O universo integrado de Joaquim Cardozo

May 31, 2017 | Autor: E. Ferreira Filho | Categoria: Poesia Brasileira, Poesia brasileira moderna e e contemporânea, Joaquim Cardozo
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O universo integrado de

Joaquim Cardozo Interessado em todas as conquistas da inteligência humana, o grande intelectual pernambucano atuou com o mesmo brilho como engenheiro e como poeta Eduardo Cesar Maia

J

oaquim Cardozo foi, antes de tudo, um amante do conhecimento. Sua impressionante erudição não era apenas derivada de uma inteligência privilegiada e versátil, mas principalmente resultado de uma ânsia, de uma curiosidade radical voltada ao universo e, principalmente, dirigida aos homens e suas conquistas no campo das ciências, das artes e do pensamento. Para ele, as coisas do mundo não descansavam separadas, divididas em áreas de saber que nunca dialogavam – o mundo cardoziano é integrado, é interdependente. O conhecimento poético e o conhecimento astrofísico, por exemplo, não fazem sentido isoladamente, mas precisam interagir para adquirir valor humano. Portanto, o homem que calculou Brasília e o homem que escreveu poemas era, fundamentalmente, um grande humanista, um dos últimos intelectuais brasileiros que conseguiu que seu pensamente tivesse relevância e permanência em distintas áreas. Segundo o organizador de suas obras completas, recentemente lançadas pela Editora Nova Aguilar, o crítico e poeta Everardo Norões, “(Cardozo) era um homem aberto não apenas às experiências poéticas, mas a todas as conquistas da inteligência humana”. Origina-se dessa concepção o epíteto que Norões utiliza para se referir a Cardozo: “homem-universo”. Portanto, ainda que fosse um ferrenho defensor das tradições locais, da cultura popular, e cultivasse temas da cultura pernambucana e nordestina em suas obras, não se pode limitar sua arte ao que se convencionou chamar “regionalismo”, justamente porque sua visão de mundo e as questões que ele buscava responder tinham um caráter universal.

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Como poeta, o crítico Wilson Martins destaca em Cardozo a “retórica de fundo intelectual e erudito, mas intensamente emocional”. E afirma que o autor recifense foi capaz de trilhar um caminho próprio no que diz respeito à historia da, digamos, “poética brasileira”. Ainda segundo Martins, o escritor percorreu uma trajetória inversa à de Cabral – acrescentava humanidade às ciências, à engenharia, enquanto Cabral dotava a poesia de senso matemático e geométrico. O projeto intelectual cardoziano era incluir a poesia no tecido do pensamento cientifico e filosófico de sua época. A questão do tempo para ele era fundamental, e como nenhum outro poeta brasileiro, explorou o tema em vários de seus poemas – para ele o tempo é uma realidade tão psicológica quanto matemática. O tempo precisa da experiência para existir, e essa é também a matéria da poesia. As leituras, direto do alemão, das obras capi-

tais de Edmund Husserl e Martin Heidegger, os grandes nomes da fenomenologia, contribuíram decisivamente na concepção de Cardozo acerca do sentido filosófico da temporalidade. Joaquim Cardozo, o poeta, é autor dos livros Poemas, Signo estrelado, O interior da matéria, Poesias completas e Um livro aceso e nove canções sombrias. Para o teatro, escreveu Coronel de Macambira, De uma noite de festa e Marechal, boi de carro. É autor ainda dos dramas O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro, além do pastoril Os anjos e os demônios de Deus. A fortuna crítica acerca da literatura de Joaquim Cardozo conta com apreciações importantes como a Wilson Martins, José Guilherme Merquior, Carlos Drummond de Andrade, César Leal e Antonio Houaiss. Não obstante, suas importantes realizações, teóricas e práticas, nas áreas da engenharia estrutural, do cálculo e ainda na

arquitetura, são bem menos reconhecidas e estudadas. Anos de aprendizagem Joaquim Cardozo nasceu no Recife, no bairro do Zumbi, ainda no século 19, em 26 de agosto 1897. Aos 13 anos, mudou-se com a família para Jaboatão do Guararapes e começa os estudos no Ginásio Pernambucano do Recife. De volta à Capital em 1914, após a morte do pai, começa a explorar seus dotes artísticos em caricaturas que fazia para o Diario de Pernambuco. Sua habilidade como desenhista, agora com bico de pena, seria ainda explorada na famosa Revista do Norte, na qual colaborava também como crítico de literatura. Nesse período fértil em descobertas, frequentou a Esquina Lafayette, ponto de encontro de artistas e intelectuais como Luiz Jardim, Ascenso Ferreira, José Maria de Albuquerque Melo, Benedito Monteiro, Otávio Moraes e outros. À época, Cardozo já era

O cálculo da estrutura da Catedral de Brasília foi um dos grandes desafios de Cardozo

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reconhecido por seus pares como portador de uma inteligência e erudição incomuns. Os outros múltiplos talentos foram aflorando em seguida: poesia, prosa, teatro, traduções... Toda manifestação artística interessava a Cardozo. O poeta que calculava Concomitantemente ao seu amadurecimento artístico, realizava seus primeiros estudos na área da engenharia na Escola Livre de Engenharia e, depois, como topógrafo da Comissão Geodésica municipal. Como engenheiro, ele estudou o desenvolvimento urbano do Recife e Olinda, pesquisando a herança histórica portuguesa e holandesa. Estudava com afinco também a matemática e contribuiu com novos métodos para o cálculo de estruturas. Escolhido como paraninfo de uma turma de engenharia, no final de 1939, fez um discurso crítico durante a cerimônia de formatura, referindo-se ao mau uso e as distorções que o poder público fazia no tocante à utilização da engenharia. Ficou mal visto pelo governo de Agamenon Magalhães e, quando a situação ficou insustentável, teve que se mudar para o Rio de Janeiro. Foi nesse momento que conheceu e se aproximou de Oscar Niemeyer e de Rodrigo M. F. de Andrade. Mais tarde, como funcionário da Novacap, passou a integrar a equipe de Niemeyer para a construção da cidade de Brasília – Joaquim Cardozo foi o responsável pelos cálculos estruturais das obras da nova Capital da república, idealizada pelo então presidente Juscelino Kubitschek, junto a Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Uma das maiores contribuições de Cardozo à engenharia é justamente ter logrado concretizar as formas arquitetônicas inusitadas imaginadas por Niemeyer para Brasília. Dentre os edifícios cal-

Brasília foi construída em três anos e meio, a partir de novembro de 1956

Uma das maiores contribuições de Joaquim Cardozo à engenharia é justamente ter logrado concretizar as formas arquitetônicas inusitadas imaginadas por Niemeyer para Brasília

culados por Joaquim Cardozo, em Brasília, destacam-se o Palácio da Alvorada, a Catedral e o Congresso Nacional. Segundo a pesquisadora e biógrafa de Joaquim Cardozo, Maria da Paz Ribeiro Dantas, “No cálculo ele deu o mesmo salto que o levou a encontrar a poesia do outro lado da sua razão cartesiana. Possivelmente não teria continuado a praticar o cálculo de estruturas, caso tivesse de permanecer atrelado à rigidez de algumas normas”. Fundiam-se aí o poeta e o engenheiro. Cardozo em Brasília Em um artigo para um jornal recifense o engenheiro falou do período de três anos e meio que durou a construção de Brasília e das “dificuldades de erguer uma cidade monumental em meio a um deserto”. Não era fácil, segundo ele, dar concretude às ideias de Oscar Niemeyer. A ambição do presidente JK e do já famoso arquiteto era que a nova cidade fosse resultado de uma arquitetura (e engenharia) genuinamente brasileira, livre de influências estrangeiras: seria o

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Depoimento EVERARDO NORÕES

Sobre Niemeyer e Joaquim Cardozo “Os maiores frutos do encontro entre Niemeyer e Joaquim Cardozo são o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, e Brasília. Joaquim Cardozo considerava Pampulha o segundo grande movimento da arquitetura moderna brasileira. De fato, é a partir do êxito do projeto de Pampulha que a equipe de Niemeyer foi solicitada, pelo então presidente Juscelino, a conceber Brasília. No entanto, antes de conhecer Niemeyer, Joaquim Cardozo já havia participado do primeiro movimento da arquitetura moderna no Brasil, na década de 30, ocorrido em Pernambuco. Esse movimento tinha à frente o arquiteto Luíz Nunes e dele também fazia parte Burle Marx, que projetou quase todos os grandes jardins do Recife. Joaquim Cardozo esteve presente em todas as etapas importantes da arquitetura moderna do Brasil”.

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que depois recebeu a designação oficial de “Estilo Brasília”. Desde o material utilizado nas construções até as formas, tudo buscava a originalidade. Brasília foi construída em três anos e meio, a partir de novembro de 1956, início das fundações do Hotel e do Palácio da Alvorada, até 21 de abril de 1960, data da grande inauguração, em que todo centro cívico já estava construído: o Palácio do Governo, o Palácio da Justiça, o Parlamento, o Edifício dos Ministérios, além da Catedral, da Estação Rodoviária, do Edifício da Imprensa Oficial, do Museu da Cidade e das Escolas Médias e Escolas-Parques. Como também, evidentemente, já estava concluída a Praça dos Três Poderes. Os edifícios dos ministérios são de estruturas metálicas, importadas dos Estados Unidos. Os materiais de revestimento foram variados, mas a maioria teve origem brasileira: cerâmicas, os mármores, as madeiras, os azulejos, os ferros das esquadrias, os vidros etc. Cardozo também se referiu aos granitos e combogós como materiais que “possibilitaram uma expressão brasileira”. Nesse sentido, é possível enxergar em alguns depoimentos e

artigos de Joaquim Cardozo sobre Brasília certo ufanismo e purismo nacionalista. Além disso, para ele, a razão de Brasília ser uma cidade única estaria principalmente na sua origem, que não se deu a partir de um feudo, de um mercado ou da busca de ouro ou algum metal precioso, mas exclusivamente, como que por um encanto no meio do nada, pela vontade e trabalho de “homens de boa vontade, desde o presidente da República até o candango, servente de pedreiro”. Sobre uma das obras mais espetaculares em que trabalhou, a Catedral de Brasília, escreveu Joaquim Cardozo: “A estrutura da Catedral é constituída de seis elementos de forma estranhíssima, são verdadeiros arcobotantes, não mais escorando uma abóboda, mas escorando-se entre si”. Todas as obras da cidade representaram grandes desafios diferentes e instigantes para o calculista de estruturas, que buscou soluções originais e criativas para cada uma delas. Teórico da arquitetura Com um senso estético também voltado à beleza das formas da arquitetura moderna, Joaquim Cardozo, à época em que foi, no

Brasília no traço de Oscar Niemeyer. Abaixo, Cardozo com seus companheiros calculistas

Recife, professor das escolas de Engenharia e Belas Artes (anos de 1930) escreveu também sobre questões pertinentes à arquitetura. Esses escritos foram publicados em periódicos como Módulo, Arquitetura e Revista do SPHAN. No livro Arquitetura enquanto arte no pensamento de Joaquim Cardozo, Paulo Raposo Andrade afirma que o pensamento teórico de Cardozo sobre a arte arquitetônica é pouco conhecido e mereceria ser amplamente pesquisado e divulgado. Num artigo publicado em 1965, intitulado Problema do ser arquitetônico, escreveu o engenheiro: “Na arquitetura estão inscritas as vontades mais puras e duradouras do coração dos homens. A história da cultura e das sociedades repousa em grande parte nas formas arquitetônicas, pois a vontade de um povo se manifesta na forma dos templos dos seus deuses, dos palácios dos seus reis. Quando uma civilização desaparece, no imenso decorrer dos tempos, somente nas pedras dos edifícios desmantelados é que se vão encontrar os marcos dessas culturas e, nas diferenciações dessas pedras, nas maneiras de erguê-las ou agrupá-las, é que estão as diferenças das raças, dos

povos e das culturas. É por isso que podemos dizer que a primeira história, a primeira literatura foram escritas na pedra, nos muros e nas colunas, nas arquitraves e nas abóbodas. Desde a antiguidade, os muros das construções foram os primeiros órgãos de informação,

resumos da vida social dos povos. O primeiro papel onde se inscreveram as páginas da historia. O papel onde ainda se inscrevem as mensagens para o futuro. E escrever estas páginas cabe ao arquiteto”. Na época, a natureza artística da arquitetura ainda era tema polê-

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mico, conta Paulo Raposo Andrade. E esclarece que Cardozo assumia uma postura contra os racionalistas e os funcionalistas radicais, e defendia a natureza fundamentalmente artística da arquitetura. Em suma, Cardozo defendeu o saber do arquiteto como a “arte de criar lugares favoráveis à existência humana”. Além dos fatores funcionais, lógicos, técnicos, econômicos e científicos, a arquitetura, para ele, concretiza significados maiores, visões de mundo e da história dos povos. o Desastre da Gameleira Um episódio lamentável teve um grande impacto na vida de Joaquim Cardozo: o desabamento de parte da estrutura do pavilhão

Brasília no traço de Oscar Niemeyer. Abaixo, Cardozo com seus companheiros calculistas

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da Gameleira, em fevereiro de 1971, em Belo Horizonte. Apesar de inocentado de qualquer responsabilidade na falha da obra, Cardozo ficou consternado e guardou consigo uma tristeza pelo resto da vida. O advogado do engenheiro, Evandro Lins e Silva, escreveu que Joaquim Cardozo era homem desprovido de malícia, muito frágil e que não tinha condições de enfrentar “a perfídia e a astúcia de adversários sem escrúpulos, nos embates desgastantes de um procedimento legal”. Joaquim Cardozo – poeta, esteta, matemático, engenheiro, teórico da arquitetura e um dos últimos grandes humanistas do Brasil – faleceu em 1978, na cidade de Olinda.

Concurso literário Menção Joaquim Cardozo A Menção Joaquim Cardozo é um Concurso Literário instituído em setembro de 2005, através de Acordo de Cooperação Cultural firmado entre a União Brasileira de Escritores – UBE-PE e o Clube de Engenharia de Pernambuco. Houve até o momento dois concursos com as entregas dos prêmios aos agraciados no concurso de 2005 em 11 de julho de 2006 e em 30 de março de 2008. Essa é mais uma homenagem do Clube de Engenharia de Pernambuco ao Engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo. Já receberam a Menção os engenheiros Antônio Filho Neto, José Aquino de Souza, Edna Alcântara, Jaime Ferreira Barbosa, Cloves Marques, Antoniel Campos, Heldemárcio Ferreira e Gilmar Pereira de Lira e, ainda, aos arquitetos Antônio Aristóteles de Gusmão Bastos, Beatriz Lopes Brenner, Eric Dayan e Nadjânia Gomes da Silva. Os trabalhos premiados foram os contos Um dia de aventuras, O alquimista, Pedido sinistro, O presente, Os gêmeos e Sonhos de amor e os poemas Tankas e haikais, Contracanto, Sonetos com amor e sedução, Revelação, Encontro dos Olhos, O amor que tenho, Desilusão, Blues do amor perdido, A bela rosa em botão e Herói matuto.

O companheiro Oscar Niemeyer O arquiteto brasileiro que até hoje alcançou maior projeção internacional foi batizado como Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares , mas ficou conhecido simplesmente como Oscar Niemeyer. Nascido em 15 de dezembro de 1907, no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), formou-se arquiteto em 1934, pela Escola Nacional de Belas Artes. Seu primeiro trabalho como arquiteto foi no grupo liderado por Lucio Costa com a consultoria de Le Corbusier. A equipe projetou o Ministério da Educação e Saúde, em 1936, que foi considerado marco da arquitetura moderna mundial. Niemeyer rapidamente alcançou grande reconhecimento e não parou de participar de projetos grandes e inovadores. Convidado pelo então presidente Juscelino Kubitschek, em 1960, assumiu a chefia do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, e projetou os principais prédios públicos da nova capital federal. Para realizar os cálculos estruturais das inovadoras obras que idealizava para Brasília, Niemeyer contou com a inteligência do engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo. A parceria Niemeyer/Cardozo: Cassino da Pampulha (1942) – Belo Horizonte (MG) Iate Clube Pampulha (1943) – Belo Horizonte (MG) Igreja São Francisco de Assis (1945) – Belo Horizonte (MG) Edifício sede do Banco Boavista (1947) – Rio de Janeiro (RJ) Fábrica Duchen (1951) – São Paulo (SP) Hotel Diamantina (1951) – Diamantina (MG) Edifício JK (1952) – Belo Horizonte (MG) Palácio da Alvorada (1958) – Brasília (DF) Palácio do Planalto (1960) – Brasília (DF) Palácio do Congresso Nacional (1960) – Brasília (DF) Catedral Metropolitana de Brasília (1960) – Brasília (DF)

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