O ÚNICO E O INDIVÍDUO: DO \"EU‟ DE MAX STIRNER AO \"REBELDE‟ DE MICHEL ONFRAY

July 28, 2017 | Autor: Rodrigo Lucheta | Categoria: Onfray, Michel, Max Stirner, Subjetividade
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS RODRIGO ANDERSON NASCIMENTO LUCHETA

O ÚNICO E O INDIVÍDUO: DO „EU‟ DE MAX STIRNER AO „REBELDE‟ DE MICHEL ONFRAY

SANTOS 2010

RODRIGO ANDERSON NASCIMENTO LUCHETA

O ÚNICO E O INDIVÍDUO: DO „EU‟ DE MAX STIRNER AO „REBELDE‟ DE MICHEL ONFRAY

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Filosofia.

Orientador: Professor Manoel Joaquim Filipe.

SANTOS 2010

RODRIGO ANDERSON NASCIMENTO LUCHETA

O ÚNICO E O INDIVÍDUO: DO „EU‟ DE MAX STIRNER AO „REBELDE‟ DE MICHEL ONFRAY Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Filosofia.

Orientador: Professor Manoel Joaquim Filipe.

Banca Examinadora

_______________________________________________________ Profº Orientador: Manoel Joaquim Filipe – Professor – UNISANTOS

_______________________________________________________ Profº Examinador: Fábio Cardoso Maimone – Mestre - UNISANTOS

Data da aprovação: ________________

SANTOS 2010

À minha querida Cidinha, cúmplice de longa data Ao meu doce filho Vitor, serenidade inspiradora

LUCHETA, Rodrigo Anderson Nascimento. O único e o indivíduo: do „eu‟ de Max Stirner ao „rebelde‟ de Michel Onfray. Santos, 2010, 117 p. (Trabalho de Conclusão de Curso) Universidade Católica de Santos.

Este trabalho pretende fazer uma análise do processo de subjetivação, de constituição da subjetividade presente nas obras de Max Stirner e de Michel Onfray. Para tanto, e considerando que os autores são pouco trabalhados em âmbito universitário, a elaboração do presente trabalho visou, além de biografar brevemente os autores em questão, efetuar uma síntese de suas respectivas obras como um todo para, a partir dessa síntese, empreender os liames interpretativos capazes de elucidar a concepção que os autores fazem do processo constituinte da subjetividade ocidental. Dessa biografação e dessa síntese das obras, então, ofertamos nossa análise descritiva acerca das subjetividades que os autores entendem como engendradas pelo universo ideológico e social nos quais estão inseridos para, em momento posterior, apontarmos para a explanação acerca do que seriam os aspectos propositivos desses filósofos no que toca à possibilidade de uma constituição autônoma da subjetividade a despeito das injunções sociais e ideológicas vividas pelos indivíduos. Estruturamos nosso trabalho de forma, num primeiro momento, a distinguir claramente o intento de Max Stirner e Michel Onfray oferecendo a cada qual uma biografia, uma síntese da obra filosófica, a subjetividade descrita pelos autores desde seus contextos e a subjetividade proposta pelos mesmos. No segundo momento do trabalho empreendemos uma ligação entre os temas referentes aos dois tipos de subjetividade que os autores nos ofertam: a gerada heteronomamente pelo meio, e aquela que investe de modo autônomo na criação de si.

Palavras chave: Subjetividade - Max Stirner - Michel Onfray.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................... 6

CAPÍTULO 1 MAX STIRNER ................................................................................................... 9 1.1 BREVE PERFIL BIOGRÁFICO................................................................ 10 1.2 SÍNTESE DA OBRA FILOSÓFICA .......................................................... 16 1.3 OS POSSESSOS .................................................................................... 26 1.4 O ÚNICO ................................................................................................. 40

CAPÍTULO 2 MICHEL ONFRAY ............................................................................................ 47 2.1 BREVE PERFIL BIOGRÁFICO................................................................ 48 2.2 SÍNTESE DA OBRA FILOSÓFICA .......................................................... 62 2.3 OS MALDITOS, OS REPROVADOS, OS EXPLORADOS ...................... 85 2.4 O INDIVÍDUO .......................................................................................... 98

CAPÍTULO 3 MAX STIRNER & MICHEL ONFRAY ............................................................. 108 3.1 DO ÚNICO AO INDIVÍDUO ................................................................... 109 CONCLUSÃO ................................................................................................. 113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 116

6

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretende-se cotejar a obra dos filósofos Max Stirner e Michel Onfray assumindo a perspectiva de que as obras desses autores convergem no que toca às suas respectivas abordagens acerca do processo de constituição da subjetividade ocidental. Neste sentido, o presente trabalho intentará abordar e dar conta analítica de quais são as concepções de subjetividade que Max Stirner, no século XIX, e Michel Onfray, neste século XXI, vislumbram como engendradas pelo contexto social e ideológico em que vivem. Esta é, assim o entendemos, a parte mais histórica e sociológica do presente trabalho, uma vez que a tônica incidente sobre as subjetividades analisadas, aí, é oriunda menos de uma propositura filosófica dos autores do que uma tentativa descritiva que os mesmos fazem em prol de uma anunciação da resultante subjetiva heterônoma no contexto em que vivem. Por outro lado, o exercício eminentemente filosófico deste trabalho repousa na segunda problemática que seu autor se propôs: como, a partir das obras de Max Stirner e Michel Onfray, pode-se investir numa resistência à heteronomia na constituição das subjetividades? Como o sujeito pode colaborar na construção de si? Estas são, em suma, as problemáticas e os objetivos centrais do presente trabalho no que toca à sua temática específica. Porém, levando em conta o fato de estarmos tratando de dois autores que, por motivos diversos, não são abordados em nossa lida universitária no âmbito da graduação, assumimos também a tarefa de apresentar a novidade filosófica que até certo ponto Max Stirner e Michel Onfray consubstanciam através de uma exposição da biografia e de uma síntese da obra filosófica como um todo de cada um desses autores. Assim, o trabalho foi estruturado de forma a dar conta, a um só tempo, da questão do processo de subjetivação que os filósofos apresentam tanto em seu aspecto descritivo quanto em seu aspecto propositivo, e também dos elementos biográficos e da relação que aqueles processos de constituição da subjetividade mantém com o restante das obras dos autores que não versam especificamente sobre esse tema.

7

Encontraremos, no primeiro capítulo, o cotejamento da vida e da obra de Max Stirner. Após relatarmos a pesquisa biográfica que empreendemos acerca deste filósofo alemão do século XIX, partiremos para a explanação de um resumo de sua obra como um todo, antes de adentrarmos nos dois subcapítulos nos quais Stirner falará, através de nossa pesquisa, dos Possessos e do Único, ou seja, da subjetividade descrita como oriunda de seu contexto e a outra, aquela que este autor nos proporá. Dos possessos temos a adiantar que se trata daquelas singularidades opacas,

subsumidas

e

entusiasmadas

por

conceitos,

por

verdades

engendradas pela História e pelo social e não pelo núcleo ontológicoexistencial que Stirner identifica no indivíduo singular, irrepetível e inadequado à adesão às formas universais. Por outro lado, o conceito de Único stirneriano buscará denunciar a incompatibilidade havida entre as definições abstratas que se fazem do homem e essa unicidade inerente a cada indivíduo. No segundo capítulo abordaremos Michel Onfray. O capítulo dedicado a este filósofo francês, contemporâneo nosso, receberá a mesma estrutura formal dedicada a Max Stirner: biografia, síntese da obra e trato da questão da subjetividade. No caso de Onfray, em específico acerca da subjetividade engendrada pelo contexto ideológico e social no qual o autor se encontra inserido, demos os nomes que o próprio autor utiliza para designar o sujeito que se permite produzir na heteronomia consigo próprio no bojo do capitalismo planetário: os malditos, os reprovados e os explorados. Estes são aqueles e aquelas que doam suas energias, seus corpos, suas potências, em suma, suas existências ao Leviatã1 social encarnado no capitalismo tornado única forma de organização social. Os malditos são os dejetos, as excrescências do Leviatã; os reprovados são os temporária ou definitivamente postos em suspensão ou em suspeição pelo social; ao passo que os explorados são aqueles que, com suas vidas, põem as engrenagens capitalistas em rotação, retroalimentando um sistema antropofágico de reciclagem das existências e das consciências em função de uma alteridade social que se quer absoluta, universal. Encerramos

1

o

capítulo

dedicado

a

Michel

Onfray

Expressão recorrente no livro A política do rebelde, de Michel Onfray.

apresentando

as

8 características mais relevantes do que ele designa por Indivíduo, ou seja, o conceito propositivo de Michel Onfray no que toca à questão da subjetividade em sua obra. Seu Indivíduo é hedonista, é atento às solicitações de sua carne, daquilo que para ela pode representar prazer de ser e de ver-se esculpir em consonância consigo própria. O Indivíduo onfraryano empreende suas energias e sua determinação em prol da confusão da ética e da estética, ou seja, busca fazer de suas ações ocasião do júbilo mútuo, do contato pacificado, nãoexploratório, honesto e de liberação de si e do outro. No terceiro capítulo deste trabalho encontraremos uma tentativa de aproximação entre os conceitos de Único e de Indivíduo desses autores. Calcados não apenas da explícita menção de Michel Onfray, que afirma que a obra de Max Stirner foi viática para o erigir de seu pensamento, buscaremos vislumbrar, no capítulo intitulado do Único ao Indivíduo, analisar os pontos mais convergentes e os mais divergentes entre as proposituras desses dois autores. Concluiremos o presente trabalho oferecendo aos seus leitores uma breve reflexão acerca da pertinência, para a contemporaneidade, dos elementos mais propositivos de Max Stirner e Michel Onfray. Estas são, em síntese, as temáticas que desdobraremos em maior nível de detalhamento nos capítulos seguintes.

CAPÍTULO 1 MAX STIRNER

10

BREVE PERFIL BIOGRÁFICO “Não há rebelde sem sangue vivo, açoitado desde a infância pelo espetáculo da injustiça, do desgosto e da repugnância, a vontade e o desejo de nunca esquecer e levar a tempestade para outro lugar, lá onde ela deve limpar, em sinal de fidelidade, para exprimir a memória numa época flácida na qual triunfa a amnésia.” (ONFRAY, 2001, p. 267)

Max Stirner2, Max Schmidt, M. St. e G. Edwards são todos pseudônimos para uma só pessoa: Johann Caspar Schmidt - que, a propósito, jamais escreveu sob seu nome de batismo, valeu-se sempre daqueles nomes literários quando da escritura de seu pensamento filosófico. Aliás, a vida desse nosso autor – que, como se verá, foi entremeada de tragédias pessoais - parece ter se pautado pelo o signo da ocultação:

Não existe qualquer retrato de Stirner, embora a fotografia já se tivesse implantado, e os grandes autores do século da fotografia se tivessem feito retratar abundantemente. Não é para nós muito de Nietzsche a fotografia que o apresenta com ar de sibila a olhar para o alto e para a distância? E muito de Marx, não é aquela fotografia em que nos olha com uma confiança absoluta em si? Em lugar da sua fotografia [de Max Stirner] está um desenho feito por Engels, 36 anos depois da sua morre, que dá mais conta das obsessões de Engels do que outra coisa (MIRANDA, 2004, p. 297).

Nascido na cidade alemã de Bayreuth, Baviera, a 25 de outubro 1806, Max Stirner - pseudônimo mais conhecido do autor - foi o único filho de um casal protestante. O pai, Albert Christian Heinrich Schmidt (1769-1807), um artesão de classe média baixa, fabricante de flautas, veio a falecer apenas seis meses após o nascimento do filho. A mãe, Sophia Elenora Reinlein (17781839), casando-se novamente em 1809, deixará Stirner em Bayreuth, a cargo de parentes, mudando-se com o novo marido para Vistula, oeste da Prússia.

2

Stirn, „testa‟, em alemão. Alusão à testa ampla e espaçosa do autor. Cf. FERRER, 2001, p.16.

11 Em 1810, contando Stirner com 4 anos, junta-se à mãe em Vistula, onde viverá até seus 12 anos, ocasião em que retorna a Bayreuth para que, novamente morando com parentes, possa dar retorno à escolarização interrompida no liceu clássico local. Se é de obscuridade que se recobre a vida de nosso autor, é especialmente lacunar a bibliografia acerca da vida do pequeno Stirner nesse período em que retorna a Bayreuth. Pouco se sabe, além do fato de que, ao final de seus estudos secundários, obteve uma excelente nota geral (FREITAG, 2003, p. 11). Seguindo a trilha da exígua documentação de que se dispõe, em língua portuguesa, para retratar a vida do filósofo, desse período de retorno a Bayreuth deve-se saltar para aquele no qual Stirner iniciará efetivamente sua formação filosófica. Com 20 anos de idade, ou seja, em 1826, Stirner ingressará na Universidade de Berlim, onde estudará Filosofia, Teologia e Filologia clássica, tendo como mestres Hegel, Schleiermacher e Marheineke. Porém, apenas três anos depois, em 1829, Stirner precisa interromper seus estudos para retornar à Vistula, onde sua mãe se encontra acometida pela doença mental que a levará, anos depois, ao internato. Stirner cuida de sua mãe em Vistula durante três anos, ao final dos quais, em 1832, regressará com esta a Berlim e, em retornando à Universidade, conclui ali seu curso em 1834. A intenção do Stirner diplomado, a princípio, era a docência universitária. Para tanto, logo após a conclusão de seu curso, em junho de 1834, solicita às instâncias pertinentes da universidade o exame que lhe daria acesso ao ensino em nível superior. Conforme Miranda, Stirner “pretendia lecionar: línguas antigas, alemão, história, filosofia e instrução religiosa” (1979, p. 11, 12). O exame oral se dá entre 24 e 25 de abril de 1835, mas Stirner não logrará êxito, obterá apenas a facultas docendi3 limitada, ou seja, verá inviabilizada sua intenção inicial. Miranda relata a interpretação da comissão acerca do exame de Stirner,

O relatório da comissão, conhecido, aponta dois defeitos principais ao candidato: deficiência de conhecimentos precisos, excetuando-se os relativos à Bíblia, e um espírito lógico extremado, tendente a tudo 3

Habilitação para ensinar.

12 submeter ao seu jugo rigoroso em detrimento dos dados históricos, filosóficos e filológicos (1979, p. 12).

Malogrado o plano profissional-universitário, Stirner recorre ao ensino privado. De 1835 a 1844, conforme Freitag, Stirner, “[...] com interrupções – ensinou numa Realschule4, depois numa instituição privada para moças, em Berlim” (2003, p. 12). Este será um período (1835 – 1844) de grandes acontecimentos na vida pessoal de Stirner. Com efeito, em 1837, a mãe de Stirner é internada num hospital de caridade em Berlim em decorrência dos problemas mentais que a acometiam havia oito anos. No mesmo ano, Stirner casa-se com Agnes Klara Kunigunde Butz, filha ilegítima da proprietária da casa na qual o filósofo residia como locatário. Agnes morrerá um ano mais tarde, durante o parto no qual também morrerá o filho do casal (FREITAG, 2003, p. 12). A atividade filosófica de Max Stirner iniciar-se-á em 1839, ocasião em que se torna professor na escola privada “Instituição educativa de senhoritas de boa posição” (DIAZ, 2002, pg. 10), da qual se demitirá, em 1844, para publicar seu único livro, O único e a sua propriedade. É nesse ano de 1839 que passa também a frequentar os círculos intelectuais e boêmios de Berlim, especificamente aqueles nos quais pontificavam os radicais da esquerda hegeliana, como os frequentadores de um certo Café Stehely, no qual se podiam consultar as obras mais radicais do momento (MIRANDA ,1979, p. 13). Mas é em finais do ano de 1841 que Stirner virá a cultivar “as relações mais fundamentais para a emergência da sua obra” (MIRANDA, 1979, p. 14): travará relações com Friedrich Engels, Karl Marx, Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach, de cujo contato dará origem ao famoso círculo composto pelos chamados jovens hegelianos, denominado “Os homens livres” (FREITAG, 2003, p. 13). O grupo dos homens livres, com sua verve principalmente anti-religiosa, fará escândalo na Berlim do início da década de 1840. Mas a participação de Stirner no círculo d‟Os livres não será tão emblemática como o foi a de Bruno Bauer, por exemplo, e do grupo logo se retirará. Embora fosse considerado um dos círculos mais libertários da Alemanha de então, o grupo não pôde se furtar às consequencias do ímpeto radical de alguns de seus membros. Stirner, por 4

Escola secundária.

13 exemplo, em estrita concordância com sua filosofia de negação radical a qualquer idéia que pudesse circunscrever e limitar a atividade da singularidade existencial, atacará o elogio ao humanismo e a idéia de homem defendida por alguns dos membros do círculo, a respeito do qual escreverá “O que querem, então, os Homens livres? A resposta é bem simples: eles querem precisamente ser livres, livres de toda crença, de toda tradição e de toda autoridade, pois estas são desumanas...”5 (1925 apud FREITAG, 2003, p. 14). Nesse período que vai de 1839 até o ano em que é publicada a obra basilar do pensamento de Max Stirner (1844), além das aulas às jovens burguesas, durante o dia, e os noturnos encontros de animadas discussões no círculo dos livres, Stirner fará publicar artigos no Reinische Zeitung, editado por Karl Marx e no Leipziger Allgemeine Zeitung (DIAZ, 2002, p. 12). Em 1843 contrai casamento com Marie W. Dähnardt, de quem Stirner gastará todos

os recursos financeiros, a quem dedicará seu livro no ano

seguinte, e pela qual será abandonado depois do fracasso da publicação. De Stirner, Marie Dähnardt dirá (anos após a morte do filósofo) a John Mackay, primeiro biógrafo do pensador: era “um dandy, um fumador compulsivo, demasiado egoísta para ter amigos” (apud MIRANDA, 2004, p. 298). Fechando o intenso período da vida do filósofo que vai de 1839 a 1844, surge o único livro publicado por Max Stirner, O Único e a sua propriedade6. O livro é enviado à censura em outubro de 1844 e é prontamente proibido, sob o seguinte parecer oficial:

Dado que, em passagens concretas desse escrito, não apenas Deus, Cristo, a Igreja e a religião em geral são objeto da blasfêmia mais despropositada, mas também porque toda a ordem social, o Estado e o governo são definidos como algo que não deveria existir, ao mesmo tempo que se justifica a mentira, o perjúrio, o assassinato e o suicídio, e nega o direito de propriedade (MIRANDA, 2004, p. 298).

Porém, uma semana depois, o ministro Von Faltenstein concede autorização para a publicação do livro alegando que o mesmo era “demasiado 5

Como se verá adiante, Stirner denunciará como uma impropriedade do Eu a sua subsunção a conceitos universais, como o de Humanidade ou de Homem, por exemplo. 6 SIRNER, Max. O único e a sua propriedade. Lisboa: Antígona, 2004. Doravante citado somente como O Único.

14 absurdo para ser perigoso” (MIRANDA, 2004, p. 298), acrescentando que, quanto ao teor do texto, “se lê em grande medida como se fosse irônico e se refutasse clamorosamente a si próprio” (MIRANDA, 2004, p. 298). Apesar desses obstáculos e dessas conflitantes leituras iniciais, o livro vem a público em 1845 pelas mãos do editor Wigand, de Leipzig, que dava guarida aos libertários e radicais autores da ocasião, como Ruge e Feuerbach (MIRANDA, 2004, p. 298). A tiragem é de 1000 exemplares e a repercussão provocada pelo livro é intensa. Mas breve. Segundo Miranda,

O impacto provocado pelo livro foi enorme, mas rapidamente esmoreceu. Depois de uma polêmica que envolveu os companheiros de Stirner no clube dos hegelianos de esquerda, os Freie (Livres), na qual intervêm Ruge, Feuerbach, Bruno Bauer e Szeliga, para além do próprio Marx, que é explicitamente citado no Único, o debate arrefece em menos de dois anos, seguindo-se um silêncio absoluto (2004, p. 299).

A reação mais conhecida ao livro de Stirner se dá quase que de forma imediata, sob a pena de ninguém menos que Karl Marx e Friedrich Engels. Com efeito, embora publicado integralmente apenas em 1932, o livro A ideologia alemã é escrito entre 1845 e 1846 (DIAZ, 2002, p. 15), sob a rubrica de “crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do socialismo alemão em seus distintos profetas” (DIAZ, 2002, p. 15). Nesta obra, segundo Miranda, para refutar Stirner, Marx usa mais páginas do que o autor do Único usou para escrever seu livro (2004, p. 300). Porém, conforme já mencionado, a repercussão da obra não dura muito tempo. Tanto quanto sua vida a partir de então, o livro de Stirner trilhará, nas palavras de Miranda, “um caminho subterrâneo, que passou por leitores fortes e por recusas apaixonadas” (2004, pg. 300), uma vez que “ser lido não implica necessariamente ser citado, e muitas vezes cita-se o menos importante por não se poder suportar o que se é dito” (2004, pg. 300). Tendo corajosamente apostado tudo (ou ao menos muito) em seu livro, Stirner perdeu... Abandonado pela companheira a quem dedicou seu único

15 trabalho de vulto, desempregado7 e marcado pelo estigma de ser autor de um livro monstruoso, Stirner, para sobreviver, faz entre 1845 e 1847 traduções de J. B. Say, Adam Smith e Proudhon, além de ter tentado, sem sucesso, obter algum dinheiro associando-se a comerciantes de leite. Processado muitas vezes por seus credores, Stirner é encarcerado em duas ocasiões entre 1853 e 1854. Em 1856, portanto com apenas 50 anos de idade, Max Stirner morre em Berlim, tísico e vítima da picada de uma mosca venenosa (DIAZ, 2002, p. 12). Dessa vida breve e marcada por infelicidades, escreverá Ferrer,

[...] desapercebido estudante de filosofia, cultor de uma moderada existência boêmia salpicada de bravatas extremistas, protetor de uma mãe assolada pela loucura, professor de uma escola de moças, autor de um único livro, micro-empresário fracassado, e por fim um sobrevivente que obtinha um escasso sustento da gestão

de

negócios por conta de terceiros, depois de ser encarcerado, por pouco tempo, em decorrência de dívidas acumuladas, acabando, obscuramente, sem chegar à velhice, tuberculoso e na miséria, em 1856. São os dados de uma vida triste e patética (2001, p. 15-16).

Segundo Henry Arvon, há uma contradição entre a vida e a obra de Stirner. Aquela, acometida por uma espécie de degeneração da vontade e da decisão, teria engendrado o exagero, o excesso, a exasperação do desejo vislumbrado na obra de Stirner (apud MIRANDA, 1979, p. 12, 13). É acerca dessa desmesura, nascida ou não de uma vida abúlica, que falaremos nos capítulos seguintes.

7

Stirner demitiu-se meses antes da publicação do Único da instituição educativa para moças na qual trabalhava.

16

SÍNTESE DA OBRA FILOSÓFICA

“O jogo político supõe uma gestão permanente das oposições entre a matéria da força e sua função, vale dizer entre o poder de ser afetado e o poder de afetar. A captura da função, reforçada por um evitamento de sua matéria, permite uma imobilização das forças do indivíduo, a saber, a expansão de sua vitalidade, a expressão de sua energia, a manifestação de sua potência. Em seguida, ele deve encarar uma outra força, ela própria decidia a lutar pelo império. As instituições vivas dessa reciclagem de energia, a família, o Estado, a escola, a prisão, a usina, a oficina, a empresa, a mídia e todos os locais chancelados usam sua força para apreender a força dos indivíduos e colocá-la a serviço de uma dinâmica na qual eles serão perdedores em prol da máquina. (ONFRAY, 2001, p. 169 – 170)

Como dissemos no capítulo anterior, Stirner é autor de um único livro. A despeito de ter colaborado com artigos em periódicos alemães na Berlim da década de 1840, é em seu livro “O único e a sua propriedade” que repousa o essencial de sua obra (FERRER, 2001, p. 18). Acerca desse livro, é possível afirmar que a postura textual e filosófica de Max Stirner é marcada por três vetores que se imbricam e fazem engendrar uma obra extremada. De fato, unidos numa só carne e numa só pena: i) a pluralidade de (em muitos casos, díspares) interpretações do legado hegeliano; ii) a ambivalência com a qual, filosoficamente, era tratado o projeto moderno de progresso em moldes baconianos e iii) a verve juvenil-revolucionária do grupo denominado Os Livres, do qual Stirner fará parte; nada menor que uma obra explosiva surge da escritura stirneriana. Sobre o livro, dirá Miranda, “[...], Stirner vai operar dentro da filosofia um movimento de destruição inaudita, fazendo-a objeto de uma destituição radical. Nomeadamente por utilizar a dialética para a pôr a dizer o contrário do que sempre dissera” (2004, p. 300). A maldição que Stirner viu lançada sobre si e sobre seu único livro8 decorre, em grande medida, desse excesso explosivo que perpassa seu texto, pois, “trata-se de um livro extremo; mal se abre e se começa a ler, uma voz 8

Sobre a recepção calorosa, porém efêmera do livro e sobre a miséria na qual Stirner viverá após sua publicação discorremos no subcapítulo anterior.

17 argumenta, seduz, insulta, combate e provoca. Ao voltar da última página, segue-se um estarrecimento. Durável.” (MIRANDA, 2004, p. 300). Por outro lado, a violência da letra stirneriana, embora já se tivesse feito presente nas artes em geral e na literatura em particular, relega seu autor e seu livro ao ostracismo justamente por seu ineditismo em searas filosóficas9. Acerca do protecionismo

moral10

que

circunscreveu

historicamente

as

escrituras

filosóficas, Miranda apresenta nesses termos as razões pelas quais o livro de Stirner é rechaçado,

Se o estético tinha acolhido tudo o que era da ordem do „irracional‟, do „excessivo‟ ou do „louco‟, bastava que fossem reconhecidos como da ordem da „ficção‟, o que explica que num só filme de ação possam ser mortos dezenas de homens, já a filosofia seria puramente moral, ou seria na moralidade que tem a sua última razão. (2004, p. 299)

Entender esse tom visceral da escrita de Stirner exige que se vislumbre o contexto no qual sua obra é escrita. Sobre a ambiência na qual Stirner se encontra lançado, é o próprio filósofo quem pontifica:

Como nosso tempo está à procura do nome que melhor poderia exprimir seu espírito, muitos termos foram propostos, e todos afirmando ser o bom. Para qualquer lado que nos voltemos, a época atual apresenta o espetáculo mais caótico dos tumultos partidários, e os grandes homens do momento se reúnem, tais como abutres, ao redor da herança caduca do passado. Em toda parte abundam os despojos políticos, sociais, eclesiásticos, artísticos, morais e outros, e enquanto eles não forem consumidos, o ar não será puro e os seres vivos permanecerão oprimidos. (STIRNER, 2001, p. 61)

Outro elemento fundamental da postura stirneriana, além da influência decisiva do hegelianismo e da derrocada do ideário filosófico-político moderno (como o próprio Stirner postula na citação anterior), é a participação do filósofo no grupo dos jovens hegelianos de esquerda e os traços fundamentais desse 9

Tratando da impertinência do vigor extremado e do excesso no âmbito da filosofia, Miranda pontuará que “Uma linha de fogo liga os malditos do Ocidente: Sade na literatura, La Mettrie na medicina, Lautréamont na poesia, Stirner na filosofia.” (2004, p. 299) 10 Denunciado exemplarmente pela obra de Nietzsche.

18 movimento intelectual alemão. A atmosfera desse grupo é eminentemente efervescente, juvenil-intelectual e de disputa filosófico-política. Trilhando, cada qual a sua maneira, as sendas abertas pela filosofia de Hegel, a chamada esquerda hegeliana buscará, apossando-se de determinadas ferramentas conceituais do hegelianismo, alçar-se ao posto de intérprete legítima do legado do filósofo, ao passo que, ao mesmo tempo, buscará superá-lo e refutá-lo em pontos específicos de seu pensamento, notadamente na questão da subjetividade. É nesses termos que José Crisóstomo de Souza sintetiza a viragem que esses jovens hegelianos empreenderão na noção de subjetividade proposta por Hegel:

O clássico sujeito hegeliano, conscientemente comprometido com uma ordem (social e política) que o ultrapassa, [por obra dos jovens hegelianos] torna-se solitário, subjetivamente livre e radicalmente crítico, com Bruno Bauer; converte-se em corpóreo, genérico e amoroso, em Feuerbach; é dissolvido (e recuperado) nas relações sociais por Karl Marx, e acaba finalmente reduzido a um „pósmoderno‟ eu, finito e caprichoso..., por Max Stirner (SOUZA, 1992 apud ALVES, 1999, p. 183)

A efervescência do movimento é insuflada, obviamente, pela verve juvenil dos elementos do grupo. O tom é radicalmente agressivo e, conforme Alves, a pedra angular que dá start ao movimento é eminentemente polêmica, pois de natureza teológica11.

Acerca da explosividade peculiar ao nosso filósofo - que por fim acabou por jogar à clandestinidade seu livro -, cumpre-nos, obviamente, dar a voz ao próprio Stirner:

A minha liberdade só será perfeita quando for o meu... poder; mas, tendo este, deixo de ser simplesmente livre e passo a ser „proprietário-de-mim‟ (Eigener). Por que razão a liberdade dos povos é uma „palavra oca‟? Porque os povos não têm poder! Com um sopro do eu vivo, deito abaixo povos inteiros, ainda que fosse o sopro de 11

Embora ganhe, posteriormente, o viés político e, por fim, com Max Stirner, orientação subjetivoexistencial. Cf. ALVES, 1999, p. 185 - 186.

19 um Nero, de um imperador chinês ou de um pobre escritor. Por que razão aspiram os parlamentos al...

12

em vão à liberdade, e em vez

disso são tratados como meninos de escola pelos ministros? Porque não dispõem de poder! O poder é uma bela coisa, e útil em muitas situações; porque „com uma mão-cheia de poder vai-se mais longe do que com um saco cheio de direitos‟. Desejais muito a liberdade? Sois tolos! Se tomásseis o poder, a liberdade vinha por si. Senão vejam: quem tem o poder „está acima da lei‟. Que gostinho, o de uma perspectiva como esta, para vós, „homens da lei‟! Mas vocês não têm gosto! (STIRNER, 2004, p. 135 – 136)

Embora a citação acima, no que se refere ao contexto do presente trabalho, tenha a intenção apenas de demonstrar a intensidade bélica do linguajar stirneriano, já possibilita que vislumbremos o objeto a ser apropriado pelo poder do qual fala Stirner: “passo a ser proprietário-de-mim”... Retornemos ao entorno da obra13. A clandestinidade na qual o livro é lançado por seu vigor belicista não acarreta em inocuidade histórico-filosófica. Com Stirner, não apenas a reflexão filosófica ganha trânsito livre por sobre o ouropel moral que a recobria14, como também a singularidade existencial subjetiva (como se verá nos capítulos seguintes) passará à ordem do dia na filosofia. Ainda sobre os efeitos da explosividade do texto de Stirner e, ainda, sobre as influências de sua grita filosófica, dirá Miranda,

Stirner foi lido por muitos autores, e não dos menos importantes. A começar por Marx, que lhe dedica - para o criticar - mais páginas do que as que o livro tem. E Nietzsche, bom leitor de Lange, que se sentiu interpelado por tal obra „extrema‟, ele que queria chegar ao extremo dos extremos, mas a quem tal vontade o arrepiava. Mas também Buber que lhe dedicou um livro, Sartre, Camus, Heidegger, Deleuze ou Foucault, e muitos outros. Ser lido não implica necessariamente ser citado, e muitas vezes cita-se o menos importante por não se poder suportar o que se é dito. (2004, p. 300)

12

Stirner abrevia a palavra “alemães” para fugir à censura. Cf. nota de rodapé em STIRNER, 2004, pg. 135. 13 O seu centro será deslindado no decorrer deste e dos próximos subcapítulos. 14 E nesse sentido não podemos deixar de atentar para a posição privilegiada que a reflexão acerca dos valores morais ganharam no pensamento de Nietzsche.

20 Retornando aos vetores principais do pensamento de Stirner, apontamos agora para uma das mais decisivas influências filosóficas que perpassam a obra stirneriana, a saber, o hegelianismo. Aliás, registra-se a presença assídua de Stirner às aulas ministradas pelo próprio autor da Fenomenologia do Espírito nos bancos universitários de Berlim (MIRANDA, 2004, p. 301). Porém, o hegelianismo presente no texto de Stirner “é transformado a ponto de se tornar irreconhecível, em todos os sentidos desta palavra. Hegel está presente como se fosse um andaime, a remover depois da obra concluída” (MIRANDA, 2004, pg. 301). Hegelianamente, Stirner busca atravessar o hegelianismo. Aproximandose do modus operandi sistemático hegeliano, nosso filósofo conduzirá o leitor d‟O Único por um caminho organizado de interpretação histórico-filosófica que dirá de que maneira a racionalidade ocidental se desenvolveu e desembocou no tumulto do qual nosso autor fala em citação acima. Stirner, a partir disso, tentará dar a ver a impertinência e a incompatibilidade entre os sistemas e as singularidades que os seguem. Em metáfora carregada de viés poético e imagético, Miranda sintetiza de forma exemplar a relação do pensamento de Stirner com a metafísica hegeliana:

À criança é possível decalcar os passos de quem já passou, pois trapaceia-a, mas há passadas maiores ou menores ou diferentes que não se cobrem porque não são as nossas. Quando muito seguem-se com os olhos até se reduzirem a linhas retas, a um ponto, a Nada. É esta a intenção primeira destas letras [de Stirner]. Inserir os passos vacilantes no sendeiro criado pelo andar; mostrar que essas retas paralelas são a nossa ilusão; que naquele ponto não podem estar dois e menos ainda uma multidão. (1979, p. 10)

Assim, apropriando-se do hegelianismo, valendo-se do método dialético como mediador entre a novidade de sua proposta e a caduquice que Stirner menciona em citação acima, nosso filósofo se coloca a tarefa de resgatar a singularidade, a unicidade irrepetível do indivíduo num contexto em que esta, por obra do anti-individualismo hegeliano, periga pulverizar-se - como de fato vem a ocorrer sob os regimes totalitários que o início do século XX conhecerá. Será contra a sujeição alienante pela qual o indivíduo foi historicamente

21 convidado a se entusiasmar e vergar perante sistemas rotuladores que Stirner cunhará os conceitos de Eu e de Único, que, segundo Miranda, é “uma dessas metáforas brancas que não significam nada” (1979, p. 26), mas que, por outro lado, é “[...] produtiva de diferenciações, oferece-se como paragem ao Tu que projetando-se nela a encheria de conteúdo” (1979, p. 27). Prossigamos com a abordagem de Miranda acerca dos conceitos de Eu e de Único stirnerianos:

Stirner pretendeu cunhar uma palavra que cortasse com a abstração e o geral, que conseguisse designar o indizível, o inexprimível, sem que este algo imediatamente se evaporasse no nada; sem conteúdo, ela não remeteria para conceitos, nem permitiria que se encetasse uma „nova série conceitual‟, socavando, simultaneamente, o terreno da metafísica onde medram os sistemas. (MIRANDA, 1979, p. 26)

Stirner entende que resgatar o indivíduo das cadeias impostas pelos conceitos universais que o circunscrevem e limitam exige a cunhagem de expressões que não se prestem ao jogo (ou jugo) rotulador-metafísico ao qual, por exemplo, a expressão O Homem se prestaria15. É neste sentido que nosso filósofo rechaça o humanismo de Feuerbach, uma vez que o conceito de Homem implica no empalidecer do próprio, do Eu, do Único irredutível a idéias e conceitos, que transita na concretude instantânea, pontual e circunstanciada pelas particularidades de sua existência singular. É nesses termos que Stirner, fazendo-se ironicamente de humanista, expressa o pensamento daqueles a quem se opõe:

Quem vir em nós outra coisa que não homens será visto por nós, não como um homem, mas como um monstro desumano (Unmensch); pelo contrário, quem nos reconhecer como homens e nos proteger do perigo de sermos tratados de forma desumana, a esse veneramo-lo como nosso protetor e patrono. Unamo-nos então, e protejamos o homem em cada um de nós; se assim for, encontraremos na nossa união a proteção necessária, e em nós, os unidos, a comunidade daqueles que conhecem a sua 15

Conforme Abbagnano, “A tese fundamental de Stirner é que o indivíduo é a única realidade e o único valor, logo é a medida de tudo. Subordiná-lo a Deus, à humanidade, ao Estado, ao espírito, a um ideal qualquer, seja embora o do próprio homem, é impossível, pois o que é diferente do eu individual e se lhe contrapõe, é um fantasma do qual ele acaba escravo”. (1998, p. 60)

22 dignidade humana e se unem na sua qualidade de „homens‟. A nossa unidade é o Estado, e nós, os que nos unimos, formamos a nação. Na nossa comunidade de nação ou Estado, nós somos apenas homens. O modo como nos comportamos enquanto indivíduos, os impulsos egoístas que nos possam mover, isso diz apenas respeito à nossa vida privada; a nossa vida pública, ou como membros de um Estado, é puramente humana. Tudo o que de desumano ou „egoísta‟ possamos ter é rebaixado à condição de „coisa da esfera privada‟, e separamos claramente o Estado da „sociedade civil‟, onde reina o „egoísmo‟. (STIRNER, 2004, p. 83)

É dessa maneira que surge o conceito de Eu-próprio stirneriano, uma vez que, ao contrário da idéia de Homem, tem sua significação apreendida imediatamente16 pelo indivíduo corpóreo e concreto que o profere. Contra a idéia de Homem – cuja conceituação escapa e não esgota o indivíduo singular -, nosso filósofo interpõe o Eu. Stirner considera que a linguagem é capaz de embotar e submeter o pensamento e, consequentemente, a existência, quando é arquitetada sob os auspícios universalizantes dos sistemas metafísicos alheios ao instante e às circunstancias nas quais o Eu se encontra lançado. É mais uma vez Miranda quem esclarece:

Stirner, sabedor da importância filosófica da linguagem, vai combater o mundo das idéias por uma desagregação interna da linguagem, considerando que sendo a língua uma criação da Razão bastará ao Eu, para se reapropriar dela, subverter as incrustações idealistas. (1979, p. 25)

Por outro lado, é em terreno filosófico que Stirner trava seu combate, portanto, é através da escritura e municiado de linguagem filosófica que nosso autor tentará dar cabo das peias metafísicas que recobrem e enfraquecem o Eu. Talvez seja aqui que resida o maior paradoxo stirneriano: ele também (embora o relegue a segundo plano logo em seguida) arquitetará um sistema (dialético) por meio do qual explica o desenvolvimento tanto de uma vida 16

Sem a mediação ativa de outrem, uma vez que tal mediação é entendida como absolutamente inútil para quem queira reconhecer-se como possuidor de um Eu, de ser uma individualidade real e concretamente única

23 humana, como o processo pelo qual o ideário da modernidade veio a ser. É nesses termos que Stirner inicia a exposição de seu sistema:

A partir do momento em que vê a luz do mundo, um ser humano busca encontrar-se e conquistar-se a si próprio no meio da confusão em que, com tudo o que há nesse mundo, se vê lançado sem orientação. Mas, por outro lado, tudo aquilo com que a criança contata se rebela contra as suas intervenções e afirma a sua própria existência. Assim sendo, e porque tudo está centrado em si mesmo e ao mesmo tempo entra em colisão com tudo o resto, a luta pela auto-afirmação é inevitável. (2004, p. 15)

O processo que se desenvolve dessa relação entre sujeito e mundo é dialético e a relação mesma é da ordem da luta: “Vencer ou sucumbir – entre essas duas possibilidades oscila o desfecho da luta”. (STIRNER, 2004, pg. 15). Dialeticamente, a criança, visando auto afirmar-se perante o mundo – o qual é representado por Stirner como a materialidade do mundo físico ou a autoridade dos pais, por exemplo – cria em si e para si mecanismos de defesa de sua individualidade, ou, em termos stirnerianos, cria espírito:

E quanto mais nos sentimos nós próprios, tanto mais ínfimo nos parece aquilo que antes tomávamos por insuperável. E o que é a nossa astúcia, a nossa esperteza, a nossa coragem, a nossa teimosia? O que é tudo isso senão... espírito? (STIRNER, 2004, p. 16, grifo nosso)

O espírito, portanto, é um ardil, é uma fabulação oriunda de uma necessidade imanente ao indivíduo, qual seja, a de se autoafirmar e distinguirse das alteridades autocentradas que povoam o mundo. Porém, o ardil acaba por voltar-se contra o indivíduo que o conjurou. Com efeito, o espírito que no primeiro momento se apresenta como escudo mediante o qual a subjetividade se afirma contra as forças exteriores passa, de forma sutil e gradual, a se apresentar como entrave à expansão criativa da individualidade. Em nível não mais de uma vida humana que se desenvolve, mas enfocando o resultado

24 desse processo dialético no desenvolvimento da subjetividade ocidental, Henri Arvon interpreta de forma notável o sistema stirneriano:

O homem [antigo, ou seja, o grego arcaico] dispõe diante de si um conjunto de objetos particulares que, recolhendo primeiramente uma impressão de incoerência, experimenta em seguida pôr em ordem seu universo ao submetê-lo às idéias, isto é, às leis gerais. Enfim, ávido por escapar à causalidade cega que seu próprio espírito veio a dotar o universo, rebela-se contra todo determinismo a fim 17

de salvaguardar sua liberdade . (1951 apud OTÊNIO, 2008, p. 8, grifo nosso)

Circunscrevendo, simplificando e aplicando esse sistema dialético ao desenvolvimento de uma vida humana, Stirner ensina que no seu primeiro momento a libertação que se busca se dá através do espírito que visa a razão de ser das coisas, não a sua aparência, mas aquilo que se encontra por detrás delas18, pois compreender a essência das coisas trás segurança (STIRNER, 2004, p. 16). Neste momento, a criança encontra-se imbuída do espírito que a livrou dos poderes elementares e superiores da exterioridade, como, por exemplo, quando desafia, com coragem e teimosia, a vergasta do pai (STIRNER, 2004, p. 15). Conquistada essa primeira liberdade, que livra o sujeito das coisas materiais e imediatas, a próxima luta que se vem a travar é contra a razão, pois, enquanto crianças libertas apenas das coisas corpóreas, quanto à razão ainda não “lhe damos importância, não perdemos tempo com ela, não ganhamos „juízo‟” (STIRNER, 2004, p. 16). Neste estágio, o espírito se intensifica e passa a travar guerra não apenas com a imediaticidade concreta do exterior, o espírito inicia seu movimento em seu terreno próprio. Vencidos, pela teimosia e pela coragem, os pais, agora são os homens os adversários, pois, conforme Stirner, “o mandamento agora é: é preciso obedecer mais a Deus do que aos homens.”19 (2004, p. 15). Neste momento de nossa breve exposição do sistema stirneriano (a ser desenvolvido em maior nível de detalhamento nos subcapítuos seguintes), damos a palavra ao próprio filósofo, 17

Talvez seja ilustrativo pensarmos, no âmbito desta citação, no percurso iniciado pelos pré-socráticos e findado em David Hume. 18 O espírito impõe códigos à realidade, confere lógica, sentido, razão à concretude imediata do mundo. 19 Alusão de Stirner às palavras do apóstolo Pedro. Cf. Atos, 5, 29.

25 que delineia assim o processo pelo qual o espírito se desvincula de seu criador e passa a dominá-lo:

A cultura, a religiosidade dos homens, tornou-os livres, mas livres apenas de um senhor, para logo os entregar a outro. A religião ensinou-me a dominar os meus desejos, a astúcia permite-me quebrar a resistência do mundo, e é-me dada pela ciência; nem já a um outro homem sirvo, já „não sou escravo de homem nenhum‟. Mas depois vem o resto: Tens de obedecer mais a Deus do que aos homens. Do mesmo modo, libertei-me da determinação irracional pelos meus sentidos, mas continuei fiel à dominadora chamada... razão. Ganhei a „liberdade espiritual‟, a „liberdade do espírito‟. Com isso, eu tornei-me súdito do espírito. O espírito dá-me ordens, a razão orienta-me, são ambos meus guias e senhores. [...] A liberdade do espírito significa a minha servidão, porque eu sou mais do que espírito ou carne. (STIRNER, 2004, p. 260)

Este é, em síntese, o caminho dialético pelo qual se engendrou a subjetividade moderna segundo o sistema stirneriano. Do confronto com as forças cegas da natureza na antiguidade, sedimentou-se o terreno onde medrarão os espíritos cristãos, políticos e científicos contra e a favor dos quais se debaterá o homem moderno. Concluída esta pequena síntese do pensamento de Max Stirner, seguindo a estruturação proposta em nosso sumário, partamos agora para a análise e a descrição da configuração das subjetividades que Stirner compreende como engendradas social e ideologicamente por sua época para, após, vislumbrarmos com maior profundidade o advento do Único, desse Eu fiel à sua singularidade ao qual Stirner dedicou a sua obra.

26

OS POSSESSOS

“Antes que o abismo se abra sob nossos passos, o filósofo se faz historiador do presente e interroga o passado para compreender, como arqueólogo, geólogo e genealogista, aquilo que estratifica o subsolo e a superfície sobre a qual evoluímos”. (ONFRAY, 2001, p. 153)

Do ponto de vista da inserção cronológica de Stirner na história da filosofia, é como reação ao universalismo de Hegel que a obra stirneriana é comumente classificada20. Por outro lado, as interlocuções reativas que Stirner estabelece nos primeiros capítulos de seu livro enfocam, em sentido estrito, o pensamento moderno do pós Revolução Francesa21, e, em sentido geral, tenta desnudar, para combater, a dinâmica mediante a qual a subjetividade ocidental se erigiu desde os gregos antigos. A culminância do processo por meio do qual o Ocidente forjou sua racionalidade e, consequentemente, sua subjetividade padrão, para Stirner, desemboca

na

loucura

dos

possessos,

isto

é,

dos

possuídos

por

espectralidades. É em oposição à possessão à qual seus contemporâneos estariam submetidos que Stirner interpõe seu conceito chave de Único. Com a palavra, Max Stirner:

E não penses que estou a brincar ou a falar por metáforas quando considero os homens presos a esta idéia do superior

22

(de fato, quase

toda a humanidade, porque a maior parte é deste tipo) como verdadeiros loucos, loucos de manicômio. O que é afinal isso de uma „idéia fixa‟? É uma idéia à qual uma pessoa se subjugou. Se reconhecerdes nessa idéia fixa um sinal de loucura, meteis o escravo

20

É nesses termos que Abbagnano sintetiza o pensamento de nosso filósofo: “Uma oposição extrema ao universalismo de Hegel, que tinha pretendido negar e dissolver o indivíduo, é representada pelo individualismo anárquico de Stimer” (1999, p. 150), ao passo que Giovanni Reale abre seu verbete sobre Stirner afirmando que o filósofo “ainda como aluno de Hegel em Berlim, rebelou-se contra ele em nome do individualismo anárquico, e censurou Feuerbach por ter substituído o Deus da religião por outro deus, igualmente perigoso: a humanidade” (2005, p. 154). 21 Do qual nosso autor é contemporâneo. 22 Entenda-se por superior a sacralidade das idéias, dos valores morais, dos conceitos, dos sistemas, dos dogmas políticos e religiosos, das visões de mundo, etc.

27 dela num manicômio. Mas não serão também „idéias fixas‟ a verdade da fé de que se não duvida, a majestade - por exemplo, do povo - em que não se pode tocar (e quem o fizer comete crime de lesamajestade), a virtude, contra a qual o censor não deixará passar nem uma palavra, para que a moralidade permaneça intacta, etc.? E não o será toda a conversa fiada - por exemplo, da maior parte dos jornais , o blá-blá dos alienados que sofrem das idéias fixas da moralidade, da legalidade, da cristandade, etc., e só andam por aí em liberdade porque o manicômio onde vão parar ocupa um espaço tão grande? Toque-se na idéia fixa de um desses alienados, e quem o fizer terá imediatamente de se precaver contra a resposta traiçoeira desses loucos. Pois também noutra coisa estes grandes loucos se parecem com os pequenos: atacam traiçoeiramente aqueles que tocam nas suas idéias fixas. Começam por lhes roubar a arma, a palavra livre, e depois caem sobre eles de garras afiadas. Não há dia que não ponha a nu a covardia e a sede de vingança destes loucos, e o povo estúpido aclama a sua atuação. (SIRNER, 2004, p. 42)

A virulência dessas letras não é gratuita, tampouco é arbitrária em sentido filosófico. Fundamentando tal visão pessimista acerca de seus contemporâneos, existe, alicerçado astutamente por Stirner, um sistema histórico-dialético de explicação filosófica por meio da qual o filósofo convida seu leitor a repisar a trajetória do pensamento ocidental que culminará nessa hegemonia das idéias fixas, dos valores que animam os possessos, em detrimento de tudo o que seja da ordem do singular, ou seja, da única fonte de existência dessas idéias que se tornaram fins em si mesmas e que, a partir de então, ameaçam o Único. Adentremos então nessa espécie de fenomenologia do espírito possesso. Conforme já pontuado neste trabalho, é hegelianamente que Stirner busca superar o hegelianismo. E é sobretudo na primeira parte d‟O Único, intitulada O Homem, que se vislumbra uma espécie de usurpação conveniente do pensamento de Hegel23. Segundo Stirner, a subjetividade atrelada à racionalidade moderna é produto de um processo dialético-histórico de constituição comprometida com a sujeição às idéias, ideologias, partidos, religiões, etc. Paradoxalmente, conforme também já pontuamos, essa 23

Uma vez que o “andaime” hegeliano logo será abandonado por nosso autor. Cf. MIRANDA, 2004, p. 301.

28 submissão da subjetividade, nesse devir histórico-dialético, se efetiva e aprofunda na luta pela sua auto-afirmação (tanto do indivíduo quanto do gênero) ante as forças coercitivas extrínsecas ao Eu. Nesse processo de luta pela auto-afirmação, o Eu, buscando impor-se ante tudo o que lhe é estranho e nocivo, cria para si uma subjetividade que lhe livre da aniquilação ante as alteridades auto-centradas exteriores. Essa subjetividade protetora é chamada por Stirner de espírito.

Aquilo que, a princípio, era visto como a existência, o mundo e coisas afins, é agora mera aparência, e aquilo que verdadeiramente existe é, pelo contrário, a essência, cujo reino se enche de deuses, espíritos, demônios, ou seja, de boas ou más essências, de bons ou maus seres (Wesen). Só este mundo às avessas, o mundo das essências, existe agora de verdade. O coração humano pode ser sem amor, mas a sua essência existe, o deus „que é amor‟; o pensamento humano pode afundar-se no erro, mas a sua essência, a verdade, existe: „Deus é a verdade‟, etc. Conhecer e aceitar as essências e nada mais que as essências, é isso a religião: o seu reino é um reino de essências, de espectros e de fantasmas. (STIRNER, 2004, p. 40)

O que Stirner intenta dar a ver na exposição desse processo é a transformação pela qual o espírito, uma vez conjurado, tende a passar. Com efeito, de dispositivo aliado ao Eu em seu embate pela auto-afirmação, o espírito, que aos gregos antigos afigurava-se como meio através do qual o caleidoscópio das titânicas impressões sensíveis era organizado e superado, aos modernos se apresenta como fim em sim mesmo, absolutizado, subsumindo todo o real (com o Eu aí incluído) às idéias, às leis gerais, em suma, ao Espírito. Em outras palavras, da libertação das peias da concretude mundana, o sujeito moderno termina por se vergar ao dispositivo que surgiu para proteger e estar a serviço do homem. Recorramos novamente a Stirner:

Sem dúvida que a cultura me tornou poderoso. Deu-me poder sobre todos os impulsos, tanto sobre os instintos da minha natureza como sobre as exigências e as prepotências do mundo. Sei, e foi a cultura

29 que me deu força para isso, que não preciso de me deixar dominar por nenhum dos meus desejos, paixões, inebriamentos, etc.: sou senhor deles. E também a ciência e a arte me permitem ser senhor do mundo que me resiste, e ao qual obedecem o mar e a terra, e até as estrelas prestam contas. O espírito fez de mim senhor. Mas sobre o espírito eu não tenho poder. A religião (que é cultura) ensina-me os meios para „vencer o mundo‟, mas não me diz como é que eu posso também vencer Deus e ser seu senhor, porque Deus „é o espírito'. E o espírito, que eu não posso dominar, pode assumir as mais diversas formas: pode chamar-se Deus ou espírito do povo, Estado, família, razão, também... liberdade, humanitarismo, homem. (STIRNER, 2004, p. 261).

Aplicado ao transcorrer do desenvolvimento da racionalidade ocidental, nesse esquema de oposição dialética entre o Eu e o mundo, o espírito vai ampliando incessantemente seu âmbito de ação e de subsunção do real. Surgido nos primórdios da cultura helênica, o espírito atravessa o medievo e culmina na pletora de concepções idealistas mediante as quais o homem moderno “como um jovem, anda por aí, possuído de planos de salvação ou melhoramento do mundo” (STIRNER, 2004, p. 30).

Conheçamos os primórdios do espírito. Segundo Stirner, para os gregos24 do período homérico, o mundo era uma verdade. Porém, o desenvolvimento do mundo grego que culminou no período dito clássico e, posteriormente, na cultura helenística, a verdade dos gregos arcaicos transforma-se, conforme Stirner, numa não-verdade (2004, p. 21 – 22). A verdade a que se refere Stirner neste ponto é a verdade da pátria25, dos laços familiares, da sacralidade dos ritos funerários26, entre outros. A verdade a qual estavam ligados e submetidos os gregos arcaicos era, em suma, da ordem da physis, ou seja, era da ordem da irreversibilidade, da imutabilidade

24

Atentar para a categorização histórica peculiar de Stirner. Para ele, o tempo antigo corresponde ao período dos primórdios da civilização helênica até o advento do cristianismo. O período moderno, para o nosso filósofo, inicia-se aí. 25 Como da apologia da autoctonia ateniense, por exemplo. Cf. STIRNER, 2004, pg. 22. 26 Vide o sucesso, no mundo antigo, da peça Antígona, de Sófocles.

30 arquetípica27. Porém, a sujeição a essa ordem ontológica do cosmos acaba por enfadar o homem grego:

Os pais tinham estado demasiado tempo submetidos ao violento domínio de uma ordem estabelecida inamovível, e era natural que os seus descendentes começassem a aprender com as suas amargas experiências e a ganhar o sentimento de si. E é assim que surge a audaciosa e impertinente máxima dos sofistas: „Não te deixes surpreender!‟ São eles que espalham a doutrina iluminadora que diz: „Usa o teu entendimento contra todas as coisas, o teu engenho, o teu espírito; um entendimento lúcido e exercitado é a melhor arma para enfrentar o mundo, preparar um destino melhor e a mais agradável das vidas‟. Ou seja, eles reconhecem no espírito a verdadeira arma do ser humano contra o mundo. É por isso que dão tanto valor à habilidade dialética, à eloqüência, à arte da disputa, etc. (STIRNER, 2004, p. 22)

Fica clara, aqui, a primeira aplicação do esquema stirneriano mediante o qual, numa luta de auto-afirmação, de auto-assenhoramento, o espírito é conjurado contra uma ordem extrínseca e de combate contra o Eu. Aqui, o espírito é o entendimento sofístico, é a astucia intelectual mediante a qual o homem grego, pela primeira vez, afronta as tradicionais forças da physis. A crença é a de que, cultivando o entendimento, está-se a se proteger das forças que, tradicionalmente, relegaram a individualidade a um segundo plano em importância. Com o entendimento sofístico, pela primeira vez, o poder se torna acessível a qualquer um que o cultive. Abre-se, assim, para quem tiver acesso a esse saber, a esse espírito, as portas da política. É o início da democracia. Porém, afirma Stirner,

O princípio da sofística levaria necessariamente a que o mais cego e dependente escravo dos seus apetites fosse um excelente sofista, capaz de interpretar e adaptar tudo em favor do seu coração bruto. Não há coisa nem causa para a qual não se pudesse encontrar uma ‟boa razão', para por ela lutar com unhas e dentes. (STIRNER, 2004, p. 23)

27

No sentido da arkhé dos pré-socráticos. Não confundir com o conceito junguiano.

31

Tal como o homem grego percebe na ordem inamovível da physis um perigo para a auto-afirmação do Eu, em seguida irá identificar, também, a nocividade do entendimento sofístico, uma vez que este pode servir como legitimador de todo e qualquer apetite, de toda e qualquer intenção egoísta, assim, assume-se que a liberdade alcançada com o entendimento não é suficiente. De nada basta possuir-se um entendimento apurado, eficazmente aplicado contra as forças nocivas extrínsecas ao indivíduo, se ainda se permanece refém de um coração bruto (STIRNER, 2004, p. 23), alimentado pelos ditames da physis:

De fato, se o coração não se libertasse dos seus impulsos naturais, mas permanecesse dominado pelos conteúdos mais contingentes e, na sua avidez sem crítica, sujeito ao total domínio das coisas, não sendo mais que um vaso para os mais diversos apetites, então o livre entendimento acabaria inevitavelmente ao serviço do „mau coração‟, justificando tudo aquilo que o coração corrupto desejasse. Por isso, Sócrates diz que não basta utilizar em tudo o entendimento, mas que o mais importante é saber qual a causa na qual ele se empenha. Nós diríamos agora: é preciso servir a „boa causa‟. Mas servir a boa causa significa... ser moral. Por isso foi Sócrates o fundador da ética. (STIRNER, 2004, p. 23)

Portanto, temos com Sócrates o segundo período de libertação dos gregos. O primeiro, iniciado pelos sofistas, não foi suficiente, não libertou a contento o indivíduo, uma vez que o mantinha em risco ante os contingentes apetites que governavam o entendimento sofista. Assim, o espírito intensifica sua ação. Se num primeiro momento o mundo curva-se ao entendimento sofístico, agora, com Sócrates, quem curvar-se-á será o coração, que não mais poderá guiar-se pelas cegas influências mundanas, não mais poderá “orientarse pelo mundo” (STIRNER, 2004, p. 23). Com se vê, o espírito, de meio, de instrumento dos indivíduos, autonomiza-se, adquire uma dinâmica própria que, alimentada pelo ímpeto de liberdade, de libertação de um perigo externo, amplia-se, estabelece novas leis, novos valores, novos inimigos a vencer, e firma-se como fim. No contexto do

32 universo grego antigo, segundo Stirner, o desenvolvimento do espírito culmina na cultura cética e o ponto comum, o elemento contra o qual o espírito grego travou combate desde os sofistas até aos céticos, ainda conforme Stirner, é o mundo:

Serão os céticos que levarão mais longe esta rotura com o mundo. Toda a minha relação com o mundo é „sem valor e sem verdade‟. Timão diz: „As sensações e as idéias que retiramos do mundo não contêm qualquer verdade‟. „Que é a verdade?‟, exclama Pilatos. Segundo Pirro, o mundo não é bom nem mau, nem belo nem frio, etc., estes são apenas predicados que eu lhe atribuo. Timão diz ainda: „Em si, nada é, nem bom nem mau, o homem é que pensa que assim é; face ao mundo, o que nos resta é apenas a ataraxia (a impassibilidade) e a afasia (o emudecimento, ou, por outras palavras: a interioridade no seu isolamento). Não é já possível „reconhecer no mundo qualquer verdade‟, as coisas contradizem-se, os pensamentos sobre as coisas não se distinguem (bom e mau são a mesma coisa, de tal modo que aquilo que um acha bom, o outro acha mau); assim sendo, o conhecimento da „verdade‟ é uma utopia, e o que resta é o homem sem conhecimento, o homem que não encontra no mundo nada para conhecer, e este homem deixa entregue a si este mundo vazio de verdade, que lhe é totalmente indiferente. (SIRNER, 2004, p. 27).

Nas palavras de Stirner, portanto, do mundo como verdade, como se vê, os antigos atingem o mundo como não-verdade. Porém, a alteridade é, ainda, mundana. O espírito mediante o qual os gregos organizam seu cosmos é espírito, ainda, atrelado, relacionado com o mundo, pois os gregos, segundo Stirner, “querem viver bem neste mundo, buscam uma vida cheia de benesses” (STIRNER, 2004, p. 26), almejam a “eudaimonia, o bem-estar em todas as suas formas possíveis” (STIRNER, 2004, p. 26). Como forma de estabelecer um contraponto com o advento do cristianismo, ou seja, com a manifestação bem diversa com a qual o espírito se apresentará, é nesses termos que Stirner resume a vitória grega sobre o mundo:

33 Mas, como não se consegue libertar do mundo, nomeadamente porque todo o seu esforço se concentra em se libertar dele, portanto numa rejeição do mundo - para o que, no entanto, é necessário que aquilo que se pode rejeitar, e é rejeitado, tem de continuar a existir, porque de outro modo não haveria mais nada para rejeitar -, como assim é, ele alcança quando muito um grau extremo de libertação, e a sua diferença em relação aos menos livres é apenas uma questão de grau. Mesmo que alcançasse o grau de insensibilização terrena que apenas tolera o ciciar monótono da palavra „brahma‟, ainda assim, no essencial, não se distinguiria do homem sensível. (STIRNER, 2004, p. 27)

Espírito bem diverso advirá com o cristianismo. É com a citação bíblica abaixo que Stirner abre o capítulo intitulado Os Modernos (Die Neuen): “Se alguém é em Cristo, é uma nova (neue) criatura, o antigo passou, vede, tudo se tornou novo” (Coríntios 5, 17 apud STIRNER, 2004, p. 28). Em síntese, portanto, o espírito moderno28 nasce das "dores de parto" (STIRNER, 2004, p. 30) dos antigos. Mas estes não conheciam ainda a linguagem do espírito puro, apenas deram-na à luz, pois o espírito dos antigos não o é no sentido pleno, pois se relaciona ainda, embora em luta, com o mundo das coisas. Quem primeiro falará a linguagem do espírito puro será o próprio espírito, encarnado, será o próprio Deus que, sem relação com o mundo das coisas, manifestar-seá:

Só o „Deus encarnado, o filho do homem‟ pronuncia pela primeira vez a palavra segundo a qual o espírito, isto é, ele, o Deus, não tem relação com as coisas e o fazer terrenos, mas apenas com o espírito e as relações espirituais. (STIRNER, 2004, p. 30)

A correlação ontológica que Stirner estabelece entre os antigos e os modernos29 é a da inversão da verdade à não-verdade. Se para os antigos o mundo era uma verdade a cuja não-verdade lograram atingir, os modernos

28 29

Entenda-se, cristão. Atente-se para o fato de Stirner categorizar toda a cultura ocidental pós-cristã como “moderna”.

34 farão do espírito uma verdade a que, igualmente, acabarão por buscar a nãoverdade30:

É possível observar no cristianismo um processo semelhante àquele que vimos na Antiguidade, na medida em que, até à época preparatória da Reforma, o entendimento permaneceu prisioneiro dos dogmas cristãos, mas no século anterior ao da Reforma se deu um levantamento sofista que entrou num jogo herético com todos os artigos da fé. Dizia-se então, especialmente em Itália e na corte romana: se o coração se mantiver na fé cristã, não há razão para o entendimento não desfrutar dos seus prazeres. (STIRNER, 2004, p. 28)

Aqui se observa Stirner novamente aplicar seu sistema. Se o cultivo do entendimento, e posteriormente do coração, auxiliou os antigos em sua luta contra o mundo, da mesma forma esses dois elementos serão trabalhados na libertação dos modernos ante o “fantasma corpóreo, o fantasma ou um espírito com corpo real, o fantasma encorpado” (STIRNER, 2004, p. 40):

A própria Reforma, tal como Sócrates, levou finalmente a sério o coração, e desde então os corações tornaram-se, a olhos vistos... cada vez menos cristãos. Na medida em que, com Lutero, se começou a levar a peito a coisa, este passo da Reforma levaria necessariamente a que também o coração fosse aliviado da pesada carga da fé cristã. O coração, de dia para dia cada vez menos cristão, perde o conteúdo que o mantinha ocupado, até que por fim mais não lhe resta do que uma cordialidade vazia, todo o amor ao próximo na sua forma mais geral, o amor dos homens, a consciência da liberdade, a „consciência de si‟. (STIRNER, 2004, p. 29)

E aqui adentramos diretamente no período no qual Stirner produziu. Tendo o espírito (compreendido como da ordem da razão), se voltado contra o espírito (compreendido como ente religioso), atinge-se o que Stirner chamará de “mundo espectral” (STIRNER, 2004, p. 36), no qual medram “os possessos” (STIRNER, 2004, p. 43), os “fanáticos” (STIRNER, 2004, p. 43), ou seja, 30

Antecipemos: não-verdade da qual poderá surgir o Eu. Se o ímpeto por liberdade acabar por fazer do espírito uma não-verdade, o Eu tem a oportunidade de se impor.

35 aqueles que, diante de qualquer alteridade nociva, conjuram um ideal intocável (como o de igualdade, liberdade e fraternidade...), uma idéia fixa na qual outrem não pode ousar tocar. O cristianismo, nas palavras de Stirner, após a Reforma, inicia seu processo de derrocada, embora isto não signifique o fim da dialética do espírito, que se revestirá de novas roupagens mediante às quais a singularidade concreta e corpórea do Eu continuará oprimida. De espírito religioso, a modernidade passa a ser governada pelo espírito da razão e, após a Revolução Francesa, pelo espírito da legalidade, do humanitarismo, do socialismo, do cientificismo, do proletarismo trabalhador, etc. Nessa ordem de coisas, afirma Stirner, os opositores da devoção religiosa, em seu tempo, advogam a substituição de um ser supremo por outro. É a luta entre o Deus da religião contra o deus-moral ou o deus-científico, e nesse registro, cita Proudhon: “O homem está destinado a viver sem religião, mas a lei moral (la loi morale) é eterna e absoluta. Quem é que hoje ousaria atacar a moral" (apud STIRNER, 2004, p. 44). Stirner refuta ambos os seres superiores, tanto o supra-humano como o humano, pois ambos pretendem, valendo-se do caráter espectral e sacro que adquirem, superioridade sobre o Eu, pois,

Sagrado é, acima de tudo, por exemplo, o „espírito santo‟, sagrada é a verdade, sagrados a justiça, a lei, a boa causa, a majestade, o casamento, o bem comum, a ordem, a pátria, etc. (STIRNER, 2004, p. 41)

No registro do fanatismo, do mundo espectralizado, da fixação generalizada dos homens às mais diferentes idéias, ideais, leis, ordens e princípios, Stirner denunciará as mais diversas versões e manifestações do humanismo que, conforme nosso autor, mais não fez do que tentar substituir um deus, um soberano, um poder, uma idéia, por outra. Stirner parece entender que é da própria natureza do espírito atuar sob essa dinâmica: na luta contra uma alteridade, o indivíduo introjeta um outro, que o submete, que age, para usar uma terminologia de Michel Onfray, como um “chacal ontológico” (ONFRAY, 2007, p. XV), contra o qual somente um verdadeiro ateísmo pode se

36 contrapor. Acerca dessa metamorfose na qual Deus cede lugar ao Homem e ao humanitarismo, escreve Stirner:

Aquilo que foi tirado a Deus foi dado ao homem, e o poder do humanitarismo aumentou na proporção em que a devoção perdeu terreno: „o homem‟ é o deus de hoje, e, em vez do velho temor de Deus, temos aí o temor do homem. Mas, como o homem apenas representa um outro ser supremo, o que de fato se passou foi apenas uma metamorfose do ser supremo, sendo o temor do homem apenas, uma nova forma do temor de Deus. Os nossos ateus são pessoas devotas. (STIRNER, 2004, p. 148)

Segundo Stirner, o inimigo mortal do fanático, do possesso é o egoísta, é o indivíduo singular, é o “ser humano que, em vez de viver para uma idéia, ou seja, uma causa espiritual, sacrificando a ela os seus interesses pessoais, serve estes últimos. Um bom patriota, por exemplo, sacrifica-se no altar da pátria” (STIRNER, 2004, p. 32). A filosofia de Stirner se impõe como reação a esse estado intelectual e espiritual no qual seu tempo vivia. Além da tratar da querela fé x razão, que Stirner encapsula sob a rubrica da manifestação bélica do espírito, nosso filósofo volta sua pena contra os livres, contra os apologistas do liberalismo em suas mais diversas frentes. Nesse registro, escreve: “os livres são apenas os mais modernos e os moderníssimos entre os „modernos‟, e atribuímos-lhes uma seção própria apenas porque fazem parte do nosso presente, e agora a nossa atenção concentrar-se-á toda nesse presente‟. (STIRNER, 2004, p. 82). A partir daí, são desferidas contra o liberalismo político, social e humano as mais contundentes críticas. Stirner afirma que o advento da Revolução Francesa mais não fez do que substituir a soberania pessoal pela impessoal, espectral, da lei, da moralidade, da racionalidade pré-determinada, e que, no entorno a esse “novo monarca” (STIRNER, 2004, p. 85), medravam os mais diferentes possessos a gritar por liberdade. O liberal político, representado pelos burgueses vitoriosos da Revolução Francesa, em sua ânsia por afastar quaisquer resquícios dos “privilégios, das discriminações pessoais, das distinções de classe” (STIRNER, 2004, p. 85)

37 vigentes no antigo regime, espicaçavam qualquer manifestação de vontade oriunda de uma individualidade, de uma particularidade singular e única. Segundo Stirner, o burguês revolucionário não passava de um “protestante político, porque entrou numa religação direta com o seu deus, o Estado” (STIRNER, 2004, p. 87) e que, valendo-se deste, elevou exponencialmente o poder de opressão à multiformidade existencial das singularidades, uma vez que essas contradiziam o dogma revolucionário da igualdade. Mas a dinâmica do espírito não cessa. Do liberal político, idólatra do Estado e da igualdade, surge o liberal social, espírito encarnado nos socialistas e comunistas, que argumentam que a igualdade perante a lei, perante à nação (princípios conquistados com a Revolução Francesa) não alcança a liberdade do ter. A posse, assim (segundo essa categoria de possessos), legitimaria a sujeição, logo, propõe-se a abolição da propriedade, do ter que distingue. A propriedade deve ser retirada dos indivíduos e entregue à sociedade para que a igualdade efetivamente se estabeleça. Abolindo-se a propriedade privada e igualando os homens no entorno ao novo núcleo ontológico erigido pelo liberal social, a saber, o trabalho, mais uma vez o indivíduo se vê enredado por uma idéia fixa. Contra os comunistas, escreve Stirner:

Quando o comunista vê em ti o ser humano, o irmão, esse é apenas o lado dominical do comunismo. Do ponto de vista do „dia útil‟, ele não te vê como ser humano sem mais, mas antes como trabalhador humano, ou homem trabalhador. O primeiro ponto de vista denota o princípio liberal, no segundo esconde-se o iliberalismo. Se tu fosses um „preguiçoso‟, ele não iria desconhecer o homem em ti, mas procuraria purificá-lo da preguiça, para te converter à crença de que o trabalho é „o destino e a vocação‟ de ser humano. (SITRNER, 2004, pg. 100)

E assim surge mais uma idéia a qual o indivíduo deve se amoldar, a idéia de Homem, único caminho mediante o qual se adquirem os chamados Direitos Humanos, uma vez que tudo o que foge a essa regra é da ordem da inumanidade, da monstruosidade, do egoísmo, categorias às quais a singularidade se vê forçosamente enquadrada.

38 O liberalismo social, pretendendo suplantar a concorrência e a contingência inerente ao Estado burguês, propõe uma sociedade de trabalhadores, todos uniformemente devotos ao novo Estado, recebendo compulsoriamente deste os bens materiais e espirituais humanizadores. A recusa a esses bens, sagrados no ideário comunista, seria como que uma afronta egoística e herética a essa nova sacralidade imposta por esse novo soberano, pois "a sociedade que tudo nos dá é uma nova dominadora, um novo espectro, um novo 'ser supremo' que nos obriga a 'prestar-lhe serviço'" (STIRNER, 2004, p. 102). Mas é com o liberalismo humano, ou com o chamado humanismo, que Stirner conclui o quadro espectral de seu tempo. É denunciando o caráter fanático desse tipo de liberal que Stirner conclui a primeira parte de seu livro, destinada explicitamente a desnudar a forma com a qual o “velho „Glória a Deus...‟ corresponde o moderno: „Glória ao Homem...‟” (STIRNER, 2004, p. 110), relegando às singularidades uma existência intersticial, subterrânea, clandestina. Segundo Stirner, o liberalismo humano, em afronta ao liberal social, notadamente ao comunista, afirma que o trabalhador é materialista e egoísta. Nada faz pela humanidade, todo o seu trabalho destina-se ao seu egoísmo, ao seu próprio bem estar. O liberalismo humano acusa tanto ao burguês como ao trabalhador comunista: ambos são egoístas, aquele usando o Estado, este usando a sociedade. Desta maneira, o liberalismo humano proporia uma causa puramente humana, destituída de interesses nacionais, pessoais, comezinhos. O trabalhador nada faz pela humanidade, uma vez que seu trabalho tem por fim atender a necessidades pessoais, egoístas. Sob esta concepção, o trabalho só é virtuoso para o liberalismo humano quando assemelhado ao feito de Gutenberg (STIRNER, 2004, p. 102), pois seu labor beneficiou a humanidade inteira, é um trabalho eterno e imperecível. O liberalismo humano reivindica o desinteresse pessoal e o labor pela humanidade. O interesse deve ser teórico, deve ser pela idéia de homem, pois o liberal humanista detesta tudo o que distingue. Deve-se ser puramente humano e nada mais. Deve-se almejar ser um homem livre, pois a humanidade é a essência do homem. Stirner refuta o liberalismo humanista afirmando a impossibilidade de se tornar homem e nada mais pelo simples fato de se ser, sempre, uma

39 singularidade única, concreta, atravessada e alimentada por seu contexto, por suas filiações, por sua fisiologia, inclinações, vontades, etc. Em outros termos, o conceito de homem é uma idéia universal que não se adaptará simetricamente, nunca, ao indivíduo particular. E é na esteira dessa individualidade, dessa unicidade, dessa concretude que escapa a conceituações, a saber, é no encalço do Eu, que encerramos nosso subcapítulo acerca dos possessos com mais uma citação de Stirner, esta dando conta do advento do Único, que é resultante, aos olhos de nosso filósofo, desse processo por meio do qual a modernidade, tendo o espírito como verdade, logrará atingir a não-verdade que fará resplandecer a diferença em detrimento da uniformidade:

Como podereis vós ser verdadeiramente únicos enquanto existir entre vós um laço social que seja? Se vos ligais, não podeis existir de forma independente, se um „laço‟ vos une, só a dois sereis alguma coisa, e os vossos doze fazem uma dúzia, os vossos milhares um povo, os vossos milhões a humanidade. „Só se fordes humanos podereis conviver como homens, tal como só vos podereis entender como patriotas se fordes patrióticos!‟ Pois é, mas eu respondo: Só se fordes únicos podereis relacionar-vos com os outros na qualidade daquilo que sois.

40

O ÚNICO

“O homem morre menos dentro de um campo de concentração do que como alguém que passa seu tempo a abafar as perspectivas inovadoras”. (ONFRAY, 2001, p. 157)

Na seção anterior abordamos a crítica que Stirner, pensando seu tempo, lança sobre as mais diversas manifestações do liberalismo. Segundo nosso autor, os liberais políticos (burguesia revolucionária), sociais (comunistas) e humanos (humanistas) mais não são do que conseqüência do impulso autoafirmador, de autoassenhoramento imanente ao indivíduo. Porém, este impulso, imerso na tônica dos liberais, é manifesto sob a égide de um inercial, adormecido e hipócrita (na medida em que não se assume) egoísmo. Stirner entende que o ideal de liberdade proposto pelos liberalistas de seu tempo é da ordem da renúncia, da privação, do desembaraço de determinadas e localizáveis forças extrínsecas31. Neste sentido, afirma Stirner: “O cidadão burguês quer ser livre não da burguesia, mas da dominação da burocracia, da arbitrariedade dos príncipes e coisas semelhantes” (STIRNER, 2004, p. 130). Por seu turno, o liberal social visava “libertar-nos desta terrível desigualdade” (STIRNER, 2004, p. 130). Aqui nos cabe pontuar que, para Stirner, no registro dessa noção de liberdade enquanto renúncia, repousa uma dinâmica de aprofundamento da sujeição, pois “o desejo de uma determinada liberdade inclui sempre a intenção de estabelecer uma nova dominação” (STIRNER, 2004, p. 130). Essa nova dominação, para Stirner, é inerente à liberdade reivindicada em sua forma negativa (isto é, no sentido de se ver liberto de algo), uma vez que o liberal, sempre, pontifica a existência de uma essência existencial justificadora, legitimadora da liberdade pela qual se anseia. Stirner, de forma genérica, explica: “em ti, ele [o liberal] não te vê a ti, mas o gênero, não Fulano ou Beltrano, mas o homem, não o indivíduo real ou único, mas apenas a tua essência ou o teu conceito, não o corpo, mas o espírito” (STIRNER, 2004, p. 31

Mais tarde, com Nietzsche, esse ímpeto pela liberdade de algo transformar-se-á em niilismo reativo.

41 139). Essa subsunção que se impõe à singularidade para que esta faça jus à liberdade reivindicada, para Stirner, é deletéria, é nociva ao Eu, que se vê, aí, obrigado a fazer de uma de suas qualidades (a humanidade, a religiosidade, a filiação política, filosófica, etc) a totalidade de seu ser:

Para dizê-lo em poucas palavras: o sermos seres humanos é uma ínfima parte de nós, e só tem importância na medida em que é uma das nossas qualidades, ou seja, nossa propriedade. É certo que eu sou um homem entre homens, do mesmo modo que sou, por exemplo, um ser vivo, portanto animal, ou europeu, berlinense, etc.; mas quem me quiser ver apenas como homem ou berlinense está a dar atenção a aspectos que me são indiferentes. E por quê? Porque apenas dá atenção a uma das minhas qualidades, e não a mim. (STIRNER, 2004, p. 140)

Como se vê, essa liberdade, para Stirner, é eminentemente negativa, é uma liberdade da subtração, da redução e não da abundancia, da expansão. Essa liberdade, segundo nosso autor, “não tem conteúdo” (STIRNER, 2004, p. 127), é uma liberdade “que não te dá nada” (STIRNER, 2004, p. 127) e que, além disso, reduz a multiplicidade constituinte do indivíduo a apenas um de seus aspectos. A liberdade reivindicada, nas palavras de Stirner, “Em vez de me aceitar como eu sou, olha apenas para minha propriedade, as minhas qualidades, e faz comigo um pacto de honra apenas por amor... da minha propriedade; é como se casasse com o que eu tenho, e não com o que eu sou” (2004, p. 140). Contra esse ideal de liberdade que, segundo Stirner, é da ordem do sagrado para os homens de seu tempo, nosso filósofo interporá o conceito positivo de “eu-proprietário” (STIRNER, 2004, p. 127) que, apropriando-se de tudo o que lhe diz respeito, deita abaixo a liberdade enquanto dogma, enquanto obrigação moral da renúncia. Stirner explica:

Não tenho nada contra a liberdade, mas desejo que tenhas mais do que liberdade; o que tu precisas, não é apenas de te libertar do que não queres, mas também de ter aquilo que queres, ser, não apenas „homem livre‟, mas também „eu-proprietário‟ (Eigner). (STIRNER, 2004, p. 127).

42 Tentando subverter a ordem interpretativa da realidade que, segundo Stirner, faz da liberdade uma bandeira dogmática e de fuga, nosso autor propõe a atividade do Eu, a afirmação e a aceitação de sua singularidade concreta e única, pois, o que ganham “as ovelhas com o fato de ninguém lhes tolher a liberdade de expressão? Continuam a balir.” (STIRNER, 2004, p. 136). O eu-proprietário, de modo diverso, não visa a emancipação concedida, mas a autoliberação. O eu-proprietário, neste sentido, é aquele que toma de assalto tudo o que lhe diz respeito, inclusive a si próprio. Para Stirner, a liberdade é uma idéia que, impropriamente, se substancializou e se alienou de seus criadores. O liberal, ao bradar dogmaticamente por liberdade, nada mais faz do que reivindicar “mercadoria roubada” (STIRNER, 2004, p. 136) que, uma vez concedida não confere ao recipiente o estatuto da autonomia: “Aquele que é libertado é apenas um escravo liberto, um libertinus, um cão que arrasta consigo um pedaço da corrente: é um escravo disfarçado de homem livre” (STIRNER, 2004, p. 136). O eu-proprietário, diversamente, conquista sua autonomia apropriando-se, como bem lhe aprouver, de tudo o que lhe diz respeito, inclusive de si próprio, uma vez que:

A liberdade vive apenas no reino dos sonhos! Pelo contrário, a singularidade-do-próprio é toda a minha essência e a minha existência, sou eu mesmo. Eu sou livre de tudo aquilo de que me desembaracei, e proprietário daquilo que tenho em meu poder, ou de que sou senhor. Meu próprio (mein eigen), sou-o em cada momento e em todas as circunstâncias, desde que saiba ter-me e não me entregar aos outros. (STIRNER, 2004, p. 128 – 129)

Visando elucidar essa noção de liberdade fazendo-a se contrapor ao que comumente se entende por seu contrário, ou seja, a escravidão, Stirner assim ilustra o que entende pelos conceitos de Eu, de Meu e de singularidade-dopróprio:

Os grilhões da realidade deixam a cada momento marcas profundas na minha carne. Mas eu continuo a ser meu. Escravo de um senhor, só penso em mim e na minha vantagem; é certo que as suas pancadas me atingem, eu não estou livre delas; mas só as suporto

43 para beneficio meu, por exemplo para o enganar e o ter na mão sob a aparência da paciência, ou também para que a minha resistência não faça piorar mais a minha situação. Mas, como não me perco de vista, nem a mim nem ao meu interesse, não deixo passar a próxima boa oportunidade para pisar o senhor de escravos. (STIRNER, 2004, p. 129)

Dessa maneira, mesmo sob o jugo de uma escravidão que, segundo Stirner, faria o liberal balir por uma liberdade abstrata e dogmática capaz, inclusive, de fazer aumentar a sujeição32, nosso filósofo faz reluzir a concretude do Eu que, mesmo submetido a um déspota ou a um contexto opressivo, sabe que possui-se a si próprio, pois “são os meus ossos que gemem sob a tortura, são as minhas fibras que tremem sob as pancadas, e eu gemo porque o meu corpo geme. O fato de eu suspirar e tremer mostra que estou ainda em mim, que sou o meu próprio” (STIRNER, 2004, p. 129). O eu-proprietário stirneriano busca relacionar-se com o real não de forma reativa, biliosa, a bradar por liberdade, mas afirma sua condição a partir do momento em que se aceita como Único e, a partir desse instante, busca expandir sua existência de forma autônoma, discernida por si próprio. Stirner parece tentar jogar luz a essa imediaticidade instintiva, consubstancial à existência humana. Para nosso filósofo, não existe a necessidade de mediação extrínseca entre o Eu e o seu significado, pois essa significação, ressaltando apenas um ou alguns dos caracteres do indivíduo, exige a anulação de todas as outras características do sujeito, cindindo-o na completude de sua existência a um só tempo singular e multifacetada. Em outras palavras, não é preciso o estabelecimento (e a consequente adesão) conceitual do que seja o Homem, o Homem livre, uma vez que essa tarefa é exemplarmente empreendida pelo instante vivido. Lançando mão do que é seu, o eu-proprietário, unindo seus instintos, valores morais, conhecimentos científicos, crenças religiosas, etc, mas todos esses apreendidos como propriedades suas (e não como entidades extrínsecas, classificáveis entre superiores e inferiores, desagregáveis) é capaz de solapar seus grilhões 32

O acréscimo de sujeição pode se dar de forma dupla: intensificando a ação do dominador ou através do estabelecimento de novos entraves, como, por exemplo, o dos dogmas morais contra a arbitrariedade dos poderosos.

44 tomando posse de si próprio, fazendo, quando necessário, agenciamentos pontuais visando a consecução de seus objetivos. Em dois pontos distintos de seu livro, podemos, inclusive, vislumbrar uma estratégia de atuação e uma concepção de subjetividade bastante cara aos filósofos franceses herdeiros do legado nietzschiano33. Leiamos: “Ao rochedo que me impede o caminho, contorno-o as vezes necessárias até ter pólvora que chegue para o fazer ir pelos ares” (2004, p. 135). Aqui, Stirner, não obstante a celebração que faz da individualidade, simultaneamente compreende que o isolamento, o solipsismo fragiliza demais o indivíduo perante a turba possessa e chega, num ponto adiante de seu texto, a falar num “clube de egoístas” (STIRNER, 2004, p. 144). Em outra localidade do livro, exalta: “o „egoísmo‟ apela ao júbilo de serdes vós próprios, ao prazer de vós” (STIRNER, 2004, p. 133). Na senda desse núcleo ontológico da realidade, a saber, do Eu, do Único, alheio às insígnias que o tentam rotular e hierarquizar perante as alteridades, talvez seja elucidativo evocarmos Michel Onfray que, em seu livro “A política do rebelde”34 cita um escrito de Robert Antelme:

Sobre a SS, Robert Antelme escreve: „Ela pode matar um homem, mas não pode transformá-lo em outra coisa‟. Aí está a primeira verdade descoberta em um campo de concentração, ela é de natureza ontológica: a existência de uma única espécie, e a natureza essencial do humano dentro do homem, cavilhada ao corpo, visceralmente associada à carne, ao esqueleto, à pele e aos ossos, àquilo que resta de um ser, contanto que um suspiro, mesmo frágil, o anime ainda. A verdade de um ser é seu próprio corpo. (ONFRAY, 2001, p. 37)

A originalidade desse conceito stirneriano de Único repousa, ao nosso ver, nessa imediaticidade com a qual um indivíduo se apreende. Contra as definições de Homem (supostamente essenciais), Stirner reivindica a simplicidade do existir num corpo que sente e que se sente. Contra os dualismos platônico-cristãos, Stirner celebra a reconciliação do corpo com a alma através da tomada de posse de si próprio. É da existência que emana a 33 34

Como, por exemplo, Foucault, Deleuze e Michel Onfray. Objeto da segunda parte deste trabalho.

45 essência, e não o contrário. A empresa de Stirner se torna, aos nossos olhos, brilhante na medida em que rompe com uma tradição interpretativa da realidade que, objetivando liberar-se do negativo, engendrou uma trama significacional que acabou por rotular e impedir a expansão criativa das singularidades (tidas historicamente como do âmbito do negativo, da exceção). Vista de nossos dias, acreditamos que a obra de Stirner empreende aquilo que Nietzsche chamará posteriormente de transvaloração de valores. Explicamos: se a racionalidade e a ética ocidental, visando esconjurar o negativo, o bárbaro, o inumano, o monstruoso apostou todas as suas fichas no gregarismo, nas conjunções, nos encadeamentos, nas segmentaridades e nas semelhanças, Stirner propõe o contrário. O perigo, para nosso filósofo, repousa justamente na homogeneização, no nivelamento das subjetividades, uma vez que a estas atrela-se o risco constante da elevação exponencial de qualquer ideal (de onde emanam as possessões), por mais absurdo que seja. À luz dos totalitarismos que o início do século XX conheceu, com a adesão em massa de milhões de possessos a teologias políticas absurdas, não nos furtamos a afirmar peremptoriamente que Stirner esteve certo...

Assim, o Único de Stirner se nos afigura como uma ode à diferença, ao singular, à autocriação da subjetividade. E neste registro, Stirner chega a escrever que toda genialidade é obra de uma originalidade, de uma diferença singular que, quando ausente, engendra apenas o mesmo, a repetição, jamais o novo (2004, p. 133). Por fim, fiando-nos na interpretação de Miranda, acreditamos que a importância da obra de Stirner repousa não apenas na novidade de sua proposta, mas também na reverberação clandestina que efetua. Se, por conta da cronologia, fica difícil atribuir correspondência entre Stirner e Kierkegaard, é inegável que seu pensamento pode ser facilmente correlacionado às filosofias da existência que advirão na Europa em finais do século XIX. De Nietzsche à Heidegger, de Sartre à Foucault, e deste à Deleuze, é fato que o existir como singularidade circunstanciada e única dará a tônica de grande parte do pensamento filosófico ocidental pós Max Stirner. E, como tributário dessa nova forma de conceber o real, apresentamos na parte seguinte deste trabalho

46 Michel Onfray, para quem Stirner, explicitamente, foi “viático” (ONFRAY, 2001, p. 14) no erigir de sua filosofia.

CAPÍTULO 2 MICHEL ONFRAY

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BREVE PERFIL BIOGRÁFICO

“A partir do momento em que vê a luz do mundo, um ser humano busca encontrar-se e conquistar-se a si próprio no meio da confusão em que, com tudo o que há nesse mundo, se vê lançado sem orientação”. (STIRNER, 2004, p. 15)

Biografaremos Michel Onfray diversamente de como o fizemos com Max Stirner. E o faremos assim por duas razões principais: em primeiro lugar, por uma situação que se nos impõe: Michel Onfray é contemporâneo nosso, vive em nossos dias; e isto é agravado pelo fato de ser francês, ou seja, as fontes disponíveis em nosso idioma escasseiam-se diante do autor do presente trabalho. De seus cerca de 50 livros já publicados, apenas 10 encontram-se hoje disponíveis em língua portuguesa. No que diz respeito ao trabalho de comentadores da obra de Michel Onfray, dispomos apenas de dois livros em nossa língua35. A segunda razão pela qual a biografia de Michel Onfray será feita de modo diverso da de Max Stirner é menos imposta por fatores extrínsecos do que pela própria natureza do pensamento de Onfray. Em verdade, acreditamos que no âmbito de um trabalho que pretende apresentar alguns aspectos do pensamento de um autor como Michel Onfray, os obstáculos idiomáticos mencionados acima podem se apresentar como uma oportunidade benfazeja. Entendemos que este subcapítulo, intitulado de Breve Perfil Biográfico, diante da ausência de grandes quantidades de informação acerca da vida do nosso autor, pode dar ensejo, já de largada, à apreensão de elementos não pouco importantes do pensamento de Michel Onfray. Isso não significa, entretanto, que descuraremos da importância que a explicitação de dados biográficos básicos representa para um trabalho acadêmico-científico, mas julgaríamos estar desperdiçando o presente subcapítulo se não nos aproveitássemos das características inerentes a ele para pontuar coisas diversas das quais se costuma pontuar numa introdução biográfica. Em suma, isso se dá pelo fato de 35

Tratam-se das obras de Sébastien Charles e de João da Mata, devidamente relacionadas nas referências bibliográficas deste trabalho.

49 estarmos tratando de um filósofo materialista para quem “toda ontologia supõe a fisiologia que a precede” (ONFRAY, 2010, p. 15), e, ainda, que “toda filosofia se reduz à confissão de um corpo, à autobiografia de um ser que sofre” (ONFRAY, 2010, p. 15). Portanto, se para o materialismo hedonista de Michel Onfray a parturição do Ser se processa na carne, se o corpo do filósofo é um “cadinho em que se elaboram experiências existenciais chamadas, mais tarde, a se configurar em estruturas lógicas, rigorosas” (ONFRAY, 1999, p. 29), se o “hápax existencial36 é o kairós de toda experiência filosófica” (ONFRAY, 2010, p. 16), faz-se necessário, então, um ajuste fino nas lentes que biografam: olhemos, sim, as protuberâncias dos eventos monumentais de uma vida (data de nascimento, filiação familiar, escolarização, casamento, profissão, vida acadêmica, etc), mas voltemos o olhar também para as microcravações da realidade na carne do ser que pensa. A título de breve exposição acerca da forma como Michel Onfray entende uma biografia de filósofo, apresentamos a seguir dois exemplos que o próprio nos oferece. Ao primeiro caso: seu corpo, embora gordo, parece ter sido talhado por Hefestos; com efeito, seus pés não conhecem o frio, mesmo quando descalços durante horas sobre o gelo; o sono e o álcool parecem não afetá-lo; seus tímpanos excepcionais são vibrados pela própria divindade daimônica; seus amigos, entre admirados e subjugados, não acreditam haver para ele um rival do mesmo jaez. Ora, esse “corpo tão bem dotado só pode conter um espírito tremendo” (ONFRAY, 1999, p. 31). Falamos aqui, obviamente, de Sócrates, “a encarnação emblemática do corpo filosófico” (ONFRAY, 1999, p. 30), a “máquina na qual se efetuam as cristalizações destinadas a se tornar pensamentos singulares” (ONFRAY, 1999, p. 36). Em tempos de exultação da areté, dos valores aristocráticos, “não será de admirar que a filosofia eleja domicílio nesse corpo de elite” (ONFRAY, 1999, p. 32). Ao segundo exemplo: a origem está na visão de um bêbado, de um mendigo embriagado que perambula pelas ruas de Milão, cambaleante, sim, mas alegre, esfuziante. Os delírios dionisíacos do transeunte fazem inveja ao

36

Segundo Michel Onfray, “experiências radicais e fundadoras ao longo das quais do corpo surgem iluminações, êxtases, visões que geram revelações e conversões que se configuram em concepções do mundo coerentes e estruturadas” (1999, p. 29).

50 professor de retórica que, desejante de “não mais sofrer, não mais conhecer preocupações” (ONFRAY, 1999, p. 36), quererá, para si e para os seus, “alcançar a alegria segura em que aquele mendigo nos precedera e que talvez nunca atingíssemos” (ONFRAY, 1999, p. 37). A inveja somatiza: de dores de dente a dores no peito, das insônias à perda da voz, ele se vê corroído por dentro, vê-se em guerra contra si próprio. Mas a redenção não tardará: no fundo de um jardim em Milão, a Graça visita o homem: “lágrimas, torrentes de lágrimas, gritos de rasgar a alma, voz vinda do além – são as próprias palavras das Confissões – ao que se segue, evidentemente, a conversão ao catolicismo” (ONFRAY, 1999, p. 16). Escusado informar: aqui falamos do futuro Doutor da Igreja, do famoso Bispo de Hipona, falamos de Santo Agostinho.

Quase todos os livros de Michel Onfray são iniciados com um relato autobiográfico seu. Em todos esses relatos, vemos a tentativa de captar a relação que a minúcia, a ínfima excitação (afetiva, material, mnemônica) exerce sobre sua carne, sobre sua história pessoal, suas preferências, seus afetos, seu temperamento, suas tábuas axiológicas e, consequentemente, sobre seu pensamento. Como produto dessas relações, a obra. Alguns exemplos: No livro “O ventre dos filósofos”, para o qual Onfray deu o sugestivo subtítulo de “crítica da razão dietética” (livro no qual cunhará o neologismo “Diet‟ética”37),

nosso

filósofo,

antes

de

abordar

as

rígidas

opiniões

gastronômicas de Rousseau (“a apologia das raízes é digna do fanático espartano”

38

), as relações que Nietzsche havia encontrado entre as salsichas

e a sisudez filistina de seus conterrâneos (“a cozinha alemã é, sem dúvida, das mais espessas e indigestas”

39

) e a noção sartriana de que alimentar-se é uma

atividade de tampar um buraco (Sartre “faz do buraco a falta por excelência que exige seu preenchimento”

40

), Michel Onfray, já na abertura desse livro,

explicita a importância de suas memórias gastronômicas na leitura que faz de

37

Cf. ONFRAY, 1990, p. 19: “[...] uma sapiência gustativa”. Cabe lembrar que a epígrafe que abre este livro de Onfray é de Nietzsche. Diz o seguinte: “Existe uma questão que me interessa especialmente e da qual depende a „salvação da humanidade‟, muito mais do que qualquer sutileza de teólogo: é a questão da alimentação”; 38 Ibidem, p. 41. 39 Ibidem, p. 99. 40 Ibidem, p. 120.

51 sua infância41: “Toda culinária revela um corpo, um estilo ou até um universo: quando na infância tive que aprender o que eram a pobreza e o fim de mês de meus pais, os ovos e as batatas se encarregaram da lição” (ONFRAY, 1999, p. 09). Em outro livro, no Tratado de ateologia, Michel Onfray expõe no prefácio suas experiências numa viagem que fez ao deserto mauritano e, como que preparando-se para avançar na escritura dos primeiros capítulos, relata: “Céu branco e abrasador, árvores calcinadas e raras, moitas de espinhos roladas pelos ventos arenosos sobre extensões infinitas de areia alaranjada, o espetáculo instala-me no ambiente geográfico – portanto mental – do Corão” (ONFRAY, 1999, p. 13). Um pouco mais adiante, dispara: “O monoteísmo saía da areia” (ONFRAY, 1999, p. 13). Disso fazemos decorrer, portanto, que a apreensão de uma filosofia não pode prescindir da tentativa de uma compreensão minuciosa dos múltiplos e às vezes microscópicos fatores biográficos implicados na produção de uma obra filosófica. Se, conforme o próprio Onfray afirma, “filosofar é tornar viável e visível sua própria existência quando nada é dado e tudo resta a construir” (ONFRAY, 1999, p. 18), não podemos, de forma alguma, fazer aqui uma abordagem do texto de Onfray como se o mesmo “pairasse no éter, entre duas águas metafísicas, sem raízes, sem relações com o mundo real e concreto” (ONFRAY, 1999, p. 18). É dessa maneira que justificamos essa heterodoxa maneira de tratar a seção do trabalho destinada à biografia do autor. Aliando as considerações acima e o foco deste trabalho, em específico no que toca a Michel Onfray42, cumpre-nos no presente subcapítulo, portanto, no mínimo discorrer sobre o que entendemos como influências essenciais no engendramento do livro A política do rebelde. Assim, visando atender às exigências inerentes ao trabalho acadêmico e, ainda, à tentativa de nos mantermos fiéis ao pensamento do autor, nos valeremos de outras fontes e de outras práticas discursivas nessa tarefa de biografação de Michel Onfray, perseguindo sempre seus próprios princípios. Se no livro “A escultura de si” Michel Onfray elabora sua proposta de vinculação da ética com a estética, ou, em outros termos, da moral com o 41 42

Sempre muito recorrente em seus livros. Ou seja, tendo em mira a concepção de subjetividade presente no livro A política do rebelde.

52 prazer de ser e de esculpir-se, no livro “A política do rebelde” nosso autor amplia essa fórmula à sociedade (ONFRAY, 2006, p. 183), convidando seus leitores a apreciarem a dimensão política de suas reflexões acerca do prazer. Neste livro, Onfray, além de refletir o que seria, no século XXI, uma filosofia libertária tão pujante quanto as propostas no século XIX (mas levando em consideração “duas guerras mundiais, o holocausto de milhões de judeus, os campos de concentração do marxismo-leninismo, as metamorfoses do capitalismo43”), propõe uma postura revolucionária aos indivíduos, mas não à maneira das transformações engendradas por grupos, por rebanhos radicais nos moldes marxistas. Diversamente, Onfray não almeja uma revolução que solape e faça desaparecer o Estado (que, ao contrário, afirma que deve ser mantido e reforçado44), a propriedade privada (que considera útil e necessária45) ou as classes sociais (uma vez que afirma-se “a favor da diferença metafísica, mas não da desigualdade social”46). Propositivamente, nosso filósofo reivindica uma ética hedonista e anárquica que se efetiva no âmbito das mônadas individuais que repercutirá, como conseqüência, numa “ética política, uma ética na, por e para a política” (ONFRAY, 2006, p. 185). Em suma, o que Onfray preconiza é uma resistência individual generalizada ante uma ordem na qual o capitalismo planetário, cada vez mais, atenta contra o indivíduo, convidando-o a se tornar um sujeito-apêndice de uma máquina social de apetite voraz. Essas propostas de Michel Onfray se originam, como tudo em sua obra, de sua biografia singular, ou, para usar seus próprios termos, de seus cabedais mnemônicos gravados na carne. Leiamos as primeiras palavras do livro:

Eu conheço minha fibra anarquista desde os meus tenros anos, indistintamente, de modo confuso e desordenado, sem que eu tenha podido colocar um nome nessa sensibilidade proveniente das vísceras e da alma. Desde o orfanato salesiano, para onde fui mandado pelos meus pais quando tinha dez anos, desde a primeira mão levantada contra mim, desde os meus primeiros vexames infligidos pelos padres, desde as humilhações contemporâneas da 43

ONFRAY, 2001, p. 14. Cf. Onfray, 2006, p. 184. 45 Idem. 46 Ibidem. 44

53 minha infância, mais tarde, na fábrica onde trabalhei por algumas semanas, depois na escola e no quartel, eu encontrei a revolta, conheci a insubmissão. (ONFRAY, 2001, p. 13)

Michel Onfray possui hoje 51 anos de idade. Nasceu em 1º de janeiro de 1959 em uma aldeia no Orne47, um departamento da Baixa Normandia48, região administrativa francesa localizada a noroeste do país. A infância e a juventude de Michel Onfray, como o próprio dá a ver no livro “A política do rebelde”, parecem ser os vetores fundamentais da marca anarquista que perpassa esse texto. Com efeito, das surras da mãe à letargia do pai, das humilhações no orfanato salesiano à semi-escravidão vivida numa fábrica de queijo, nosso filósofo fará nascer um texto que se apresentará como uma legítima prestação de contas com esse passado sombrio, além de, também, se apresentar como uma tentativa de esconjurar a possibilidade de ver esse passado sombrio universalizar-se nas sociedades contemporâneas. Podemos iniciar a explanação desse passado pela dubiedade havida entre o caráter paradisíaco que é, para uma criança, crescer em uma aldeia, em meio à natureza, “em contato direto com a matéria do mundo” (ONFRAY, 2010, p. 13) e o fato de ter convivido com uma mãe sombria, violenta e inconstante. Sobre a aldeia, escreve Onfray:

Antes dos dez anos, minha vida se passa na natureza da minha aldeia natal, em Chambois: a água sem graça do rio onde pesco vairões, o arvoredo onde apanho amoras, os sabugueiros de que tiro o material para confeccionar as antigas flautas dos pastores gregos, as trilhas no mato, as florestas rumorejantes, o cheiro das lavouras, os céus de pintores, as vibrações do vento no alto dos trigais, o perfume das colheitas, o vôo das abelhas, a correria dos gatos bravios. Vivi feliz nesses tempos virgilianos. (2010, p. 13)

Já a mãe, para nosso autor, é a dor contemporânea a esses tempos: “Não fui uma criança insuportável, mas ela não me suportava” (ONFRAY, 2010, p. 14). A mãe de Michel Onfray, como acontecera com o próprio aos dez anos

47 48

Equivalente a cidade. Equivalente a Estado.

54 de idade, também foi abandonada pelos pais: “depositada num caixote à porta de uma igreja” (ONFRAY, 2010, p. 14). “Batida, detestada, abandonada” (ONFRAY, 2010, p. 14) essa mãe, para Michel Onfray, é levada à condição de algoz do próprio filho pela facticidade de ter sido vitimada pela “mecânica cega que envolve, sem que eles queiram, esses atores descerebrados na loucura que os destrói” (ONFRAY, 2010, p. 15). Mais adiante, Onfray esclarece o funcionamento dessa engrenagem: “Uma mãe bate em seu filho como uma telha cai do telhado; o vento não é culpado” (ONFRAY, 2010, p. 15). E em outro ponto: “A força cega que move os planetas conduz num mesmo movimento inocente os seres alimentados com essas energias negras” (ONFRAY, 2010, p. 15). Não será de admirar que essa leitura leve nosso autor a identificar processo semelhante agindo no seio da sociedade capitalista: para Onfray, a política é o âmbito por excelência da ação de indivíduos que atuam contra essas forças cegas que aniquilam a capacidade de discernimento e acoplam os indivíduos em engrenagens sociais assemelhadas às energias negras que movem o mundo instintual. Para Onfray, o rebelde é aquele que, aliando a resolução à energia, impõe a raridade e a nobreza contra a irracionalidade titânica das forças supostamente determinísticas do destino (ONFRAY, 1995, p. 12). Outros personagens desse período são seu pai e seu único irmão. Michel Onfray refere-se ao pai como alguém incapaz de enfrentar a violência da mãe: “sua natureza plácida, seu tropismo pacífico a qualquer preço fizeram dele um cúmplice, de resto massacrado pela brutalidade de um trabalho extenuante de operário agrícola e pelas misérias de uma vida de que nunca se queixava” (ONFRAY, 2010, p. 16). No cômodo único, de dezessete metros quadrados multiplicado por dois pavimentos, vivia também o irmão mais novo de Michel Onfray, ao qual este sempre se referirá com ternura: será o retrato do irmãozinho que dará alento ao internato de Onfray no orfanato de padres salesiano onde viverá por quatro anos. A propósito, discorramos agora sobre a experiência de Onfray nesse orfanato. “Morri aos dez anos de idade” (ONFRAY, 2010, p. 13): é assim que Michel Onfray inicia o relato desse período de quatro anos que será fundamental para o surgimento de sua obra. Em setembro de 1969, “numa bela tarde de outono, numa luz que dá vontade de eternidade” (ONFRAY, 2010, p.

55 13), Michel Onfray é mandado, num “estranho paradoxo” (ONFRAY, 2010, p. 15), por seus próprios pais, para um orfanato de padres salesianos chamado Giel, que, conforme nosso autor, era “uma mistura de gelo com fel” (ONFRAY, 2010, p. 16), local do qual Onfray diz trazer “na garganta soluços engolidos há séculos” (ONFRAY, 2010, p. 37). As primeiras impressões do orfanato arrebentam os nervos da criança de dez anos:

Meus pais foram embora. [...] Próxima volta ao vilarejo dentro de três semanas – e por algumas horas apenas. [...] A história do ser se escreve ali, com essa tinta existencial e essa carne que se furta, esse corpo que registra animalmente a solidão, o abandono, o isolamento, o fim do mundo. (ONFRAY, 2010, p. 19)

A estrutura do orfanato é maquinal e se organiza numa hierarquia estatuída e disseminada em forma piramidal pelos padres. De um lado “a raça dos homens, mais os aprendizes, os ajudantes, os durões, os resistentes, os fortes, os futuros artesãos autônomos, santuário profissional” (ONFRAY, 2010, p. 20); de outro, “a raça dos sub-homens, dos intelectuais, dos bobocas, dos mulherzinhas recitando suas declinações latinas, os célebres intelectuais de masculinidade duvidosa – o cúmulo naquele ninho de padres pedófilos...” (ONFRAY, 2010, p. 20, grifo do autor). O objetivo oficial do orfanato era profissionalizar os internados: “agricultor, padeiro, cozinheiro, salsicheiro” (ONFRAY, 2010, p. 20) ou, para os “mais moldáveis intelectualmente, o sacerdócio” (ONFRAY, 2010, p. 20). Nesse universo, Michel Onfray se via oprimido: amante da leitura, sentia-se acossado pelo “espírito salesiano [que] não gosta da inteligência, [onde] desconfia-se dos livros, teme-se o saber. O intelectual – segundo palavra recorrente de um padre orientador educacional – eis o inimigo...” (ONFRAY, 2010, p. 19). Se, por um lado, é possível vislumbramos a veia política de Michel Onfray se erigir de suas memórias dos determinismos inconscientes que agiam sobre o temperamento de sua mãe, por outro, o tratamento que o orfanato dispensava aos corpos e à inteligência pode se nos afigurar como uma gênese da proposta hedonista que nosso filósofo defende hoje. Segundo Michel

56 Onfray, “no orfanato, aprecia-se o corpo sujo e emporcalhado, mortificado, alquebrado, cansado, esgotado. Os padres não se destacam pela limpeza” (ONFRAY, 2010, p. 24). Em outro ponto de seu texto, após afirmar que (não obstante haver um fascínio dos padres pelas práticas esportivas) banhos no orfanato só aconteciam uma vez por semana; de forma sumária e contundente, Michel Onfray relata nesses termos como o corpo dos jovens era tratado pelo sistema disciplinar salesiano:

[...] violentos pontapés nas nádegas aplicados por um padre que solta toda a força da sua botina no traseiro de um aluno lerdo demais, capaz de deixar o cóccix do garoto doendo vários dias; tapas de deslocar o pescoço violentamente assentados na parte de trás da cabeça; agarramento brutal de um recalcitrante pelo braço e sacudida em regra, capaz de destroncar o ombro; bofetadas ministradas depois de ter tomado o cuidado de virar o anel; esses adultos afetivamente imaturos não conhecem sua força e só sabem se dirigir ao corpo de modo brutal. (ONFRAY, 2010, p. 30 – 31)

A pedofilia dos padres também afligiu o pequeno Onfray. Além da violência explícita contra os corpos, uma outra, mais sutil, mas não menos nociva às vítimas, povoava o cotidiano do orfanato: “mais temível que as pancadas, o arsenal disciplinar também conta com a lei do silêncio que cerca então a pederastia” (ONFRAY, 2010, p. 32). Onfray relatará diversos casos de pedofilia sofridos no interior de Giel, mas pontuaremos apenas três, a título de breve tentativa de ilustrar a origem do ateísmo que hoje perpassa a obra de nosso filósofo. Sobre o padre encarregado do ensino de trabalhos manuais, Onfray escreve:

A pretexto de ensinar o gesto exato, ele se instala atrás do menino, pede que ponha a mão sobre a sua a fim de memorizar o movimento e aproveita a ocasião, que faz durar bastante, para se esfregar nas costas e na bunda do garoto imprensado contra a bancada. O ritmo dos seus gestos corresponde ao de uma masturbação. (ONFRAY, 2010, p. 32)

57 Já o padre encarregado do ensino musical, nas aulas de flauta, no momento em que os alunos dedicam sua atenção à partitura e ao manejo do instrumento “acaricia a cabeça de um ou outro, passa a mão no pescoço, desliza-a de vez em quando dentro da gola, provocando às vezes o erro do músico aprendiz estrangulado pela camisa e aterrorizado pela bolinação” (ONFRAY, 2010, p. 33). Esse mesmo padre é responsável pelas atividades de canoagem e, no caso dos alunos que não sabem nadar, convida um por vez a navegar em sua canoa onde, enquanto a manobra habilmente “no meio dos caniços com sua vítima, durante o tempo que lhe é necessário para uma sexualidade com o garoto” (ONFRAY, 2010, p. 33), dá vazão tranqüila à sua pederastia inconfessa. A força dessas impressões na carne e na alma de Michel Onfray já se faz presente no momento mesmo em que são vividas. Ao relatar a sua primeira saída do orfanato para visitar a família, nosso filósofo desabafa:

Quando da minha primeira saída, vou com meu irmãozinho colher castanhas, e o ângelus que soa desencadeia em mim uma crise de lágrimas. Tenho a impressão de que estou sobrando e que melhor seria se não tivesse nascido. Experimento a facticidade consumindome subitamente por uma espécie de fogo negro que me pulveriza deixando como vestígio apenas um cheiro de morte. (ONFRAY, 2010, p. 38)

Aqui, mais uma vez nos vemos impelidos a pontuar mais uma provável relação dessas experiências com o que advirá mais tarde, em forma de filosofia hedonista, da pena de Michel Onfray. O que impede, ao nosso ver, nosso autor de ser tragado pela lógica perversa praticada no orfanato, o que o afasta dos tropismos que o impeliriam a se tornar um bom padre, ou, contra seu gosto, um padeiro, um marceneiro ou um esportista é a dor sentida na pele. É a imanência imperiosa da carne, é a sensibilidade doadora de sentido que o informam que, a despeito de todo negativo incidente sobre ele, ele ainda subsiste; ferido, envolto em dor e em lágrimas: mas ainda assim um indivíduo distinto daquilo tudo. O desfecho e as marcas que esse período de orfanato legaram a Michel Onfray, contudo, não podem ser contados por terceiros. É assim que hoje

58 nosso filósofo trata do assunto: “não quero mal a nenhuma daquelas pessoas. Ao contrário, tenho até dó de todas essas marionetes num palco grande demais para seus destinos miúdos” (ONFRAY, 2010, p. 39). E acrescenta:

Só crescemos efetivamente oferecendo aos que soltaram os cachorros contra nós, sem saber o que faziam, o gesto de paz necessário a uma vida além do ressentimento – que requer um enorme desperdício de energia. A magnanimidade é uma virtude de adulto. (ONFRAY, 2010, p. 39)

O período de quatro anos no orfanato é seguido de mais três em uma pensão em outro lugar (ONFRAY, 2010, p. 13). Num interstício de férias desta pensão, precisamente no dia 1º de julho de 1975, Michel Onfray ingressará numa outra experiência dolorosa, mas frutífera do ponto de vista da doação de conteúdo ao seu pensamento filosófico. No livro “A política do rebelde”, antes de abordar a dimensão política de seu materialismo hedonista, Onfray oferece um testemunho das “informações que atormentam primeiramente as vísceras, o corpo, a carne” (ONFRAY, 2010, p. 14). Nosso filósofo intentará, antes de propor suas idéias políticas, reencontrar “a época na qual se inscrevem nas rugas da alma as experiências geradoras de uma sensibilidade da qual nunca nos afastamos” (ONFRAY, 2010, p. 14), pois, para ele, não há “filosofia sem o romance autobiográfico que a torna possível” (ONFRAY, 2010, p. 14). Michel Onfray falará então de suas experiências dentro da fábrica de queijo (120 funcionários) em torno da qual sua aldeia (500 habitantes) subsistia. Nas palavras de Michel Onfray, dos habitantes do vilarejo, “todos tinham trabalhado, trabalhavam ou trabalhariam lá” (ONFRAY, 2010, p. 19). Essa fábrica, para nosso filósofo, representava um “Leviatã” (ONFRAY, 2010, p. 16) do qual, “por muito tempo, dessa baleia branca eu só conheci os lábios, a goela, ignorando tudo sobre seu ventre” (ONFRAY, 2010, p. 16). Desse animal, Onfray dirá que “não sabia que me encontraria diante de um dragão cujo ódio, desde aquela época, conservei em mim” (ONFRAY, 2010, p. 16). Ressaltando essas metáforas, informamos ao nosso leitor que elas perpassam quase que todo o texto de Onfray, que as usará para designar a dinâmica antipolítica representada pela lógica capitalista para a qual os indivíduos,

59 destituídos de sua humanidade, capacidade reflexiva, crítica, são tragados e convertidos em apêndices maquinais heterônomos. Essas são as palavras usadas por Onfray para designar suas primeiras impressões acerca do interior da fábrica:

Vi então a mucosa que revestia o ventre do animal, seus pulmões queimados e sujos, seu sistema digestivo onde se fomentavam as exalações e as putrefações de seu hálito, observei a carcaça da qual era feito, as paredes úmidas, encharcadas de uma transpiração tépida e viscosa, as lajes escorregadias e recobertas de uma película gordurosa, as idas e vindas das diversas paletas e carrinhos de mão transportando alimentos, matéria a transformar, a digerir, a regurgitar, a tornar sólida, líquida, a metamorfosear em massa, em fatias de manteiga e lavas de creme espesso e desbotado, em Camemberts. No interior, eu descobri finalmente o que fazia o epicentro da fábrica, imaginado durante anos e decriptado de uma só vez. (ONFRAY, 2001, p. 19)

Após diversas outras metáforas, estas acerca da voragem antropofágica do Leviatã de fabricar leite, Onfray nos dá indícios acerca de como podem ser efetivas e viáveis as micro-intervenções revolucionárias que propõe, em âmbito político, aos indivíduos. Ao se referir às suas monótonas tarefas na linha de montagem, insinua que “erros no posicionamento ou no encaixe das cestinhas [com queijo] podiam induzir o desabamento de todo conjunto” (ONFRAY, 2010, p. 20). Segundo Michel Onfray, a emergência de tais atitudes se torna imperiosa diante dos tropismos que os movimentos repetidos ad nauseam, o contato reiterado da pele com elementos químicos nocivos ao organismo e os efeitos, na alma, que essa transmutação do corpo pode representar para o indivíduo. Nesse sentido, escreve Onfray: “o corpo tornava-se uma mecânica integrada ao conjunto de funções do animal: respiração, digestão, circulação, efusão de ares e de ventos, de odores e de miasmas, de sólidos e líquidos, de trabalho e de dores, de homens e mulheres” (ONFRAY, 2010, p. 21). E acrescenta: “eu estava ficando como certos queijos, cujas cascas recobrem uma matéria macia: parecia-me que um mimetismo transfigurava todo e qualquer um que acabava por se assemelhar ao objeto indefinidamente

60 trabalhado, manipulado, esmerado” (ONFRAY, 2010, p. 21). Impedir essa entropia macabra e antropofágica, que, ao longo de certo tempo, é capaz, nas palavras de nosso filósofo, de fazer material humano se fundir com “os ferros das vigas, com a madeira das paletas, com o alumínio das cubas” (ONFRAY, 2010, p. 26) é a tarefa empreendida pelo texto de Onfray. Diante da inépcia profissional de nosso filósofo no ventre da máquina, diante da incompatibilidade de sua carne com o cardápio habitual do Leviatã, certo dia, Onfray é convidado à sala do Sr. Paul, dono e diretor da empresa. O convite é motivado pelas reclamações do contramestre, para quem Onfray era um “causador de problemas, um espírito ruim” (ONFRAY, 2010, p. 25). Para surpresa de nosso filósofo, a visita representava um convite a assumir um posto na direção da fábrica. Michel Onfray relata assim sua posição diante do convite: “Eu experimentei então, pela primeira vez, o júbilo que existe em dizer não” (ONFRAY, 2010, p. 25). Diante dos indícios já ofertados acerca do pensamento político e da exaltação que Michel Onfray faz à individualidade, podemos acrescentar que esse “não” corresponde a um: não componho, não reproduzo essa lógica macabra. Algum

tempo

depois,

não

suportando

mais

a

humilhação

do

contramestre, Onfray se revolta: “parei de trabalhar e encarei o contramestre que berrava com toda a sua força” (ONFRAY, 2010, p. 25). E em mais uma metáfora de boicote às dinâmicas desumanizadoras, detalha: “as cubas se amontoavam em torno de mim, a acumulação a montante acompanhada de uma falta de material para trabalhar a jusante. A esteira girava vazia” (ONFRAY, 2010, p. 26).

E finaliza: sobre o silêncio que se instalou, “ele

berrou, eu gritei ainda mais forte do que ele” (ONFRAY, 2010, p. 26), e, diante dos “olhares apontados para as duas feras que se encaravam” (ONFRAY, 2010, p. 26), Onfray, como nas mitologias antigas, escapa ao ventre do monstro que o encerrava e diluía.

Hoje, cerca de 40 anos após essas experiências existenciais que por pouco não tragaram um indivíduo singular para o epicentro de uma existência vulgar, Michel Onfray é, nas palavras de Sébastien Charles, o “enfant terrible da filosofia francesa contemporânea” (CHARLES, 2006, p. 168). Doutor em filosofia, Michel Onfray, após ter rompido com a filosofia acadêmica, dentro da

61 qual, para ele, “não se vem a ser filósofo” (ONFRAY, 2006, p. 180), mas apenas “professor de filosofia, exegeta, comentador, glosador, anatomista do texto dos outros, leitor” (ONFRAY, 2006, p. 180) e após ter lecionado por vinte anos em um liceu para secundaristas, fundou em 2002 a Universidade Popular de Caen, onde, junto com colegas, ministra aulas diárias e gratuitas de filosofia, política, psicanálise e arte. As aulas da Universidade Popular são gravadas e difundidas na França pela rádio pública France Culture e no mundo todo pelo sítio de Michel Onfray49 na Internet. Segundo o site, a Universidade Popular se baseia no princípio de isenção de taxas e de qualquer qualificação acadêmica para o acesso. É aberta a todos. O site diz ainda que a Universidade não propõe exames, não confere diplomas e que é comprometida com o “conhecimento de alto nível para as massas, em oposição à abordagem vulgarizante de conceitos filosóficos através de leitura fácil”50.

Encerramos

este

subcapítulo

ressaltando

que

as

experiências

existenciais mais marcantes na vida de Michel Onfray, relatadas brevemente acima, deram origem a um pensamento filosófico que prezará, a todo o momento, uma existência feliz, serena, de valorização do indivíduo no bojo de sua vida concreta, cotidiana. Michel Onfray centrará todos os seus esforços filosóficos, por um lado, numa reação contra a cultura platônico-cristã, imperante no ocidente, de negação e mortificação do corpo (portanto, da alma), de exultação do ideal ascético, da fixação no sagrado religioso ou no sagrado do trabalho. Por outro lado, buscará ser propositivo, visará oferecer o hedonismo e a amizade como valor moral, ao passo que refletirá acerca de que maneira um anarquismo pode, hoje em dia, se firmar como um norte de engajamento e atuação política de forma a impedir, de forma capilar, pontual, individual, a hegemonia do maquinário e das engrenagens econômico-sociais que sufocam os indivíduos, exaltam os sujeitos, e maceram, massificando, as existências em sua singularidade.

49

Cf. MATA, p. 11 e 69. O acesso às aulas da Universidade Popular de Caen pode ser feito pelo seguinte endereço da Internet: http://michelonfray.blogs.novelobs.com 50 Disponível em: . Acesso em: 06 de set. 2010.

62

SÍNTESE DA OBRA FILOSÓFICA

“Só quando nos amarmos em corpo e tivermos prazer em nós próprios, no nosso corpo e na nossa vida - mas isto só pode acontecer no homem adulto -, só então teremos um interesse pessoal ou egoísta, ou seja, um interesse, não apenas, digamos, do nosso espírito, mas uma satisfação total, satisfação de todo o indivíduo, um interesse que sirva o próprio ego”. (STIRNER, 2004, p. 18)

A filosofia de Michel Onfray caracteriza-se pelo materialismo hedonista e suas propostas se querem inseridas no cotidiano, em contato e articuladas com o real, com a experiência existencial dos indivíduos. Sua visada filosófica fundamental é dotar as individualidades dos meios teórico-práticos (pois para Onfray vida e pensamento se imbricam) de fazer da existência motivo de júbilo, de afirmação da vida, de prazer. Nietzschiano declarado, Onfray dirá que a história da filosofia se desenvolveu sob o signo de duas linhagens distintas: a de gabinete, e a existencial. A primeira designaria o obscurantismo, a verborragia, o elitismo, o álibi para a cisão entre a obra e a vida de seu autor (onde medram ideologias e hipocrisias). Na segunda linhagem, as idéias por um lado se alimentam da experiência existencial do filósofo, e, por outro, retornam à existência afirmando-a, potencializando-a; Onfray entende que “a prova do filósofo é sua vida” (ONFRAY, 2010, p. 24), pois seu materialismo preconiza que é do corpo que irrompem as idéias, razões, teorias, estruturas lógicas, etc. A validade de tais abstrações? A capacidade de se encarnarem e afirmarem a existência. Enquanto na linhagem de gabinete se idolatra e se fixa no verbo, nas estruturas lógicas, lingüísticas, nas verborragias metafísicas e no culto aos neologismos, na linhagem existencial a palavra se encarna e se torna instrumento de troca, de comunicação, de formulação, de ampliação existencial. É no entorno desses pressupostos que irrompem as múltiplas e inusitadas reflexões de Michel Onfray. Assim, mencionadas as expressões mais recorrentes na obra de Michel Onfray (a saber, materialismo, hedonismo, indivíduo, alegria, júbilo, experiência

63 existencial - entre outros por ora não citados), cumpre-nos agora indicar as linhas gerais e orientadoras da tessitura desta síntese da obra onfraryana. Buscaremos abordar no presente subcapítulo os seis elementos considerados pelo próprio Onfray como eixos basilares dos trinta livros que havia publicado até meados de 2005. Na trilha do livro “A potência de existir”51, os seis eixos são os seguintes: 1º) Um método alternativo, no qual Onfray aborda a problemática da historiografia idealista, hegemônica na filosofia ocidental; 2º) Uma ética eletiva, onde traça o quadro do que seria uma ética hedonista no seio de uma cultura orientada pelo judeu-cristianismo, temperada pelo egoísmo inerente ao capitalismo; 3º) Uma erótica solar, por meio da qual faz do corpo (e de sua história e potencialidades) objeto de reflexão filosófica; 4º) Uma estética cínica, na qual faz da arte questão imanente, encarnada, codificada por um contexto, aproximada dos locais onde a existência cotidiana se urde e longe de universalizações conceituais, por exemplo, de Belo em si; 5º) Uma bioética prometéica, na qual Onfray reflete questões contemporâneas como as potencialidades da ciência no âmbito da clonagem reprodutiva e terapêutica, triagem de embriões, eutanásia, cirurgia do cérebro ou transexuais, etc.; e 6º) Uma política libertária, onde discorre sobre a configuração sócio-existencial da humanidade sob o capitalismo de tentáculos planetários e as possibilidades de resistência e atuação política nesse contexto.

Um método alternativo. Segundo Michel Onfray, a historiografia acadêmica - portanto hegemônica - da filosofia opera motivada pela repetição irrefletida. Para nosso filósofo, as categorizações histórico-temáticas praticadas pelos historiadores da filosofia e reproduzidas nos bancos universitários e escolares atuam como fábulas anti-filosóficas que “de tanto serem repetidas, se tornam verdades e palavra de evangelho” (ONFRAY, 2010, p. 03). A comparação dessas obras, segundo Onfray, revela uma uniformização que de tão cristalizada constrange o surgimento de novas abordagens que ensejariam o nascimento de novas questões, novos autores e de novas filosofias. Onfray menciona exemplos: a filosofia nasce na Grécia, no século VII a.C., por indivíduos denominados pré-socráticos. O dito milagre grego, segundo Onfray, 51

Livro no qual Michel Onfray oferece uma introdução à sua obra. Foi publicado no Brasil em 2010 pela editora Martins Fontes, vide referências bibliográficas do presente trabalho.

64 obstaculizaria a fertilidade filosófica que um estudo genealógico ensejaria se se observassem as articulações e trocas havidas entre os gregos e os egípcios, os persas, os chineses, entre outros povos. Outro ponto capital para a crítica de Michel Onfray à historiografia oficial da filosofia diz respeito à infértil noção de pré-socrático que, para ele, é um “conceito-ônibus utilíssimo para evitar um exame minucioso” (ONFRAY, 2010, p. 04). Citando Demócrito52 como exemplo, Onfray questiona as razões pelas quais o mesmo é tido por pré-socrático se certas estimativas apontam o nascimento do mesmo como quase que contemporâneo ao de Sócrates, ao passo que, por outro lado, se sabe que o filósofo materialista de Abdera, cujo corpus filosófico é o mais vasto dos ditos pré-socráticos, viveu ainda trinta anos após a morte do ateniense. No registro específico de Demócrito, Onfray indaga por que razões sua filosofia é, até os dias de hoje, vista sob as lentes postas por Aristóteles, ou seja, o abderitano seria apenas mais um dos fisiólogos cujo princípio é o átomo, ao passo que o materialista de Abdera teria versado sobre as mais diversas áreas do saber filosófico de então por meio de suas centenas de obras escritas. Outra fábula contada ad nauseam pela historiografia dominante, à qual Onfray contrapõe sua “Contra-História da Filosofia53”, é a do “a priori platônico” (ONFRAY, 2010, p. 06). Esta ensinaria que “o que procede do sensível é ficção” (ONFRAY, 2010, p. 06). Segundo nosso filósofo, cantando loas à historiografia idealista, a filosofia dominante exalta a “verdade das Idéias, a excelência do mundo Inteligível, a beleza do Conceito e, em contrapartida, feiúra

do

mundo

sensível,

rejeição

da

materialidade

do

mundo,

desconsideração do real tangível e imanente” (ONFRAY, 2010, p. 06). Esse a priori platônico entranhado na historiografia hegemônica da filosofia, segundo Onfray, exigiria a rejeição das farpas, ou seja, das propostas filosóficoexistenciais e materialistas que não se enquadraram na categoria aceita pelo status quo imperante na seara filosófica de gabinete. Além de outros exemplos pontuais, Onfray critica duramente a ausência, na práxis filosófica universitária, de um questionamento acerca dos alicerces

52

Considerado por Onfray como o primeiro representante de vulto do materialismo. Projeto de Michel Onfray que será composto por seis volumes, três dos quais já encontram-se editados no Brasil. 53

65 historiográficos que encapsularam e deram sentido e significado à história da filosofia. Segundo nosso filósofo, é imperiosa a necessidade de uma filosofia da história da filosofia, ou seja, é necessária uma reflexão que problematize os métodos, os meios e os interesses inerentes às épocas, às ideologias, aos contextos nos quais essa história foi contada. Segundo Michel Onfray, os vinte séculos de cristianismo são os responsáveis por tais práticas idealistas no seio da historiografia filosófica. No registro da permeabilidade do cristianismo com a filosofia e sua história, Onfray escreve:

Com base no princípio crístico, redige-se uma história da filosofia destinada a celebrar a religião da Idéia e do idealismo. Sócrates como messias, morto porque encarnava a revelação filosófica inteligível; Platão como apóstolo, se não como são Paulo da causa inteligível: a filosofia idealista, eis a religião revelada da Razão ocidental. (ONFRAY, 2010, p. 7)

Como conseqüência visível, tal como a história do Ocidente se divide em a.C. e d.C., a história da filosofia ganha seu pré e seu pós: o marco zero é Sócrates. Michel Onfray resume o amplo resultado dessa história idealista dividindo-o em três momentos: o primeiro é platônico, o segundo é cristão e o terceiro é o do idealismo alemão, ou, em outros termos, Platão, Descartes e Kant, ou em outros ainda, nas Idéias, no Cógito e nos Númenos. Onfray arremata o quadro: “com isso, dá para vender a ilusão do diverso e entregar um mesmo mundo chamado por outro nome...” (ONFRAY, 2010, p. 07). Em contracorrente a essa tendência, e em defesa de uma real diversidade de novas possibilidades filosóficas, portanto existenciais, Onfray defenderá “Uma contra-história da filosofia” (ONFRAY, 2010, p. 07), na qual se proporá a tarefa de resgatar os esquecidos, os negligenciados, os marginalizados pelo rolo compressor historiográfico, por exemplo, de um Hegel, que dirá que dos cínicos “só existem anedotas” (ONFRAY, 2010, p. 07). Outros objetivos podem ainda ser pontuados como componentes dessa contra-história que Michel Onfray pretende contar. Em primeiro lugar, a ênfase no ego, no eu corpóreo e concreto do qual surge o pensamento. Contra o

66 pensamento abstruso, que se afasta da carne da qual surgiu para conferir às idéias uma origem que ela não teve (o céu), Onfray propõe o “romance autobiográfico” (ONFRAY, 2010, p. 14), a tentativa de decodificação dos fluxos e trajetos percorridos pela energia corpórea antes da irrupção do pensamento. O método alternativo de Michel Onfray, é, portanto,

Por uma razão corporal e pelo romance autobiográfico que a acompanha numa lógica puramente imamente, no caso, materialista; por uma filosofia entendida como uma egodicéia a construir e decodificar; por uma vida filosófica como epifania da razão. (ONFRAY, 2010, p. 27).

Uma ética eletiva. As reflexões éticas de Michel Onfray partem de um diagnóstico que o filósofo faz de nossa época: “a maioria proclama o ateísmo da nossa época, mas se engana: ela é niilista, francamente niilista” (ONFRAY, 2010, p. 33). A propósito, o niilismo que Onfray identifica em nosso tempo seria sintoma recorrente na História, ele designaria os períodos intermediários onde uma era cultural rui e outra ainda não adveio. No nosso caso em específico, estaríamos entre a era judaico-cristã e, por falta da designação efetiva, a era pós-cristã. Conforme Onfray, na superfície visível da nossa cultura, a ausência de valores, o sumiço das bússolas morais religiosas designariam apenas os fenômenos perceptíveis da decadência de uma era e não o recuo tácito e efetivo da episteme judaico-cristã. Neste sentido, a laicidade ética e política, não obstante os avanços conquistados nas esferas individuais e estatais, não atingiram o cerne daquela episteme. Segundo Onfray, num “vocabulário neokantiano o decálogo judaico-cristão e a moral evangélica” (ONFRAY, 2010, p. 35) imperam nas instituições e nas consciências. Segundo essas tábuas de valores, continuamos a reproduzir a ideologia da família heterossexual, do esquecimento de si em função do amor ao próximo, do amor ao trabalho, da misericórdia, da indulgência, da esmola, do livre-arbítrio que no âmbito jurídicopenal desconsidera os determinismos, etc. Onfray propõe, portanto, uma “real laicidade pós-cristã” (ONFRAY, 2010, p. 36), que revolva o fundo da episteme religiosa por meio de um “inventário

67 ético, metafísico, ontológico, político, etc” (ONFRAY, 2010, p. 36) da cultura ocidental. Porém, nosso filósofo ressalta que o processo de descristianização epistêmica não pode se dar por meio do terror, dos massacres, das perseguições e vandalismos, mas pela reconquista das idéias e, neste sentido, adverte: “todo fim de civilização antes do advento da seguinte representa sempre um perigo maior: nele o irracional pulula, o pensamento mágico excele, as soluções a baixo preço proliferam” (ONFRAY, 2010, p. 37). A saída ética desse período de niilismo, para Onfray, encontra-se na filosofia, notadamente nas alternativas ao platonismo antigo:

Uma moral da honra e não da falta, uma ética aristocrática e não falsamente universal, uma regra imanente do jogo e não um processo transcendente, virtudes que aumentam a vitalidade contra as que a empequeneçam, um gosto pela vida que dê as costas às paixões mortíferas, um desígnio hedonista contra o ideal ascético, um contrato com o real e não uma submissão ao céu, etc. (ONFRAY, 2010, p. 37)

Em suma, o verdadeiro ateísmo, aquele que revolve as profundezas da episteme judaico-cristã ocidental, não poupa a moral após o assassínio de Deus. Segundo Onfray, o ateísmo pós-cristão “desmonta com o mesmo fervor os valores herdados do Novo Testamento que impedem uma real soberania individual e limitam a expansão vital das subjetividades” (ONFRAY, 2010, p. 39), pois, depois das carnificinas que pintaram de sangue o século XX, “não podemos mais nos contentar em convidar à boa alma inativa e impotente, por ser impossível sua encarnação diante de objetivos realmente realizáveis” (ONFRAY, 2010, p. 40). A ética de Michel Onfray se imbrica com a estética e o ponto de partida dessa idéia é inusitado. Segundo nosso filósofo, a revolução copernicana empreendida por Marcel Duchamp (ONFRAY, 2010, p. 43) na arte oferece os precedentes: se, por um lado, o “sanitário metafísico pulveriza a Crítica da faculdade de juízo, de Kant, logo o platonismo em arte e alhures” (ONFRAY, 2010, p. 43) e, por outro, introduz uma revolução dos suportes na arte: dos materiais nobres como os “pigmentos coloridos, mármore, bronze, ouro, prata, plaina” (ONFRAY, 2010, p. 43) passam-se a admitir os materiais mais ignóbeis,

68 como “barbante, papelão, plástico... -, passando pelos mais imateriais – som, luz, idéia, linguagem... Para o melhor e para o pior, tudo, absolutamente tudo, se torna matéria de arte. Por que não, nesse caso, a existência?” (ONFRAY, 2010, p. 43 - 44) E assim Onfray apresenta sua noção de escultura de si, pois, para ele, a “ética é assunto do corpo, e não da alma” (ONFRAY, 2010, p. 46). O ponto de partida, portanto, é o assenhoramento de si, de sua existência, de seu Eu. Onfray considera que “cada um é parcialmente responsável pelo seu ser e pelo seu devir” (ONFRAY, 2010, p. 44) e que, nesse registro, o esculpir existencial deve visar, primeiramente, “um Eu, um Ego, uma Subjetividade radical. Uma identidade sem duplo. Uma realidade individual. Uma pessoa direta. Um estilo notável. Uma força única. Uma potência magnífica. Um cometa traçando um caminho inédito.” (ONFRAY, 2010, p. 44). Mas deve-se ressaltar que não se trata aqui de um louvor ao solipsismo, uma “religião egótica, o culto do ego, o narcisismo autista" (ONFRAY, 2010, p. 44), tampouco o é a “detestação de tudo o que manifesta uma primeira pessoa” (ONFRAY, 2010, p. 44), mas de “encontrar a boa medida do Ego, sua necessária restauração e restituição” (ONFRAY, 2010, p. 44). Essa ressalva é importante, pois é na medida mesma desse meio termo entre egotismo e egofobia que se instala qualquer possibilidade de ética. Onfray afirma que se a relação entre si e si não é sadia, qualquer possibilidade de troca com o outro é vedada: “uma identidade falha ou ausente a si mesma veda a ética. Somente a força de um Eu autoriza o deslanchar de uma moral” (ONFRAY, 2010, p. 44). Portanto, sem o Eu como ponto de partida, sem o Ego construído na harmonia entre a determinação e os determinismos, nenhum projeto ético é possível. As conseqüências contemporâneas apontadas por Onfray como decorrentes do descuido (quando não da negligência e do abandono) quanto ao Ego, são contundentes:

A herança, os pais, o inconsciente, a época, o lugar do mundo em que vem à luz, a educação, as oportunidades, as faltas de oportunidades sociais, tudo tritura uma matéria dúctil, extremamente plástica, e a predetermina... à desordem. As prisões, os asilos psiquiátricos, as consultas psicológicas, as salas de espera dos

69 psicanalistas, as ante-salas dos especialistas em consciência corporal,

conselheiros

conjugais,

reflexologistas,

radiestesistas,

magnetizadores, advinhos variados, as consultas a sexologistas, as filas de espera para os psicotrópicos fornecidos nas farmácias e tantos outros xamãs pós-modernos dançam em torno desses Egos falhos, desses Eus quebrados, identidades inacabadas, todos eles. (ONFRAY, 2010, p. 46)

A ética onfraryana possui um objetivo claramente determinado. O esculpir de si, a construção do Eu não se fecha sobre si mesma. Para Onfray, partir de si não significa congelar-se em si, em sua obra. A ética onfraryana, hedonista, repita-se, visa uma relação de intersubjetividade dinâmica, “pacificada, alegre, feliz; uma paz da alma e do espírito; uma tranqüilidade em ser; relações fáceis com o outro; um conforto na interação dos homens e das mulheres” (ONFRAY, 2010, p. 47), em suma, essa ética objetiva “a erradicação do que resta de mamífero em nós” (ONFRAY, 2010, p. 47). Sem a determinação e o exercício de si, no abandono do Eu às forças cegas que movem os instintos, o resultado subjetivo, para Onfray, é o “delinqüente relacional, aquele que, nem responsável nem culpado, decorre de uma série de arranjos existenciais que fazem dele um ser incapaz de contrair, lodo de manter, qualquer relação ética” (ONFRAY, 2010, p. 50). Ao contrário, o sujeito ético onfraryano inscreve-se no que sua proposta hedonista denomina por “círculos éticos” (ONFRAY, 2010, p. 51). As metáforas, aqui, são geométricas, aritméticas e da ordem do magnetismo. Vejamos: no círculo concêntrico reside o Eu, ou melhor, cada um é o epicentro ético de sua subjetividade. Acrescentemos que a ética de Onfray é dinâmica, circunscrita ao concreto, ao devir, ao realmente dado, com efeito: “não existe nenhum lugar definitivo, cada situação nesse espaço decorre do que é dito, feito, mostrado, provado e dado como sinal da qualidade da sua relação” (ONFRAY, 2010, p. 52). Portanto, em primeiro lugar, faz-se necessária a “presciência do outro. Que quer ele? Que me diz ele? Qual é a sua vontade?” (ONFRAY, 2010, p. 52). Decodificados os interesses do outro, comunica-se o próprio projeto por meio de sinais dos quais a linguagem é apenas mais um: “esse perpétuo jogo de ida e volta entre as partes possibilita a escrita de um contrato. Não há moral

70 fora dessa lógica sinalagmática. Com base em informações trocadas, a relação ética pode se dar” (ONFRAY, 2010, p. 52). Por outro lado, diante do delinqüente relacional, decodificadas as informações que assim o caracterizam, Onfray propõe o evitamento, pois o “hedonismo se define positivamente pela busca do prazer, decerto, mas também negativamente como evitamento das ocasiões de desprazer” (ONFRAY, 2010, p. 52). O jogo se joga com base nessa dinâmica. Enquanto a moral cristã, estática, deontológica, convida a amar ao próximo como a si mesmo, mas por amor a Deus; enquanto nessa lógica o outro, o próximo é visto como degrau de acesso a Deus e o amor dispensado a ele não é de vinculação ao que ele é por si, em si, e por suas ações, a moral hedonista de Michel Onfray convida à responsabilidade ativa, à atenção, ao zelo consigo e com o outro. A ética eletiva e hedonista de Michel Onfray preconiza que “não há Amizade, mas provas de amizade, não há Amor, mas provas de amor, não há Ódio, mas provas de ódio, etc., os fatos e os gestos entram numa aritmética que permite deduzir, por constatação, a natureza da relação” (ONFRAY, 2010, p. 53). A dinâmica das intersubjetividades, nessa perspectiva ética hedonista, é a da atração e da repulsão. Os círculos concêntricos das subjetividades, na aritmética dos afetos, buscarão a proximidade ou o afastamento, a depender das possibilidades e ocasiões de prazer ou desprazer. É a ação, é a correspondência entre a palavra dada e o ato, o gesto que atesta a legitimidade dos contatos: “as provas de amizade aproximam, os testemunhos de inimizade afastam” (ONFRAY, 2010, p. 53). Aquela intersubjetividade pacificada, alegre, feliz mencionada acima, portanto, não pode prescindir da encarnação de valores que se expressam, sempre, em ato, em efetividade. Onfray pontua esses valores: “amor, afeição, ternura, doçura, prestimosidade, delicadeza, longanimidade, magnanimidade, polidez,

amenidade,

gentileza,

civilidade,

prontidão,

atenção,

cortesia,

clemência, dedicação, e o que se supõe na palavra bondade” (ONFRAY, 2010, p. 53). Onfray considera que a ética, como tudo em sua filosofia, é questão encarnada, imanente, “é uma questão de vida cotidiana e de encarnações infinitesimais no tecido fino das relações humanas” (ONFRAY, 2010, p. 54). Afastando-se das morais vinculadas a valores metafísicos, a estruturas

71 fechadas, deduzidas de grandes sistemas ontológicos, em suma, atreladas ao que transcende o cotidiano, o termômetro da ética hedonista de Michel Onfray é o prazer. Mas não se trata aqui de um prazer vulgar, irrefletido, pois “fruição sem consciência nada mais é que ruína da alma.” (ONFRAY, 2010, p. 54). Citando Epicuro, Onfray acrescenta a esse princípio que a regra é matemática: “não concordar com um prazer aqui e agora se ele tiver de ser pago mais tarde com um desprazer. Renunciar a ele. Melhor: escolher um desprazer no ato se ele levar mais tarde ao nascimento de um prazer” (ONFRAY, 2010, p. 54). No registro dessa encarnação da ética enquanto modalidade dinâmica, da ordem da ação, Onfray escreve:

A polidez proporciona a via de acesso às realizações morais. Pequena porta de um grande castelo, ela conduz diretamente ao outro. Que diz ela? Afirma ao outro o que vimos. Logo, que ele é. Cuidar de uma porta, praticar o ritual das fórmulas, perpetrar a lógica das boas maneiras, saber agradecer, acolher, dar, atuar por uma alegria necessária na comunidade mínima – dois... – eis como fazer ética, criar moral, encarnar valores. O saber viver como o saber ser.

Uma erótica solar. Se a ética de Michel Onfray se pretende encarnada, faz-se então necessária uma reflexão acerca das potencialidades do corpo. Para Onfray, pensar a ética sob a égide da economia dos prazeres exige fazer do corpo e dos preconceitos e vicissitudes ideológicas e culturais que o acometem objeto de atenta reflexão filosófica. É neste propósito que Onfray propõe, então, a erótica como disciplina filosófica. Segundo Onfray, os vinte séculos de judaico-cristianismo impuseram ao corpo ocidental o que ele designa pela expressão “miséria sexual” (ONFRAY, 2010, p. 65). Uma das causas dessa miséria, segundo Onfray, é o mito da falta que, para nosso filósofo, repousa no preconceito de que as subjetividades são incompletudes que, ao encontrar seu par fusional, encontram também a felicidade. Onfray afirma que do discurso de “Aristófanes no Banquete de Platão aos Escritos de Jacques Lacan, passando pelo corpus paulino, a ficção dura e perdura” (2010, p. 60). As conseqüências desse mito, para Onfray, têm duplo e pernicioso efeito. Por um lado, se o prazer é definido pela falta, “essa ficção perigosa conduz a maioria a buscar o inexistente, logo a encontrar a

72 frustração” (ONFRAY, 2010, p. 60), pois a “vontade da completude gera sempre a dor da incompletude” (ONFRAY, 2010, p. 60). Sob o signo dessa ilusória concepção ontológica de si mesmo, segundo Onfray, os sujeitos acabam por aderir e aceitar quaisquer fármacos existenciais ofertados pela mesma elite ideológica que propaga a incompletude como traço constituinte das subjetividades. Por outro lado, o mito da falta é alimentado pela tradição platônica que impõe ao corpo a esquizofrenia do ódio às solicitações carnais em função da exaltação da pretensa alma que o habitaria. Isso teria, segundo Onfray, relegado as exigências carnais a uma esfera na qual a reflexão e o artifício não adentram. Como conseqüência, o sexo, por exemplo, em sua dinâmica pulsional animalesca, se torna a expressão das “pulsões mais brutas do cérebro reptiliano” (ONFRAY, 2010, p. 59) onde medram, por exemplo, a pedofilia, a zoofilia, a necrofilia e outras monstruosidades que o cotidiano jornalístico contemporâneo não cessa de denunciar.

A codificação ascética com a qual o judaico-cristianismo marcou a sexualidade ocidental se manifesta, segundo Michel Onfray, por duas razões principais. A primeira é de natureza sociológica, pois, “a priori, o desejo ativa uma formidável força antissocial” (ONFRAY, 2010, p. 62). Sob o império do desejo, tudo o que define o bom funcionamento da sociedade rui: “organização do tempo controlada e repetitiva, prudência na ação, economia, docilidade, obediência, tédio, etc.” (ONFRAY, 2010, p. 63). Diante dessa incompatibilidade entre o desejo e as exigências sociais, o ascetismo impera soberano como escudo social contra as forças nômades do prazer. A segunda razão repousa sobre a “vontade feroz de reduzir a nada a incrível potência do feminino” (ONFRAY, 2010, p. 63). Segundo Michel Onfray, o prazer das mulheres, por exigir o “artifício cultural, o erotismo e as técnicas do corpo – respiração, domínio dos fluxos, retenção, variações das posições corporais, etc” (ONFRAY, 2010, p. 63), engendrou, como reação, a potência do falocentrismo, na qual o macho, inábil, governado pela natureza bestial de uma sexualidade não talhada pelo artifício e por uma cultura digna deste nome, impôs, à mulher e ao desejo, a abstinência integral.

73 Porém, afirmando a impossibilidade de se abolir por completo o desejo e analisando a dinâmica da mitologia da falta e o trato tíbio que a tradição judaico-cristã teria conferido às imperiosas e inexpugnáveis solicitações da carne, Michel Onfray denunciará uma outra ideologia: “a ideologia familista” (ONFRAY, 2010, p. 61). Segundo nosso autor, partindo da noção de que sós somos incompletos e da ciência de que o desejo é inexpugnável, o ideal judaico-cristão vendeu a vida a dois como o antídoto justificado e legítimo contra a dor da incompletude e os perigos antissociais que o desejo nômade conjura. Mas essa vida a dois, como pontua Michel Onfray, não é uma vida a dois sem mais. Há de ser justificada segundo signos culturais sedimentados histórica e meticulosamente de forma a prover a dinâmica das engrenagens sociais em vigor. No contexto dessa justificação, efetuada pelo casamento monogâmico e pelo decorrente rol de obrigações morais que o acompanha, reforçados pelas responsabilidades inerentes à progenitura, as subjetividades sucumbem à heteronomia e, com elas, todo um mundo de possibilidades sexuais e existenciais:

Escrita na língua do hábito e da repetição, a sexualidade conjugal instala a libido nos escaninhos apolinianos de uma vida familiar regrada, na qual o indivíduo desaparece em benefício do sujeito. Dioniso perece, a miséria sexual se instala. Tanto que, à força de determinismos sociais, de propagandas ideológicas moralizadoras generalizadas, a servidão se torna voluntária e, definição da alienação, a vítima acaba até encontrando prazer na renuncia a si. (ONFRAY, 2010, p. 64)

Rechaçando a solução dominante com o argumento de que a sedentaridade do casamento é incompatível com o caráter nômade do desejo (a menos que aquele extinga este), Michel Onfray propõe “uma libido libertária” (ONFRAY, 2010, p. 65). Em primeiro lugar, propõe o “Eros leve” (ONFRAY, 2010, p. 65), que exige a dissociação de amor, sexualidade e procriação que, embaralhados pelo cristianismo, fizeram da relação uma indexação “à pulsão de morte e ao que dela decorre: a fixidez, a imobilidade, a sedentaridade, a falta de inventividade, a repetição, o hábito ritualizado e descerebrado, e tudo o

74 que faz parte da entropia” (ONFRAY, 2010, p. 66). O Eros leve supõe o movimento, a possibilidade da fruição do desejo longe das codificações que o querem amordaçado, e aproximado do artifício que a inteligência humana é capaz de conjurar tanto para dar potência ao prazer quanto para conter seus desígnios antissociais. O segundo conceito propositivo de Michel Onfray em favor dessa libido libertária é o de “máquina solteira” (ONFRAY, 2010, p. 67), com o qual o filósofo aproxima a noção de solteiro à de indivíduo livre, mesmo quando participante de uma relação amorosa. Neste sentido, nosso filósofo dirá que o solteiro não vive necessariamente sozinho, excluído de relações amorosas, eróticas, etc, mas que é um indivíduo que, não obstante possa estar indexado a um contrato amoroso, faz valer as prerrogativas de sua liberdade e que constitui suas relações sob o signo da vida, pois a máquina solteira, pautada pela ética eletiva e hedonista na qual seus valores se identificam com suas ações,

se

sabe

movediça,

andarilha,

em

constante

construção

e

transformação. Em suma, a erótica de Michel Onfray propõe uma razão, uma cultura que imponha artifícios jubilosos sobre os blocos de energia selvagem nos quais o desejo se manifesta. Diversamente do sexo bestial e da fixidez que o casamento cristão impõe ao nomadismo do desejo, a “cultura erótica trabalha o sexo natural para produzir artifícios éticos, efeitos estéticos, jubilosos inéditos na selva, no estábulo ou no fosso” (ONFRAY, 2010, p. 71).

Uma estética cínica. Como em sua ética e em sua erótica, Michel Onfray, no âmbito da estética, rechaçará imperativos metafísicos, fixos e universais na apreciação da arte. Para Onfray, não existem conceitos dissociados de seu contexto, portanto, buscar a essência do Belo, o Belo em si, o Belo inefável, o Belo indizível nada mais é, para o autor, que charlatanice de reacionários, de “nebulosos autores convencidos de que sua obscuridade garante uma profundidade insondável (ONFRAY, 2010, p. 79). Segundo Onfray, “a arte vive da história, nela, por e para ela também” (ONFRAY, 2010, p. 79, grifo nosso). Assim, a arte onfraryana se imbrica com a matéria deviniente do mundo humano, da cultura singular e circunstanciada da qual e para a qual se origina. Neste sentido, cada recorte histórico, cada

75 concepção onto-epistemológica particular, cada contexto social e histórico pontual, mais as conseqüências, os efeitos , o que se conserva e o que se abole em matéria de arte contribui para o movimento geral. A gênese teórica da concepção estética onfraryana repousa em sua leitura da obra de Marcel Duchamp que, segundo Onfray, arrematou, na arte, o “crime nietzschiano” (ONFRAY, 2010, p. 82). Segundo nosso autor, a obra de Duchamp teria atuado como um “verdadeiro golpe de Estado no mundinho regrado da arte (ONFRAY, 2010, p. 80) ao fazer da apreciação estética e do Belo algo menos relacionado ao universal do que imanente ao puro presente, à relatividade conjuntural e sensível daquele que cria e daquele que aprecia a obra. A revolução estética de Duchamp, ao fazer do observador um artista 54, e de materiais ignóbeis e triviais matéria prima da obra de arte, promoveu a morte das deidades conceituais que, até então, haviam povoado a reflexão estético-filosófica ditando regras à produção e à apreciação. Essa revolução, segundo Onfray, ao esvaziar o céu (das abstrações e juízos universais), encheu a terra: “Marcel Duchamp avança no sentido de uma desteologização da arte em benefício de uma rematerialização de seu objetivo” (ONFRAY, 2010, p. 82). Daí decorre a fertilidade. Fragmentando a práxis artística, Duchamp pulveriza, descentralizando, os estilos e as leituras. Deixando de ser Bela, a arte passa a portar uma maior carga de sentido a decifrar, ao passo que, no âmbito da produção, um mundo de possibilidades emerge: “abençoemos essa riqueza de potencialidades, porque a revolução de Duchamp, ao abolir o reino da univocidade e ao abrir o da plurivocidade, engendra muito mais a abundância que a penúria (ONFRAY, 2010, p. 83). Onfray entende que a arte estabelece com a ética e, consequentemente, com a política, uma relação privilegiada na medida em que a arte tem potencial de agir como uma “infraestrutura mental para todos os setores da sociedade” (ONFRAY, 2010, p. 83). Aliando a significatividade pulverizada que Duchamp introduz na arte às possibilidades de revoluções existenciais que esta poderia conferir aos indivíduos, Onfray propõe inverter as considerações estéticas burguesas que, recorrendo ao oráculo do mercado para estabelecer um Belo

54

Na medida em que nada é dado universalmente de antemão.

76 universal, cristalizam, solidificam o significado da arte e, em decorrência, das subjetividades. Indo além da pertinência do advento Duchamp na estética, Michel Onfray faz, entretanto, uma leitura não tanto otimista quando aborda a relação do niilismo inerente à nossa era de transição55 e a produção artística contemporânea. Diante do negativo, Onfray proporá uma “psicopatologia da arte” (ONFRAY, 2010, p. 85) que se contraponha à verve niilista de nossa época, à permanência do platonismo e à religião da mercadoria que assolam, num tropismo reacionário, a arte pós moderna. Segundo Onfray, a arte contemporânea muitas vezes se presta o papel ideológico de exprimir as taras, as “neuroses, psicoses e outras paixões tristes que trabalham nossa civilização da mesma maneira que atormentam um indivíduo” (ONFRAY, 2010, p. 84). No registro das negatividades inerentes ao niilismo de fim de época em que vivemos, pululam, nas galerias e outros locais chancelados pelos poderes constituídos, a exaltação do “ódio de si, dos outros, da carne, do mundo, do real, da imagem, da vida, celebração da ferida, da matéria fecal, da sujeira, do autismo, da podridão, do dejeto, da infâmia, do sangue, da morte, do grito, etc.” (ONFRAY, 2010, p. 86). Em acréscimo, Onfray pontua que a revolução induzida por Duchamp não foi suficiente para dar cabo do tropismo platônico de obsessão pela Idéia. O conceito, a Idéia, a intenção, a forma, muitas vezes se impõem e primam sobre o conteúdo, a encarnação sensível, o percepto, o aspecto concreto e material inerente à toda e qualquer apreciação estética. Segundo Onfray, a unção intelectual, a saber, o discurso que se faz sobre a obra pelos sacerdotes cult da arte contemporânea, além de relegar a percepção sensível a um segundo plano (onde medram as apologias dos dejetos nas galerias de arte), serve também como indutor ideológico do tropismo entre a arte e o mercado. Onfray compara a arte cooptada pelo mercado às práticas medievais e modernas nas quais quinquilharias religiosas, substituindo a inventividade inerente à arte, ungiam seus possuidores da aura empoderadora conferida pela arte então capturada pela religião. Em sua manifestação hodierna, a arte contaria, segundo Onfray, com seu clero emanador de verdades que, 55

Transição apontada acima, onde se discorreu sobre a ética onfraryana e a derrocada da moral judaicocristã ante o advento do período pós-cristão.

77 adestrando a apreciação, as fazem retroalimentar o círculo vicioso da heteronomia significacional do Belo, são eles: as galerias, os compradores, os colecionadores, os jornalistas especializados, os curadores, os diretores de fundação, etc.: “As ações convergentes desse pessoal incestuoso consistem em criar cotas, construir reputações, instalar fulano ou beltrano em posição dominante no mercado ou organizar sua exclusão quando a rentabilidade for declinante” (ONFRAY, 2010, p. 89 – 90). A título de alternativa estético-existencial a esses tropismos com o negativo e com o mercado, Onfray encontra uma saída na “arte cínica" (ONFRAY, 2010, p. 91), por meio da qual, invocando o filósofo Diógenes de Sínope56, proporá uma “grande saúde risonha que se baseia na transmissão dos códigos e no agir comunicativo, [e] depois se ativa no sentido de uma rematerialização do real” (ONFRAY, 2010, p. 91). Interpretando a filosofia de Diógenes, em sentido negativo, como um antiplatonismo, e, em sentido positivo, como um perspectivismo nominalista, Onfray acredita encontrar a chave capaz de superar o império das idéias e dos conceitos (que denigrem o que é da esfera do perceptivo no âmbito individual) que fazem da arte questão de universais57. O resgate que Michel Onfray busca fazer do cinismo antigo visa propiciar, dar fluxo à transmissão de códigos, a saber, dos significados da arte numa perspectiva nominalista, individualista, monádica na qual os indivíduos em comunicação sublevam a hegemonia heterônoma da significação do Belo e fazem correr, horizontalmente, novos signos. Segundo Onfray, Diógenes foi mestre no manejo dessa linguagem. E dá exemplos: ao buscar um homem nas ruas de Atenas com uma lanterna, em plena luz do dia, o filósofo do barril estaria procurando um Homem maiúsculo, uma Idéia de Homem. Segundo Onfray, o intento de Diógenes é refutar, de forma exemplar, cênica, cômica, os postulados abstratos e transcendentes de Platão. Um segundo exemplo: tendo Platão definido o homem como um bípede sem penas, Diógenes depena um galo, o leva ao local das aulas e exclama: “eis o homem de Platão”58.

56

Um dos precursores do cinismo antigo, dando ao movimento uma conotação anticulturalista baseada na ação e no exemplo. Viveu em Atenas no século IV a.C. 57 No caso contemporâneo, ditado pelo mercado. 58 Cf. LAÉRTIOS, Diógenes, 2008, p. 162.

78 Michel Onfray vê no método cínico uma possibilidade singular de se portar e veicular sentido. Para tanto, segundo nosso autor, é preciso saber decodificar e ler a comunicação. Sob o império das Idéias, das filosofias da formas puras, esses gestos não passam de anedotas59, pois o âmbito de seu filosofar tergiversa sobre planícies formais, desacostumadas às profundidades e intensidades inerentes à concretude do real. Sob o signo dessa concretude, o cínico teatraliza seu pensamento, encarna suas idéias, gestualiza seus insights: “o cínico age como truão ontológico, sabe que compreenderão sua encenação” (ONFRAY, 2010, p. 94). Onfray afirma que o cínico, apostando na ironia, trilhando localidades não determinadas previamente, está apostando igualmente na inteligência do espectador / interlocutor. Essa aposta no espectador, para Onfray, se articula de forma estreita com a arte de Duchamp, que faz do observador um artista, um decodificador; por outro lado, a revolução dos suportes de Duchamp 60 se vincula às mídias utilizadas pelos filósofos cínicos: “o arenque e a lanterna, as rãs e o camundongo, o cachorro e o polvo, o tonel e o alforje, o cajado e a gamela, o escarro e a urina, o esperma e as fezes, o galo e a carne humana” (ONFRAY, 2010, p. 92) substituem ou, ao menos, diminuem a cristalização da filosofia em textos. Ao lado da letra escrita, tudo pode se tornar a encarnação de um princípio filosófico, ético, existencial, político, estético. Basta que se saiba unir o corpo à alma, os valores à ação, a superfície ao fundo, a forma a um conteúdo alimentado pela materialidade do real de onde, segundo Onfray, tudo brota.

Uma bioética prometéica. Pensador fortemente marcado pelas questões e problemáticas filosóficas e existenciais de seu tempo, Michel Onfray dedica em sua obra uma seção especial destinada a pensar as relações e possibilidades que se instalam entre a ciência contemporânea e o humano. No registro de tais reflexões, nosso filósofo, sob o signo do conceito de uma “bioética prometéica” (ONFRAY, 2010, p. 99), faz emergir questões, rupturas e propostas tão inusitadas quanto polêmicas.

59

Opinião de Hegel expressa no livro “Lições sobre a História da Filosofia”. Apud ONFRAY, 2010, p. 91. 60 Que alça materiais não nobres à condição de objetos de arte.

79 Diante das já mencionadas críticas que Onfray pontua acerca do tropismo cristão no corpo ocidental, cumpre-nos adiantar que sua bioética prometéica erige-se sobre a constatação de que o corpo ocidental é ainda platônico, cindido, esquizofrênico (ONFRAY, 2010, p. 101) e que, na medida em que o corpo humano pode ser objeto privilegiado dos avanços da ciência pós-moderna, sofre com o “fantasma do anjo, modelo estapafúrdio do ideal platônico-cristão” (ONFRAY, 2010, p. 101) que tenta impor, também na seara científica, sua dominação. Sob a ótica de sua bioética prometéica e das possibilidades abertas pela ciência contemporânea, Michel Onfray propõe a desmistificação da carne e ensina o “corpo nominalista, ateu, encarnado, mecânico” (ONFRAY, 2010, p. 103). A partir daí, invoca uma heurística61 da audácia para se contrapor à heurística do medo mediante a qual a filosofia e a ética dominante, hegemônica, aliando-se ao inamovível princípio responsabilidade do filósofo Hans Jonas, convida os homens ao clima de medo, de precaução exacerbada, de espera:

Sou, ao contrário, por uma heurística da audácia. A lógica de Jonas desaconselharia a invenção do avião em nome da queda, recusaria o navio pretextando o naufrágio, proibiria o trem brandindo a ameaça do descarrilamento, dissuadiria taxativamente o criador do automóvel profetizando os acidentes de trânsito, desprezaria a eletricidade por causa da eletrocussão. O filósofo dissuadiria o próprio Deus de criar a vida a pretexto de que ela acabaria levando à morte... (ONFRAY, 2010, p. 103)

Onfray afirma que a possibilidade do negativo em matéria de prática científica, ou seja, a imanência do erro no fazer científico não deve ser poupada, mas integrada. O erro, neste sentido, seria algo a ser superado e não evitado sob a égide da inação: “inversamente, a heurística da audácia encara frontalmente, sem condená-las a priori, as questões incômodas que se colocam em nossa época pós-moderna” (ONFRAY, 2010, p. 104). A heurística da audácia que Onfray propõe no bojo de sua bioética prometéica, no entanto, em se propondo aberta às novas possibilidades da 61

Arte da pesquisa.

80 ciência, implica numa reelaboração conceitual do corpo para além do esquematismo cristão (ONFRAY, 2010, p. 104) e, neste sentido, oferta sua visão:

Transformado em substância atômica – e não escrínio negro do pecado original portador de seu antídoto imaterial -, ele se constitui de uma parte nômade, que pode tirar seu apoio, e de uma parte racionalmente capaz de acolher as modificações. (ONFRAY, 2010, p. 105)

Em suma, em sendo atômico, o corpo é uma só substância, mas diversamente modificada, é matéria atravessada por fluxos cuja sutileza carece, ainda, de explicações. O âmbito ainda não explicado, não explorado do corpo que Onfray reivindica, segundo nosso autor, não deve ser tratado da mesma maneira que a tradição ocidental o concebeu. Com efeito, ao que se mantém tradicionalmente no limiar, no abandono, acoplado às patologias 62, ou ao não-dito, Onfray prefere encarar como potencialidades ainda não exploradas dos eflúvios corpóreos, pois, em sendo a medicina não uma ciência, mas uma arte63, o adentrar nessas searas pode dar ensejo a encontros benfazejos com novas possibilidades existenciais. Onfray considera que o artifício e a cultura, além de poderem se firmar como instrumentos de resistência contra os desígnios de hegemonias ideológicas, também o podem quanto às forças cegas da natureza. Na medida em que os homens se hominizam, artificializando, trabalhando pela emancipação das condicionantes naturais nocivas à existência, eles instauram possibilidades que, segundo Onfray, não precisam necessariamente recuar, nos moldes de Hans Jonas, diante do que, hoje, oferece a ciência. Neste sentido, nosso filósofo chega a falar numa “superação do humano” (ONFRAY, 2010, p. 106) que, diversamente das fórmulas binárias de negação ou afirmação, supõe a manutenção do humano com o acréscimo do artifício, da cultura, da inserção de inteligência humana no corpo “para que ele se

62 63

Onfray se refere aos transes, às catalepsias, às intuições, os feitos dos iogues, etc. Onfray a concebe assim.

81 emancipe, na medida do possível, dos determinismos da necessidade natural” (ONFRAY, 2010, p. 108, grifo do autor). Livrar-se dos determinismos, para Onfray, significa, por exemplo, “diminuir as oportunidades de uma presença dolorosa no mundo (ONFRAY, 2010, p. 109) e “aumentar as possibilidades de uma presença feliz (ONFRAY, 2010, p. 109). Neste sentido, o filósofo argumentará que, em sendo a saúde em todo caso preferível à doença, é criminosa qualquer veleidade que reivindique a inação quando se dispõe, hoje, de soluções transgenéticas de evitamento do mal. Temas controversos e polêmicos que cercam a bioética contemporânea, como o aborto e o uso de embriões para a captação de células de múltiplos desdobramentos genéticos são também tratados por Onfray. Sua solução, como se poderia esperar, é material hedonista:

A matéria cinzenta deve poder reagir aos estímulos redutíveis a dois tipos: a capacidade de sentir o prazer e a possibilidade de sentir a dor – base do hedonismo. Cientificamente, essa possibilidade anatômica se situa na vigésima quinta semana de existência do feto. É essa a data a partir da qual ele sai do nada para entrar no humano, apesar de ter sido vivo desde o encontro espermatozóide/óvulo. (ONFRAY, 2010, p. 114)

Para Onfray, antes e após o humano, ou seja, fora da linha que permite a “capacidade de perceber o mundo, de senti-lo, apreende-lo sensualmente, ainda que sumariamente” (ONFRAY, 2010, p. 114) a bioética prometéica pode agir,

Todas as operações humanas são ontologicamente justificadas e legitimadas. Antes: seleção genética, trabalho sobre o embrião, triagem destes, contracepção, aborto, transgênese; depois, em caso de morte cerebral constatada, de vida artificialmente mantida, de coma irreversível devidamente constatado: eutanásia, retirada de órgãos. (ONFRAY, 2010, p. 114 – 115)

82 Para o caso específico da eutanásia, considerando a influência do judaico-cristianismo nas interpretações tradicionais acerca da existência humana, Onfray propõe uma “pedagogia da morte” (ONFRAY, 2010, p. 116). Recorrendo às sabedorias antigas, notadamente aos ensinamentos de Epicuro, nosso autor argumenta que a existência não se mede pela quantidade de vida vivida, mas pela sua qualidade, pois “morrer bem é melhor do que viver mal” (ONFRAY, 2010, p. 117). De sua perspectiva hedonista, Michel Onfray interpreta a vida como o agregado de forças que resiste à morte. Neste sentido, a morte anula a vida tanto quanto esta àquela. Assim, a morte perde o caráter de tabu, pois, para Onfray, quando ela se instala, não há mais ser para a constatar, quiçá para a sentir.

Uma política libertária. O liberalismo liderado pelos Estados Unidos triunfou, a despeito de todas as misérias que o acompanha, sobre o sonho socialista. Sem luta, sem guerra direta, o muro de Berlim caiu. A potência soviética ruiu, paradoxalmente, pela ausência de dialética. Diante do liberalismo planetário sob o qual vivemos, pergunta-se Onfray, onde o contraponto político? Onde as resistências contra a violência e as misérias engendradas pela lógica liberal, consumista, predatória? Certamente não na Europa, que, para nosso autor, não passa de um “elo útil na corrente de um governo planetário por vir” (ONFRAY, 2010, p. 123). O único inimigo visível atualmente, segundo, Onfray, é inepto: o islã político (ONFRAY, 2010, p. 123). A esquerda governamental, embevecida pelas benesses do poder, resigna-se às lógicas liberais e às conseqüentes dejeções humanas efetivadas pelo sistema notadamente oligarca. Diante disso, para Onfray, a realidade sócio-política contemporânea continua tornando atuais os ideais de esquerda: “defesa dos miseráveis e dos sem qualificação, a preocupação com o bem público, a aspiração à justiça social, a proteção das minorias, etc.” (ONFRAY, 2010, p. 123 – 124). Porém, segundo nosso autor, a apropriação semântica engendrada pelo terror midiático e pelo fascismo micrológico de colaboração com o sistema dominante oprime a esquerda que permanece esquerda. Neste sentido, hoje, falar do povo, segundo Onfray, recebe a conotação de populismo, ao passo que

83 reivindicar a ampliação da democracia passa por demagogia. Essa é a política que vinga. Essa é a lógica que impera. Sob o sistema atual, a miséria é ocultada, camuflada, tornada distante. O sucesso da atual ordem sócio política planetária não pode prescindir, segundo Onfray, da ocultação da miséria suja produzida pela dinâmica liberal. Onfray denuncia os movimentos ditos progressistas que fazem de tudo para esconder a miséria concreta, real, que se avizinha nitidamente em nome de campanhas e verborragias caritativas, pseudo-humanitárias, inócuas que, além de não mostrarem os reais beneficiários dessa ordem de coisas, limpam, em catarse, as consciências que abordam a miséria como algo distante, cosmopolita, mundial, calculável em estatísticas. Para Onfray, o fascismo contemporâneo é invisível, micrológico, e que supõe, diversamente de outrora, não o uso ostensivo da força, mas revoluções e apropriações de significantes. Em comparação com os totalitarismos do século XX, os resultados, segundo Onfray, são semelhantes:

Trata-se sempre de reduzir o diverso ao um e de submeter as individualidades a uma comunidade que as transcende; recorre-se ao pensamento mágico, aos instintos mais que à razão; intimida-se; justifica-se o terror pela luta contra inimigos transformados em bode expiatório; constrange-se menos o corpo do que se subjugam as almas; não se maltrata a carne, mas massacra-se o espírito; não se lança a tropa; formatam-se as inteligências para não, ou não mais, pensar. Nada muito novo, salvo a embalagem... (ONFRAY, 2010, p. 128)

Diante

dessa

dinâmica

sutil,

microscópica

de

aliciamento

das

individualidades à adesão ao sistema hoje dominante, Onfray afirma imperiosa a necessidade de se saber constatar, em nível micrológico, individual, a presença do poder microfascista para que se possa boicotar a transmissão, a irradiação das energias que põem em funcionamento a máquina sombria do Leviatã liberal. Definindo a esquerda como “um desejo de não compor com a pobreza, a miséria, a injustiça, a exploração da maioria por um punhado de abastados” (ONFRAY, 2010, p. 131), Onfray afirmará que conjurar o espírito de esquerda supõe uma questão menos racional do que a insurgência do que ele

84 chamará de “gênio colérico da revolução” (ONFRAY, 2010, p. 132), ou seja, trata-se de uma força que sentimos em nós ou não, que leva a compor com o negativo ou não. Para Onfray, resistir à dinâmica liberal não é tornar-se reativo a ela, não é pautar sua ação única e exclusivamente em função de uma reação às injunções das engrenagens. Segundo Onfray, isso levaria o indivíduo a uma existência heterônoma, reativa, biliosa. Resistir, no sentido onfraryano, diz respeito mais à não-colaboração, à não composição, na medida do possível, com a violência darwinista que o capitalismo planetário supõe. Praticar a resistência é impedir a difusão das energias sombrias, é encarar a revolução menos como algo inerente à História maiúscula do que como algo que se refere ao presente, ao ato, no agora. Onfray entende que a resistência se processa melhor na agregação das forças nômades, nominalistas, ou seja, na agregação pontual de indivíduos que refutam o martírio, que sabem dos riscos da ação heróica solipsista. O revolucionário onfraryano rechaça o ideal do mártir e pactua com os seus, compõe com aqueles que também não querem se prestar ao papel de apêndices maquinais da dinâmica dominante.

85

OS MALDITOS, OS REPROVADOS, OS EXPLORADOS

“Só a filosofia moderna, desde Descartes, levou a sério a tarefa de conduzir o cristianismo a uma eficácia completa, ao elevar a „consciência científica‟ ao estatuto de única forma de consciência verdadeira e válida. É por isso que começa com a dúvida metódica, com o dubitare, com o „esmagamento‟ da consciência comum, com a recusa de tudo o que não possa ser legitimado pelo „espírito‟, pelo „pensamento‟”. (STIRNER, 2004, p. 72 – 73)

A configuração sócio-existencial do mundo contemporâneo, segundo Michel Onfray, permite-lhe fazer aproximações interpretativas com o advento do nazismo na medida em que encontra, em nossos dias de capitalismo tornado planetário, a manifestação das atualizações e a permanência de elementos que possibilitaram o horror dos campos de concentração:

O campo de concentração nazista funciona como um local onde se revela, de modo exacerbado, a exploração que existe em todos os cantos do planeta; o capitalismo criou, desde o momento em que passou a dominar sozinho, as condições que permitem com muita freqüência e tragicamente uma assimilação do pobre, do proletário e do deportado, associados em uma comunidade de destino, privados de sua individualidade, submetidos, sujeitos, submissos e sem esperança de sair dos cárceres nos quais se estagnam como se expiando um erro maior, um pecado capital: o de ter vindo à luz, de ter nascido. (ONFRAY, 2001, p. 47)

Entendendo como efetivamente de naturezas semelhantes tanto o nazismo como o capitalismo em sua versão global, Michel Onfray defenderá que, sendo o nacional socialismo alemão a explicitação mais evidente do horror em termos de prática política, faz-se necessária uma lida verdadeiramente compreensiva, esclarecedora desse momento sombrio do século XX com vistas a esconjurar quaisquer possibilidades de seu retorno. Para Onfray, que se põe contrário às teses de Adorno, para o qual o advento do holocausto configurou o ápice do eclipse da razão ocidental, deve-se lidar com o nazismo

86 conservando-o, preenchendo-o de memória e de compreensão para que, na prática, possa-se ultrapassá-lo. A perspectiva de abordagem que Onfray efetua sobre a experiência concentracionária parte da literatura oriunda dos sobreviventes dos campos de concentração. Nosso autor entende que, se por um lado muito já se disse sobre a especificidade do horror nazista, dos métodos e práticas nos campos, pouco se falou e, consequentemente, pouco se aprendeu das lições trazidas pelos sobreviventes que, sob a verve literária, poderiam fornecer as chaves experienciais e existenciais que permitiriam uma substancial reflexão filosoficopolítica que servisse de base tanto à compreensão do presente quanto à postulação de práticas diversas daquelas que permitiram o horror. Invocando, dentre os de outros sobreviventes, os escritos de Robert Antelme, Onfray afirma que a experiência dos campos de concentração ensinam a “odisséia da consciência que não se dissolve sob a opressão” (ONFRAY, 2001, p. 36). Do cerne do horror nos campos, segundo Onfray, emana a lição basilar de sua ontologia: contra o artifício da ideologia que cinde, cava fossos, hierarquiza tanto os homens como uma suposta essência distintiva das espécies humanas, uma única espécie resplandece: nazistas, judeus, carrascos, vítimas, senhores e escravos nada mais são do que “homens, desesperadamente homens, mais próximos nos seus desvios e diferenças do que o último dos homens e o primeiro animal” (ONFRAY, 2001, p. 37). Amparado na assertiva de Antelme, para quem a opressão pode matar um homem, mas não transformá-lo em outra coisa64, Onfray defenderá a tese da natureza essencial do humano no homem, intrinsecamente associada ao corpo, à carne que sofre e que goza: “a verdade de um ser é seu próprio corpo” (ONFRAY, 2001, p. 37), pois mesmo sob o jugo do horror nazista, o núcleo humano

se

manteve,

achincalhado,

humilhado,

mas

mesmo

assim

desesperadamente atrelado à sua substância individual, única, condenada ao seu destino ao mesmo tempo singular e de espécie. A fisiologia humana é que esclarece a sua ontologia e impõe que se entenda o indivíduo como o essencial, o primordial, a pedra angular sobre a

64

Citação referida acima, vide subcapítulo intitulado “O Único”, destinado a Max Stirner.

87 qual toda ética e toda política se tornam possíveis. Contrário aos postulados éticos universais e às concepções globalizantes dos ideários econômicopolíticos contemporâneos, Onfray buscará fundamentar toda relação humana sobre essa verdade descoberta nos campos de concentração: “o que faz a irredutibilidade de um ser é sua individualidade, e não sua subjetividade, sua humanidade ou sua personalidade” (ONFRAY, 2001, p. 38). A individualidade material é, portanto, o que há de comum entre os seres. O núcleo ontológico do homem, a sua essência se imbricam com o fechamento material de seu corpo sobre si mesmo: “um só corpo, fechado dentro dos limites indivisíveis de sua individualidade solipsista” (ONFRAY, 2001, p. 38). Em defesa de seu conceito de indivíduo, ou seja, em prol de sua política individualista que se quer afastada do egoísmo praticado sob o capitalismo, Michel Onfray refutará ainda as noções de subjetividade e de personalidade para a caracterização do humano. Sobre a subjetividade, dirá que esta foi exacerbada em nossa época, sedimentando a idéia de que o ser se define por sua exterioridade e que esta só é atribuível, sempre, por, para e dentro da submissão, da subsunção do que há de singular no indivíduo. Sob o signo da subjetividade, supõe-se, diz Onfray, princípios que pretendem ultrapassar e subsumir a singularidade auto-identitária:

O sujeito o é sempre de alguma coisa ou de alguém. De maneira que se encontra sempre um sujeito menos sujeito que outro na medida em que, apoiado sobre o princípio em questão, um se autoriza incessantemente a submeter o outro: o juiz, o policial, o professor, o padre, o moralista, o ideólogo, todos gostam tanto dos sujeitos, submissos, quanto temem ou detestam o indivíduo, insubmisso. (ONFRAY, 2001, p. 39)

Uma vez que se entende que “o sujeito se define em relação à instituição que o permite” (ONFRAY, 2001, p. 39), essa relação, para nosso autor, exige que o indivíduo, aquela paragem que refulge quando todos os ouropéis sociais foram despojados de sua imponência (menção aos campos de concentração), se submeta e passe a, também, sujeitar. Em suma, o sujeito,

88 submetendo-se a um princípio que o excede, passa a se tornar aquele que sujeitará em nome do ideal ao qual serve. Contrário

também,

como

dissemos,

à

noção

de

pessoa,

de

personalidade, Onfray recorrerá primeiramente à etimologia: “a palavra [pessoa] procede da máscara usada em cena” (ONFRAY, 2001, p. 39). A metáfora é portanto teatral: o ser aqui se definiria como aquilo que aparece para o outro e não em sua resplandecência singular ou em sua miséria individual. O jogo de cena, o artifício, a vida como ficção, para Onfray, pode se tornar legitimadora, mola propulsora para as ideologias que almejam cavar abismos entre os seres para melhor explorá-los. De modo diverso, a figura do indivíduo remete, portanto, à sua indivisibilidade, à sua irredutibilidade. Um indivíduo, ao contrário de um egoísta (para quem nada mais existe além de si), reconhece, nas camadas mais profundas

da

subjetividade

(adquirida

do

exterior,

do

contexto),

a

individualidade de outrem: princípio da ética. O indivíduo é a mônada que subsiste, é o caroço duro, metafísico, que permanece sob todas as camadas sucessivas que designam o sujeito, o homem, a pessoa. O indivíduo é sua corporeidade e tudo o que a supõe saudável, organizada, harmônica, vivendo uma existência própria. É para esta individualidade corpórea, é em defesa dela que Onfray buscará “as condições de possibilidade de um individualismo que não seja um egoísmo” (ONFRAY, 2001, p. 39), pois as lições tiradas dos campos

de

concentração

e

daquilo

que

deles

subsiste

no

mundo

contemporâneo informam que “o indivíduo deve ser destruído, depois reciclado, integrado em uma comunidade provedora de sentido” (ONFRAY, 2001, p. 41). Onfray entende

que

nossa época é herdeira

de

séculos de

sedimentação do gregarismo existencial e do universalismo em searas filosóficas. Isso, ao ver de nosso autor, impôs um combate epistêmico às singularidades, às multiplicidades que se fazem e se perfazem ao derredor dos indivíduos, ocultando delas a natureza solipsista do existir humano, em virtude da qual cada singularidade é, ao mesmo tempo, condenada à sua única vida e responsável

pelas

orquestrações

necessárias

à

imposição

de

sua

individualidade em seu existir com os outros. No registro da constatação tirada dos campos de concentração, qual seja, a de que o indivíduo é a “pedra angular com a qual se organiza o mundo” (ONFRAY, 2001, p. 40), nosso autor

89 se proporá o erigir de uma concepção política65 que rompa com os modelos clássicos dentro dos quais os indivíduos são convidados a se tornarem os sujeitos prototípicos elogiados pelas ideologias socialmente aceitáveis e pretensamente universais. A política onfraryana se apresenta, assim, como contraposta às lógicas holistas nas quais as mônadas existenciais perdem muito, quando não tudo, de sua natureza, sua força, sua potência, pois “é sempre em nome do todo que [se] é solicitado a acabar com a parte, que, no entanto, triunfa como um todo sozinha” (ONFRAY, 2001, p. 41). Se, portanto, vivemos desde sempre sob a égide de universais, tais como Deus, rei, teólogo, corpo social pacificado (Estado comunista), fascismo, nazismo, capitalismo (no qual, obcecados pela lei do mercado, os sujeitos prestam culto, sucumbindo, se deixando levar pela regulagem mecânica dos fluxos de dinheiro e benefícios), Onfray entende a necessidade de uma inversão das perspectivas de forma a esconjurar o negativo do fixismo, a negação do dinamismo inerente aos valores universais, pois “o campo de concentração pode ser entendido como a demonstração exacerbada do que resulta do triunfo absoluto e sem partilha de um universal admitido como tal” (ONFRAY, 2001, p. 42). Invocando novamente Robert Antelme, nosso autor interpretará como movida pelo desejo de exploração e servidão toda teoria ou prática sócio-política que postule diferenças essenciais entre os indivíduos. Ora, essas distinções, essas divisões em classes, raças, credos, etnias, capacidades maiores ou menores de se vergar à submissão constituem, para Onfray, o triunfo das ideologias de nosso tempo, dentro das quais medraram tanto os campos de concentração como as misérias às quais são relegados os sujeitos tidos por dejetos do corpo social capitalista: os destituídos de trabalho e de dinheiro. Entretanto, a presença, nas sociedades capitalistas contemporâneas, daquilo que permitiu o nazismo, se manifesta, para Onfray, de maneira mais sutil, dissimulada. O comer, o beber, o dormir, por exemplo, ou, em suma, tudo aquilo que permite a proteção apropriada que se deve dar ao corpo é, em 65

Dado que o enfoque do presente trabalho repousa sobre a concepção de subjetividade em Max Stirner e Michel Onfray; e dado também que o que se visa neste subcapítulo é a descrição que Onfray faz das subjetividades engendradas pela contemporaneidade, não nos prolongaremos em sua propositura filosófico-política. Neste sentido, nos limitaremos a convidar nosso leitor ao vislumbre dos últimos parágrafos do subcapítulo anterior, destinado à síntese da obra de Michel Onfray.

90 nossos dias, a explicitação sutil de uma lição dada exemplarmente pelos nazistas que, no que se refere aos cuidados com o que singulariza, ou seja, o corpo, privavam “os deportados ao máximo com o único objetivo de conservar sua submissão” (ONFRAY, 2001, p. 52). Se a negação ou a interdição do que permite viver e sobreviver parece, sob a lógica nazista, pouco ou nada civilizadas, o capitalismo formulou uma dinâmica de horror menos explícita: “delimitaram o terreno cujo acesso deve ser pago. Melhor assim para aqueles que podem fazê-lo, os outros se contentarão em gemer, para isso estão autorizados...” (ONFRAY, 2001, p. 55). É sob a dinâmica da pauperização, ou, ao menos da interdição daquilo que permite a vida segundo a imperiosa necessidade da paga que o capitalismo retroalimentará as hordas de sujeitos que, com seus corpos, com seus esforços, mas sem sua resplandecência vital, voluntariosa, individual, singular porão em movimento o corpo social do qual Michel Onfray nos oferece a sua “cartografia infernal da miséria” (ONFRAY, 2001, p. 60) sobre a qual falaremos a seguir.

O materialismo hedonista de Michel Onfray não se furta, em suas metáforas, a designar a trama relacional e energética que põe em movimento a ordem social capitalista pelo termo corpo. É também sem embargo que nosso autor reivindicará o conceito de Leviatã, proposto por Hobbes, para dar nome à consubstanciação de todos os elementos implicados no corpo social burguês, tornado o leitmotiv fundamental de quase toda a vida humana no planeta. O Leviatã onfraryano resulta do agregado de autômatos assimilados a uma poderosa máquina política que dita as regras da conduta e da existência humana na Terra. No registro das possibilidades existenciais daqueles e daquelas que tentam viver e sobreviver sob a lógica do capitalismo planetário, Onfray dirá que o resultado das dinâmicas do Leviatã, “essa máquina histérica [que] produziu sobre a terra um inferno contemporâneo” (2001, p. 61), uma miséria suja avizinha-se incessantemente. Por miséria suja, Onfray entende

“A miséria encarnada, a miséria suja que tem nomes: mendigo e desempregado, delinqüentes e trabalhadores temporários, aprendizes

91 e empregados, operários e proletários, aquela que roda a bolsa com as prostituas, dorme sob as pontes com os vagabundos, deita-se no leito dos prisioneiros, assombra o sono e a noite das pessoas sem trabalho”. (2001, p. 63).

Ao passo que os intelectuais e filósofos chancelados por Leviatã, segundo Onfray, comprometem-se, numa espécie de catarse, apenas com as misérias limpas, “aquelas dignas e suscetíveis de abrir as portas de um reconhecimento midiático ou de um hipotético prêmio Nobel” (ONFRAY, 2001, p. 61), ou seja, aquelas que remetem apenas às trágicas conseqüências dos genocídios e guerras entre nações histéricas, nosso autor se proporá a tarefa de cartografar (dando nomes, fazendo um esforço de apropriação semântica que coloque as expressões escravidão, dominação, sujeição e exploração na ordem do dia) o inferno engendrado pela lógica liberal-capitalista hegemônica tanto no ocidente quanto no oriente. O sujeito contemporâneo é condicionado, segundo Onfray, a existir num inferno composto por três círculos. Atualizando as metáforas de Dante66, nosso autor dirá que esses círculos são concêntricos e que sua dinâmica é centrífuga, isto é, empurra os sujeitos para as bordas, ao passo que estes, desesperados, empreendem seus corpos e suas energias intelectuais na direção do centro, ou seja, retroalimentando o influxo que tenderá a empurrar outros infortunados para as zonas sombrias, periféricas. Na borda extrema dos círculos residem os malditos, aqueles que nada mais possuem além de si próprios, vivendo e sobrevivendo sob os ditames da animalidade, ou seja, relegados a tentar apenas a satisfação de suas necessidades naturais, animais: “comer e beber, primeiro, dormir depois, se proteger das intempéries. Nada mais” (ONFRAY, 2001, p. 64). Os malditos constituem a zona dos mendigos e dos vagabundos, daqueles que, em tendo sucumbido na luta contra Leviatã, tiveram roubado seu direito à humanidade. O corpo dos mendigos, segundo Onfray, é irmão dos corpos dos judeus deportados pelo nazismo hitlerista: o corpo é o único domicílio, tornado uma verdadeira maldição pela ordem vigente. Corpo de deportado e corpo de homem pré-histórico, assim se define o núcleo existencial do mendigo: 66

Expressas em sua obra “A Divina Comédia”.

92 animalização, destituição de privacidade, necessidades naturais efetuadas em público, submissão às intempéries do clima, o perigo iminente dos predadores, técnicas rudimentares de nutrição: colheita, imediatismo, nomadismo forçado, darwinismo, a vida vivida como guerra e risco constante. Eis o cotidiano dos dejetos, da defecação do corpo social, do Leviatã liberal que faz dessa miséria não uma questão conjuntural (como o querem os ideólogos do sistema), mas uma necessidade estrutural, uma vez que decorrente “de um modo de repartição social, política portanto, dos recursos e dos bens, das riquezas e dos valores” (ONFRAY, 2001, p. 68). O círculo dos malditos consubstancia, de maneira direta, positiva, a degradação de um corpo social engendrado por e para a oligarquia e, de modo indireto, negativo, como uma pedagogia do medo, destinada aos demais habitantes do inferno. Avancemos rumo ao centro e passemos ao segundo círculo. Estamos agora na terra dos reprovados, ou seja, no habitat daqueles e daquelas que encarnam não mais as dejeções efetivas do Leviatã, mas os sintomas de suas patologias congênitas. Os reprovados são seres fronteiriços, ainda não foram totalmente destituídos, ejetados pelo corpo social, e tampouco o foram assimilados, reciclados e digeridos pelo Leviatã. Ainda não mendigos e, ao mesmo tempo, ainda não explorados oficialmente, os reprovados se distribuem por duas zonas denominadas por Michel Onfray de regaço e fossa67. No regaço encontram-se aqueles e aquelas cujos corpos são considerados improdutivos: “os velhos, os loucos, os doentes e os delinqüentes” (ONFRAY, 2001, p. 71). O pecado dessa espécie de reprovados68, que em geral os relega ao hospício, ao asilo, ao hospital, à prisão é:

O de ter tomado naturalmente, voluntária ou involuntariamente, sob o efeito de tropismos hereditários ou de vontades deliberadas, pouco importa, caminhos enviesados, vias oblíquas que transgridem o ideal formulado para si mesmo por Leviatã: juventude, saúde, razão, moralidade. (ONFRAY, 2001, p. 71)

67 68

Em mais uma remissão a Dante. Os dos “corpos improdutivos”, que se distinguem dos de “forças improdutivas”, como se verá adiante.

93 Aos velhos, desde que não possuam os recursos que os habilitem ao consumo, a existência se inscreve sob o signo da ausência de sensualidade, de sexualidade, de vida pública. Aos velhos é destinada uma existência pacata, modesta, o mais discreta possível. Já aos loucos, ou seja, àqueles que, mesmo que involuntariamente, desertaram à razão ocidental, àqueles aos quais o diploma, esse legitimador do bom uso da razão não se faz mais verossímil com aquele que o possui, a reclusão é o destino, pois, aos olhos do Leviatã, as razões e os corpos devem estar calibrados e compatíveis com as exigências do corpo social produtivo, caso contrário, será vedada ao louco e ao velho a possibilidade de existirem integralmente:

Tornado autônomo, o corpo político, decalcado sobre o corpo dos indivíduos, exigiu e obteve que sua própria carne tomasse como modelo as virtudes do corpo social: saúde, vigor, eficácia, produtividade, rendimento, performance. Tudo aquilo que não ilustra a excelência e a pertinência do modelo induz à rejeição social. (ONFRAY, 2001, p. 74)

De maneira semelhante, o corpo que tem a doença constatada é deslocado para a esfera da reprovação, que pode ser momentânea ou definitiva, a depender das deliberações havidas no local fechado, de leis próprias, consubstanciado pelo hospital no qual, de maneira feudal, em função de poderes quase divinos, os médicos legislam acerca da aptidão ou inaptidão do corpo para a produção e reprodução social. Por fim, encerrando a descrição dos habitantes do regaço neste círculo dos reprovados, encontramos os delinqüentes, aqueles que, voluntariamente, temerariamente, ousaram querer à margem das delimitações impostas por Leviatã. Rejeitando as benesses oferecidas por Leviatã àqueles sempre prestimosos em recauchutar, com suas existências, as engrenagens sociais hegemônicas,

os

delinqüentes

em

geral

são

tidos

como

aqueles

desrespeitosos para com a moral vigente. Ao recusar a humildade, a docilidade, a pobreza voluntária, a moderação e outros ornamentos éticos reluzidos pelos reprodutores dos interesses do corpo social, o delinqüente atrai sobre si a ira virulenta de seus conterrâneos, que exigirão uma pronta

94 expiação. Surpreendentemente, aponta Onfray, se por um lado a recuperação moral é, no mais das vezes, mais factível do que as deficiências impostas pela velhice, pelas doenças ou pela loucura, o tratamento dispensando aos delinqüentes é eminentemente vingativo: “os delinqüentes presos são sujeitos a penas desproporcionais, visando, a maior parte do tempo, a punição pura, a humilhação crua e a expiação seca, em detrimento de toda reinserção possível” (ONFRAY, 2001, p. 76). Como se vê, aqui também, como no caso do círculo dos malditos69, o Leviatã manda seus recados pedagógicos, mas, no caso, àqueles que ousarem usar suas veleidades e seus corpos de maneira diversa do estabelecido social e moralmente. Partindo do regaço, onde os corpos improdutivos são, no mais das vezes, condenados à clausura, permaneçamos no círculo dos reprovados, mas avançando agora para a fossa, ou seja, para o território onde padecem os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados e os assistidos pelas pensões temporárias oferecidas àqueles que transitam sobre a linha limítrofe entre a maldição (círculo dos malditos, dos mendigos) e a exploração (esfera do trabalho assalariado). Esses habitantes da fossa que, embora tenham os corpos produtivos70, estão destituídos da possibilidade de empregarem sua força ao Leviatã. Sua morada concreta são, segundo Michel Onfray, os “subúrbios, conjuntos residenciais, zonas de edifícios que abrigam às vezes, num único prédio, o equivalente à população de um burgo do interior sem nada do que permite a convivência das aldeias do campo” (ONFRAY, 2001, p. 77). Essa espécie de reprovado encontra-se no mais das vezes relegada à violência empreendida pelos desempregados autóctones que, embora também reprovados, fazem luzir seus preconceitos e seus ódios que em geral são desferidos não contra o centro do qual emana a miséria, mas contra supostos causadores desse estado de coisas: os reprovados estrangeiros ou de etnias diferentes. Ainda sobre o ideário dos reprovados, Michel Onfray dirá que o alimento lhe dado por Leviatã é a esperança de um dia vir a se tornar um consumidor, ou seja, um “trabalhador recompensado por aquilo em função de

69

No qual medra a mendicância. Diferentemente dos que habitam o “regaço” exposto anteriormente (local dos loucos, dos velhos, dos doentes e dos delinqüentes) 70

95 que ele abdica de liberdade e autonomia para poder comprar ridículas quinquilharias celebradas como fetiches” (ONFRAY, 2001, p. 80). Antes de adentrar no último círculo, no dos explorados, cumpre ressaltar que Michel Onfray informa que entre o primeiro e o segundo círculos existem instâncias dinâmicas, de mobilidade, ligação, ou seja, existem as vias de passagem pelas quais os indivíduos transitam e se movem entre os círculos. Onfray afirma que entre o círculo dos malditos e o círculo dos reprovados, o elo de ligação é habitado pelos “indivíduos em situação de fim de direitos sociais” (ONFRAY, 2001, p. 80), ou seja, esse espectro compreende uma zona intermediária na qual o indivíduo se mantém antes de cair para o círculo inferior ou de se alçar ao superior. Já entre o segundo círculo, o dos reprovados, e o terceiro, dos explorados, encontramos os trabalhadores temporários. Como se vê, o que há em comum a essas duas instâncias é a sua condição de interinidade; o que as distingue é que na primeira a perspectiva é do pior, a da queda para o círculo dos malditos, na segunda o anseio é pelo compromisso para com a exploração tornada oficial e ininterrupta. Adentrando no último círculo, encontramos os explorados. As metáforas onfraryanas para designar esse grupo são contundentes. Por um lado, invoca as prostitutas, pois estas “resumem a condição do homem laborioso, o destino dos corpos submetidos às potências sociais, o caráter repetitivo, fastidioso e traumatizante de cada uma das reiterações que fazem a atividade para a qual cada um se dedica, mediante salário” (ONFRAY, 2001, p. 84). Por outro lado, o conceito inerente aos explorados é tomado a Aristóteles em sua Política: escravidão. É nesses termos que Onfray o emprega:

Não muito longe do umbigo dos limbos, há a imensa multidão de escravos – pois eu insisto neste substantivo já presente em Aristóteles. Ou seja, aqueles e aquelas que se definem como instrumentos animados ao lado dos instrumentos inanimados. Quem contestará que um define o proletariado, o outro a máquina? Eles são a propriedade dos homens livres. (ONFRAY, 2001, p. 87)

Os explorados, ou seja, os escravos contemporâneos, são localizados por Onfray, nas fábricas, escritórios, salas de aula, oficinas, empresas, todos

96 relegados a uma existência que muito mal se equilibra entre “salários de miséria,

cadências

infernais,

precariedade

do

emprego,

tirania

dos

supervisores, perspectivas de futuro impossíveis, indignidade das tarefas, embrutecimento dos cargos, sujeição à linha de montagem”, etc. (ONFRAY, 2001, p. 85). A rotina dos explorados se pauta pelo ritmo da repetição reiterada diariamente, onde a perspectiva é a da simples e pura recomposição das forças corporais durante o sono para, no dia seguinte, dar-se retorno às atividades laborais: “oito horas por dia, cinco dias por sete, onze meses por doze e mais quarenta anos em uma existência” (ONFRAY, 2001, p. 85).

Encerramos essa cartografia infernal da miséria e o presente subcapítulo, que teve como objetivo deslindar a análise de Michel Onfray acerca

da

produção

de

subjetividades

engendradas

pelo

social

na

contemporaneidade, dando ênfase ao destaque que nosso autor dá ao fato de que nem mesmo os gregos antigos, pioneiros na escravização, haviam estabelecido zonas nas quais se encontrassem indivíduos subsistindo de forma inferior àquela destinada aos escravos:

“A modernidade e o capitalismo arrebatado, em particular, geraram essas categorias sinistras que instalam o escravo – o proletário – no topo de uma hierarquia funesta enterrada nas trevas onde se estagnam malditos e reprovados”. (ONFRAY, 2001, p. 86)

Este é, em suma, o estado de coisas encontrado na contemporaneidade quando o aspecto observado é o da natureza das subjetividades engendradas pelo Leviatã liberal tornado potência global. Segundo nosso autor, as condições de possibilidade de existência fora dessa lógica sombria são, no mais das vezes, sufocadas pelos ideólogos do “fim da história” (ONFRAY, 2001, p. 86) que, com o reforço da propaganda, das instituições de ensino e dos demais locais chancelados a falarem em nome da ordem social, ensinam aos sujeitos que nada há de diverso em termos de práticas existenciais que possa se contrapor a esse Leviatã antropofágico no qual se tornou o capitalismo arrebatado de nossos dias:

97 O capitalismo formulou seu tipo ideal com a figura, anunciada por Marcuse, o homem unidimensional, variação sobre o tema proposto por Nietzsche do homem calculável. Seu retrato é conhecido: iletrado, inculto, ávido, limitado, sacrificando-se às palavras de ordem da tribo, arrogante, seguro de si, dócil, fraco com os fortes, forte com os fracos, simples, previsível, amante arrebatado dos jogos e dos estádios, devoto do dinheiro e sectário do irracional, profeta especializado em banalidades, em idéias curtas, tolo, néscio, narcisista,

egocêntrico,

gregário,

consumista,

consumidor

de

mitologias do momento, amoral, desmemoriado, racista, cínico, sexista, misógino, conservador, reacionário, oportunista, portador ainda de alguns traços da mesma natureza que definem um fascismo ordinário [...]. Eis o sujeito cujos méritos, valores e talento são hoje vangloriados. (ONFRAY, 2001, p. 171 – 172)

Entendemos que dar valor a essas palavras de Michel Onfray implica na atualidade da problemática posta já por Stirner no século XIX e na consequente necessidade de ao menos se encetarem tentativas de resgate do indivíduo. Se outrora (no tempo de Stirner) os pontos cardeais impostos à subjetividade eram eminentemente de cunho religioso, científico, filosófico ou político, hoje, o norte é outro (mas que continua a existir como norte..., como molde). Embora ancorado na mesma matriz heterônoma, o produto subjetivo hodierno é da ordem do consumismo, ou seja, da retro-alimentação de um sistema de produção e consumo massificados (que reverberam, obviamente, nas subjetividades inconscientemente subsumidas por tal sistema).

98

O INDIVÍDUO

“Há tanta coisa a querer ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!” (STIRNER, 2004, p. 9)

A raiz filosófica da possibilidade de advento de novas configurações existenciais em nosso presente se encontra, para Michel Onfray, em Nietzsche e naquilo que nosso autor designará por “nietzschismo de esquerda francês do século XX” (ONFRAY, 2001, p. 151). Onfray dirá ainda que as ocorrências filosóficas mais potentes desse nietzschismo de esquerda se encarnam nas obras de Bataille, Deleuze e Foucault, das quais seria possível fazer engendrar uma grande política para o novo indivíduo, rompido com a alienação e com os tropismos oriundos do ideário hegemônico no capitalismo planetário. Considerando que foram pouco exploradas as possibilidades filosóficas e existenciais abertas pelo nietzschismo de esquerda francês, Onfray intentará, aliando seu projeto hedonista às rupturas onto-epistemológicas empreendidas pelos autores supramencionados, dar corpo a um projeto ético e político que ponha o indivíduo singular na ordem do dia, ao passo que intentará rechaçar todas as ideologias pretensamente universalistas, gregárias e de subsunção total do indivíduo a imperativos sociais que desconsideram a parte para celebrar o todo. Amparado na assertiva foucaultiana, expressa no livro As palavras e as coisas, de que o homem ocidental, tal e qual o concebemos ainda, encontrarse-ia na possibilidade de um crepúsculo terminal de seu advento:

Se essas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como

99 aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia. (FOUCAULT, 2000, p. 536)

Michel Onfray acredita poder adiantar, avançar no esboço dessa nova figura existencial que adviria (após a morte de Deus em Nietzsche) com a morte do homem tal e qual Foucault a indicou. Se Michel Foucault, na ocasião da escritura do livro As palavras e as coisas71, não dispunha ainda dos signos, dos elementos, das anunciações do que poderia vir a se assemelhar a uma nova subjetividade contraposta àquela engendrada pelo idealismo platônico, pelo ideal ascético cristão e, mais contemporaneamente, pelo advento das sociedades capitalistas, Michel Onfray acredita encontrar nos acontecimentos do Maio de 6872, em Paris, a emergência, mesmo que pontualmente, do desejo de ultrapassar o humano rumo a um “devir revolucionário dos indivíduos” (ONFRAY, 2001, p. 182). Cumpriria, então, para nosso autor, dar seqüência aos acontecimentos de Maio de 68 com vistas à insurgência de uma nova ética, de uma nova intersubjetividade, de uma nova política onde o pensamento turiferário da reação aposta no retorno às morais e aos valores caducos do passado. Na trilha da morte do homem foucaultiana, Onfray defenderá também a ruptura com o humanismo clássico, de direitos humanos praticado no Ocidente uma vez que esse humanismo, funcionando como vetor ideológico de manutenção do sistema capitalista, além de reciclar as engrenagens da submissão, alienação e exploração dos indivíduos no sistema, também poupa os reais beneficiários da estrutura e das dinâmicas próprias ao Leviatã brevemente cartografado acima: “O humanismo, por exemplo, induz o deslocamento do desejo de justiça para a prática da caridade, em detrimento da equidade, ao mesmo tempo que ele poupa as causas da injustiça, da miséria ou da pobreza” (ONFRAY, 2001, p. 157). Partindo das nefastas evidências de sua cartografia infernal da miséria e imbuído do desejo de esconjurar todo o negativo a elas inerente, Michel Onfray 71

No ano de 1966. Conforme Olgária Matos: “Aqueles que em Maio de 1968 se sublevaram estavam recusando muito mais uma certa forma de existência social do que a impossibilidade material de subsistir nesta sociedade: „contrariamente a todas as revoluções passadas, diz Jacques Baynac, Maio de 1968 não foi provocado pela penúria mas pela abundância‟”. (MATOS, 1981, p. 8) 72

100 julga

impertinente

o

humanismo

nos

moldes

clássicos,

hoje

tido

ideologicamente como a única possibilidade de se pensar e agir na contracorrente às inconsistências do capitalismo. Com efeito, para Onfray, pouco, ou nada, poderá ser feito em prol do combate à pobreza, à miséria, à fome, à mendicância, à enfeudação dos sujeitos às injunções da produção e do consumo quando nada for efetivamente feito para além “de uma simpatia aristotélica, uma comiseração agostiniana, uma compaixão espinozista ou uma condolência kantiana” (ONFRAY, 2001, p. 158). O humanismo, para Onfray, depõe a política, inviabiliza os desejos efetivamente voltados à reivindicação canalizando-os à alienação, à admissão da origem divina do atual estado de coisas. Contra o humanismo de direitos que não se efetivam, Onfray propõe o advento e a ação de “indivíduos soberanos” (ONFRAY, 2001, p. 159): “imaginemos então uma nova época, possibilitada pelas fraturas abertas em Maio de 68, tendo, ao centro, o indivíduo soberano e o reino daquilo que chamarei o hedonismo” (ONFRAY, 2001, p. 159). O indivíduo soberano, portanto, é aquele que rompe com o humanismo, ou seja, com os aparelhos ideológicos destinados a fazer arrefecer os desejos, as energias reivindicatórias singulares em prol de um social nefastamente arquitetado sob os auspícios oligarcas do capitalismo arrebatado. O indivíduo soberano, trilhando por vezes caminhos ainda não visitados, em primeiro lugar reivindica-se a si, toma-se a si mesmo como objeto a ser esculpido por sua singularidade e porá em perspectiva crítica todo o maquinário social destinado à captação e redirecionamento de suas forças:

O trabalho, a família e a pátria, a moral, Deus, a ideologia e a metafísica, as grandes virtudes e as religiões humanistas, sem esquecer todas as mitologias falsamente democráticas às quais convém atualmente se sacrificar e se submeter sem procurar compreendê-las ou questioná-las. (ONFRAY, 2001, p. 160)

Problematizando a caridade, criticando as virtudes socialmente aceitas, como a dignidade, a decência e a compaixão, o indivíduo soberano se dirige para a destruição dos ideais ortodoxos perspectivado pela criação de novas

101 formas de existir e agir. Michel Onfray considera que a compaixão é uma virtude inoperante, que não capta, ao modo genealógico nietzschiano, a raiz das misérias contemporâneas, mas se contenta em remendar o negativo em sua superfície, lá onde o indivíduo soberano, pela ação, fá-lo-ia cessar. Do ponto de vista filosófico, cumpre ao indivíduo, no âmbito de suas possibilidades, refutar o platonismo, “rasgar esta rede metafísica” (ONFRAY, 2001, p. 162), criticar as verdades produzidas e reproduzidas histórica e culturalmente sob o signo dos absolutos intocáveis. Em primeiro lugar, cumpre rechaçar a noção de alma que, separada do corpo, o submete aos desígnios ascéticos erigidos tanto pelo platonismo como pelo cristianismo. O corpo do indivíduo soberano, bem como sua alma, são instâncias inseparáveis, únicas, cabendo a ele e unicamente a ele a responsabilidade para com o uso de suas partes material e espiritual. Em segundo lugar, cabe ao indivíduo apossar-se de sua consciência, fazendo-a emanar de si próprio, o que implica na liberação dos imperativos morais e epistemológicos que, tradicionalmente, legitimaram o pensamento correto, lógico, claro e distinto, estável ao passo que no âmbito da moral instalaram a noção de culpa, de ressentimento, de negativação da diferença o que, à singularidade, pouco sobra para a inventividade, para a criação de saberes, de verdades e de novas formas de existir. Por fim, o indivíduo soberano apossa-se do conceito de liberdade: lá onde o pensamento gregário, oficial faz da liberdade a ocasião de celebrar ou punir a ação, a liberdade do indivíduo se inscreve sob o signo da experimentação da novidade, da encarnação de seu ser e de seu agir em seu cotidiano, pois os conceitos universais que balizaram historicamente a existência tenderam a matar as veleidades individuais:

Assim, a alma, a consciência, o indivíduo e a liberdade tornam-se os quatro pilares da sabedoria ocidental moderna. Tornadas autônomas, essas categorias vivem pelo modo antinômico, de tal forma são contidas, retidas e definidas no uso estrito permitido pelo social. (ONFRAY, 2001, p. 163)

De tal forma que o indivíduo soberano, perante si, perante os outros e, principalmente, diante das misérias contemporâneas à nossa época, considera

102 que o humanismo clássico, confinado e circunscrito a princípios éticos e morais ideais, absolutos, abstratos desemboca numa cólera infrutífera que inviabiliza sua autorevolução ou na adesão à religião da caridade que, além de inócua, apenas recicla, em searas filosóficas, os decálogos cristãos e kantianos que já tanto se mostraram ineficientes diante das misérias nossas vizinhas. Recorrendo mais uma vez a Foucault, Onfray afirma que o indivíduo soberano é aquele que busca novos investimentos criadores em si. Sabendose o único portador e legítimo usuário de suas forças criativas, esse indivíduo buscará desconstruir-se enquanto sujeito de direitos humanos em prol de um projeto ético-estético de um novo e singular existir, buscará a novidade adaptada aos seus anseios no que se refere às suas relações com o mundo e com os outros. Para Onfray, tratar-se-ia ainda de colher, das experiências do movimento de Maio de 68, as ocasiões de se pensar a legitimidade e a pertinência da “família mononuclear visando à procriação e substituída pelas partilhas sexuais e a indiferença dos parceiros em relação a isso” (ONFRAY, 2001, p. 164), por outro lado, no que concerne aos modelos relacionais e intersubjetivos contemporâneos, esvaziados de intensidade e fortemente carregados pelos signos pré-estabelecidos pelo status quo moral, cumpre ao indivíduo soberano criar “experiências subjetivas de todas as ordens, da associação de egoístas à maneira de Max Stirner, revogável instantaneamente, às práticas comunitárias no modelo proudhoniano, instaladas dentro de uma duração mais longa” (ONFRAY, 2001, p. 165). Em suma, cumpre delinear um “corpo novo” (ONFRAY, 2001, p. 165), uma subjetividade desobrigada, trilhando caminhos existenciais novos, tendo no hedonismo e em sua máxima gozar e fazer gozar – a ocasião do surgimento de um novo norte ético e político. Essa nova ética e essa nova política se erigem dos indivíduos. É das mônadas existenciais, concretas, corpóreas, singulares que brotará, segundo Onfray, a novidade em termos éticos e políticos. Portanto, se é do singular que partem os valores, as práticas existenciais, intersubjetivas e políticas, impossível não falar de um anarquismo como vetor dessa novidade. No que diz respeito ao seu anarquismo em específico, Michel Onfray dirá que este buscará reformular as tentativas, engendradas sobretudo nos séculos XIX e XX, de fundamentação política calcada nessa prática.

103 Tal empreendimento de reformulação se faz necessário sobretudo em razão do advento da obra de Foucault que, dadas as suas análises e assertivas acerca da natureza e da mecânica do poder, tornou caducas as teses formuladas pelo anarquismo clássico. Com efeito, uma vez que, alheando o poder unicamente do Estado, fazendo-o circular por todo o corpo social, o advento Foucault exige que não mais se pense a política nos moldes da descendência marxista, cientificista e/ou positivista com a qual operaram os teóricos do anarquismo no século XIX. Sob o signo dessas proposituras foucaultianas, portanto, o anarquismo clássico é ineficiente, além de claustrofóbico aos indivíduos, uma vez que é ainda fortemente permeado pelo humanismo, pelo otimismo, pelo puritanismo e pelo moralismo dos antigos libertários. Disso decorre que a filosofia anarquista contemporânea deve considerar as rupturas epistemológicas inauguradas por Deleuze e Foucault para, através delas, oferecer novas idéias, novas possibilidades de atuação política, senão novos modos de existência aos indivíduos. Se com Foucault o poder de Estado e o modo de produção são dissociados (de forma que a posse de um não acarreta na posse do outro), politicamente a ação deve, então, se dar de forma diversa da praticada pelos anarquistas clássicos. Tendo Foucault empreendido o rechaço ao monolitismo do poder e, ao contrário, mostrando-o presente em todos os lugares, imanente aos locais onde dois ou mais seres vivos se encontram, faz-se necessário ao indivíduo a prerrogativa de mapear a circulação do poder, isto é, as suas micromanifestações insidiosas. A resistência política onfraryana, assim, se torna disseminada, pactuada entre indivíduos insubmissos aos imperativos sociais heterônomos. Sendo o poder questão imanente, e não transcendente e monoteísta como fez crer a teologia medieval e moderna e a sociologia marxiana, cumpre ao indivíduo fazer-se guerreiro de guerrilha, incessantemente desperto, com inteligência, rapidez, sagacidade para desarmar e evitar as ocasiões de sujeição que amesquinhariam a sua existência. Mencionando

Deleuze73,

Onfray

dirá

que

o

indivíduo

deve

responsabilizar-se por encontrar em si as forças a serem postas em função de 73

Para quem “A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma por objeto a vida” (apud ONFRAY, 2001, p. 170)

104 sua singularidade, deve ser capaz de canalizar, orquestrar as energias que o atravessam de forma a permitir-se criar em consonância consigo próprio, ao passo que o sujeito doaria essa responsabilidade às injunções da ideologia dominante, aos imperativos morais socialmente aceitos e legitimados pela maioria. Portanto, a ética individualista onfraryana exige fidelidade à vida, mais, à própria vida de maneira a esconjurar os convites à morte da individualidade em função de um social castrador. Esse novo homem, esse indivíduo soberano reivindicado por Michel Onfray deseja, portanto, apropriar-se de seu corpo, de suas energias, de suas capacidades e potências. Deseja igualmente criar-se, problematizar a questão dos prazeres de forma a refutar os sentimentos de culpa, os ressentimentos e as dores que o pensamento oficial costuma agregar ao gozo e às existências jubilatórias. O indivíduo soberano supõe o governo de si, a confusão da ética, da estética e da existência; o responsabilizar-se por seus atos; a intersubjetividade contratual e jubilatória na qual o individualismo supõe menos o autismo egoísta corrente em nossos dias do que a ocasião de saber reconhecer a individualidade do outro e seu igual direito e desejo ao gozo. Longe de se querer adepto da barbárie, o indivíduo soberano que propõe Michel Onfray, após a morte do homem, se constrói menos dentro do solipsismo que sob o signo de uma perspectiva de “regozijo mútuo” (ONFRAY, 2001, p. 175) e das intersubjetividades pacificadas. Nas relações hedonistas do indivíduo soberano, que busca se fazer maestro e cultor de experiências sublimes,

O jogo de forças se curva, a partir de então, menos no sentido de Tânatos, como à época da submissão, do que na direção de Eros, por e para ele. O poder que os desejos disputam torna-se uma força empregada para procurar prazeres e obtê-los. (ONFRAY, 2001, p. 176)

Sob o signo dessa ética hedonista, intrinsecamente atrelada a uma construção estética de si, a ação política supõe o revolucionar-se em ato, o querer-se em potência ativa, em recusa, na medida de um possível sempre perseguido, à colaboração com as engrenagens sociais que desvitalizam. O

105 indivíduo soberano não se verga, em suma, a uma ética verbal e verbosa que quereria antes a compaixão que o ato revolucionário encarnado no presente e no corpo do indivíduo. Esse novo tipo de revolução, que tem no próprio indivíduo revolucionário a matéria prima de sua ação, não visa tomar o Estado, mas, pelo modo libertário, induzir ao devir revolucionário dos indivíduos com vistas a esconjurar o imobilismo e as entropias sociais que alienam os indivíduos de si mesmos, atuando pelo advento de uma sociedade movente, mutante, onde a vida é obrigação ontológica. As revoluções clássicas, dos futuros radiantes (ONFRAY, 2001, p. 182) sempre acarretaram em tragédias ou em protelação das misérias contemporâneas dada a natureza infactível dessas proposituras. Por outro lado, o devir revolucionário dos indivíduos supõe a factibilidade das transformações pontuais, microscópicas

e

cravadas no presente.

No

hedonismo como política, o aqui e o agora, sem abrir mão da inteligência e da cultura, se afiguram como matéria prima da criação. O presente, sob o signo hedonista, é um fim em si, é um absoluto. No registro dessa nova forma de revolução, a resistência se faz ininterrupta, exemplar, agenciadora de forças que se oponham ao poder autoritário e exploratório. A ação política, assim, se torna a decodificação dos signos, a ocasião do desarmamento das situações de sujeição que, em geral, se legitima pelos disfarces socialmente aceitos: “a intersubjetividade entre um pai e sua filha, um marido e sua mulher, uma mãe e seu filho, e toda outra relação apoiada sobre as funções, além dos indivíduos, se instala de fato no terreno político” (ONFRAY, 2001, p. 185). Em sendo o poder esse elemento infinitesimal, movente que se instala nos interstícios, nas fendas, nas brechas das relações intersubjetivas, o indivíduo soberano deve saber fazer-se atento a

Uma identificação viva, uma constatação rápida, uma circunscrição da geografia relacionada a curto prazo: nenhuma tática ou estratégia sem a precisão e a elaboração de uma cartografia prévia reforçada de um talento para os ajustes velozes. (ONFRAY, 2001, p. 186)

106 O indivíduo soberano, rejeitando qualquer uso dos poderes para além de sua desmontagem, se alia aos que deles são destituídos e que, ainda em função deles, são submetidos e expropriados em sua singularidade. Sob o capitalismo produtivista, no interior das fábricas, dos escritórios, das escolas, igrejas e em todos os outros lugares chancelados à captação das forças dos indivíduos em prol de universais abstratos, os indivíduos são convertidos em sujeitos e são “encurralados no ressentimento com o qual se alimenta a força populista e neofascista” (ONFRAY, 2001, p. 186). Por receio de uma liberdade libertária antenada às suas singularidades existenciais e abraçando a liberdade de consumo, os sujeitos se vêem alienados de seus anseios, acreditando que a liberdade que opera em função do todo coincide com a liberdade desejada pela parte, pois “a liberdade defendida é associada a um desejável útil para o social” (ONFRAY, 2001, p. 188). Daí o maior desafio do indivíduo soberano: a liberdade libertária inquieta, angustia, exige a ação, a decisão, a criatividade. A evasão a esta liberdade, em geral, empurra o indivíduo para a liberdade gregária, rebanhesca, dos imperativos codificados pelo, por e para o social: ocasião do autoabandono, da sujeição e, o que é pior, da retroalimentação do Leviatã antropofágico.

Portanto, a que poderia então se assemelhar a figura desse novo indivíduo? Michel Onfray delineia seu rosto recorrendo à metáfora do Condottiere, que se manifesta na estátua de Verrocchio, presente na piazza San Zanipollo, em Veneza. Segundo Onfray, o Condottiere, um adestrador de cavalos, confunde ética e estética, e, manipulador das forças, ele desafia a violência fazendo vergar as veleidades negativas, sombrias, convertendo-as em belas obras, em gestos generosos, em encenações de elegância. Não se submetendo aos irracionalismos e tampouco à lida reacionária diante do mundo, o Condottiere se faz maestro dos fluxos com os quais se relaciona: “flexionador de energia, depositário de uma vitalidade superabundante, o Condottiere que desejo excede na arte do adestramento das forças que contribuem à sabedoria trágica” (ONFRAY, 2001, p. 192). O Condottiere deseja, em suma, dar forma ao informe. Ao modo do artista dionisíaco, que nem por isso rejeita Apolo, o Condottiere quer empreender uma economia generalizada ante à contenção e expansão de energias que, sem o advento de

107 sua ação, se dilapidariam e se dispersariam. Ainda sobre esse seu personagem conceitual, escreve Michel Onfray:

Dotado de uma vitalidade impossível de se perturbar por um estímulo de morte, o Condottiere celebra a prodigalidade, a magnificência, a magnanimidade, a generosidade, e outras virtudes mais próximas da virtú italianas da Renascença que da vulgata cristã infectada de moralina, esta substância dos moralismos de todos os tempos. (ONFRAY, 2001, p. 193)

Segundo Onfray, as sensibilidades, as singularidades existenciais que, ao longo da História, estruturaram e permitiram-lhe traçar o retrato desse indivíduo do porvir, encarnado em seu personagem conceitual, o Condottiere, são os “cínicos e dandies, libertinos e românticos, [que] por seu próprio gesto, estruturaram o temperamento ético do Condottiere” (ONFRAY, 2001, p. 194). Esse indivíduo, libertário, cínico nos moldes antigos, libertino, romântico e perito na manipulação das energias e no desmonte das ocasiões da manifestação do poder em forma de sujeição, é o indivíduo que, hoje, se instala no terreno da resistência. Sobre este termo, escreve Onfray: “Palavra-mestra, ambição cardinal do libertário. Resistir, a saber, nunca colaborar, nunca ceder, guardar em poder de si tudo que faz a força, a energia de seu império, senão o puro e simples desaparecimento de sua identidade” (ONFRAY, 2001, p. 195). Segundo Onfray, a lição cínica personificada pelo tão ridicularizado filósofo grego Diógenes de Sínope permanece atual: cumpre ao indivíduo soberano “ensinar a nudez do rei, a ausência da diferença de essência, de natureza ou de substância entre o primeiro dos cidadãos do Império e o último dos escravos da cidade” (ONFRAY, 2001, p. 196).

CAPÍTULO 3 MAX STIRNER & MICHEL ONFRAY

109

DO ÚNICO AO INDIVÍDUO

Do ponto de vista de uma ontologia stirneriana, pode-se afirmar que o ímpeto pela individuação é inerente ao homem. Quando Max Stirner afirma que “a partir do momento em que vê a luz do mundo, um ser humano busca encontrar-se e conquistar-se a si próprio no meio da confusão em que, com tudo o que há nesse mundo, se vê lançado sem orientação” (2004, p. 15, grifo nosso), está, parece-nos, oferecendo uma perspectiva interpretativo-filosófica que lança as bases ontológicas sobre as quais é possível dar origem, por um lado, tanto ao seu Único como ao Indivíduo de Michel Onfray e, por outro, a uma heteronomia constituinte da subjetividade que, pretendendo livrar-se do negativo, imerge na sujeição. Michel Onfray, é importante ressaltar, refere-se ao pensamento de Max Stirner como tendo sido viático para o erigir de sua filosofia hedonista (ONFRAY, 2001, p. 14). Embora recorra em diversos pontos de sua obra a Max Stirner apenas para mencionar seu conceito de clube de egoístas, é nesse fundamento ontológico de cada indivíduo humano, ou seja, é nesse ímpeto inato pela distinção, pela individuação a qual cada sujeito visa ante as alteridades, que nos parece residir a maior proximidade entre os conceitos de Único e de Indivíduo. Por outro lado, tanto num autor quanto no outro, esse fundamento ontológico-existencial que pode desembocar numa constituição subjetiva livre e autônoma não se manifesta ou se desenvolve de maneira necessária, isto é, nem todos os sujeitos alcançam a completa expressão de sua singularidade dados os desvios, os convites, as injunções interpostas sócio-culturalmente para combater o que há de singular em cada ser humano. Max Stirner denunciará, pelo turno filosófico, o idealismo alemão e, pelo lado político, as diversas manifestações do que ele chamou de liberalismo74 como instâncias que objetivavam entravar a expansão da singularidade. Michel Onfray, por seu lado, atacará, pelo lado filosófico, a episteme judaico cristã imperante tanto na filosofia quanto no direito Ocidental e, pelo lado político, o advento do 74

Liberais políticos (burguesia); liberais sociais (comunistas) e liberais humanos (humanismo).

110 capitalismo tornado universal como vetor sócio-cultural inimigo das partes em prol do todo. Ambos os autores intentam, apontando esses obstáculos, jogar luz ao que acreditam representar os maiores entraves à expansão e ao desenvolvimento autônomo daquela veleidade ontológica inerente a todo indivíduo humano. Assim, embora divergindo no conteúdo, do ponto de vista formal nossos autores parecem concordar que sobre os indivíduos incidem determinadas forças extrínsecas que atentam contra sua singularidade, ao passo que ambos também concordam que, em tentando, em acreditando em si, cabe ao indivíduo a prerrogativa de fazer um uso discernido, autoesclarecido de suas forças e capacidades, pois estas são propriedades deles e não de outrem.

Ressaltada essa semelhança formal em nossos autores, passemos agora à tentativa de elucidar os pontos concretos de aproximação capazes de nos levar do Único ao Indivíduo: Para Stirner, a liberdade reivindicada ou concedida é deletéria, pois com esta o que se obtém é “mercadoria roubada” (SIRNER, 2004, p. 136), fraudada pela ilusão de que a posse do indivíduo repousa sobre uma alteridade. Ser livre, para Stirner, é tomar posse de si, é usar-se segundo a ciência de que nossos atos são, sempre, nossos atos. Neste sentido, ser livre não é apenas estar livre do que não se quer, mas é ter a posse daquilo que se quer. O Único quer-se, ama-se, ouve-se, cria-se. Para Michel Onfray, o princípio de toda ética é a assunção e a criação de um Ego, de um Eu que não se culpa ou se ressente de ser o que se é75. Assim, fazemos a primeira conexão material entre o Único de Max Stirner e o Indivíduo de Michel Onfray. O Único de Max Stirner recusa a redução da multiplicidade constituinte da subjetividade a uma única idéia ou noção. Ser humano, cristão, europeu não se sobrepõe a todas as outras qualidades do indivíduo, ou seja, ser único implica em ser complexo, complexidade esta reforçada pelo caráter solipsista e irrepetível de todo existir. Michel Onfray, por seu lado, informa que o Eu, calcado numa ética eletiva e movente, estabelece contratos pontuais, revogáveis com as outras individualidades. Não existe, para o indivíduo

75

Interessante ressaltar e perceber a máxima nietzschiana do: “Torna-te quem tu és”.

111 onfraryano, o enraizamento interpretativo do Eu de forma a fixá-lo, pois este quer-se em consonância com o caráter fluído, movente da vida. O indivíduo quer o júbilo mútuo, quer a associação livre e que as provas concretas (e não as palavras e conceitos vazios) sejam as juízas das aproximações e os afastamentos. Se para Max Stirner a liberdade preconizada pelos diversos tipos de liberalismos de seu tempo impunha a renúncia ao que quer que fosse do âmbito individual, egoísta, inclusive da interpretação que o indivíduo pode fazer de si mesmo, no capitalismo global atacado por Michel Onfray a liberdade ideologicamente pregada em nossos dias também encontra-se impregnada dessa sutil forma de dominação. Com efeito, ser livre hodiernamente, no mais das vezes, implica em ser livre para consumir este ou aquele bem, desde que este bem não seja o indivíduo próprio, desde que o anseio por liberdade não implique na recusa à aceitação dos imperativos sociais. No mundo contemporâneo, a liberdade individual deve ser entendida com intrínseca à liberdade do geral, do todo. Ser livre, assim, é agir em consonância com o bem do todo, a saber: trabalhando, consumindo, fazendo caridade, etc., jamais uma reivindicação radical de si próprio será entendida como da esfera da liberdade liberal, mas sempre de uma liberdade radical, egoísta que ensejará a punição.

Tomando as obras de nossos autores por uma perspectiva mais crítica, entendemos que a proposta onfraryana se recobre de uma maior carga de positividade, isto é, ao passo que Max Stirner dá carga predominantemente à recusa de todos os universalismos interpretativo-filosóficos, Michel Onfray vai adiante fazendo propostas mais concretas no sentido de conjurar uma efetiva contraposição ao ideal dominante. Embora Michel Onfray também intente desconstruir os universalismos em prol de uma dinâmica na qual as singularidades farão correr signos de forma horizontal, pactuada pontualmente, sua proposta hedonista inscreve sua obra numa posição muito mais propositiva em relação às negações propostas por Max Stirner. Ensejando fugir à fixidez e ao estabelecimento preciso dos tratados de ética tradicionais, Michel Onfray preocupa-se em não sedimentar uma moral por sobre sua proposta ética. Nada, propositalmente, fica muito claro acerca do

112 como agir. Esse nosso autor, coerente com sua filosofia, deixa a cargo dos indivíduos o estabelecimento mais preciso, objetivo de seus nortes morais. Por outro lado, visando fugir à ambigüidade que, em certos aspectos, perpassa a obra stirneriana, Michel Onfray recorre a pessoas e a fatos históricos nos quais essas singularidades radiantes deram à luz a si próprias. Assim, para Michel Onfray, criar-se implica não em copiar aos outros, não é seguir dogmaticamente este ou aquele tratado de ética, mas é saber se inspirar na cultura, no contato e no contrato com os outros. A ética onfraryana pressupõe a inscrição singular da concretude cultural e intersubjetiva na carne do indivíduo. Contra o fixismo pré-estabelecido moralmente e contra, também, à barbárie da sujeição às veleidades destrutivas, Onfray acredita numa ética hedonista que respeita a cultura, a história, mas respeita igualmente às informações doadas concretamente ao indivíduo por seus próximos. O indivíduo onfraryano ouve e não rechaça a priori as informações de prazer e desprazer que sua carne singular engendra. Daí que a proposta de criação de novos horizontes morais e intersubjetivos que Onfray reivindica se insere menos numa imposição moral dogmática que numa abertura pontual, circunstanciada nas quais os indivíduos refletirão e participarão de uma construção autônoma de si e de suas relações sem desconsiderarem as forças e poderes que incidem incessantemente sobre eles e, no mais das vezes, contra eles. Em suma, podemos dizer que do Único ao Indivíduo se inscreve primeiro uma veleidade de posse de si e, num segundo momento, a tentativa incessante de doação de uma nova verve, um novo desejo de engendrar um algo singular, radiante, coerente consigo e, principalmente, feliz.

113

CONCLUSÃO

De um lado, o universalismo de Hegel imperando sobre o ideário filosófico alemão do século XIX. De outro, as conseqüências de um único sistema

econômico

e

social

imperando

sobre

todo

o

planeta

na

contemporaneidade. Como pano de fundo desses dois elementos, uma hegemonia do pensamento platônico-cristão permeando e reciclando as existências submetidas aos dois tempos apontados. Escusado

informar

que

esses

dois

tempos

correspondem,

respectivamente, ao contexto e às preocupações de Max Stirner e Michel Onfray. Aliás, convém adotarmos como porta de entrada a uma reflexão mais conclusiva acerca da pesquisa ora explicitada abordando o que entendemos ser a preocupação dos nossos autores. Com o que se preocupa Max Stirner? Qual o problema filosófico do materialismo hedonista de Michel Onfray? Uma leitura superficial e perspectivada pelas categorias ético-filosóficas tradicionais, a saber, platônico-cristãs, poderia nos levar a supor que estamos diante de dois pensamentos perigosos. Ora, um, do século XIX, propunha um ateísmo

radical

ante

quaisquer

absolutos,

fossem

eles

religiosos,

epistemológicos ou legais. O outro, no século XXI, propõe a ruptura com o humanismo e com os Direitos do Homem. Avançar no raciocínio sob essas categorias tradicionais nos levaria a pensar, evidentemente, em perigo, em barbárie, em tragédias. Mas propomos um caminho diferente: o que engendrou o hegelianismo em termos de reverberação política e, portanto, sócio-existencial? Poder-se-ia pensar nos totalitarismos de direita e de esquerda que tingiram de sangue o século XX? Acreditamos que sim. Que atenuantes, ante as misérias congênitas ao capitalismo global, o humanismo caritativo pôde até hoje engendrar? Poderse-ia pensar em inocuidade? Em colaboração com o sistema? Acreditamos que sim.

O inimigo comum a Max Stirner e a Michel Onfray são os universalismos que reverberam sobre as existências dos homens. Muito mais perigosos que

114 um ou outro desvio individual, acreditam nossos autores, são os vetores universais que carregam a humanidade, possessa ou alienada, rumo ao precipício. O Único de Max Stirner, batendo-se contra o universalismo hegeliano que encarnava-se nos liberais de seu tempo, intentou resgatar as partes quando estas encontravam-se tragadas pelo todo, conjurando titânicos fantasmas ideológicos que sufocavam e inviabilizavam qualquer projeto éticoexistencial singular, autoengendrado, autoafirmador. Michel Onfray, por seu lado, propondo as incandescências individuais, nada mais faz do que tentar esconjurar a aniquilação da identidade dos indivíduos que, submissos a uma vida fabricada pelo social, vêem malogradas quaisquer possibilidades de existência singular e autônoma.

O Único de Max Stirner intenta, em suma, tomar posse de si mesmo, desvencilhar-se das categorias conceituais que impossibilitam tanto a liberdade do pensamento quanto do existir. Aceitando como salutar todo o edifício filosófico, ideológico e científico do Ocidente na medida em que este emancipou o homem das titânicas e irracionais forças da natureza, Max Stirner lança suas críticas aos convites (muitas vezes coercitivos, oriundos do Estado e do social) à adesão dogmática aos conceitos e idéias engendradas por tal edifício. Ora, se por um lado se pode censurar o radicalismo (muitas vezes tido por niilista) das críticas e recusas de Max Stirner, por outro, é de se supor que seja realmente inconcebível uma orientação filosófica, ideológica ou política que volte às costas ao indivíduo singular ou, o que é pior, que o oprima. O indivíduo de Michel Onfray, filosoficamente, é mais complexo. Ele quer não apenas a soberania, o império individual. Ele quer fundar uma ontologia imanente à matéria. Ele quer, sabendo-se indivíduo e reconhecendo a individualidade de outrem, celebrar uma ética eletiva e hedonista que o permita o gozar e o fazer gozar. Não há, no individualismo onfraryano, uma ruptura tão radical contra a ordem vigente. O individuo que reivindica Michel Onfray é mais um tático, um maestro, um jogador que sabe dos perigos inerentes a uma resistência irrefletida e, a partir disso, funda uma existência capaz de o fazer celebrar sua singularidade no bojo pontual no qual ela se inscreve. Ambos propõem essa resistência pontual, crítica e, por que não, eminentemente filosófica. Com efeito, se a filosofia se insurge no ocidente

115 como movimento do pensamento rumo ao não pensado, à emancipação interpretativa quanto às abordagens tradicionais do real, é de se supor que tanto Max Stirner quanto Michel Onfray empreendem um movimento fortemente carregado daquele leitmotiv que orientou a pré-socrática ante o pensamento mítico. Cada pré-socrático em particular chama para si a responsabilidade de fundar um mundo. A despeito da amarração aristotélica de que os présocráticos são eminentemente fisiólogos, salta aos olhos a multiplicidade filosófica engendrada pelo movimento dos filósofos anteriores à hegemonia socrático-platônica. Se a physis, em sua concretude, se apresenta como o foco central dos pré-socráticos, e esse foco ganha um descrédito tanto de Aristóteles quanto dos historiadores da filosofia a partir de então, esse descrédito se inscreve, já, sob o signo da apologia do conceito abstrato, carregado do ideário ontológico platônico. Depois de Platão, o que se tem são desdobramentos interpretativos, são cópias mais ou menos próximas de uma propositura aceita de maneira até certo ponto como o fundamento da verdade filosófica76. Concluímos, ao término deste trabalho de pesquisa, afirmando que os autores objeto do presente trabalho intentam é subverter essa dinâmica da subsunção do diverso, do destoante, do singular em função de ideais universais e absolutos. O que se pretende é celebrar a diferença, o singular, o novo em detrimento de todo universal que se imponha como necessário, como legitimador da erradicação do diferente. Ambos entendem que é somente a partir dos indivíduos, celebrando o que cada um tem de único que se extinguirão as veleidades gregárias que, conforme o vimos no século XX, engendraram o horror, a tentativa de aniquilar aqueles e aquelas que não se enquadram no universal hegemônico da ordem do dia. Sejamos únicos, não alimentemos as engrenagens que objetivam reciclar nossa singularidade: é essa a mensagem de Max Stirner e Michel Onfray, que subscrevemos singelamente com o presente trabalho.

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Neste sentido é interessante lembrar o dito do filósofo Alfred North Whiteread, para quem a filosofia não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão.

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