovem e um velho, no epicentro de certo palco dramático. O jovem, que fugia das ditaduras e escrevia

poemas engajados, e o velho, desiludido admirador de quadros e estrelas. Se o jovem pudesse argumentar, talvez falaria muito, mas o velho prefere a mudez, uma tristeza após anos intensamente vividos e a proximidade da morte natural, sem heroísmo. O acerto de contas com o passado é devolver à Santiago sua concretude impessoal de uma cidade estranha. A cidade é agora apenas suas ruas e casas, os supermercados, os shoppings abarrotados de mercadorias. Nenhum temor, nenhuma esperança maior.

O poema seguinte “Rainer Maria Rilke e a morte” muda completamente o cenário e o tempo. Estamos de volta ao provável ano de 1926, num bosque suíço, onde em 29 de dezembro o poeta tcheco morreria solitário. III Rainer Maria Rilke escreveu as Elegias de Duíno e os Sonetos a Orfeu nos seus últimos anos. Uma série de poemas onde introduz seu pensamento, constituído pacientemente ao longo dos anos. Criou seu próprio modo de vida, fundamentado numa solidão irremediável, dialogando com cartas e acompanhado de velhos livros e da natureza. No final também escreveu alguns poemas em francês, dedicado às flores e rosas, experimentando a poesia numa língua que não era a sua, o alemão. Podemos concebê-lo como um poeta absolutamente ligado à época em que nasceu, o final do século XIX, quando a aristocracia ainda conseguia dar seus últimos passos, e Baudelaire era lido como uma febre. Os movimentos simbolistas surgidos nesse tempo o influenciaram com profundidade, embora Rilke fosse, aos poucos, se aproximando de uma visão mais imanente da vida e menos transcendente. O esteticismo radical desse meio foi o espaço onde pôde cuidar de desenvolver suas ideias e seus livros, independente dos vaivéns políticos etc. Não é raro encontrarmos esse poeta sendo definido como um pós-simbolista, embora o termo seja um tanto esvaziado. Para Marina Tsvetaeva ele foi um poeta e homem do século XX, que não funcionou como parte integrante, mas como um antídoto. Rilke imaginava que a aceitação da vida compreendia uma aceitação da morte; e

utilizava-se de uma imagem singular: a imagem de um fruto ou de uma semente, que nasceria em cada pessoa, para crescer com ela através do tempo. Assim ele escreve no seu único romance, o Cadernos de Malte Laurids Brigge: E quando penso nos outros que eu vi ou de quem ouvi falar: é sempre a mesma coisa. Todos eles tiveram uma morte deles. Estes homens que a traziam na armadura, lá dentro, como um prisioneiro; estas mulheres, que envelheciam muito e se faziam pequenas e depois tinham um trespasse discreto e senhoril sobre um leito imenso, como sobre um palco, perante toda a família, a criadagem e os cães. E até as crianças, mesmo as mais pequenas, não tinha uma morte infantil qualquer; chamavam a si todas as suas forças e morriam segundo o que já eram o que teriam vindo a ser. E que beleza melancólica a das mulheres quando estavam grávidas e ficavam de pé, e no seu grande ventre, sobre o qual ficavam pousadas involuntariamente as suas mãos, havia dois frutos: uma criança e uma morte. (Rilke: 1983, 38)

A compreensão filosófica em que o ser convive com o não-ser; em que a morte não representa o nada absoluto, sendo a possibilidade de permanência da vida; o domínio do nada como complemento ao domínio candente do tudo; é importante como chave de explicação dessa imagem da semente/ do fruto. Numa carta famosa para o seu tradutor polonês, o poeta escreve: “Nas elegias, a aceitação afirmativa da vida e da morte surge como sendo uma única. Concordar com uma sem concordar com a outra seria uma limitação que excluiria, ao final, tudo que é infinito. A morte é a face da vida não voltada para nós, não aclarada por nós...” (2002, 08). IV O poema “Rainer Maria Rilke e a morte” começa, antes de tudo, com uma tentativa de apreender imagens para a morte. Ela não é descrita de maneira que possamos encara-la diretamente. Os primeiros versos são: Ela é sumo e perfume na folhagem é relâmpago

e açúcar na polpa fendida e em todo o bosque é rumor verde que de copa em copa se propaga entre estalos e chilreios

Está solta no bosque sem que se saiba nem onde nem quando. A sua forma inapreensível faz com que recordemos a pantera de Dante, ao referir-se à língua italiana fragmentada de seu tempo. Em De Vulgari Eloquentia a imagem da pantera que nunca havia sido vista, mas cujo perfume podia ser sentido em todos os lugares, lembra-nos o movimento aparentemente esquivo da morte, comparada ao rumor verde (audição) e ao perfume (olfato). Depois, quando é vista, torna-se relâmpago, desaparece. Ao mesmo tempo, nesse princípio, o poema desvincula a morte de qualquer indício não natural. Ela está presente através dos sentidos físicos, como desses listados, e também através do paladar (açúcar). Há uma tentativa cuidadosa do poema de apresentar a morte, e sua aproximação paulatina, pelos elementos mais físicos da vida, abandonando completamente os antigos mitos que tentam associa-la a um outro mundo. E ele a ouvia desatento no próprio corpo voz contraditória

Após o esboço da morte e do vale como cenário, o poema introduz um eu, Rainer Maria Rilke, em seus versos. É a aparição do primeiro sujeito do poema, que está solitário, perto da natureza, e prestes a receber os primeiros sinais da morte. Assim como as intenções do início, que tentavam apreendê-la por imagens sensoriais, essa aproximação da morte se desenrola nos sentidos físicos do poeta. Naturalmente por conta da insistência em vê-la como algo relativo à natureza, como numa espécie de ciclo. Primeiramente a visão, quando o eu, Rilke, acha ter visto o rosto da morte refletido na água (“o rosto/ que se desfez no líquido espelho”). Depois a audição (“e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu/ ainda não era ela”), o tato, através do toque fatigante da doença (“A verdade, porém, é que a mão inflama/ todo ele/ queima em febre”). E nesse meio tempo Ferreira Gullar repete a imagem de Rilke quase

literalmente, ao dizer: “como a morte/ que só nos vem ao encontro/ depois de amadurecida/ em nosso coração”. Todos os sinais possíveis vão, aos poucos, se apresentando ao sujeito – o eu – que aparentemente figura repousar certa resignação diante dela, que é incontrariável. E sobretudo por ela também ser integrante da vida. O poeta percebe que está enfraquecendo, esvaindo-se de si, olha para suas mãos e dedos, reconhece-os, mas “já não está nelas como antes”. Com estas mãos tocava o mundo na sua pele decifrou-se o frescor da água, a veludez do musgo como com estes olhos conheceu a vertigem dos céus matinais neste corpo o mar e as ventanias vindas dos confins do espaço ressoavam e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo que agora ao mundo se fecha infectado de um sono que pouco a pouco o anestesia e anula.

O poema então realiza nestes versos uma passagem para a recordação profunda da individualidade do eu. Do que apenas ele poderia saber, do que viveu, sentiu, do que estaria guardado na sua pele e nos seus olhos, aquilo tudo que a morte apagaria para sempre e de que ninguém mais conseguiria se aproximar. (O que, com infelicidade, restaria intocavelmente). É uma parte importante, desencadeada pela impressão de que ele próprio não se reconhecia. Com aguda leveza, o corpo vai deixando de pertencer ao eu, Rilke, e a consciência da perda irreparável, de tudo que era mais íntimo, assume o aspecto de sentimentos que passam velozmente, o poema acelera nesse instante “ventanias vindas/ dos confins do espaço ressoavam/ e os inumeráveis barulhos da existência” etc. Tudo isso enfatizado pela cadência repetitiva do “s”. Quando, então, Rilke aparentemente estaria próximo de desaparecer, ocorre uma virada no poema. Em meio às recordações íntimas do poeta tcheco, ressurge um novo

sentido físico, o paladar, mas não será pela boca de quem protagonizou o poema até agora. Neste momento entra um segundo sujeito. É com os versos “Como sentir de novo na boca (no caldo/ da laranja)/ o alarido do sol tropical?” que podemos reconhecê-lo. Tudo que até aqui se aproximava de uma realidade biográfica, dessa vez, desaparece, visto que o tcheco jamais pisara um solo tropical. São nestes três versos que Ferreira Gullar converte o tema da morte, segundo Rainer Maria Rilke, ou a morte de Rainer Maria Rilke, num pensamento sobre a sua própria morte. E, por conseguinte, nas próprias memórias guardadas em seu corpo. Se fosse lido distraidamente, a aparição do sol tropical poderia soar apenas como uma idiossincrasia do poema. Mas uma leitura que tenha como horizonte o livro Em alguma parte alguma e, indo além, a trajetória do poeta (como na aflita tentativa de resguardar suas lembranças mais singulares no Poema Sujo) perceberá que agora é Ferreira Gullar quem assume a voz do poema. E mais que isso, torna retrospectivamente ambíguo todo conteúdo sobre a morte visto até aqui. Verdade é que cada um morre sua própria morte que é única porque feita do que cada um viveu e tem os mesmos olhos azuis que ele se azuis os teve; única porque tudo o que acontece acontece uma única vez uma vez que infinita é a tessitura do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos sons os mesmos tons as mesmas conversas ouvidas no quarto ao lado nunca serão as mesmas a diferentes ouvidos a diferentes vidas vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou o cheiro de fruta se desatou na sala

Apesar do gosto de Rilke para a imagem das frutas – ele tem um verso muito conhecido sobre a maçã – sabemos que tanto as conversas ouvidas quanto o cheiro da fruta constituem uma parte fundamental das obsessões poéticas de Ferreira Gullar. Basta ter em mente a série “Bananas Podres”, que tem início no livro Na vertigem do dia, repete sua mesma cena no Poema sujo, e que finalmente continua nos “Bananas podres 3”, “Bananas podres 4” e “Bananas podres 5” deste Em alguma parte alguma. A cena é bastante simples e remete à sua infância em São Luís, na quitanda da família. Uma conversa de Newton Ferreira, nome do seu pai, com alguém, onde ele termina por rir muito, até os olhos encherem de água. De noitinha, todos se foram, e Newton Ferreira fechou a quitanda com as bananas lá dentro, recendendo. Os seus risos vozes lembro-os sem ouvi-los, mas o perfume daquelas frutas que feito um relâmpago desceu na minha carne e ali ficou, parado, esse de vez em quando volta a esplender.

Se algum poeta decidisse fazer uma colagem entre “Rainer Maria Rilke e a morte” e esses versos citados, não produziria nenhum absurdo. É impressionante a unidade de imagens, como perfume das frutas, o relâmpago e tudo mais. Aquelas bananas, que insistem desde 1940 na lembrança do poeta, sempre violentando o olfato, repletas de mosquitos, não é apenas uma imagem da morte natural, digamos, realizada pelo percurso tranqüilo da natureza. É também a persistência, porque aquelas bananas apodrecem no cheiro e nos versos do poeta há muito tempo. O que Gullar deseja é assegurar que as bananas não cessem de morrer. No final do livro Infância, onde narra suas memórias de garoto, John Coetzee assiste ao enterro da tia e escreve em terceira pessoa: ...e agora tia Annie está deitada sob a chuva esperando que alguém tenha tempo de enterrá-la. Cabe somente a ele pensar. Como guardará todos em sua cabeça, todos os livros, todas as pessoas, todas as histórias? E se ele não lembrar, quem o fará? (Coetzee: 2010)

A pergunta “E se ele não lembrar, quem o fará?” faz completo sentido para alguém angustiado com a futura dissipação de tudo que lhe é próprio e valioso. A imagem da quitanda precisa ser guardada. É uma tentativa de combater o esquecimento, ou ao menos de adiá-lo por mais um pouco. Não é possível certificar o que “Rainer Maria Rilke e a morte” expressa em sua totalidade diante da obra de Gullar como um todo, mas diante do livro é um adeus, um adeus confiante de que não tardará a se afirmar e tampouco um adeus inteiramente melancólico. O enredo grave desse poema, de ar resignado, talvez por excesso de amor à vida, já havia tido anúncio em “Um pouco antes” do mesmo livro: Quando já não for possível encontrar-me em nenhum ponto da cidade ou do planeta pensa ao veres no horizonte sobre o mar de Copacabana uma nesga azul de céu pensa que resta alguma coisa de mim por aqui Não te custará nada imaginar que estou sorrindo ainda naquela nesga azul celeste pouco antes de dissipar-me para sempre

Mas voltando ao final do livro, agora sob o tom redescoberto de quem trava um franco diálogo com um poeta que marcaria, seja direta ou antagonicamente, toda obra de Ferreira Gullar, dizer que “Rainer Maria Rilke e a morte” é um canto de amor e compreensão ao próprio Rilke não é nenhum engano. Gullar jamais cansou de repetir que descobriu a poesia lendo as Elegias de Duíno quando bem moço, no Maranhão. Rilke representa a descoberta da poesia para Gullar. É por isso que dar fim ao livro com este poema, aos oitenta anos de idade, é uma espécie de elegia final de sua obra. Se em "Volta a Santiago do Chile" o poeta recorre a um acerto de contas com seu passado, e o passado histórico vivido por ele, neste "Rainer Maria Rilke e a morte", acontece, talvez, um acerto de contas com a poesia, com a sua própria poesia, sua

incapacidade de eternizar o poeta, mas com um significado de esperança. A comparação entre o poema acima, "Um pouco antes", e o desfecho de "Rainer Maria Rilke e a morte", torna-se uma experiência reveladora. Um apesar de tudo. Hoje, tanto tempo depois quando não é mais possível encontrá-lo em nenhuma parte – nem mesmo no áspero chão de Rarogne onde o enterraram – melhor é imaginar se vemos uma rosa que o nada em que se convertera pode ser agora, ali, contraditoriamente, para nosso consolo, um sono, ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras

Ferreira Gullar talvez não tenha economizado algumas palavras que, desde há muito tempo, ele gosta de colocar nos poemas que escreve. Palavras como "rumor", "vertigem", "zumbia", "lampejo", "barulhos", "desordem" e muitas outras, aparecem para recordar-nos, a nós, seus leitores, que a morte do tcheco Rainer Maria Rilke foi revivida numa elegia de Ferreira Gullar. E que, mesmo tomando de Rilke muito daquela visão de mundo e filosofia, nosso reencontro com ele não é apenas uma homenagem sincera e dolorida a um antigo poeta. Mas antes a encenação melancólica e apaixonada de um autor defrontando-se com sua própria morte, tentando preparar-se pra quando parecer ouvi-la, menos pura, desesperadamente, nos estalos de seu bosque particular, a que podemos chamar de a grande cidade.

Referências ALIGHIERI, Dante. Opere, v.1. Milano: Mondadori, 2011. COETZEE, John. Infância. São Paulo: Cia das Letras, 2010. GULLAR, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. ________. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. NUNES, Benedito. “A gnose de Rilke”. In:_______. A clave do poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 397-408 RILKE, Rainer Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Porto: Oiro do dia, 1983. ______. Os Sonetos a Orfeu/ Elegias de Duíno. Rio de Janeiro: Record, 2002. ______. A melodia das coisas. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. VALÉRY, Paul. Variedades. trad. João Alexandre Barbosa. São Paulo: Iluminuras, 2007.

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