O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico

June 3, 2017 | Autor: M. Afflalo Brandão | Categoria: Transdisciplinarity
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Maria Beatriz Afflalo Brandão

O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico

Rio de Janeiro 2014

UFRJ | UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FAU | FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

Maria Beatriz Afflalo Brandão

O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo | PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Urbanismo.

Orientadora Denise Barcellos Pinheiro Machado

Rio de Janeiro, 2014 I

B817

Brandão, Maria Beatriz Afflalo, O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico /Maria Beatriz Afflalo Brandão. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2014. xv, 218f. : il. 30 cm. Orientador: Denise Pinheiro Machado. Tese (Doutorado) – UFRJ/PROURB/Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2014. Referências bibliográficas: p.213-218. 1. Urbanismo. 2. Cidades. I. Machado, Denise Barcelos Pinheiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. III. Título. CDD 711

II

O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico

Maria Beatriz Afflalo Brandão

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Urbanismo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Urbanismo.

Aprovado em: 19.05.2014

Prof. Dra. Denise Barcellos Pinheiro Machado | UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro | orientadora

Prof. Dr. Flávio de Oliveira Ferreira | UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof. Dr. João Farias Rovati | UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Prof. Dra. Rita Maria de Souza Couto | PUC-RIO Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Prof. Dra. Rosangela Lunardelli Cavallazzi | UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Yannis Tsiomis | EHESS | França École des hautes études en sciences sociales

Rio de Janeiro, 2014 III

IV

Dedico este trabalho ao meu filha, minha filho e seus companheiros, e aos que viverão no futuro, em especial meus netos e meus alunos. Que a minha reflexão possa ser útil a eles.

V

VI

Sou pródiga em atenção, companheirismo e apoio. Desta forma a lista de agradecimentos se torna difícil, pelo receio de alguma desatenção. Agradeço à minha orientadora, Denise Pinheiro Machado pela compreensão do tema e pelas indicações precisas. Agradeço aos professores da Banca, pelas observações. Agradeço a Edgar Morin, pelo encorajamento. Agradeço a todos os meus companheiros do Centro Edgar Morin, que me acolheram com atenção no período do doutorado sanduíche, com destaque para Alfredo Pena-Vega, meu orientador neste período, que possibilitou integrar-me à equipe de pesquisadores do CEM . Sou grata ao professores do PROURB, em especial àqueles que muitas vezes interpelei para ouvir suas opiniões, como José Barki, Rosângela Cavallazzi e Lucia Costa. Aos meus companheiros dos seminários, que tantas vezes foram generosos, discutindo e sugerindo durante o desenvolvimento do trabalho, muito obrigada. Agradeço a Iazana Guizzo, Rossana Brandão e Ivete Farah, o suporte amigo no estrangeiro. Agradeço aos funcionários do PROURB que sempre me atenderam, em especial à Keyla. Agradeço aos professores do Departamento de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes pelo encorajamento no cotidiano. À Elizabeth Simões e Mariana Chicayban, obrigado pela ajuda na finalização do trabalho.

VII

VIII

Resumo BRANDÃO, Maria Beatriz Afflalo. O urbanismo e a complexidade moriniana: um exercício epistemológico. Tese [Doutorado em Urbanismo] - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. O pensamento complexo se desenvolveu, numa contraposição a simplificação, já na primeira metade do século XX. A Arquitetura refletiu sobre o tema pelo olhar de alguns autores. A cidade contemporânea passou a ser referenciada através de palavras que revelavam a sua heterogeneidade, dentre elas, o fragmento, o vazio, a descontinuidade, a desordem, o caos. Tornou-se complexa. Neste contexto, um exercício epistemológico sobre a possibilidade das interações entre a complexidade urbanística e a teoria da complexidade, basicamente aquela desenvolvida por Edgar Morin que, de acordo com o autor, inclui a perspectiva do trabalho transdisciplinar, tornou-se uma proposta alternativa para repensar este saber. Para tal, alguns pressupostos foram definidos, tais como: a teoria urbanista já se relaciona com alguns pontos da teoria da complexidade moriniana e, principalmente, tanto o saber como um todo como o saber urbanístico apresentam, na contemporaneidade, uma demanda plural, coletiva, embora a oferta de processos de trabalho ainda se organize, de maneira geral, de acordo com os paradigmas da simplificação. Este trabalho parte da hipótese que o urbanismo é, e sempre foi, uma atividade com implicações complexas; assim a proposta do exercício, como uma contribuição à reflexão, é transversalizar critérios de textos com a teoria moriniana, na perspectiva urbanística. Contudo, é importante destacar, que a seleção de autores para a reflexão da complexidade urbanística, não reflete a adesão total às suas teorias, mas o destaque de critérios que referenciem o exercício. A pesquisa consistiu na análise de textos da complexidade urbanística a partir dos princípios básicos da teoria moriniana, na seleção dos seguintes autores: Robert Venturi, que já em 1960 trabalhava com a complexidade e Bernardo Secchi, em pontos como a dúvida, a inclusão do sujeito, a crítica aos especialistas, a incerteza e a angústia, a necessidade de estratégias, os cenários possíveis e a exclusão daquilo que fica fora da normalidade ou universalidade; Rem Koolhaas, que contribui com sua visão crítica da arquitetura, relacionando-a no contexto da cidade; Saskia Sassen, cujo estudo sobre as cidades globais – Nova Iorque, Londres e Tóquio, pode destacar perspectivas de análise para outras cidades que reproduzem seus modelos a partir dos fluxos estabelecidos pelo processo de globalização e a visão de Milton Santos que vai permitir definir características urbanas brasileiras a serem trabalhadas neste mesmo processo, pela teoria da complexidade, na perspectiva de um país periférico. Para completar as conclusões, são elencadas algumas questões e tendências que reforçam, na contemporaneidade, as reflexões propostas.

IX

X

Abstract BRANDÃO, Maria Beatriz Afflalo. Urbanism and Morinian Complexity: An Epistemological Exercise. Thesis, PhD in Urbanism, School of Architecture and Urbanism, Rio de Janeiro Federal University, Rio de Janeiro, Brazil, 2014.

Complex thought developed in counterpart to simplification during the first half of the XX century. Architecture reflected on this topic in the viewpoints of some authors. The contemporary city was then addressed through terms that disclosed its heterogeneity, including fragment, gap, discontinuity, disorder and chaos, becoming complex. In this context, an epistemological exercise exploring the possibilities of interactions between the complexity of urban planning and the Theory of Complexity, basically as conceptualized by Edgar Morin which, according to the author, includes the dimension of transdisciplinary work, offering an alternative proposal for rethinking this knowledge. To do so, some assumptions were defined, such as: urban theory is already related to some points in Morin’s Theory of Complexity. More specifically, both knowledge as a whole and urbanism expertise today present collective plural demands, although the supply of work processes is still generally organized in compliance with simplification paradigms. This paper is grounded on the hypothesis that urban planning is and has always been an activity with complex implications. As a contribution to reflection, the purpose of this exercise is thus to cross-link criteria drawn from texts with the Morinian Complexity Theory from an urbanistic standpoint. However, it is important to stress that the selection of authors for reflection on complexity in urbanism does not reflect full agreement with their theories, but rather indicates the criteria steering the exercise. This research project consisted of analyzing texts on urban planning complexity from the standpoint of the basic principles underpinning Morinian Theory, selecting the following authors: Robert Venturi, who was already working with complexity back in 1960; Bernardo Secchi on points such as doubt, inclusion of the subject, specialist criticisms, uncertainty and anguish, the need for strategies, possible scenarios and the exclusion of whatever extends beyond normality or universality; Rem Koolhaas, who contributes with his critical view of architecture, relating   it to the context of the city; Saskia Sassen, whose study of global cities (New York, London and Tokyo) may well spotlight aspects for analysis in other cities that reproduce their models through flows established by the globalization process; and the view of Milton Santos that allows a definition of the Brazilian urban characteristics to be addressed through this process by the Theory of Complexity, from the standpoint of an outlying nation. To complete the conclusions, some issues and trends are listed that underpin the proposed reflections in the modern world. XI

XII

Lista de figuras Fig 1

Torre de Agustin Otegui

08

Fig. 2

Extrato da resposta em verso de Edgar Morin [Pandore, no 14,

23

Fig. 3

Espiral de programação de design

29

Fig. 4

Tendências e projeções populacionais

42

Fig. 5

População projetada por região de desenvolvimento

42

Fig. 6

Densidade populacional por grupo de desenvolvimento

43

Fig. 7

Densidade populacional nas principais áreas

43

Fig. 8

Análise das relações interdisciplinares das equipes do



Grand Paris

118

Fig. 9

Propriedades abandonadas em Detroit, em 2012

129

junho de 1981]

Fig. 10 Fábrica desativada

129

Fig 11 Michigan Central Station

129

Fig. 12 Outra fábrica fechada

130

Fig. 13 A destruição em pontos da cidade

130

Fig. 14 Peter Eisenman, The Max Reinhardt House, Berlin – Alemanha, 1992, torre nunca construída

140

Fig. 15 Oma/ Rem Koolhaas. Torre da CCTV, em Pequin, de 2002

141

Fig. 16 Oma/ Rem Koolhaas. Torre da CCTV, transformada em símbolo

141

Fig. 17 Parte da Tábula Peutingeriana, com suas ligações das redes de estrada romanas Fig. 18 Parte da página do site que apresenta a relação OMA | AMO

146 147

Fig. 19 Comparação/exemplos de Grandeza: Office for Metropolitan Architecture (OMA)

149

Fig. 20 Símbolo da identidade da área

175

Fig. 21 Proposta de uso da identidade

175

Fig. 22 Análise e proposta urbana

176

Fig. 23 Proposta de rua de pedestres para funcionar como centro

176

Fig. 24 Proposta de uma rua de pedestres para funcionar como centro [perspectiva] Fig. 25 Arquiteta urbanista Odile Widermann Zachariasen

176 178

Fig. 26 Previsão de calendário de reuniões com o anúncio de cada etapa de consulta

179

Fig. 27 Foto antes da proposta de projeto – Les Bassins à Flot Bordeaux [Fotos ANMA]

181

Fig. 28 Foto depois da proposta de projeto – Les Bassins à Flot Bordeaux [Fotos ANMA]

181

Fig. 29 Vista aérea da área do projeto Les Bassins à flots [Google]

182

Fig. 30 Workshop de Les Ateliers

183

Fig. 31 Agenda do Sistema Estadual de Participação Popular e Cidadã

184

Fig. 32 Figura descritiva da pesquisa transdisciplinar

190

Fig. 33 Circuito Tetralógico

192

Fig. 34 Projeção da capacidade de energia nuclear no mundo

195

XIII

XIV

Sumário 1. Introdução





1.1 Sparsa Colligo

01

1.2 Tempos diversos de perguntas ou de respostas

04

1.3 Considerações conceituais

06

1.4 Introito moriniano

11

1.5 A definição dos autores de referência para o exercício

14

2. A complexidade moriniana vista sob a perspectiva de interação com o urbanismo 2.1 O embate sobre as ideias morinianas

21

2.2 Métodos, segundo Morin

28

2.3 Complexidade moriniana

34

2.3.1 Princípios da complexidade moriniana

41



2.3.1.1 Os princípios hologramático e sistêmico

46



2.3.1.2 Os princípios recursivo e retroativo

48



2.3.1.3

51



2.3.1.4 Princípios dialógico e da interação dos conhecimento

O princípio da autonomia/dependência

2.3.2 A ordem, a desordem e a organização

53 58

2.3.3 O curcuito tetralógico

63

2.3.4 A dialógica

64

2.3.5 Os sistemas

70

2.4 A transdisciplinaridade moriniana

77



.

3. As interações com os autores de referência



3.1 Introdução

87

3.2 A complexidade de Venturi

90

3.3 Os conceitos de Secchi 3.3.1 Os conceitos de Secchi na prática 3.4

A globalização, as cidades e a complexidade, por Sassen

99 117 126

3.5 As rupturas de Koolhaas

144

3.6 A complexidade e a globalização sob a perspectiva de Santos

154

4.

Tendências e atividades pertinentes ao nossop exercício

4.1 Diálogo com a incerteza

169

4.2 A participação dos diversos atores no projeto urbano

173

4.3 A transdisciplinaridade comparada

186

4.4 Um momento crísico

193

4.5 A finalidade de observar tendências

197

5.

Conclusão

5.1 C onsiderações finais

199

5.2 Conclusão

205

Referências bibliográficas

213

XV

XVI

1.

Introdução

1.1

Sparsa colligo ... O pensamento complexo é aquele que religa o que foi artificialmente separado... se fixa no adágio latino sparsa colligo, que quer dizer “religo o que está disperso (Morin,2012a:26).

Cruzamos o portal no século XXI com o conhecimento hiper desenvolvido, em partes que não se conectam. Entramos neste novo século com a dispersão do conhecimento, da produção, das solidariedades. Segundo Secchi, a cidade contemporânea, que habitamos, parece para muitos como “um amálgama de fragmentos heterogêneos”, onde a confusão predomina (2006:88). A consciência do imediato torna-se cada vez mais difícil, pela aceleração dos processos tecnológicos, pelo processo econômico da globalização que transforma o mundo afetando a todos nós. As incertezas e os riscos criam sombras na própria natureza, reverberando também nas políticas e nas possibilidades bélicas. 1 Leonardo da Vinci, C.A.119 v. a. in The notebooks of Leonardo da Vinci, transcrição para o inglês de Edward MacCurdy, George Braziller, Nova Yorque, 1955, p. 58

Mas, assim como Da Vinci1, acreditamos que “o desejo natural do homem bom é o conhecimento” e que através dele, das suas interligações possíveis, no processo de religar o que está disperso, conseguiremos encontrar novas solidariedades que nos conduzam a novas alternativas.

1

Neste sentido propomos um exercício epistemológico entre a teoria da complexidade de Edgar Morin e seus rebatimentos no urbanismo contemporâneo. O tema da complexidade não é novidade. Assim como os cientistas/ filósofos seus contemporâneos, Leonardo da Vinci, por exemplo, era genialmente complexo; uma vez que não se restringia a nenhum tema específico e abrangia em seus estudos a complexidade do seu tempo. Estudou o homem em sua totalidade, da parte física à filosófica, estudou a cidade, observou animais, criou armas, pontes, mecanismos e máquinas, instrumentos musicais e vestimentas. Escreveu, desenhou, construiu e pintou. Pintou a obra prima. Inspira esse estudo para o sparsa colligo. No escopo deste trabalho, entendemos que o tema da complexidade é presente na cidade contemporânea, observada nas transformações radicais em sua estrutura, que podem ser atribuídas ao avanço tecnológico; às influências do desenvolvimento econômico na sua configuração; aos novos processos de organização das forças políticas, econômicas e sociais do mundo, que evidenciam características tais como o aumento da desigualdade espacial e suas consequências, novas configurações territoriais resultantes da organização do trabalho e da produção, novas relações entre a forma arquitetônica e a forma urbana, fluxos e mobilidade dificultados nas grandes cidades e interferência dos atuais processos climáticos, entre outras. Compreendemos então que, para pensar em religar o que está disperso, precisávamos de uma proposta epistemológica que contemplasse este propósito. A teoria da complexidade moriniana foi o caminho. A proposta parte de alguns pressupostos: a teoria urbanística já se relaciona, a partir de conceitos comuns, com alguns pontos da teoria da complexidade moriniana e, principalmente, tanto o saber como um todo como o saber urbanístico apresentam, na contemporaneidade, uma demanda plural, coletiva, embora a oferta de processos de trabalho ainda se organize de acordo com os paradigmas da simplificação em grande parte das instituições de ensino, especialmente em nosso país. Consequentemente, os profissionais que se preparam para o trabalho no urbano, ainda se organizam de forma disciplinar, ainda que os processos transdisciplinares sejam cada vez mais estudados e aceitos.

2

Se a complexidade existe no espaço urbano, é ela também objeto de estudo de autores. O trabalho de religação, o exercício epistemológico, poderia então transversalisar critérios destes textos com a teoria moriniana, na perspectiva urbanística, como um exercício de reflexão, considerando o conceito sparsa colligo, citado no início, com o objetivo de interligar critérios que, de algum modo, interagem com o pensamento complexo moriniano. A seleção de autores não reflete a adesão incondicional às suas teorias, mas destaca critérios importantes que poderão tecer relações para o exercício proposto, um trabalho prospectivo, um caminho a reflexões futuras que possam analisar a cidade e o urbanismo a partir destas interações estabelecidas, como uma possibilidade. Na raiz deste tema está a premissa que o desenvolvimento do saber disciplinar nos legou um crescimento exponencial do conhecimento, que, de um lado, rompeu algumas fronteiras, como no caso da biologia, da arqueologia e da informática e, por outro, redundou em uma superespecialização que compartimenta o conhecimento, gerando responsabilidades repartidas, sem as previsões das possibilidades resultantes de interligações necessárias à compreensão do todo (Morin, 2012a:37). Este conhecimento compartimentado, que não possibilita a contextualização se torna profissionalmente irresponsável para o conjunto ou só disciplinarmente responsável, num mundo cujas interligações, preponderantemente aquelas da comunicação, já se permitem imediatas no nível mundial. Essa irresponsabilidade ou responsabilidade especificamente disciplinar cada vez mais restrita advém da falta de conexão entre as partes; da compartimentação, fruto de uma crescente hiperespecialização que desconecta saberes, revertendo no desconhecimento das possibilidades que hão de surgir a partir das relações que se desenvolverão no contexto, através da implantação de qualquer ação. A superespecialização recortou o mundo em partes cada vez mais separadas. Dessa forma, a evolução humana que privilegiou a disjunção racional, isolando o objeto do seu contexto natural, excluindo o sujeito para permitir o conhecimento “objetivo”, tendendo cada vez mais para uma fragmentação do saber, acumulado em guetos de especialistas, se contrapõe a uma visão complexa do mundo, que considera as interligações, o sujeito - consequentemente a subjetividade - e a natureza como partes indissociáveis. 3

Acreditamos, ainda, que o urbanismo é e sempre foi uma atividade com implicações complexas, uma vez que a cidade, seu objeto de reflexão, se desenvolve condicionada por fatores culturais, econômicos, jurídicos, sociais, políticos e, atualmente, com certa preponderância preocupante, pelos fatores climáticos. Em trabalho desenvolvido nos anos 60 do século passado, Choay (1965) faz uma análise dos planos e dos textos urbanísticos, destacando que, apesar de seus autores se atribuírem um estatuto científico, eles estavam, ao contrário, subordinados “a escolhas éticas e políticas, a finalidades que não pertencem somente à ordem do saber” (1985:2). Em outro texto, no estudo sobre Alberti em De re aedificatoria, acrescenta que ao incluir “a demanda e o desejo humano nas necessidades elementares do homem, torna complexa a tarefa de discerni-las” (1985:311). Reforça com a indicação de Alberti que, com a necessidade de abrigo satisfeita, é a demanda humana que se estabelece a partir dos desejos, das suas invenções, sua fantasia, sua imaginação. É um conteúdo ‘ilimitado’ e que foge às características restritas das necessidades. Cita o prólogo do Tratado, no qual destaca que “quando se observa a abundância e a variedade dos edifícios, cabe admitir que se devem, não à variedade de usos e dos prazeres, mas essencialmente à diversidade dos homens” (1985:90). É essa diversidade que sempre dificultou as tentativas de universalizar conceitos, explicitada pela modernidade. Assim, a hipótese desta tese é o pressuposto que, na contemporaneidade, a simplificação ou redução dos saberes de forma segmentada, sustentada no paradigma cartesiano, não mais se aplica aos requisitos para propostas urbanas que pretendam preparar as cidades atuais para o ‘devir’, para o que não conhecemos e, que sabemos, vai existir. Consideramos também que, como a noção do complexo vem sendo estudada de diferentes formas, ainda de maneira diversificada e não consolidada epistemologicamente, não se pode dizer que, em relação aos estudos urbanísticos, exista um novo paradigma definido para a complexidade contemporânea.

1.2

Tempos diversos de perguntas ou de respostas Tanto em relação ao urbanismo, como a qualquer saber, o homem na sua evolução está continuamente se transformando. Tentar entender, observar, analisar e modificar têm sido um motor da vida humana através dos tempos. Nesse movimento, há os que tendem para

4

uma tentativa de manutenção do status quo e há outros que inclinam para transformações mais radicais. Kuhn os denomina tradicionalistas e iconoclastas (1990:307); preferimos conservadores e transformadores sem, contudo, estabelecer qualquer relação qualitativa, mas simplesmente diferencial. Acreditamos, igualmente, que todo pesquisador trabalha numa tensão entre o que existe e o que vai ser modificado, sendo o resultado de seus estudos o que vai determinar seu caráter mais conservador ou mais transformador. Não haveria uma medida absoluta. Para Bachelard, nenhum estudioso pode começar do zero: “é absolutamente impossível pensar em tábula rasa sobre o conhecimento usual” (1993:14). Então a tensão, antes mencionada, vai estar presente no desenvolvimento de qualquer saber, e o conhecimento que existe e sua transformação estarão em constante conflito. Há tempos, ainda segundo este autor, em que o “instinto transformador acaba por ceder diante do instinto conservador” (1993:15), quando então, as respostas são mais valorizadas que as perguntas. Mas também, pode-se perceber que há tempos que a transfiguração do real é tão diversa e intensa, que poderá haver certa dificuldade de compreensão teórica sobre esta evolução. Esse é um tempo de valorização das perguntas, um tempo em que tanto mais se questiona, mais probabilidade de se encontrar respostas condizentes. O presente, nas transformações tecnológicas que estamos vivendo, ainda é um tempo de muitas perguntas. Entre elas, porque pensar na complexidade em relação ao urbanismo? Assim, investigar sobre a complexidade do ponto de vista do urbanismo, pretensão deste estudo, é uma das possibilidades de questioná-lo num exercício epistemológico, num tempo de muitas perguntas, em função destas grandes transformações. Este seria mais um estudo sobre a complexidade, já que autores como Venturi (2004) e Koolhaas (2011), entre outros, já abordaram o tema. Contudo, a intenção de utilizar como eixo teórico a complexidade de Edgar Morin, relacionando-a aos critérios urbanísticos correlatos, será a nossa contribuição. Como diz Bachelard, partimos do conhecimento usual para tecer ligações, considerando outra perspectiva. A complexidade contraposta à simplificação cartesiana já é pauta teórica desde meados do século passado, mas Edgar Morin destaca-se com pressupostos de caráter transdisciplinar, definindo métodos e macrocritérios com os quais ele acredita que se deve trabalhar.

5

De acordo com Popper, “o desenvolvimento de todo conhecimento consiste na modificação de um conhecimento anterior” (2004:133), seja ele por alteração parcial ou por transformação total. O saber vai estar sempre fundamentado em certo grau de conhecimento sobre o qual foram estabelecidas algumas questões, cujas respostas ainda não encontraram ressonância. Bachelard (1996), Popper (1991) e Kuhn (1990) entendem que o desenvolvimento do conhecimento se faz tanto pelo crescimento das teorias, quanto pelas rupturas ou pela quebra dos paradigmas, que ancoram num determinado período aquele conhecimento. Popper introduziu a questão da falseabilidade, concluindo que, na melhor das hipóteses, uma nova teoria pode constituir “uma maior aproximação da verdade que a anterior” (1991:133), ou seja, as teorias resistem não por estabelecerem verdades, mas por se adequarem às condições de uma determinada situação num determinado tempo. Bachelard traz a questão do ‘obstáculo epistemológico’, que “se incrusta no conhecimento não questionado. Os hábitos intelectuais que foram úteis e saudáveis podem, com o tempo, entravar as pesquisas” (1996:14). Citando Bergson2, ele declara que nosso espírito tem uma irresistível tendência em considerar, como mais clara a ideia que lhe serve com mais frequência. Declara ainda que “o espírito quer religar todo seu conhecimento à imagem central e primeira. É a lei do menor esforço” (1996:235). Morin, neste mesmo sentido completa que, em nosso trabalho, é fato a propensão para descartar o que não entendemos, selecionar o que favorece a nossa ideia e menosprezar o que desfavorece (2011a:67). Cientes de que a complexidade, por apresentar dificuldades inerentes à sua própria condição múltipla pode nos criar empecilhos, este estudo propõe uma revisão inicial de conceitos que poderão facilitar o seu entendimento.

1.3

Considerações conceituais Partimos do pressuposto que investigar possibilidades de pensar o

2 Bergson, La pensée

6

urbano, é um exercício que pode motivar uma reflexão sobre como

et le mouvant, Paris,

imaginamos, analisamos, organizamos e projetamos a cidade. Na

1934, p.231

tentativa de responder à questão sobre porque relacionar complexi-

dade e urbanismo, é importante uma distinção primordial: a diferença entre complexidade e complicação estabelecida para esta pesquisa. Segundo Le Moigne, “a complexidade surpreende pela irrealidade, ou, mais que isso, pela invisibilidade do seu conteúdo: é uma noção não-positiva por excelência” (2010:49). Pode-se entender a noção do complexo como aquilo que encerra muitos elementos ou partes, ou ainda algo observável sob diferentes aspectos. Ou ainda, segundo Pimenta3, falar em complexidade é “tentar encontrar novas matrizes de indagação e novos vetores de transformação da realidade em que nos movemos”. No conhecimento corrente, há o entendimento que complexidade é o mesmo que complicação. Há dicionários que apresentam os dois termos como sinônimos4. No âmbito deste estudo, vamos considerar que a complicação está ligada à dificuldade, ao embaraço, à confusão, enquanto a complexidade poderia ser inteligível, dependendo de suas associações. Contudo, esses dois termos não são sinônimos nem antônimos. “A complicação é um dos constituintes da complexidade” (Morin, 2011a:69). Mais que isto, é um elemento a ser incorporado ao processo. A complexidade também deve ser associada a outros fatores. Le Moigne (2010:76, nota 8), citando Paul Valéry, lembra que ‘La imprevisibilité essencielle’ (imprevisibilidade essencial ou incerteza) é a característica mais geral que associamos à complexidade. Dessa forma, as associações, que poderão tornar a complexidade inteligível, precisam considerar a incerteza. Neste mesmo sentido, Morin (2011a:68,60) também define a complexidade não só ligada à incerteza, mas à incapacidade de estabelecer uma ordem absoluta, adicionada à incapacidade de evitar contradições, que, nem por isso, são vistas como um erro, conforme a visão clássica do saber, mas um aprofundamento da realidade.

3. http://www.fep.

Outro aspecto seria a relação das diferenças entre racionalismo

up.pt/docentes/

e empirismo. Bachelard (1996:13) indica que é no cruzamento

cpimenta/pp9.

destes caminhos que o epistemólogo deve se situar. O ponto entre o realismo e o racionalismo, no movimento duplo dessas filosofias

4. Ferreira, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa -

contrárias que, segundo ele, simplificam o real e complicam a razão é onde o conhecimento deve ser explorado. Para ele,

2ª Edição revista e

o simples não existe somente o simplificado. Aponta, como

ampliada, Editora

exemplo, a complexidade essencial dos fenômenos da microfísica

Nova Fronteira, Rio

salientando que “quanto menor é o grão de matéria, mais realidade

de Janeiro, 1987.

7

substancial possui; diminuindo de volume, a matéria aprofunda-se” (Bachelard,1996:108). Neste sentido, observe-se a nanotecnologia e estabeleçamse as relações devidas, considerando que a nanotecnologia é o estudo da matéria numa escala atômica e molecular, que sua manipulação lida com estruturas com medidas entre 1 a 100 nanômetros (um nanômetro= um bilionésimo de metro) e incluindo o desenvolvimento de materiais ou componentes a partir destes estudos. Atente-se também que, ela está associada a diversas áreas, tais como medicina, eletrônica, ciência da computação, física, química, biologia e engenharia dos materiais.

Fig. 1

Torre de

Agustin Otegui

O princípio básico da nanotecnologia é a construção de estruturas e novos materiais a partir dos átomos. Na figura 01, como exemplo, a torre desenhada por Agustin Otegui, designer mexicano: o conceito, ainda experimental, baseia-se numa “pele” de componentes nanotecnológicos (originalmente com o nome de “Nano Vent-Skin” – NVS), isto é, turbinas fotovoltaicas minúsculas que capturam as energias solar e eólica, além de absorver CO2 da atmosfera. No processo previsto, a camada externa do edifício deverá absorver a energia solar através desta pele fotovoltaica, repassando-a através de nanofibras dentro dos nanofios, na direção dos locais de armazenagem. Assim, 5 http://www. metalica.com.br/

o ínfimo, transforma-se num campo do saber interdisciplinar 5.

nanotecnologia-e-

8

arquitetura-

Bachelard ressalta um ponto importante para a complexidade - a

inteligente

ligação entre o espírito científico e a psicologia, ou, dito de outra

forma, a ligação com as demandas e sentimentos específicos. Neste sentido, estabelece que “não existe verdade sem erros corrigidos. Uma psicologia da atitude objetiva é a história de nossos erros pessoais” (1996:239), o que, de certa forma introduz a incerteza na sua própria objetividade. Nosso estudo, por outro lado, trabalha com a hipótese, contrária a Bachelard, que nossos próprios erros poderão ser mais bem avaliados se considerarmos aquilo que ele rejeita: o conhecimento sensível, ou o que hoje é comumente designado por ‘stakeholders’ ou partes interessadas, que interagindo no processo urbano, podem evidenciar a diversidade da realidade a ser observada. Existe uma definição precisa da complexidade? Como diz Morin, “sua primeira definição não pode fornecer nenhuma elucidação: é complexo aquilo que não se pode resumir numa palavra-chave, o que não pode ser reduzido a uma lei nem a uma ideia simples” (2011a:05). Assim, a determinação do complexo se faz pela contraposição àquilo que é simples. E, para ele, embora a teoria da complexidade vise uma abordagem multidimensional, não é possível ligá-la à ideia de completude. Seu objetivo seria realizar a melhor integração possível entre as disjunções estabelecidas pelo pensamento cartesiano. Nesta perspectiva, a complexidade moriniana religa o conceito ao processo, e como tal é uma palavra-problema, não uma palavra-solução. Então trabalhar com esta teoria demanda que o foco esteja concentrado na operacionalização do processo. A solução ou as alternativas possíveis deverão emergir deste processo. É importante então, atentar que a complexidade começa a ser percebida exatamente pelo mesmo caminho que a expulsou para que se pudesse instaurar a simplificação. Primeiramente, pelo processo de desenvolvimento da física, na obediência a uma lei única, de uma constituição original simples, que nos chega através do segundo princípio da Termodinâmica, com a constatação da entropia ou da degradação. Em seguida, com a descoberta que a unidade mais simples, a partícula, encerra uma complexidade anteriormente inconcebível (Morin, 2011a:14), confirmando Bachelard. Antes, na primeira lei da termodinâmica instituia-se que a energia total transferida para um sistema é igual à variação de sua energia interna, ou seja, em todo processo natural, a energia do universo se conservava, sendo que a energia do sistema quando isolado seria 9

constante. Entendia-se, assim, a conservação de energia em qualquer transformação, mesmo em sistemas fechados. Já a segunda lei da termodinâmica não só reconhece a entropia, isto é, a perda de energia, como estabelece condições para que as transformações termodinâmicas possam ocorrer, observando não somente a energia, mas a ordem e, sobretudo, a organização. Estabelece assim uma interligação inequívoca entre um sistema e o contexto ou com outro sistema, através da entropia. Essa ideia de condicionamento entre as partes é um conceito que modifica fundamentalmente a racionalidade da separação, da disjunção. O pensamento sobre o conhecimento se transforma concomitantemente à evolução da ciência. Bachelard, em 1940, estuda a noção de Massa para avaliar os “cinco níveis sobre os quais se estabeleceram as diferentes filosofias científicas, evidentemente ordenadas, progressivas” (1966:23). Em 1977, Morin analisa os turbilhões de Bénard, descritos por Ilya Prigogine para explicar desordem > ordem > organização (2008:61). Quando se observa a noção de desordem como parte do processo, questiona-se se as intensas transformações tecnológicas atuais não sugerem a avaliação de novas alternativas de um exercício epistemológico? O objetivo deste estudo - a possibilidade das interações entre o urbanismo e a teoria da complexidade moriniana não seria uma contribuição para o pensamento urbanístico, considerando-se a desordem e a dispersão da cidade contemporânea? Outras ponderações a cerca da complexidade podem nos ajudar em nossa reflexão. Pimenta6 assinala que as teorias ainda se constituem mais como “uma ‘manta de retalhos’ unida por algumas ‘costuras’ como a teoria dos sistemas, a teoria das catástrofes de Thom, o determinismo caótico de Ruelle, os fractais de Mandelbrot, as estruturas dissipativas de Prigogine...”, entre outras. Essas ‘costuras’ estabelecem alguns elementos de construção deste todo. Segundo ele, as teorias da complexidade continuam a ser ponto de discórdia entre cientistas, indo desde os que defendem a grande novidade de tais abordagens e a sua incompatibilidade com a metodologia científica de raiz, como Morin; até aos que observam tratar-se de mais uma forma de colocar velhos problemas, não acrescentando novas 6 Complexidade e Interdisciplinaridade nas Ciências Sociais http://www.uesc.br/

pistas de prática científica; passando por muitos que pretendem domesticar a complexidade, isto é, colocá-la como referência inerte em velhas teorias.

cpa/artigos/ interdisciplinaridade. pdf ou http://www.

10

Neste trabalho, o olhar se concentra na abordagem moriniana que, a

fep.up.pt/docentes/

nosso ver, estabelece pontos epistemológicos comuns com alguns os

cpimenta/

autores escolhidos para o exercício pretendido.

1.4

Introito moriniano No seu caminho, desde a segunda metade do século passado, Morin vem trabalhando sua teoria da complexidade. São seis volumes do “Método” complementados por outras publicações, em que ele estuda e constrói uma teoria que traz a complexidade como uma proposta de um novo paradigma para o desenvolvimento do conhecimento no mundo contemporâneo. Em sua bibliografia, analisa tanto as transformações científicas, como o pensamento sobre este conhecimento na evolução humana, prioritariamente nos dois últimos séculos. Aponta os traços positivos e negativos do conhecimento do conhecimento (2010(1)). Utiliza-se do pensamento científico para estabelecer a base dos seus conceitos e, segundo Foyer (2011:183), observa o conhecimento pelo viés de uma anarquia teórica e metodológica, na apresentação da conjunção epistemológica de autores considerados pouco compatíveis. De Prigogine, como já dito, ele analisa ainda a perspectiva da desordem organizadora, através da experiência termodinâmica dos turbilhões de Bénard, onde “fluxos caloríficos, em condições de flutuação e instabilidade, ou seja, de desordem, podem se transformar espontaneamente em ‘estrutura’ ou forma organizada” (2008:60). Prigogine, segundo ele, ressalta que ao esquentar uma camada líquida o sistema se afasta do equilíbrio e que, a partir de um ponto crítico, o arranjo das células, que têm uma fórmula hexagonal, se apresenta em um “fenômeno típico da estruturação correspondente a um nível elevado de cooperatividade molecular” (appud Morin, 2008:61). E desta experiência Morin deduz a possibilidade de se imaginar que nosso universo constitui sua ordem e sua organização a partir da turbulência, da instabilidade, do desvio, da improbabilidade e da dissipação energética, noções que estão na base da sua teoria da complexidade. No seu trabalho, ele diz que, originalmente, a palavra método significava caminhada e que para a complexidade, é preciso aceitar caminhar sem um caminho, fazer o caminho enquanto se caminha Ou seja, tornar cíclico o conhecimento, não num círculo, mas numa espiral, na qual “o retorno ao começo é precisamente o que afasta do começo”, pela experiência da aprendizagem no percurso (2008:36), o que implica numa metodologia de trabalho diversa e que será abordada no capítulo 2 deste estudo,. Destaca, também, que a complexidade surgiu em contraposição à 11

simplificação derivada da disjunção do saber em unidades separadas, fechadas, nas quais se trabalham pressupostos dos quais faz-se necessário discordar: —

idealização, ao se considerar o real apreensível e o universal aplicável indistintamente;



racionalização, em se tentar enquadrar a realidade na ordem e na coerência de sistemas fechados, sem conexão com o contexto;



normalização, entendida neste caso como eliminação do estranho, do mistério, do específico em adesão à regra da universalidade. Entretanto, ele enfatiza que a escolha não é entre o saber particular, preciso, limitado e a ideia geral abstrata. A escolha não é entre o “cavaleiro francês”, que racionalizou (Morin, 2002:28 e 29) e o “cavaleiro inglês” empiricista, já que ambos trabalharam nos paradigmas da disjunção, o que, de certa forma nos permitiu um avanço tecnológico rápido, mas redundou em questões para as quais ainda não temos respostas. Nosso tempo é de perguntas. Morin declara ainda, que o trabalho com a complexidade visa “tentar iluminar os múltiplos aspectos dos fenômenos, e tentar apreender as mutáveis relações” (2008:34), de forma que se possa religar, religar sempre. Se transpusermos esta reflexão para o urbanismo, poderemos examinar a possibilidade de abordar os múltiplos aspectos dos fenômenos urbanos e tentar religá-los. Isto inclui, de forma enfática o sujeito, ou ainda, estabelece a ênfase na atividade do sujeito. Este é um dos pressupostos que ganham importância para a possibilidade da interação entre a complexidade moriniana e o urbanismo. É fato que “a sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas a sociedade, uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e os produz (...) Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos” (Morin, 2010a:74). Os aspectos complexos da cidade têm sido apontados por diversos autores. Jacobs (1992:433), por exemplo, já nos anos 60 do século passado indicava que as cidades são um problema de complexidade organizada; apresentam uma série de situações variadas, cujos problemas ou segmentos são inter-relacionados. Citando o exemplo da análise de uso de um parque, ela constata que o local pode ser examinado a partir do projeto que o originou, pelo tipo de população que mora nas redondezas, que, por sua vez, vai sofrer influência dos usos dos parques já estabelecidos na cidade. Acrescente-se ainda que, esses usos dependem, ainda, dos tipos de prédios do

12

entorno, da implantação do parque no sistema viário, das características de acessibilidade. Pode-se considerar também, a análise deste parque sob o foco das relações com o efeito estufa ou mesmo com a rede de parques da cidade. Qualquer parte ou problema de uma cidade vai demandar uma análise sob diversos pontos de vista. Qualquer análise da cidade vai demandar uma série de interações que irão afetar tanto especificamente como em conjunto, a situação analisada. Quanto mais se observa uma situação na cidade, mais interrelações se criam. Mas, na história do pensamento moderno, “os teóricos do modernismo do planejamento urbano convencional têm erroneamente tratado as cidades de forma simplificada ou como uma complexidade não interrelacionada” (Jacobs,1992:435). Este aglomerado de circunstâncias diversas pode ser trabalhado com interligações, para encaminhar alternativas que possam ser mais adequadas aos momentos de vida que se propõe facilitar nos aglomerados urbanos. Para Morin a complexidade, a primeira vista, traduz-se pela grande quantidade de interações e interferências entre um número muito grande de unidades. E a cidade é pródiga nessas interligações. Mas a complexidade não compreende apenas o aspecto quantitativo, inclui também as incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. Porem não pode ser reduzida ao aleatório, pois o acaso pode ser, em alguns casos, a ignorância. Neste sentido, Morin propõe a transdisciplinaridade para o trabalho com a complexidade, embasada pela possibilidade da diversidade de saberes reunidos possibilitar menor grau de ignorância e maior possibilidade de pressupostos, trocas, aprendizagem de novas situações e soluções mais compartilhadas. Como Morin apresenta sua Teoria da Complexidade, organizada e estruturada epistemologicamente, com princípios e pressupostos que podem ser relacionados aos textos urbanísticos, elaboramos esta pesquisa no sentido de trazer alguns destes princípios numa introdução ao pensamento moriniano, relacionando-os, em seguida, a autores que, no nosso entender, referenciam este exercício. O capítulo dois trata tanto dos princípios morinianos como tece uma análise da nova transdisciplinaridade proposta por ele.

O capítulo três trabalha a interligação entre os autores escolhidos 13

para referenciar o exercício epistemológico e que serão elencados no item subsequente.

1.5

A definição dos autores de referência para o exercício A teoria urbana produziu uma grande quantidade de estudos urbanísticos na primeira metade do século XX. Segundo Choay, somente uma publicação de referência7, elencava mais de 600 títulos (1998:02, nota 3). O que foi editado depois, imaginamos ter sido multiplicado em muitas vezes. Contudo, neste século XXI, a cidade não reflete em soluções, toda a teoria construída ao longo deste tempo. Ao contrário, a cidade contemporânea, se depara com problemas de fragmentação, heterogeneidade, dispersão, contrapostos às expectativas de solução oferecidas pelos paradigmas da modernidade ou mesmo da pós-modernidade. Os fenômenos urbanos são constantes e se modificam na intensidade de novas tendências e de novas tecnologias. As pretensões das propostas teóricas não se concretizaram. A proposta de Le Corbusier, por exemplo, baseada na força das transformações da sociedade industrial, não se efetivouou. Seu entusiasmo explícito era utópico: “carros e mais carros, rápido, muito rápido! Recebemos energia, seremos tomados pelo entusiasmo, pela alegria. (...) Participamos desse poder, fazemos parte dessa sociedade cuja aurora está nascendo. Temos confiança nessa sociedade nova; ela encontrará a magnífica expressão de sua força. Cremos nela” (1992:VIII). Nesta visão crédula, ele não estava só; toda a inteligência da época se pautava no progresso como resultado da busca da verdade. Todos nós trabalhavamos em prol de um desenvolvimento técnico-científico, que nos levaria a uma sociedade mais justa. Latour refere-se ao caráter apaixonado do modernismo: “era apenas questão de escolher uma causa para indignação e opor-se às falsas denúncias, colocando nisto toda a paixão desejável” (1994:48). Vivíamos um tempo de transformações, tempo de respostas, tempos de fé. Tempo em que se criam modelos, desenvolvem-se projetos,

7. Villes nouvelles, ele-

definem-se certezas.

ments d’une bibliographie annotée, de J. Viet, editada pela

14

O conhecimento assim dirigido trouxe progresso e precisão em do-

Unesco, em Paris,

mínios específicos. Mas trouxe o entendimento que, sem uma norma

1960 (referência da

de caráter universal, a sociedade estaria no caos. Era esta, por exem-

autora)

plo, a ideia por trás da cidade organizada a partir das quatro funções

estabelecidas na Carta de Atenas. Foi este pensamento de uma regra estruturada em princípios gerais, que sustentou por muito tempo a moderna determinação de instaurar uma ordem. No projeto moderno das ciências, se marginalizava tudo o que não estava explicitamente prescrito, que possuía ambivalência ou diferença não autorizada (Morin, 1999). A regra era a universalidade, que devia ser seguida para a construção de um mundo novo. O urbanismo definido pelos CIAMs se baseava nestes princípios. No entanto, o desenvolvimento do conhecimento tendeu para o surgimento de uma massa de especialistas. O olhar é focal. O aprofundamento pontual das ciências permitiu um crescimento tecnológico intenso, porem desligado da sua contextualização no mundo. Economicamente as especialidades se tornaram um poder, e quanto mais o profissional se especializa, mais se valoriza e mais se fecha nos seus conhecimentos, trabalhando, muitas vezes, com a inserção no mercado global, visando prioritariamente os ganhos financeiros, pressuposto que será examinado no capítulo da Globalização. A Arquitetura, que se estabeleceu da casa à cidade, se separa do urbanismo, desconectando o contexto em que se insere. Neste trabalho, considera-se sua totalidade, uma vez que toda a teoria moriniana se estrutura nas relações entre a parte e o todo e vice-versa. A crítica à modernidade vem se consolidando há algum tempo. Ainda no século XX, o pós-modernismo surgiu, numa contraposição diversificada, com propostas que não necessariamente acordavam entre si suas teorias. Segundo Lyotard, este movimento “é um sintoma e não uma nova solução. Vive sob a constituição moderna, mas não acredita mais nas garantias que esta oferece. Sente que há algo de errado com a crítica, mas não sabe fazer nada além de prolongar a crítica sem, no entanto, acreditar em seus fundamentos” (appud Latour, 1994:50). Os pós-modernistas percebem a derrocada do modernismo, embora continuem a aceitar sua forma de dividir o tempo e não podem, portanto, trabalhar as épocas senão através das ações que se sucederiam umas as outras. Continuam ligados ao mesmo movimento linear anterior, observando que vieram “depois” dos 8 Postmodernism or the Cultural Logic of Late

modernos, mas com o desagradável sentimento da ausência de uma continuidade e sem uma ruptura paradigmática considerável.

Capitalism de Fredric Jameson. In http:// www.youtube.com/

Jameson8 conceitua dois movimentos: o pós-modernismo - movi-

watch?v=nSNAhib

mento estético, e a pós-modernidade relacionada com o processo de

3B_M19

globalização. Analisa estas duas vertentes que, para ele, estão disso15

ciadas, sendo a primeira um movimento artístico-cultural iniciado pela Arquitetura: um estilo, o pós-modernismo. Já o que ele denomina pós-modernidade, seria a estrutura deste terceiro momento do capitalismo, que se vincula com a globalização, com os capitais financeiros, com as redes de comunicação e tecnologia digital. Essa, mais tardia, mais difícil de modificar, diferentemente do estilo. No caso deste estudo, é preciso observar o pós-modernismo no âmbito da arquitetura e urbanismo, não deixando, no entanto, de estabelecer as relações com o momento, em termos deste denominado terceiro estágio do capitalismo, uma vez que tudo está interligado. A modernidade não desconsiderou as questões econômico-sociais de sua época, mas se fixou em propósitos de eficácia na resolução dos problemas, enquanto a consciência pós-moderna começou a trabalhar a noção do incerto. Todavias, esse movimento de crítica ao modernismo gerou uma oposição superficial, uma teoria contraposta à outra teoria, ambas baseadas nos mesmos pressupostos, ambas baseadas no pensamento cartesiano, linear e ordenador. Intui-se, então, que provavelmente, o fundamental seria observar o modo de estabelecer essa teoria, o pensamento que rege a teoria. Neste ponto, é preciso considerar que o pensamento, ou seja, o processo mental que permite aos homens a compreensão do mundo, integra um conhecimento que é parte intrínseca de cada cultura, que nos fornece valores, símbolos, comportamentos que orientam a vida humana. Tal conhecimento define uma base de pensamento que, de alguma forma, nos dirige e coloca numa rede de conceitos que para ser rompida, requer da visão de algo que possa mudar o direcionamento das nossas escolhas. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico nos revela a dimensão global das possibilidades de veiculação da informação e do conhecimento. É interessante o nexo estabelecido por Morin, entre informação, conhecimento e pensamento (2002:18): —

a informação é uma matéria prima que o conhecimento deve dominar e integrar;



o conhecimento deve, constantemente, ser revisitado e revisto pelo pensamento;



o pensamento é a chave, o que traduz; mais que isso, é o capital mais precioso para o indivíduo e para a sociedade. É o pensamento que organiza o conhecimento e permite a criação de novas propostas, novos conceitos.

16

Hoje, o conhecimento não se apresenta mais em uma unidade de método, estabelecida por certo número de postulados implícitos em todas as disciplinas, como o postulado da objetividade; considerando a eliminação do sujeito, a utilização das matemáticas como linguagem e modo de explicação comum, a procura da formalização. Mostra-se multifacetado, alvo de críticas. A partir do início do século XX, a desordem e a incerteza começam a ser percebidas como questões importantes em várias áreas do saber. Ludwig Boltzmann, que estabeleceu a segunda lei da termodinâmica, mencionada anteriormente, como lei da entropia, onde estados dinamicamente ordenados são infinitamente improváveis, contribuiu para que a desordem e a incerteza se tornassem questões analisadas em várias áreas do saber. Este autor destaca que com o tempo, a entropia tende a crescer, provocando inumeráveis discussões entre aqueles mais conservadores, ainda relacionados à primeira lei da termondinâmica. Morin, no entanto, nos lembra (1999:23) que viver é um processo calorífico, porque produzimos calor no momento em que fazemos qualquer ação, e por isso a entropia que é física, termodinâmica, pode ser também metafórica. Além disso, todo aumento de entropia pode ser considerado um aumento de desordem. A partir das descobertas dos quasares, pulsares e ‘buracos negros’ do universo, constatou-se que “sua extensão corresponde a uma expansão, que esta expansão é uma dispersão, e que esta dispersão é, talvez, de origem explosiva”. Isto vai colocar a desordem como gênese da criação do mundo, intuído a partir do ‘Big Bang’9, como uma desordem organizadora. Na verdade, metaforicamente, este é o processo da evolução das cidades: tão logo alguma ordem é estabelecida inicia-se o processo de modificação ou degradação do novo, que vai demandar outra organização. Vide as motivações estabelecidas na Carta de Athenas, a partir do crescimento da ‘cidade industrial’, ou seja, desordens 9 A teoria do ‘Big

que requisitavam uma nova organização: problemas de higiene,

Bang’ estabelece

causados tanto pela ausência de instalações sanitárias adequadas,

a possibilidade da

como pela proliferação dos germes nas moradias; insuficiência de

criação do universo numa rápida ex-

sol no interior das residências; promiscuidade pela exiguidade dos

pansão há cerca de

espaços habitáveis em relação ao número de moradores por unidade

14 bilhões de anos

habitacional; esvaziamento do campo e consequente aumento da

atrás, num processo que se mantém

população urbana; necessidade de maior mobilidade, nas vias de

em movimento.

circulação. 17

Observemos as necessidades contemporâneas de mobilidade, de adequação das cidades aos processos de mudanças na organização econômica mundial, de compreensão dos fluxos migratórios que se intensificam nas grandes metrópoles mundiais, dos processos de gentrificação e de aumento das desigualdades tanto sociológicas como territoriais, da intensificação dos eventos climáticos intensos. Foram as desordens que instigaram e continuam a instigar a criação de valores que vão orientar os rumos da Arquitetura e Urbanismo, em diversos tempos. Choay (1998: 7) apresenta a noção de desordem fazendo “emergir sua antítese, a ordem”. Frisa ainda que, apesar de desejar a ordem absoluta e “por não poder dar uma forma prática ao questionamento da sociedade, a reflexão situa-se na dimensão da utopia”. Isto pode ser traduzido como a impossibilidade de ordenar a complexidade urbana, a não ser pela utopia, quando se presume o controle da situação, quase impossível na realidade. Cabe perceber também, que a consciência da diversidade e dos desejos humanos tanto nos aponta para a complexidade, como enfatiza a multidimensão que pode ser observada pela diversidade de paixões possíveis. E isso vai afetar as relações político-sociais. Precisamos compreender que, no Ocidente, embora a democracia esteja na maioria dos territórios, precisa ter atenção constante, pois se configura como um sistema frágil, num jogo de desejos e necessidades conflitantes, mesmo nos países mais desenvolvidos. Há atualmente, um jogo entre estados e poder privado que já não consegue ser representado pela dicotomia de valores que se estabeleceu no século XX. E isto tem que ser levado em conta, para que se encare o urbanismo de outra forma. Observadas as questões levantadas neste item, selecionamos diferentes autores que podem contribuir nesta reflexão sobre complexidade e urbanismo. Todos eles apresentam conceitos relativos à situações complexas, alguns deles análogos à teoria moriniana. Cada autor lança um olhar próprio à complexidade, expresso em diferentes formas de conceituar. Destacar estes conceitos religando-os à teoria moriniana é o objetivo deste exercício, para uma reflexão sobre a complexidade e o urbanismo. Dentre os principais autores destacados estão:

18

Robert Venturi, quie desde 1960 trabalhava com a complexidade, embora tenha concentrado sua teoria no aspecto formal, conforme nota à segunda edição de seu livro sobre complexidade, na qual declara que preferiria que o título do seu livro tivesse sido “Complexidade e contradição em forma arquitetônica”. No entanto, para seu estudo, lida com critérios que podem ser analisados comparativamente a nossa proposta, tais como complexidade versus simplificação, ambivalência, contradição e outros. O que nos interessa em Venturi não se relaciona com sua análise da forma arquitetônica, mas sim com os princípios que dirigiram esta análise. Se o considerarmos como referencial do exercício epistemológico, Bernardo Secchi em sua “Primeira lição de urbanismo”, complementa Venturi em pontos, como a dúvida, a inclusão do sujeito, a crítica aos especialistas, a incerteza e a angústia, a necessidade de estratégias, de cenários possíveis; a exclusão daquilo que fica fora da normalidade ou universalidade. De seu texto emerge a ideia de projeto, metaforicamente comparado ao processo jurídico, requerendo a divisão de trabalho entre diversos atores e a participação dos habitantes, (2006:39). Além disso, no projeto Grand Paris, junto com Paola Vigano, eles se utilizam de algumas estratégias que, coincidentemente, Morin estabelece como ações possíveis para o trabalho com a complexidade. Rem Koohaas contribui com sua visão da arquitetura como “uma disciplina estabelecida por rupturas, e não por continuidades” (Somol, 2013:90). Essa ruptura, para ele, se estabelece pela dimensão da metrópole, pela urbanização, pela globalização. De seu texto emerge a concepção de uma realidade complexa da cidade contemporânea, ligada aos pressupostos da globalização, que modificam a inserção da arquitetura no urbano e que determinam certas tendências futuras da arquitetura e do urbanismo. Alguns dos princípios de suas análises cruzam com os princípios da teoria moriniana. Saskia Sassen traz um estudo sobre as cidades globais – Nova York, Londres e Tóquio, que pode destacar perspectivas de uma análise das cidades que reproduzem seus modelos a partir dos fluxos estabelecidos pelo processo globalizador, tema presente na obra de Edgar Morin. A globalização ao introduzir parâmetros deslocalizados para a organização das cidades, complexifica-a mais ainda. Seu trabalho referencia a complexidade moriniana pela constatação de características contemporâneas que diferem dos valores estabelecidos pela 19

modernidade para a organização das cidades. Seus textos, embora não diretamente referenciados nos princípios morinianos, apresentam uma série de correlações com pressupostos morinianos, principalmente no que diz respeito às consequências da globalização. Complementando-a, o olhar de Milton Santos vai nos apresentar características urbanas a serem trabalhadas neste mesmo processo, pela complexidade, a partir de uma perspectiva da inserção de cidades periféricas no processo de mundialização. Ambos definem as características da cidade global, ligadas às possibilidades de um saber transnacional, e ele sinaliza que é nestes espaços, que a parte mais fraca dos habitantes ainda tem a possibilidade de fazer política ou de fazer história, considerando as contadições e contraposições geradas. A seleção dos critérios estabelecidos por estes autores foi determinada por sua capacidade de tranversalizar com os critérios da teoria moriniana, para que o exercício epistemológico se referencie na teoria urbana. Ao elencá-los e religá-los aos princípios morinianos estabelecemos a condição reflexiva dessas interações, que acreditamos não sejam as únicas. A própria metamorfose contemporânea explicitada numa série de tendências e constatações, nos permitem refletir sobre nosso tema. No capítulo quatro, entendemos ser interessante para o trabalho exemplificar e reforçar algumas destas tendências que indicam que os princípios morinianos formalizam um indicativo epistemológico a se estudar, considerando que, “nos tempos atuais existem dois princípios que são vitais para os indivíduos e para as sociedades humanas: a solidariedade e a responsabilidade”. (Morin, 2011b:25) Por fim, na conclusão, indicamos os principais pontos que nos fazem crer na signifoicância deste exercício para pensarmos o presente visando as possibilidades de trabalhar o futuro.

20

2.

A complexidade moriniana vista sob a perspectiva de interação com o urbanismo

2.1

O embate sobre as ideias morinianas O texto deste capítulo apresenta diferentes aspectos ou conceitos, desenvolvidos por Morin em sua teoria, destacando alguns deles para observá-los nas interações com a complexidade urbanistica, no sentido de apontar as possibilidades de trabalho com esta teoria em um exercício epistemológico. Contudo, como a própria teoria da complexidade indica, é necessária uma contextualização do autor, no sentido de compreendê-lo e neste caso específico, tentar entender as controvérsias e opiniões, que existem, mesmo na França, seu país de trabalho intenso. Além disso, ao interagir teorias, é importante conhecer outras perspectivas, de forma a referenciar o autor. A teoria da complexidade moriniana indica uma mudança de paradigma: uma ruptura. Consideramos que qualquer que seja a inovação ou ruptura, em qualquer contexto, vai haver, pelo menos, duas percepções extremas e antagônicas: a aceitação e a negação. E se considerarmos que as estruturas de pensamento anteriores a essa ruptura gozem de certa estabilidade por um longo período, a reação se intensifica. A obra de Morin e alvo das duas posições, embora as críticas, na maioria das vezes, não sejam explícitamente debatidas.

21

Em recente publicação do CNRS, Dominique Wolton (2011:12), na introdução, afirma que Morin tem tido críticos ao longo de mais de meio século de trabalho, sem jamais se recusar ao debate, que segundo o próprio autor, sempre lhe foi recusado. Consideramos importante apresentar, no escopo deste trabalho esse quadro de embate das suas ideias, no sentido de evitar qualquer possível descrédito a sua teoria, em razão destes embates. Como, em nossa pesquisa, não encontramos um debate de conteúdo que se relacionasse diretamente à nossa proposta, nos utilizamos do material encontrado, uma publicação do Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS, da França (Centro Nacional da 10 Sociólogo,

Pesquisa Científica), que reúne depoimentos de pesquisadores e

encarregado da

profissionais de diversas áreas, sobre o trabalho e sobre os textos

pesquisa no Intitut

de Morin.

des Sciences de la Communication

du CNRS

Na mesma publicação10, Jean Foyer (2011:182) fala dos críticos de Morin, classificando-os em três grupos: os que não gostam, mas admi-

11 Grand entretien, entrevista de

tem não conhecer bem sua obra; outros que não o admiram, quase

Dominique Wolton

por um reflexo corporativista e/ou disciplinar; e aqueles que, mesmo

com Edgar Morin in

o conhecendo e admirando, consideram suas reflexões herméticas e

Hermés 60: Cognition,

pouco adaptáveis ao quadro de análise sociológica.

Communication, Politique, pp. 241. Institut des Sciences

Falando de seus próprios críticos, em entrevista à Dominique

de la Communication

Wolton11, Morin relata que jamais teve uma disputa de ideias com

du CNRS. CNRS Étitions, Paris, 2011

Pierre Bourdieu ou com Michel Serres, o primeiro deles “um inimigo da sua obra sociológica”. Quanto a Bruno Latour, ele afirma que

12 Boletim bimestral,

este publicou um texto no boletim informativo Pandore12, em 1981,

lançado em

e recebeu de Morin uma resposta em verso na mesma publicação

novembro 1978.

(Wolton, 2011:248). (ver figura na página seguinte)

Considerado como um elemento de ligação entre os

Na busca de seus críticos, encontramos no Brasil, uma referência

pesquisadores e

feita por Miranda (2005)13 sobre a crítica de Pierre Bourdieu à Morin,

que foi distribuído gratuitamente até o número 25, sob o

de Bourdieu contra a análise de Morin sobre a cultura de massa e a

patrocínio do STS

mass media, enfatizando que Morin substitui “a perspectiva da ‘co-

(Science, technologie, société) do CNRS.

13 Luciano Miranda

municação de massa’ pela ‘cultura de massa’. Miranda enfatiza que Morin rejeita a análise dos fatores limitados dos norte-americanos e opera um deslocamento metodológico à totalidade, ou seja, ao con-

em Pierre Bourdieu

junto cultural” (2005:23). Uma vez que o tema do livro não se refe-

e o campo da

rencia no objeto deste trabalho, não nos aprofundamos no assunto,

comunicação: por uma teoria da comunicação praxiológica, EDIPUCRS, 2005

22

relativa ao texto L’esprit du temps. Miranda apresenta as questões

que com certeza apresenta outras controvérsias.

Fig. 2

Extrato da resposta em verso de

Edgar Morin [Pandore, no 14, junho de 1981] a dois textos, provavelmente publicados sob pseudônimos, o primeiro assinado por Henri Diday [Pandore no 12, fevereiro de 1981] e o segundo, por Jean d’Hériaut [Pandore, no 13, abril de 1981]

23

Ainda em relação à entrevista, o próprio Morin trata do que ele denomina de mal entendidos, referindo-se a alguns tipos de crítica ao seu trabalho, que terminam qualificando-o ao invés de debater suas ideias. A crítica que mais o incomoda é exatamente aquela que o qualifica como “confuso”, isto provavelmente, porque já há algum tempo, ele se considera uma pessoa de direita e de esquerda, simultaneamente. Muitos querem enquadrá-lo como filósofo, outros como cientista. Seu pensamento é compartimentado pelos outros, enquanto sua teoria busca a não compartimentação. Para ele o que interessa é “respeitar as exigências de investigação e verificação, próprias do 14 Biofísico e filósofo francês, atualmente trabalhando na

conhecimento científico e as exigências de reflexão propostas ao conhecimento filosófico” (Wolton, 2011:100).

Universidade da Califórnia, em

E é neste sentido que Morin escreveu sua obra. Em suas publicações

Berkeley.

percebe-se sempre a origem do seu raciocínio, que nunca deixa de

15 Heinz von

interligar o pensamento da ciência com a reflexão sobre a vida. Sua

Foerster, físico e

obra é ela mesma um exemplo de transdisciplinaridade, como ele

filósofo austríaco,

mesmo relata no primeiro livro d’ O Método (2008:44): “este primeiro

que mudou-se para os Estados

volume trabalhou muito dentro de mim (quer dizer que me obrigou

Unidos e junto a

a trabalhar muito). Eu devo considerá-lo como uma obra ao mesmo

outros cientistas ,

tempo totalmente solitária e totalmente solidária. Solitária porque

trabalhou na criação da cibernética.

tive de consagrar-me a ela pessoalmente, de modo integral. Solidária porque foi estimulada, corrigida e controlada por outros”.

16 Gotthard Günther, filósofo alemão, que trabalhou nos

Ele indica Henri Atlan14 na origem das ideias, iniciando-o na de-

Estados Unidos

sordem criadora, e depois nas suas variantes (acaso organizador,

e teve muita

desorganização/reorganização). Atlan lhe introduziu Von Foerster15

influência nas áreas de filosofia,

a quem ele deve muitas das suas ideias-chave; este o fez descobrir

cibernética,

Günther16 e Maturana e Varela17. Segundo ele, “isto não exclui a

matemática

minha dívida para com outros autores, pensadores e investigadores,

e sociologia, trabalhando

que vêm citados neste texto”, incluindo seu principal interlocutor, o

também com a auto

biólogo John Stewart (2008:44), de contribuição fundamental, entre

organização.

muitos outros que ele nomeia, nesta publicação.

17 Humberto Maturana, neurobiólogo chileno,

Mundialmente, ele tem encontrado repercussão em muitos países,

criador da teoria da

inclusive no Brasil e também naqueles que denomina os países do

autopoiese, junto a Francisco Varela,

Sul, sem reduzir essa denominação a uma totalidade homogênea,

biólogo e filósofo

como ele mesmo coloca: “existem muitos suis, muito diferentes uns

chileno, que escreve

dos outros, mas que são submetidos à concepção única vinda do

sobre sistemas vivos e cognição: autonomia

Norte (...) do imperativo do desenvolvimento e da modernização.

e modelos lógicos.

Essa visão impede de perceber que nos suis existem qualidades,

24

virtudes, artes de viver, modos de conhecimento que deveriam não apenas ser salvaguardados, como também propagados pelos nortes” (Morin,2011b:21). Nesta perspectiva, os pensadores dos países africanos têm contribuído para discutir e introduzir a complexidade moriniana nas universidades daquele continente, mantendo um trabalho tão intenso que em alguns casos resultam em publicações no continente Europeu. Emmanuel Banywesize18 (2011:208), um destes autores, por exemplo, coloca uma questão pragmática: como governar as sociedades humanas no contexto da globalidade? Constata que a obra de Morin oferece os elementos de resposta a esta questão. Considera o pensamento complexo conjuntivo, transversal, associativo e complexificante. Propõe a apreensão da realidade por diferentes princípios morinianos: —

o princípio dialógico concernente à associação de realidades opostas, antagonistas, mais ao mesmo tempo complementares e inseparáveis, como por exemplo o público e o privado;



o princípio recursivo que permite conceber a organização complexa, considerando como recursivo o processo pelo qual os produtos (os objetos ou mesmo os sistemas) e os efeitos são necessários à sua própria produção e a sua própria origem, um processo auto-produtor e auto-organizador;



o princípio hologramático, que religa a parte ao todo e o todo à parte. A sociedade como um todo está presente, através da cultura, em cada um de seus membros cujas interações produzem e/ou renovam a sociedade;



o princípio ecológico da ação que estabelece que, em razão do jogo de interações e de retroações no qual se insere, a ação uma vez detonada, escapa frequentemente às intenções do autor. A ação vai depender do autor e das condições do contexto em que se insere. Para Banywisize governar num mundo complexo se traduz, então, por não rejeitar nem apagar a diversidade em benefício de uma integração e de uma uniformalização artificial. Acredita que as culturas locais são uma necessidade identitária fundamental para o homem.

18 Filósofo e professor

Governar em situações complexas é buscar soluções, deliberando, à

da Université de

medida que a situação se desequilibra, reconhecendo os conflitos, as

Lubumbashi. Doutor

oposições, as incertezas, a própria complexidade social e procurando

em Ciências Sociais pela Université

trabalhar com elas. É, também, articular o local e o global, o regio-

Paris-Descartes

nal, o nacional e o mundial. 25

Mas Morin não está restrito aos países do Sul. Ma Shengli19 afirma que Morin passou a ser conhecido na China desde o final da Revolução Cultural. Ele chega a declarar que todos os seus livros foram muito bem acolhidos pelo meio intelectual chinês, sendo que alguns deles se tornaram sucesso de vendas. Sobre isso, ele cita Yue Daiyun, professor da Universidade de Pequim: “estamos num novo mundo e devemos mudar nossa maneira de pensar e adotar novas concepções em face aos problemas que se colocam. Os livros de Morin nos fizeram aprender a utilizar um novo método para resolver os novos problemas do mundo” (2011:125). Ainda segundo ele, o próprio Morin, no seu prefácio da edição chinesa do livro “O paradigma perdido”, diz acreditar ser mais bem compreendido na China do que no Ocidente. Mas Morin, ao construir sua teoria, se valeu da sua própria ousadia em romper fronteiras disciplinares, quando estabeleceu na prática interdisciplinar, as suas bases. Pena-Vega20 faz, nesta mesma publicação, um relato interessante dos 19 Pesquisador

seminários de Edgar Morin que, durante aproximadamente 20 anos,

do Instituto de

entre os anos 60 e 80 do século passado, contaram com a presen-

Estudos Europeus

ça de muitos pesquisadores, dentre eles: René Thom, Umberto Eco,

da Academia de

Henri Atlan, Joel de Rosnay, Scott Atran, Ilya Prigogine e Massimo

Ciências Sociais da China

Piattelli-Palmarini, este último, co-animador dos eventos. Ele avalia que esses eventos contribuíram para a formação da teoria da com-

20 Engajado desde 1994 no projeto

plexidade moriniana e se caracterizaram pela mistura de saberes

de pesquisa

(2011a:86). O seminário se configurou como uma atividade que se

europeu, dirigido

iniciou complexa, contando com importantes interações para fazer

por Edgar Morin,

concluir sobre os pressupostos da complexidade.

“Sustainability Trough Ecological Economics,

No início dos trabalhos, a proposta de Morin estava dirigida a “mi-

Economic and

gração de conceitos”, através de uma articulação entre os diferentes

Social Aspects of Environment”, é

domínios, e que depois resultaram em alguns princípios, tais como,

diretor do Institut

as contradições, os paradoxos, os sistemas abertos, que se torna-

International de

ram os fundamentos do sistema de pensar complexo embrionário.

Recherche Politique de la civilization, e

Pouco a pouco, se assistiu a evolução de um pensamento e não mais

membro do Centro

uma acumulação dos saberes das diferentes disciplinas envolvidas

Edgar Morin, do

(2011a:88-89).

IIAC, da École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Segundo Pena-Vega, pode-se perceber, no período deste seminário,

Foi orientador deste

que as discussões caminharam em dois sentidos: de um lado, um

trabalho no período

aprofundamento das ideias gerais em torno do evolucionismo e de

do doutorado

26

sanduíche no Centro

outro, a tentativa de transferência destes conceitos para as ciências

Edgar Morin.

humanas, em especial, a antropologia e a sociologia. Nesta pers-

pectiva epistemológica, para a qual foi concebido o seminário, a teoria da evolução se tornou uma condição para se pensar a unidade espaço-temporal do universo, do ser vivo, do homem, e da sociedade. A partir desta condição, podemos indicar as relações que se estabelecem na compreensão dos fenômenos de caráter auto-organizados e auto-organizadores, na interação da teoria da complexidade com a evolução das cidades. Sobre isto, Morin (Wolton, 2011:251) destaca, entre as pessoas que o influenciaram, Heinz Von Foster, que lhe introduziu as ideias de recursividade e o fez compreender que a auto-organização depende sempre de uma alimentação exterior. Isto significa que não há autonomia sem dependência, como na interligação entre o bios, a polis e o antropos, até então disjuntos, e que se constituem pontos epistemológicos. Para Morin, o fenômeno da auto-organização que gera interconexão entre os ciclos é uma questão paradigmática que constitui o âmago de sua obra “O método”. O seminário de Morin teria centros de interesses bastante diversificados e completamente fora da pedagogia acadêmica. E é através das interações disciplinares, que ele vai insistir em três pontos, que Pena-Vega considera os princípios paradigmáticos do pensamento complexo, reforçando a citação de Banywesize: —

a ideia das partes ligadas ao todo que retorna sua ligação ao conhecimento das partes, numa postura nem reducionista nem holística;



a explicação da problemática da organização, à qual estariam vinculados alguns princípios, tais como inter-retroação e auto-eco-organização;



e o princípio de uma dialógica que se apresenta num ciclo de ordem/ desordem/interação/organização. Outro ponto importante destacado por Morin, neste seminário, é que tanto o objeto como o sujeito devem, ao mesmo tempo, ser distintos e religados ao seu meio ambiente, e essa necessidade de ligar o objeto a seu observador/projetista deve estar integrada tanto na observação como no projeto de qualquer pesquisa, ao que acrescentamos, de qualquer projeto (urbano) ou criação. E, mais ainda, dentro dos princípios epistemológicos da complexidade, não existe um referencial soberano para controlar/verificar o conhecimento, mas sim, múltiplos referenciais, cada um deles necessários e insuficientes, em interligações recíprocas, constituindo-se cada um como um princípio de incerteza ou da dúvida.

27

Em outro texto, Pena-Vega (2011b:103-104), situa o trabalho de Morin na ligação entre a reflexão e a reflexividade, que a ciência relegou à filosofia. A intenção do trabalho do “Método” é o conhecimento do conhecimento, ou seja, que tanto o observador como o projetista possam se olhar, se conceber. Pena-Vega apresenta os seis volumes do Método, indicando a não pretensão de postular o sentido programático do termo, mas sim uma acumulação de grandes ideias, sem um sentido linear, mas recursivo, como a própria teoria. Os tomos 1 e 2 abordam a reflexividade e a reflexão respectivamente. No tomo 1, uma avaliação do problema da ordem e da desordem, no tomo 2 o conhecimento da vida, que se organiza pelas nossas trocas com o ambiente. Os tomos 3 e 4 são interligados e se relacionam ao método que emerge das incertezas na elaboração do saber. Mas a incerteza é, também, o tema chave do quinto volume: “quanto mais conhecemos a humanidade, menos nós a entendemos...” (La Méthode t.5, 2001) Finalmente, no tomo 6, os princípios de uma epistemologia da complexidade humana vão nos permitir repensar a ética neste contexto complexo. Da extensa obra de Morin, foram destacados pontos que são muito importantes dentro do pensamento complexo, que contêm a possibilidade de interação na perspectiva da complexidade urbanística e que poderão redundar em conclusões sobre a hipótese deste trabalho. Contudo, é importante, primeiramente, evidenciar alguns aspectos instrumentais de Morin, que vão facilitar a compreensão do seu trabalho.

2.2

Métodos, segundo Morin Morin ressalta que método, tradicionalmente, se compõe de regras que nos ensinam a aprender, pressupõe a idealização, a racionalização e a normalização. Fundamentalmente, um método pressupõe regras e caminhos, e em si já apresenta uma estrutura de disjunções e simplificações. Para trabalhar com a complexidade é preciso buscar o método, começar pelo método como caminho a ser percorrido especificamente, numa progressão em espiral que nos permita o retorno que se afasta do começo. (2008:36). Alguns anos antes de conhecer a teoria moriniana, em outra pesquisa, encontramos em Zeizel (2006:84), uma referência à progressão em espiral. Segundo ele, pensa-se que a programação precisa prece-

28

der o design para ser efetiva. Na prática, contudo, o design em muitos projetos começa quando a programação se inicia. Em seu texto ele descreve o projeto para a H-E-B Corporate Headquarters, em San Antonio, no Texas, demonstrando o programa desenvolvido como um processo interativo com pesquisa, relatórios e decisões, o que resultou em duas espirais entrelaçadas, onde o programa e as decisões de design, que necessitavam ser simultânea e mutuamente estabelecidas, foram realizadas no desenvolvimento de ambos os processos, como demonstra a figura 3.

interactive programming-design spiral

program design

Fig. 3

Espiral de

programação de design

Embora o conceito de programa, seja para Morin, um conceito limitador, no exemplo citado por Zeizel, sua estruturação do trabalho se faz analogamente à proposta moriniana de buscar o método como caminho a ser percorrido especificamente e conjuntamente às decisões de projeto. Este exemplo pontua mais uma interação de postura metodológica que caminha no mesmo sentido proposto por Morin. Morin, partindo dos pressupostos das relações entre as partes e o todo e entre o todo e as partes, estabelece alguns critérios ou postu29

ras de trabalho que permitam a formação de uma inteligência, “que os gregos chamavam métis”, ou seja, “conjunto de atitudes mentais (...) que combinam o faro, a sagacidade, a previsão, a agilidade de espírito, o desembaraço, a atenção vigilante, o sentido de oportunidade” (2002:24,nota 3). Para se conseguir o desenvolvimento desta inteligência, ele recomenda que as pessoas sejam motivadas a: —

exercitar suas aptidões interrogativas, sua curiosidade;



estimular o pensamento para as possibilidades e problemas fundamentais da nossa própria condição e do nosso próprio tempo;



desenvolver o espírito problematizador e investigador, de exercitar a dúvida, repensando o pensado;



formular a organização do conhecimento a partir de operações de religação (conjunção, inclusão e implicação); de separação (diferenciação, oposição, seleção e exclusão) num processo circular passando da separação à ligação, da ligação à separação; concomitantemente com o processo de análise à síntese e da síntese à análise, para finalizar na formulação de critérios;



colocar seu objeto de pensamento no contexto natural e no conjunto do qual faz parte, desenvolvendo a aptidão para contextualizar e globalizar;



abrir as fronteiras do conhecimento propostas pelo processo disjuntor de especialização das disciplinas, através da transformação dos princípios organizadores do conhecimento. Como diz Morin, não se pretende nem um saber geral nem uma teo-

21 Gianlucca Bocchi

ria unitária. É preciso recusar o conhecimento geral, que disfarça ou

e Mauro Ceruti.

ignora as dificuldades e a diversidade pela simplificação. A proposta

Respectivamente

é unir o que está separado. Procura-se um método que possa articu-

professores de Filosofia da Ciência

lar o que está separado e reunir o que está disjunto.

e de Epistemologia na Universidade de Bergamo, Italia 22 Ana Sanchez, professora emérita da Faculdade

Mais que isto, Morin estabelece que é pelo processo que se aprende e se chega a resultados mais responsáveis. Bocchi e Cerruti21 (2011:58) destacam a proposta de Morin em abordar o desenvolvimento humano, como um ‘vir a ser’ e não como algo estabelecido, como um

de Filosofia e

processo e não como um estado. Sobre isto observam que a experi-

das Ciências

ência humana é uma tessitura de destruição e criação. A evolução

da Educação da

do homo sapiens introduz uma fratura nos equilíbrios pre-existentes e

Universidade de Valência, na

uma tensão constante para criar o novo.

Espanha 23 Morin in Le Vif du

30

Indicando este caminho, Sanchez22 (2011:219) cita Morin23, apontan-

sujet. Seuil. Paris,

do a necessidade de “duas ideias para se crer”. Para ela é preciso

1969, p. 64

“abandonar o pensamento unidirecional, que não pode seguir senão

uma ideia por vez e abolir a ideia fixa. Opor um contrarreflexo cumulativo ao reflexo alternativo: tentar substituir o ‘ou....ou’ pelo ‘e....e’. Neste mesmo sentido, Venturi, no campo da Arquitetura, propõe a substituição do ‘ou...ou’, pelo ‘tanto....como’, ou o duplo significado. E é com esta intenção que Morin trabalha quando religa pontos diversos de textos diferentes; como ele mesmo declara , “sempre que encontro algo, mesmo em sociologias que considero reticentes, se há documentos interessantes eu os tomo” (Wolton, 2011:183). Neste sentido, Foyer (2011:183) realça, como já mencionado, que em seu trabalho, Morin traduz esta postura como uma anarquia teórica e metodológica, que autoriza uma “bricolagem” científica. Foyer declara que “a cerca da epistemologia de Morin, não me parece chocante fazer coabitar nas mesmas análises autores como Bourdieu, Latour, Touraine (dentre outros), considerados pouco compatíveis, provavelmente, mais por razões institucionais do que teóricas”. O processo da transdisciplinaridade moriniana, hoje mais consensual, facilita a coabitação das diferenças, Contudo, Morin declara que os atores que se opõem a esse procedimento, têm o sentimento da incompreensão entre as partes. Evidentemente, este tipo de abordagem transdisciplinar, segundo ele, apresenta vários problemas práticos, no início, principalmente em relação à observação dos dados da questão. Para vencer essas barreiras, todavia, consideramos importante fazer a distinção, de acordo com Morin, entre os três conceitos: razão, racionalidade, racionalização: —

a razão corresponde a uma vontade de ter uma visão coerente dos fenômenos, das coisas e do universo e traz em si a racionalização que corre o risco de sufocá-la;



a racionalidade é o jogo, é o diálogo incessante entre nossa mente, que cria estruturas lógicas, que as aplica ao mundo e que dialoga com o mundo real, reconhecendo as irracionalidades e interagindo com o irracionalizável;



a racionalização consiste em querer prender a realidade num sistema coerente. Neste processo, tudo que não se adaptar a este sistema coerente é afastado, deixado de lado. Todos nós temos a tendência de afastar da nossa mente o que possa contradizê-la, não importa qual seja a área do conhecimento. “Exercemos uma 31

atenção seletiva sobre o que favorece nossa ideia e uma desatenção seletiva sobre o que desfavorece” (2011a:70). Neste mesmo sentido, é produtivo observar que hoje existe uma nova cegueira, propiciada pelo uso degradado da razão, principalmente em relação à hiperespecialização, que propicia um pensamento fechado, que traduz por sucesso uma evolução referente somente ao próprio que evoluiu, sem estabelecer as conexões devidas, bem como suas consequências. Morin admite que, quando o mundo está em desacordo com nosso sistema lógico, significa que há uma insuficiência: o universo é muito mais rico do que a concepção das estruturas do nosso cérebro. A racionalidade não tem a pretensão de esgotar a totalidade do real, mas sim estabelecer o diálogo. Ele nos indica que é através de um diálogo permanente com as descobertas que podemos conceber a complexidade do universo e, consequentemente da vida. Não estaríamos onde estamos sem “o quanta, os quasares, os buracos negros, com sua origem incrível e seu devir incerto”. Para tal diálogo, ele recomenda observar os macroconceitos, ressaltando que “não se deve jamais procurar definir por fronteiras as coisas importantes. As fronteiras são sempre fluidas, são sempre interferentes. Deve-se, pois, buscar definir o centro, e esta definição pede, em geral, macroconceitos” (2011a:73). Num exemplo do que seria um macro conceito para um projeto urbano, podemos citar a mobilidade, que poderia ser o centro de microcomplexidades relacionadas. Outro ponto importante para a complexidade moriniana é a informação, vista como uma noção central, mas ambígua. Por um lado, integra a teoria da comunicação, na transmissão das mensagens, por outro se relaciona com o aspecto estatístico, e, ainda, da probabilidade ou da improbabilidade no sistema binário da telecomunicação (bit). A transmissão da informação ganhou um sentido organizacional, no “programa” digital que comunica uma mensagem ao computador e lhe ordena operações. No campo biológico, o DNA, passível de autorreprodução, carrega mensagens genéticas, cujo processo reprodutivo pode ser caracterizado como uma cópia da mensagem. E, ainda pode sofrer mutações genéticas, entendidas como ‘ruídos’. Nestes dois aspectos, podemos considerar a informação, ou a teoria de origem comunicacional, aplicada num sentido organizacional, como memória, mensagem, dados, programa, tudo isto ao mesmo tempo. 32

Nesta perspectiva, a informação é um conceito indispensável, inseparável da organização. Não é um conceito de chegada, mas um ponto de partida. Conforme mencionado anteriormente, a informação é a matéria prima que vai ser trabalhada pelo conhecimento constantemente revisitado e revisto pelo pensamento, que vai se traduzir em novo conhecimento. Por último, a linguagem, meio primordial da comunicação, ao ser utilizada para descrever a proposta de um novo paradigma, pelo seu próprio cunho de inovação vai demandar a criação de novas palavras, bem como o uso de analogias e figuras retóricas para seus enunciados. Uma das características de um texto sobre o novo é a necessidade de se definir novas ideias. Bonomo24 (2011:225) destaca que as obras de Morin são um excelente campo para a investigação léxica, devido ao caráter de interação disciplinar e a necessidade de nomear novos conceitos. Segundo ela, Morin exerce essa capacidade inventiva de todas as formas de composição possíveis. Ela aponta, por exemplo, a palavra ‘ingenium’, apropriada por Morin do trabalho de Giambatista Vico, que a define como a propriedade que permite religar de maneira rápida, apropriada e bem sucedida as coisas separadas. A palavra dialógica, outro exemplo, onde o prefixo exprime talvez não somente a distinção e a separação, mas também a noção de ‘através’, revelando uma lógica ‘unidual’, constituída por duas lógicas antagonistas e complementares ao mesmo tempo. O sentido do adjetivo dialógico corresponde aquele do substantivo. Morin buscou-a em Mikhail Bakhtin que a conceitua como o processo de interação entre textos, correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos e a transformou num princípio. Segundo a autora, na segunda metade do século XX, era comum, 24 Sara Bonomo, é professora de Língua e Literatura Francesa na

em várias línguas, a criação de palavras novas a partir da adição de prefixos tirados do grego e do latim. Morin faz uso tanto deste instrumento como também de palavras compostas, ligadas pelo traço

Università del

de união. Seguindo uma tendência da informática, ele também se

Salento. Faz

utiliza de palavras truncadas, a partir de um cruzamento ou de uma

parte do grupo de

superposição de duas palavras distintas.

pesquisa GREC – Grupo de pesquisa sobre o extremo

Bonomo aponta que para Morin, a linguagem depende de uma so-

contemporâneo

ciedade, de uma cultura, de seres humanos, que para se realizarem

na Università degli Studi di Bari

dependem da linguagem. Assim, novas palavras para um novo pa-

Aldo Moro

radigma permitem uma circularidade maior nas diversas culturas, 33

uma vez que nascem peculiarmente referenciadas. Segundo ela, esta circularidade de se expressar e de pensar é um traço característico de Morin e de sua originalidade. Para esta pesquisa, esses instrumentos devem ser plenamente entendidos, do ponto de vista da teoria moriniana, para que se possa compreender tanto os destaques que serão apontados neste capítulo, como as possíveis interações da complexidade com o urbanismo.

2.3

Complexidade moriniana Um caminho duplo levou este autor a pensar que, de um lado, a complexidade via desenvolvimento científico vai revendo paradigmas da física e do universo, vai desenvolvendo novas tecnologias e modos de comunicação, provocando uma reflexão sobre a pertinência de conceitos que já não correspondem aos processos de desenvolvimento do conhecimento; e do outro, o próprio processo baseado na disjunção inviabiliza as interações entre as partes e o todo, ocultando problemas essenciais neste desenvolvimento. Assim a complexidade emerge de um processo reflexivo sobre as ciências juntamente com a contraposição entre o simples e o complexo. Nesta contraposição se destacam as incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios ou acasos, caracterizando a complexidade como a incerteza no seio de sistemas ricamente organizados, ligados a certa mistura de ordem/desordem (Morin, 2011a:35). A certeza cartesiana que se estabeleceu com a disjunção, no foco em um saber simplificado e aprofundado, se opõe a incerteza da complexidade como uma possibilidade de método que, pela interação dos pontos que se relacionam entre si, se tornaria produtivo através desses processos de trocas, a partir de uma consciência complexa, comportando a sua própria reflexividade. Para melhor compreensão, citamos Giddens (1976), que também nos fala sobre reflexividade, trabalhando primeiramente, na história, aquilo que ele denomina “monitoração reflexiva da ação”, quando há um sentido fundamental no qual a reflexividade é uma característica de toda ação humana. É neste sentido que ele se refere à tradição, enfatizando a passagem do tempo – passado, presente e futuro - e a constante modificação desta monitoração a cada nova geração.

34

Num segundo momento, “com o advento da modernidade, a reflexividade é introduzida na própria base da reprodução do sistema, de forma que o pensamento e a ação estão constantemente refratados entre si” (Giddens,1991:40), sem conexão com o passado. Novas informações vão renovar as práticas sociais, a partir delas mesmas, configurando-se na reflexividade da vida social moderna. É na era da modernidade que, “a revisão da convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana, inclusive à intervenção tecnológica no mundo material” (Giddens, 1991:40). Giddens salienta a ligação mais radical entre a reflexividade da modernidade e a certeza, enfatizando a percepção atual de sua impossibilidade. Para ele, tanto a sociologia como as outras ciências sociais têm seus discursos continuamente circulando dentro e fora daquilo de que tratam, reestruturando reflexivamente seu objeto. É neste ponto da reflexividade, que ele denomina sociológica, que o faz aproximar-se da teoria moriniana. A “circulação dentro e fora” é um processo de trocas e o social, implicitamente, inclui o sujeito em todas as duas variáveis, complexificando a reflexividade. A reflexividade radical da modernidade e a separação dos saberes nos levaram à hiperespecialização, ou seja, o processo disjuntor que fragmenta a visão do global e dissolve o essencial. Esses recortes dificultam a percepção do que é tecido em conjunto, ou seja, do complexo, das inter-relações. A fragmentação “atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão eliminando também as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo” (Morin,2002:14). O desenvolvimento das especialidades foi possível pela disjunção dos saberes. Mas chegamos a um ponto que, o mais destacado especialista num determinado assunto dificilmente detém a totalidade das informações daquele segmento, uma vez que o conhecimento está sempre em movimento, num mundo no qual ele se multiplica de forma cada vez mais intensa. Assim como o homem, o mundo também é desmembrado entre as ciências, esfarelado entre as disciplinas e pulverizado em informações e hiperespecialistas. A ideia de circuito reflexivo com encontros aleatórios é uma das referências da teoria moriniana e se contrapõe à hiperespecialização. Morin considera que quanto mais hiperespecialização, mais multidimensionalidade e mais incapacidade de trabalhar com os múltiplos. 35

“Uma inteligência incapaz de encarar o complexo torna-se cega, inconsciente e irresponsável”, tende a ter responsabilidade apenas pela sua tarefa específica e especializada, desprezando as interações futuras (Morin,2002:15). O caso das abelhas, citado por Harvey (2004:264) parece ser exemplar para ilustrar o assunto num plano positivo. O autor indica que, hoje sabemos muito sobre as abelhas e sua organização. São “criaturas sobremodo comunicativas” e a coreografia da dança que executam na colmeia se traduz em informações precisas sobre fontes de alimentação. Karl von Frisch, um especialista austríaco em Etologia, citado por ele, pesquisou as abelhas por mais de 40 anos, chegando a muitas conclusões quanto às capacidades destes insetos em relação aos sentidos de odor, da percepção ótica, dos poderes de orientação, dos seus padrões de percepção dos indícios climáticos e de processos de comunicação nas danças. Todavia foi por acaso, que uma matemática, filha de outro pesquisador de abelhas, conseguiu quebrar o código da dança das abelhas, descobrindo que as suas numerosas partes e variações se enquadravam num esquema matemático relacionado à teoria dos quarks, na teoria quântica. Assim, apesar do aprofundamento etológico, foi o cruzamento com outra disciplina e o acaso que permitiram situar as relações com a teoria quântica que propiciaram outras relações na pesquisa. Nos sistemas de ensino atuais, pode-se perceber, de uma forma ainda renitente em algumas instituições e áreas do saber, a ausência deste cruzamento pelo isolamento dos objetivos, separando as disciplinas e os problemas. Contudo, o “conhecimento pertinente é aquele capaz de situar toda a informação no seu contexto e se possível no conjunto em que se insere” (Morin,2002:15). Ainda assim, na academia contemporânea, todo pesquisador deve consagrar sua inteligência a um saber específico, dentro de uma equipe de especialistas, onde “especialistas” é o termo dominante. Pode-se dizer, então, que existe uma apropriação de poder pelos peritos, pelos especialistas. E, refletimos: quando o poder se introduz de forma decisória, avizinha-se o perigo das inadequações e inconsistências. Num processo recente, a transdisciplinaridade tem sido um assunto recorrente, principalmente nas pesquisas dos cursos de pós-graduação (ver item 2.4). Ainda que os processos transdisciplinares tenham emergido em várias instituições do mundo, segundo Dunin-Woyseth e Nilsson (2011:89), “na metade da primeira década deste milênio, o conceito de transdisciplinaridade começou a ser discutido no contexto da 36

teoria internacional da Arquitetura”, com conexões pontuais com a teoria moriniana, de acordo com nossa hipótese. Por outro lado, a divisão do saber entre dois grandes blocos: cultura das humanidades – genérica, e cultura das ciências – específica e delimitada, separa os campos do conhecimento, permitindo admiráveis descobertas, mas impedindo uma reflexão sobre o nosso destino, o nosso devir. Os saberes isolados tornam-se desconectados dos desdobramentos sociais e humanos dessas mesmas descobertas. Mais que isso, tendem a estabelecer fronteiras, cada vez mais impossíveis de serem observadas de modo preciso, provocando muitas vezes a discussão inócua sobre em qual dos dois tipos de cultura cada saber se situa. A dissociação ou disjunção provoca a inadequação dos nossos saberes separados, compartimentados entre disciplinas, contrapostos a realidades cada vez mais polidisciplinares, transversais, globais e planetárias. “Efetivamente a inteligência que apenas sabe separar, quebra o complexo do mundo em fragmentos separados, fraciona problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando também, as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo” (Morin,2002:14). A invisibilidade das interações, entre as partes e o todo, oculta problemas essenciais. É o próprio Morin que nos faz relembrar Pascal, que no século XVII teria estabelecido que “sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes...” (2002:27). Deste pensamento, pode-se intuir as contraposições que Pascal nos trás acerca do pensamento cartesiano, que propõe a máxima divisão das coisas, em suas unidades mais simples, para estudá-las. O saber trabalhado a partir desta divisão, com certeza, nos trouxe um aprofundamento e um desenvolvimento tecnológico considerável, mas também propiciou a separação entre o homem e a natureza, partindo um elo fundamental para a existência humana. Mas a constituição de uma relação ali onde havia uma disjunção levanta um problema duplo: o da origem e da natureza do princípio que nos leva a isolar e separar para conhecer melhor, e a possibilidade de ou37

tro princípio, capaz de reunir o que estava isolado e separado. Hoje é preciso considerar as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interdependências e as complexidades. É preciso um pensamento relativista, relacionista e autoconhecedor. É preciso inserir o simples no complexo. Morin acredita na circularidade das ciências e considera que romper essas circularidades, ou seja, a interdependência entre elas é recair no princípio da disjunção redutora. Quebrá-las parece possibilitar um saber absolutamente objetivo, o que é ilusório. É preciso manter a circularidade, reconhecendo a associação de duas proposições verdadeiras, isoladamente, abrindo a possibilidade de conceber essas duas verdades como duas faces de uma verdade complexa e permitir a pesquisa das relações entre elas. É abrir a possibilidade de um método que, pela interação, se tornaria produtivo através dos processos de trocas. É tentar uma aprendizagem em ciclo, ou seja, é tentar não estabelecer um conhecimento dominante, mas ao contrário buscar os pontos estratégicos, os nós de comunicação, as articulações organizacionais entre esferas separadas de cada disciplina envolvida (Morin, 2008:33). É considerar como conhecimento que pode ser requerido de acordo com o processo de trabalho, noções estabelecidas tanto pelas ciências duras, como pelas ciências sociais, sejam elas denominadas teóricas ou aplicadas. Já no século XX, essas questões acima colocadas começam a ser construídas, mesmo no âmago de estudos que se propunham a definir caminhos opostos. Nestes primeiros decênios do século XXI, as mudanças têm sido constantes e aceleradas. As situações de incerteza se proliferam, tanto em quantidade como em intensidade, destacando-se os eventos climáticos extremos, as crises financeiras e as guerras no Oriente. Já não nos permitimos acreditar em utopias. Morin nos indica que há “uma distância entre o fato e a consciência da sua significação: o conhecimento é deslocado do imediato” (2012a:23), ou seja, nossa percepção fica na superfície. Mas, no atual processo de desenvolvimento do mundo, o conhecimento é perturbado pela rapidez dos fatos. Não temos mais a mesma relação de tempo e reflexão do início do século XX, quando as teorias que nós herdamos foram pensadas e discutidas. Temos um mundo em constante evolução e regressão. Valores são substituídos, frente aos novos desafios que a realidade impõe às sociedades. Vivenciamos um processo de globalização que se intensifica e se diversifica em espaços de tempo cada vez menores, comprovando a necessidade de 38

interações que possam clarificar da melhor forma a reorganização do mundo social. Paralelamente, “a consciência da multidimensionalidade nos conduz à ideia de que toda visão unidimensional, toda visão especializada, parcelada é pobre”. É preciso religar, religar sempre, embora a totalidade ou a completude não existam. E, por isso, é importante perceber que não se trata de retomar o objetivo do pensamento simples: controlar e dominar o real. Trata-se de desenvolver um pensamento capaz de lidar com o real, de com ele dialogar, negociar. Não se pode confundir complexidade e completude. O conhecimento completo é impossível. (Morin,2011a:69,116). Embora a teoria já caminhe por alguns processos transdisciplinares, que propõem o trabalho disciplinar coletivo, vivemos ainda sob os conceitos da disjunção, da redução e da abstração, conjunto que Morin denomina ‘paradigma de simplificação’(2011a:11). A base deste sistema foi lançada por Descartes ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a matéria ou realidade (res extensa), ao defini-las como claras e distintas. Isto permitiu progressos, mas redundou em algumas consequências nocivas às sociedades do mundo contemporâneo, como, por exemplo, a própria condição de complexidade da cidade, relacionada ao caos, aos riscos, derivados da globalização, da intensificação e da expansão da quantidade de eventos extremos que afetam as pessoas e cidades, das possibilidades de guerras, da ação do homem no meio ambiente de ou outros, institucionalizados, como as crises financeiras. A própria consciência do risco, cada vez mais difundida e, finalmente a consciência das limitações dos peritos, ou seja, “a inevitabilidade de viver com os perigos que estão longe do controle não apenas por parte dos indivíduos, mas também de grandes organizações, incluindo estados” (Giddens, 1991:117). A hiperespecialização passou a trabalhar com um corte arbitrário no real, estabelecendo-o como o próprio real. O pensamento simplificador não instaura a conjugação entre o uno e o múltiplo; ou “unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou justapõe a diversidade sem conceber a unidade” (Morin, 2011a:12). A disjunção destrói os conjuntos e as totalidades. Não reconhece o elo entre o observador e a coisa observada. Priva-se da possibilidade de refletir sobre as interligações. O simples é um momento entre várias complexidades e pode-se considerar que existam, grosso modo, situações de baixa, média e alta complexidade. Estas vão estar ligadas aos processos de auto-organização, isto é, “onde cada sistema cria suas próprias de39

terminações e suas próprias finalidades”, que nos permitem compreender primeiro a autonomia e depois começar a compreender o que quer dizer sujeito; que presumidamente se refere a autorreprodução e autorreferência. Uma atenção também deve ser dada às questões dos paradigmas: “o que afeta um paradigma, isto é, a pedra angular de todo um sistema de pensamento, afeta ao mesmo tempo a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica, e por consequência a prática, a sociedade, a política. A ontologia do Ocidente estava (e ainda se mantém, em alguns casos) baseada em entidades fechadas, como substância, identidade, causalidade (linear), sujeito e objeto” (Morin,2011a:54). Essas unidades não se comunicavam e a realidade era observada pelas ideias claras, específicas, mas descontextualizadas das relações existentes. A manutenção do equilíbrio era feita pela expulsão da contradição e do erro, como no exemplo da Carta de Atenas, quando o erro ou a sociedade que se vai modificar era o negativo que o processo moderno iria transformar em positivo, via “tabula rasa”. A verificação se estabelecia pela identificação da racionalização com a eficácia, da eficácia com os resultados contabilizáveis, desprezando-se sempre aquilo que era marginal. O que Morin propõe é “mudar as bases de lançamento de um raciocínio”. Ele mesmo considera uma tarefa difícil, pois não há nada mais fácil do que explicar algo a partir de premissas simples, acordadas entre quem fala e quem ouve. Contudo, neste início de século, toda a estrutura do pensamento se encontra abalada. A cada dia, há menos consenso e compreensão de como nós vamos nos desenvolver, ou sobre o que se espera do nosso futuro, ou mesmo, quanto futuro teremos? Para compreender o problema da complexidade é preciso observar o paradigma simplificador, que apregoa a ordem e expulsa a desordem. O princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção) ou unifica o que é diverso (redução). O homem, por exemplo, é um ser biológico e cultural. Mas, cada vez mais dividido pela especialização biológica, vai perdendo as ligações existentes entre essas perspectivas. É certo que muitas descobertas foram feitas em função da simplificação. Contudo, há outros raciocínios emergindo desde o início do século XX, como o segundo princípio da termodinâmica, que revela que as coisas se desorganizam, se complexificam, se organizam e se desenvolvem. 40

2.3.1

Princípios da complexidade moriniana Morin nos faz lembrar que o nosso planeta está engajado num processo de urbanização crescente. Citando um relatório da ONU25, ele estima que, desde 1950 até 2000, a população humana no mundo triplicou e que esta tendência deve continuar. Os problemas demográficos que, com certeza, afetam o planejamento das cidades que devemos pensar e projetar, precisam ser colocados sob dois aspectos: o crescimento da população mundial e os fluxos migratórios (2012a:317). Um estudo mais recente do Department of Economic and Social Affairs desta instituição26 indica que, desde 2007, mais da metade da população mundial já vive em centros urbanos e estima que essa proporção vai chegar, em 2050, a 70% na relação mundial e a 80% nos países em desenvolvimento, principalmente na Ásia e na África. Em outro estudo de 200627, o destaque é dado à densidade habitacional, que em 2005 era de 47,9 pessoas por quilômetro quadrado e cuja previsão para 2050 é de 67,5 pessoas por quilômetro quadrado.

25. ONU, Relatório

São dados de previsões que tanto podem ocorrer como não. Contudo,

sobre a demografia

considerando a possibilidade e analisando tanto as possibilidades de

dos PED, países

adensamento urbano futuro, como o atual e, por enquanto, a ainda

em via de

tendente desigualdade econômico-social apontada tanto por Sassen

desenvolvimento, em INFO Project

(2013) quanto por Santos (2008), intuímos a complexidade de intera-

Center for

ções que vão interferir nos projetos das cidades de um futuro cada

Communication

vez mais próximo.

Programs, volume XXX, no 4, Outono de 2002, série M, no

Se considerarmos a progressão da desigualdade econômica, o cresci-

16, USA

mento populacional e as densidades demográficas, podemos antever

26 World Economic and Social Survey

problemas possíveis, que já estão sinalizados na atualidade, tanto nas cidades dos países mais desenvolvidos como naquelas dos países

2013 Sustainable

em desenvolvimento ou nos países com mais dificuldade de desen-

Development

volvimento, onde a fome, as doenças e a carência atingem uma parte

Challenge p. IX

significativa da sociedade.

27 World Population Prospects:

Examinando os gráficos a seguir, podemos perceber as interações

The 2006 Revision,

entre realidades opostas, antagônicas, mas complementares.

Volume III: Analytical Report

No exame dos dois primeiros gráficos, percebemos que o

|UN, p.3]

crescimento global da população se equivale ao crescimento da 41

parcela urbana da população (fig. 4), mas que o maior crescimento populacional vai estar localizado nos países em desenvolvimento (fig. 5), entre eles o Brasil. Considere-se então o impacto deste crescimento sobre o espaço urbano.

population trends and projections, 1950-2050

10

80

9

70

8

60

7

50

6 5

40

4

30

3

20

2

10

1

global population

1

global rural population

2050

2040

2030

2020

2010

2000

1990

1980

1970

1960

1950

0

percentage share of global urban population

millions of people

share of urban population (secondary axis)

Fig. 4

Tendências e

projeções populacionais

During a similar period, only 40 million people were added to urban

1950 - 2050

settlements with populations between 500,000 and 1 million people.

projected population by development region, medium variant, 1950-2050 population (billions) 9 8 7 6 5 4 3 2 1

more developed regions

42

less developed regions

2050

2040

2030

2020

2010

2000

1990

1980

1970

1960

1950

0

least developed countries

Fig. 5

População

projetada por região de desenvolvimento.

Por outro lado, a densidade populacional dos países desenvolvidos parece tender para a estabilidade em contraposição ao crescimento acentuado nas regiões menos desenvolvidas (fig 6). Já a densidade populacional da Ásia (fig.7) vai ter um crescimento exponencial em

population density by development group, 2005-2050 density (people per sq. km) 100

80

60

40

20

more developed regions

least developed countries

2050

2040

2030

2020

2010

2000

1990

1980

1970

1960

1950

0

Fig. 6

other less developed countries

Densidade

populacional por grupo de desenvolvimento

population density in major world areas, 1950-2050 density (people per sq. km) 180 160 140 120 100 80 60 40 20

2050

2040

2030

2020

2010

2000

1990

1980

1970

1960

1950

0

asia

northern america

africa

europe

oceania

latin america and the caribbean

Fig. 7

Densidade

populacional nas principais áreas 43

relação aos outros continentes. A expectativa é um contínuo aumento do crescimento da população urbana no mundo, também sendo esperado, para os próximos 10-15 anos, que a população rural continue em declínio. Globalmente, o aumento da população urbana nas pequenas cidades foi de aproximadamente 1,3 bilhão de pessoas durante os anos de 1950-2010, mais que o dobro do número de pessoas adicionadas aos centros médios (632 milhões), ou aos grandes centros urbanos (570 milhões). Mas há uma considerável diversidade nos padrões de urbanização de acordo com as regiões e uma variação maior ainda se tomarmos a urbanização por países. Há diferenças significativas entre a urbanização da América Latina e Caribe e os países menos desenvolvidos. Mas a tendência de crescimento populacional urbano dessas áreas ainda mais predominantemente agrícolas é a mesma. Se a esses dados acrescentar-se: condições econômicas de sobrevivência, políticas de governo, dados de envelhecimento ou alta taxa de população de jovens, preenchimento das necessidades de moradia, trabalho, alimentação, energia, educação e saúde, podemos estabelecer a probabilidade da intensificação dos fluxos migratórios, que vão se expandir para as áreas dos países desenvolvidos e principalmente dos países com possibilidade de crescimento. Segundo o Institut national de la statistique et des études économiques (Insee), da França, em 2008, 3,7 milhões de estrangeiros, ou seja 5,8% da população total, residiam naquele país. Já em 2010, 32,5 milhões de cidadãos estrangeiros viviam nos estados membros da UE2728, o que corresponde a 6,5% da população total destes países. Morin (2012a:116) chama atenção para alguns problemas que podem aumentar os fluxos migratórios, tais como o agravamento das condições de vida nas zonas sujeitas à desertificação, à rarefação e à poluição da água, às inundações e, muito provavelmente, à exacerbação dos conflitos no Oriente Médio e na Ásia, que podem retroagir e intensificar o aquecimento climático. Estes dados só denotam que as interações são muitas, cada vez mais intensas e múltiplas, num mundo em transformação. Morin enfatiza que a teoria da complexidade não se pretende única. Porém, na 28 Países que faziam

44

tentativa de observar as possibilidades de interações que podem

parte da União

ser abordadas na pesquisa e no trabalho nos diversos processos

Europeia em 2007

de conhecimentos que se apresentam hoje, ele nos legou uma teo-

ria interessante para reflexão. Nosso propósito aqui é tão somente ressaltar alguns pontos desta teoria que possam apontar caminhos para um exercício na interação entre complexidade e urbanismo. O importante neste trabalho é esta ligação. É colocar em perspectiva uma alternativa de se abordar o urbanismo a partir dos princípios do pensamento moriniano. É uma tarefa que está em caminho, em processo, de acordo com os próprios pressupostos metodológicos da complexidade. Segundo Morin, uma teoria não é ela mesma o conhecimento; ela permite o conhecimento. “Uma teoria não é uma chegada; é a possibilidade de uma partida” (Morin,2010a:335). E é exatamente como possibilidade de se pensar o urbanismo via complexidade que se propõe observar esses pontos desta teoria. É preciso atentar ainda, que de acordo com Morin, toda teoria dotada de alguma complexidade tende a degradar-se. Tende a simplificar-se via três constituições diferentes: a tecnicista que conserva da teoria somente aquilo que é operacional; a doutrinária que não permite a constatação e aquela redutora que transforma a teoria em duas ou três fórmulas, que franqueiam a sua difusão via simplificação. Assim, a crítica deve integrar o processo, pois segundo Morin, “toda organização, como todo o fenômeno físico, organizacional e, claro, vivo tende a se degradar e a degenerar. (...) Não há receita de equilíbrio. A única maneira de lutar contra a degenerescência está na regeneração permanente... fazendo frente a todos os processos de desintegração” (2011a:89). Neste sentido, é preciso partir de alguns princípios para se possibilitar a regeneração. A teoria moriniana estabelece sete princípios paradigmáticos (Morin, 1999:100), que oferecem as bases para seu método. Contudo, para este trabalho, agrupamos estes princípios, de forma a interagir melhor com o propósito do nosso exercício epistemológico: princípios hologramático e sistêmico; princípios recursivo e retroativo; princípio da autonomia/dependência ou da auto-eco-organização e princípios dialógico e da interação dos conhecimentos. Entendê-los e compreender suas relações com a cidade e/ou com o urbanismo é um ponto importante deste trabalho.

45

2.3.1.1

Os princípios hologramático e sistêmico Morin indica que num holograma físico, o seu menor ponto de imagem contém a quase totalidade da informação do objeto representado, ou seja, a parte está no todo e o todo está na parte. Este princípio está presente na vida tanto biológica como social: no campo biológico cada célula do nosso organismo contém a totalidade da nossa informação genética, vide DNA; no social é a cultura que imprime essa ligação entre a parte e o todo. Assim, ele relaciona o holograma à complexidade da organização viva, à complexidade de organização cerebral e à complexidade socio-antropológica. Dessa forma, a complexidade organizacional do todo necessita da capacidade organizacional da parte que necessita recursivamente da capacidade organizacional do todo. As partes têm cada uma suas singularidades, mas não são mais que simples elementos ou fragmentos do todo. Daí a riqueza da organização hologramática, onde:



as partes podem ser singulares ou originais, dispondo das características gerais e genéricas do todo.



as partes podem ser dotadas de autonomia relativa;



elas podem estabelecer as comunicações inter-partes e efetuar trocas organizacionais;



elas podem ser, eventualmente, capazes de regenerar o todo29. O princípio hologramático configura-se nas ligações da parte ao todo e do todo à parte, mas relaciona-se também à ideia recursiva e, em parte, à dialógica (princípios a serem examinados adiante). Se nossa proposta é pensar e produzir para a cidade, que se constitui, por si

29 Vide a tese da

só, na concentração das complexidades humanas, o conhecimento

administração da

dessa complexidade “faz parte do conhecimento da condição huma-

cidade de Bilbao

na, que nos indica a vida com seres e situações complexas” (2002:53),

para o Museu

tanto em relação à parte como ao todo.

Guggenheim de Frank Gehry 30 É o movimento aleatório de partículas

Neste sentido, a metrópole é um caos onde se combinam a ordem e

num fluido, como

a desordem, obedecendo às leis, às prescrições e às regras, se orga-

consequência dos

nizando cotidianamente a partir do deslocamento de milhares de

choques entre todas

indivíduos e das interações a partir dos comportamentos individuais

as moléculas ou átomos presentes no

de seus habitantes e usuários. Como diz Morin, cada um e todos em

fluido.

movimento visando realizar seus objetivos específicos, como num movimento ‘browniano’30 (2012a:323).

46

Essa diversidade de elementos da unidade/cidade, essa teia de interações e de retroações constitui uma espécie de caos organizador/ desorganizador. Morin nos indica que o princípio da lei “impõe a presença do todo social sobre cada indivíduo, mesmo que a divisão do trabalho e a fragmentação das nossas vidas” não permitam a totalidade do saber social. E vai ser a cultura que vai estabelecer a junção do todo social (2011a:75). As partes, bairros, territórios, zonas, e o todo da cidade, se configuram em sistemas dentro de sistemas assim como a cidade é parte de um Estado ou território, que faz parte de um país, que faz parte do mundo, que faz parte do universo, que... A sociedade se organiza em conjuntos inter-relacionados cujas ligações precisam ser evidenciadas. Para a teoria moriniana, é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo e suas interações. Desta forma o princípio sistêmico é fundamental e será destacado no item 2.3.4. Se a cidade se configura complexa, adquire por isso uma constituição que não permite reduzir o todo às partes nem a parte ao todo. Precisamos, então, buscar entender esse conjunto, considerando as condições complementares e antagônicas, as noções de todo e partes, as unidades e diversidades. Essas relações induzem à noção de sistema, tal qual definida por Morin (2008:136), citando Ladrière31: “um sistema é um objeto complexo, formado de componentes distintos ligados entre si por um certo número de relações”. Ou ainda atentar que a complexidade do sistema consiste em associar em si a ideia de unidade e de diversidade ou multiplicidades simultâneas, que em princípio se repelem e se excluem. É preciso atentar também para as características do sistema: é uma unidade global, com qualidades próprias, não elementar, constituído por diversas partes inter-relacionadas. Precisa ser produzido, construído e organizado. Tanto maior seja a interdependência entre as partes, mais densa é sua complexidade. E se o objetivo é entender um sistema como a cidade, precisamos enfrentar a unidade complexa, nas suas relações entre o todo e a parte, tendo em mente que o sistema possui algo mais que seus componentes justapostos, ou seja: sua organização, a própria unidade global (o todo), as qualidades ou propriedades novas emergindo da organização da unidade global. Segundo Morin, “podemos 31 Ladrière, J. Système, Paris Encyclopaedia

chamar emergências as qualidades ou propriedades dum sistema

Universalis, 1973,

que apresentam um caráter de novidade em relação às qualidades

vol. 5, p. 686

ou propriedades dos componentes considerados isoladamente ou 47

dispostos de maneira diferente num outro tipo de sistema” (2008:137). Todo estado global (ou o todo) apresenta qualidades emergentes, que nascem das associações e combinações. Neste sentido, Morin explicita que a sociedade não pode ser considerada como a soma dos seus indivíduos, mas se constitui numa entidade com qualidades específicas. Por analogia, as cidades são sistemas cujas partes também produzem emergências ou qualidades específicas. Dessa forma, necessitam ser trabalhadas de um modo específico, que considere essas emergências. Morin, neste sentido indica que as qualidades inerentes às partes, no seio de um dado sistema, estão ausentes no todo ou são virtuais. Quando estas partes estão no estado isolado, essas qualidades só podem ser adquiridas e desenvolvidas no e pelo todo. Então quando se trabalha os espaços da cidade sem que se considere todas as interligações com o todo, os eventos poderão ser inadequados, tanto para a parte como para o todo.

2.3.1.2

Os princípios recursivo e retroativo Segundo Morin, a sociedade é produzida tanto pelas interações entre indivíduos como por aquelas entre eles e o ambiente, em constante autorregulação. É o principio retroativo, que contradiz as relações lineares de causa/efeito, produto/produtor, estrutura/superestrutura já que “tudo que é produzido volta-se sobre o que o produz num ciclo, ele mesmo, auto-constitutivo, auto-organizador e auto-produtor (sic)” (2011a:74). A sociedade produz os indivíduos que vão produzir a sociedade. A produção retroage sobre os indivíduos e os produz: somos produto e produtores simultaneamente, o que vai além da retroação, constituindo-se no princípio recursivo. Sobre a auto-organização, Morin nomeia dois cientistas importantes: John von Neumann e Karl von Förster. Von Neumann parte da seguinte questão: porque as máquinas artificiais, construídas com materiais e peças confiáveis, calibrados, verificados, que se ajustam perfeitamente uns aos outros, como um avião, por exemplo, são menos confiáveis em relação ao seu futuro do que as máquinas naturais - os seres vivos – que são construídas por materiais pouco confiáveis e que podem se degradar rapidamente? Observe-se que as células que morrem são substituídas por novas. O conjunto do ser vivo pode continuar a funcionar, mesmo com o aumento das interrelações

48

entre seus elementos e com a degradação de alguns de seus constituintes. Substituímos as coisas que se degradam por outras coisas que vão se degradar. Regeneramos sempre. E o fazemos através de elementos regeneradores do meio ambiente. Daí, para Morin, esse processo seria o da auto-eco-organização. Von Förster, por outro lado, mostrou que a busca da regeneração no meio ambiente se configurava como um paradoxo, o que ele denominou order from noise, isto é, ordem a partir do ruído. A regeneração do ser vivo depende da degeneração de seus constituintes. Isto, segundo Morin, “não significa apenas que a ordem viva se alimenta de desordem, mas também que a organização do ser vivo é, essencialmente, um sistema de reorganização permanente (Morin, 2010a:299). É o conceito básico que Morin utilizou para a introdução da desordem nos processos complexos. Configura-se no desafio de saber como, a partir da desordem, considerando-se alguns princípios de ordem, nascem as organizações, assim como se imagina ter acontecido no cosmos a partir do Big Bang. Cassé32 (2011:27-29) destaca, em relação a teoria moriniana, que o verdadeiro problema de uma reforma do pensamento que pudesse permitir as ligações propostas, estaria no nosso hábito de separar. E ainda, religar não é somente estabelecer uma conexão linear, mas sim uma conexão em circuito, imaginando que religar é formado pelo prefixo ‘re’ que vai significar o retorno sobre si mesmo. Para ele, a abordagem simplificadora, ou o reconhecimento de um só caso possível, sobre uma observação do ponto de vista da física, é denominada unificação por aqueles que a apreciam e reducionismo pelos que a renegam. O outro procedimento, dentro dos mesmos paradigmas, seria a eleição, ou seja, a eliminação das alternativas imagináveis, em favor daquela considerada a mais bem sucedida. A unificação responderia a questão “qual a razão de” e a eleição estaria ligada ao por quê. Ainda segundo o autor, não foi de outra maneira que experiências foram responsáveis por inegáveis progressos do conhecimento. Hoje, Cassé considera que, após o Big Bang e a teoria de Plank (que deu origem à física quântica), surge a teoria da religação 32 Michel Cassé é diretor de pesquisa

generalizada, circundada pela recursividade.

do Commissariat à l’’Energie Atomique

Segundo Morin, a qualidade mais importante da cibernética, fun-

e pesquisador

dada por Norbert Wiener, é ter introduzido a espiral, contraposta a

associado do Institut

d’Astrophysique

linearidade de causa/efeito, que não permitia a retroação. Antes, até

de Paris

existia certo efeito de retorno, mas não como um princípio, como 49

um conceito. A retroação nos chega pelas máquinas artificiais, mas ela também está no homem, que se configura como uma máquina térmica e quimicamente regulada, com muitos efeitos retroativos. O fenômeno da retroação compreende o elo retroativo que permite o circuito retroativo. O circuito retroativo é genésico, ou seja, transforma processos turbulentos, desordenados, dispersos ou antagônicos em uma organização ativa. Já a recursividade vai um pouco adiante, transformando a organização em produção. A reprodução humana é um processo recursivo, por exemplo: somos produtos e produtores em ciclos. Morin conclui que “somos máquinas, e ao mesmo tempo somos nós que produzimos o conceito de máquina. (...) nós genitores do conceito de máquina, consideramo-nos como gerados por máquinas bioantropossociais, elas próprias geradas a partir das virtudes produtoras/ organizadoras...” (2008:344). É importante salientar que “a ideia de circuito não significa apenas um esforço retroativo do processo sobre si mesmo” (...), “o circuito (recursivo) é o processo cujos estados ou efeitos finais produzem os estados iniciais ou causas iniciais” (Morin,2008:231). As novas propostas, nas práticas urbanas, são circuitos recursivos sobre o espaço, pois se estabelecem a partir deste próprio espaço. Outro exemplo interessante de recursividade está na interação entre conhecimento tecnológico e conhecimento científico, ou seja, a ciência leva a produção de nova tecnologia, que leva ao desenvolvimento da ciência, o que prova que tudo é intersolidário, como diz Morin. No princípio deste trabalho chamamos atenção para a circularidade entre as novas descobertas servindo de base para referendar novas teorias, exemplificando Bachelard, que estuda a noção de Massa para avaliar os cinco níveis sobre os quais se estabeleceram as diferentes filosofias científicas (1966:23). Morin analisa os Turbilhões de Bénard, descritos por Ilya Prigogine para explicar desordem > ordem > organização (2008:61). Cada descoberta vai refletir em circuitos recursivos em todos os campos. Para Morin, uma visão simplificada e linear tem todas as chances de ser mutiladora, mais ainda, tem chances de se deparar com a inadequação, em um ou em outro sentido, como no exemplo da política mundial do “só petróleo”, que desconsidera o esgotamento das fontes; a dependência dos países produtores deflagrando problemas políticos, muitas vezes bélicos; e os problemas ambientais. 50

Não examinaram as possibilidades recursivas da ação, não consideraram os fatores históricos, geográficos, sociológicos, políticos e até mesmo religiosos. Os problemas decorrentes disso, no mundo atual, falam por si. Klare33(2004) estima que o mundo vive “o crepúsculo do petróleo”, um momento de transição entre a abundância e a escassez do produto. A disputa tanto das fontes que ainda restam, indispensável para grande parte da produção mundial, levará a um conflito permanente, considerando-se a presença de grandes potências em regiões de instabilidade política, étnica e religiosa. A recursividade é o elemento detonador das práticas urbanas, no seu sentido mais amplo e existem vários tipos dela, incluindo mesmo as teóricas como as relações paradigmáticas entre os trabalhos de Vitruvius em De architectura e o de Alberti em De re aedificatoria, conforme descrito por Choay (1985). Cada nova perspectiva teórica detona outras abordagens que redundarão em outros trabalhos, numa rede teórica recursiva.

2.3.1.3 33 Michael Klare, professor de um programa sobre

O princípio da autonomia/dependência (auto-eco-organização) Todo ser age e retroage em seu ambiente. Em entrevista34, Morin declara que George Lefevbre, seu professor na disciplina de Histó-

paz e estudos

ria Moderna e Contemporânea na Sorbonne, lhe ensinou, através

de segurança,

do desencadear da Revolução Francesa, que, frequentemente, uma

copatrocinado pela

ideia lançada é transformada pelas múltiplas interações e retroa-

Universidade de Massachusetts,

ções, podendo redundar em outro sentido, oposto aquele pretendido

autor do livro Blood

inicialmente. No escopo deste trabalho acreditamos que William

and Oil, Metropolitan

Morris pode ser considerado um exemplo desse tipo de desenrolar

Books, New York, 2004 e do filme

da ação: embora pretendesse criar objetos não industriais, esteti-

com o mesmo

camente interessantes e baratos, seu trabalho resultou sempre em

título http://www.

algo muito caro, acessível a uma minoria rica. O desencadear das

mediaed.org/assets/ products/124/ presskit_124.pdf 34 Grand entretien,

ações é um dos elementos básicos da incerteza e se constitui na ecologia da ação, mantendo uma relação estreita com os princípios da retroatividade e recursividade.

entrevista de Dominique Wolton

Este princípio está vinculado às interações humanas, às interações

com Edgar Morin in

homem/ambiente. Como os homens precisam de energia, informa-

Hermés 60: Cognition, Communication, Politique, pp. 241. Institut des Sciences de la Communication

ção e organização no seu ambiente, “a autonomia é inseparável desta dependência, e é por isso que é necessário concebê-los como seres auto-eco-organizadores” (Morin, 1999:101). Na evolução da vida, des-

du CNRS. CNRS

cobrimos também que a degradação e a desordem se inserem neste

Étitions, Paris, 2011.

ciclo, já que a organização viva se regenera a partir da morte de suas 51

células. A morte faz parte da vida. Analogamente, a destruição faz parte da construção. Um tipo de retroação nos interessa, em relação ao urbanismo. Quantos projetos urbanos ou intervenções na cidade se originaram ou redundaram em retroações? Mesmo em relação ao novo, aquilo que não existia, pode haver interações e retroações significativas no meio ambiente. E ainda, quantas vezes o novo, o idealizado é recusado por aqueles usuários almejados, produzindo uma retroação muitas vezes contrária ao idealizado, como no exemplo da Revolução Francesa, que Morin destacou e que ele denomina “a ecologia da ação”? Um bom exemplo é o Tilted Arc escultura do Richard Serra, colocada no espaço público entre alguns prédios do governo nos Estados Unidos, na Federal Plaza, Nova Iorque, em 1981. Apesar das intenções dos agentes públicos responsáveis e do artista, houve um processo intenso, de interações e retroações, que culminou na retirada da escultura da praça. Este é um exemplo que realça a relação de autonomia/dependência que deve ser considerada neste exercício epistemológico, em relação ao urbanismo. Vale observar que o princípio de auto-eco-organização se configura na dependência tanto da cultura quanto do meio ambiente, na relação do desenvolvimento de autonomias. Para tal, é importante observar que tudo na Terra está em processo. Nada existe com total estabilidade. Cada minuto passado é testemunho de um tempo finito. Neste processo contínuo, “tudo o que vive deve regenerar-se sem cessar: o Sol, o ser vivo, a biosfera, a sociedade, a cultura, o amor”. No caminho, há perdas e lucros, e a constatação de que “tudo que é precioso sobre a terra é frágil, raro e voltado para um destino incerto”, e que a cada descoberta de novas certezas, devemos ter a consciência das possibilidades de novas incertezas, e ainda, “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, é dialogar com a incerteza.” (Morin. 2002:65).

52

2.3.1.4

Princípio dialógico e da interação dos conhecimentos Para introduzir a dialógica, Morin cita Heráclito: “junte o que está completo e o que o não está, o que concorda e o que discorda, o que está em harmonia e o que está em desarmonia” (2008:19), ou seja, a associação de realidades opostas. Considera também, a observação do universo: depois do advento das astronomias pós-hubbleana, o que nos aparece agora é que a cosmogênese se opera no e pelo caos. “O caos é exatamente o inseparável no fenômeno de dupla face em que o Universo se desintegra ao mesmo tempo em que se organiza, se dispersa e se torna polinucleado...” (Morin, 2008:80) Segundo o autor, aquilo que anteriormente era visto como destruição ou desorganização, o caos, passa a ser compreendido como a desintegração organizadora. Neste raciocínio, a dialógica permite assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias, contrapostas para conceber um mesmo fenômeno complexo. A contraposição é um dado presente no cotidiano das cidades, principalmente aquelas de maior porte. Não é possível, por muito tempo eliminá-la do espaço construído. De alguma forma, em algum tipo de manifestação ela retroage. Desta forma é preciso considerá-la, incorporando-a ao conhecimento sobre a cidade e de forma transdisciplinar. Contudo, Morin estabelece, também, o princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento. “Esse princípio opera a restauração do sujeito e revela o problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/ tradução feita por uma mente/cérebro, em uma cultura e época determinadas” (2002:103). Assim, a união entre os conhecimentos científicos e humanos integraria, nestas duas culturas, as ideias capitais nascidas à margem de uma e de outra. Daí, podemos intuir que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados e mesmo contraditórios, é capaz de se desdobrar em uma ética da união e da solidariedade entre humanos. Para tal, o pensamento deve ser capaz de não se fechar no local e no particular, mas de conceber os conjuntos, para possibilitar o senso da responsabilidade e o da cidadania dos envolvidos.

53

Para Morin esses princípios, dialógicos e de interação, ao fazer comunicar as duas culturas (humana e científica) poderia fazer emergir “novas humanidades”, que revitalizariam a problematização, permitindo a emergência dos problemas globais e fundamentais. Neste ponto, vale ressaltar o trabalho de pesquisa sobre as novas profissões do futuro35. De acordo com Brandão (2008:11), “imaginar invenções e novos ofícios é descrever um ideal (...) e sondar as capacidades construtivas de nossas angústias e esperanças, de nossas utopias e distopias....” De acordo com os resultados da pesquisa, ”uma das características exigidas do novo saber e dos profissionais exigidos pelo século XXI é a capacidade de trafegar entre os campos do conhecimento, (...) viabilizar conexões e migrações de conceitos, metodologias e procedimentos; de estabelecer relaçõesentre o conhecido e o desconhecido, entre coisas, grandezas, qualidades aparentemente incompatíveis...” (2008:15) Brandão nos lembra, ainda, Leonardo da Vinci, em diferentes abordagens projetuais, cuja aposta se configura nas variações de um sistema e de uma substância hipoteticamente comum: os desafios da vida. Como Morin, Brandão destaca que a tentativa moderna foi escolarizar a vida em diferentes domínios para controlá-la. Para o futuro ele indica que a capacidade criadora associativa e inventiva é mais importante do que o acúmulo de conhecimento. Nisso está implícito o trabalho interdisciplinar e transnacional, procurando “deixar-se contaminar por visões e ideias de outros, mesmo que contraditórias”, o que possibilita um trabalho fecundo (2008:21). Nessas condições, a concepção de autoria passa para o coletivo. Nessa abordagem as contradições precisam ser consideradas. Outra ponderação dele que interage com a teoria moriniana, nesta pesquisa, salienta que o século XX nos fez tender a considerar o por35 Desenvolvido pelo IEAT | Instituto de Estudos Avançados

lógico, sem ligações políticas, humanistas, culturais e ambientais.

e Transdisciplinares

De acordo com a pesquisa, as novas profissões são prioritariamente

da UFMG, denomi-

urbanas. Sem a pretensão de esgotar o universo de possibilidades,

nado “Especular o futuro e engravidar o

o estudo encerrou a primeira fase, elencando 81 profissões novas,

presente”, sob a co-

dentre elas: gerente de processos e administrador de sistemas, arqui-

ordenação de Carlos

teto operador de redes e sistemas complexos, agricultor e pecuaris-

Antônio Leite Bran-

54

vir relacionado somente às comodidades do desenvolvimento tecno-

dão da Faculdade de

ta urbano, especialista em ecotecnia e ecotecnologia, bibliotecário

Arquitetura

cibernético, e outras.

É interessante examinar as relações entre algumas novas profissões e a vida contemporânea nas cidades, como por exemplo: gestor ou gerente de cidades ou metrópoles – o urbanólogo; articulador de espaços, tempos, culturas e saberes; geopolítico; climatólogo e outros. Além dos princípios morinianos aqui descritos, e embora o ato de selecionar possa induzir-nos às simplificações, consideramos importante, no escopo deste trabalho, primeiramente atentar para a incerteza que, como critério de base da teoria moriniana, transversaliza os princípios. Morin apresenta três princípios para a incerteza humana: —

o cerebral, que observa que o conhecimento nunca é um reflexo do real, mas algo traduzido e reconstruído, portanto, passível de erro;



o psíquico que nos aponta o caráter interpretativo do conhecimento;



e o epistemológico, que aponta crises na filosofia (a partir de Nietzsche) e na ciência (a partir de Popper e Bachelard). Morin nos lembra que a primeira vista, a complexidade pode ser traduzida pela quantidade de interações e interferências entre um número muito grande de unidades. Mas a complexidade não se reduz ao aspecto quantitativo, compreende também as incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. “A complexidade, num certo sentido, sempre tem uma relação com o acaso”. Mas não pode ser reduzida ao aleatório, pois o acaso pode, ocasionalmente, ser a ignorância. De certa forma, a transdisciplinaridade que Morin propõe para o trabalho com a complexidade, vai se justificar pela probabilidade da diversidade de saberes reunidos possibilitar menor grau de ignorância e maior possibilidade de pressupostos consensuais. Uma das conquistas dos estudos sobre o cérebro humano é a compreensão da sua superioridade sobre o computador por ter a capacidade de trabalhar com o vago, com o insuficiente. A partir disso podemos aceitar a noção de ambiguidade, de incerteza, que vai propiciar as relações entre liberdade/decisão/criatividade, inerentes ao processo projetual. Neste processo, quanto maior o grau de inovação contido na ação, menos possibilidade de previsão dos acasos, maior a incerteza. A inovação é uma ação não trivial. No decorrer da ação surgem a crise e as possibilidades do inesperado. “Qualquer crise é um acréscimo de incertezas” (Morin,2011a:82). Neste tempo, é preciso abandonar os programas e inventar estratégias para sair da crise.

55

Nsonsissa36 nos aponta a importância da crise no desenvolvimento humano. Segundo ele, a crise é um conceito indispensável, mas problemático. Cita Morin37: “a crise não é o contrário do desenvolvimento, mas sua própria forma”, e se presta a uma análise lógica, aberta pelas interferências e nunca reduzida a um só domínio do conhecimento. Ele reforça a noção de crise, na inadaptação contemporânea aos princípios de inteligibilidade da ciência, em referência aos novos saberes que fizeram surgir o sentido epistemológico da complexidade moriniana. Para ele, a ‘crisologia’, definida por Morin, se constitui numa tomada de consciência da complexidade, sempre alimentada pela incerteza. Assim, faz-se necessário associar as noções de crise, evolução, revolução, regressão sem eliminar nenhum dos sentidos, mas atentos para perceber qual deles seria o decisivo em cada situação. Esta é a incerteza. Ainda uma vez, citando Morin, Nsonsissa demonstra que etimologicamente o termo crise nos retorna ao grego “krisis” que significa decisão. É um momento indeciso e decisivo, pois é quando a possibilidade de ação se torna uma possibilidade de mudança de transformação e que vai apresentar descontinuidades e rupturas. “A crise manifesta-se por transformações de diferenças em oposição, de complementaridades em antagonismos, e a desordem propaga-se no sistema em crise” (Morin, 2008:155). Quanto mais rica é a complexidade organizacional, maior possibilidade do perigo de crise e maior também a capacidade do sistema em vencer as suas crises, e até, em tirar proveito delas para o seu desenvolvimento. A cidade se encaixa num sistema de alta complexidade e como tal compreende os processos crísicos. Pode-se dizer que o que é complexo diz respeito, por um lado, ao mundo empírico, à incerteza, à incapacidade de ter certeza de tudo, 36 Doutor em filosofia,

de formular uma lei completa, de conceber uma ordem absoluta.

professor de lógica

Por outro lado diz repeito à incapacidade de evitar contradições.

e epistemologia na

Observe-se, no entanto, que, normalmente quando nos deparamos

Faculté des Lettres et des Sciences

com uma contradição no raciocínio lógico, procuramos outro ra-

Humaines, Université

ciocínio, para evitar o erro. Na visão complexa, a contradição não

Marien Ngouabi de

significa erro, apenas mais uma informação a se considerar, apenas

Brazzville.

mais um dado a se trabalhar.

37 Sociologie, Fayard, Paris, 1984

56

Contudo, é o próprio Morin quem estabelece que não se deve jul-

gar a complexidade como um vale-tudo. O saber se desenvolve no consenso e no conflito, como nos apresenta Kuhn em “Tensão essencial” (2009). Morin acrescenta a isso, que o problema crucial do nosso tempo é o desafio de operacionalizar a complexidade do real, das realidades às vezes solidárias, outras vezes conflituosas, como a própria democracia, que se nutre dos antagonismos tentando regulá-los (2012a:242). Para tal ele indica alguns caminhos, entre os quais, a reforma do pensamento educacional, destacando uma contradição: “não se pode reformar a instituição sem ter a priori reformado os espíritos e ao mesmo tempo não se pode reformar os espíritos sem reformar a instituição”. É um bloqueio, carregado de resistências, cuja origem reside na seguinte observação do autor: “como as mentes, em sua maioria, são formadas segundo o modelo da especialização fechada, a possibilidade de um conhecimento para além de uma especialização parece-lhes insensata” (1999:105-106). Mas todos nós, incluindo os especialistas, formamos nossos conceitos ancorados em conceitos gerais da época. E, se estamos vivendo um mundo em movimento, num tempo de grandes transformações, num tempo de perguntas, não seria sensato pensar em alternativas para se trabalhar o conhecimento, principalmente o saber e o fazer projetual urbano? A certeza cartesiana trouxe para todas as disciplinas uma zona de conforto para o conhecimento, mas trouxe também o que Morin denomina a superespecialização, que gera o despedaçamento do saber e o confinamento das partes. Para enfrentar esse desafio, uma alternativa seria a transdisciplinaridade moriniana, ou o que ele denomina a nova transdisciplinaridade que objetiva o trabalho integrado das disciplinas de forma que alguns pontos, ligados aos princípios morinianos, sejam observados. Entre outros: —

a possibilidade reflexiva, permitindo a recursividade; o retorno ao sujeito integrado ao objeto;



a integração entre os saberes, incluindo as disciplinas, para articulação teórica;



a aceitação do erro como elemento a ser observado, inclusive para sua autocorreção;



a inclusão das contrapartidas, contradições e complementaridades, através do princípio da dialógica.

57

A apresentação dos princípios morinianos anteriormente, analisados de forma mais pontual para o melhor entendimento da base da teoria da complexidade, nos leva a destacar alguns conceitos que podem contribuir para a compreensão desta proposta, como o entendimento das relações de ordem/desordem/ organização e o circuito tetralógico; o princípio da dialógica e os sistemas organizacionais.

2.3.2

A ordem, a desordem e a organização: a criação a partir da desordem O sentido de ordenação foi enfatizado na modernidade. Morin questiona que neste caminho a ordem torna-se vigorosa, que “a vida, obediente às leis de adaptação e seleção, se desenvolveu para chegar a uma ordem racional...” que até o presente “as sociedades obedecem a uma lei do progresso que as faz aceitar uma Ordem Superior”, ou seja, universal. Contudo, como dito anteriormente, é a própria física que vai introduzir a desordem como um elemento gerador. Morin observa que não estamos indiferentes às nossas verdades cósmicas. Desde a física aristotélica, passando por Copérnico, Galileu, Kepler, Newton e outros, nosso pensamento, de alguma forma, segue as referências da organização do Cosmo. De início, estabelece a ordem. A terra como centro do universo. A ordem racional se expressa no próprio termo - homo sapiens. As Leis da Evolução e da História ilustram e consagram o advento da ordem racional. Buscando explicações científicas, observam-se as últimas pesquisas relativas aos corpos celestes, tais como a já mencionada descoberta da existência de novas galáxias, dos quasares e pulsares, dos buracos negros e da teoria do Big Bang, que, recentemente, na última quinzena de março de 2014 teve sua hipótese confirmada por cientistas americanos38. Dessas avaliações extrai-se a grande revolução que decorre destas descobertas: que a extensão do universo

38 http://www.bbc. co.uk/portuguese/ noticias/2014/03/

58

corresponde a uma expansão, que esta expansão é uma dispersão e que esta dispersão é de origem explosiva. Morin defende que as

140317_expansao_

descobertas astronômicas de 1923 até hoje se articulam para nos

universo_rb.shtml

apresentar um universo que tende a uma expansão infinita, e como

tal nos introduz a desordem. A desordem no início de tudo, a desordem como elemento de pré-organização. Para o autor (2011a:63), esta é uma ideia basicamente complexa, pois une duas noções que se excluíam na lógica cartesiana: ordem e desordem. Surge então o questionamento, ainda relativo ao cosmos, em seu estudo e inventário, em suas leis descobertas pelos cientistas, no desenvolvimento da organização do cosmos, desde os átomos até os seres, sociedades e o espírito humano. Nesta reflexão, Morin estabelece que não existe a contraposição entre a desordem explosiva e a ordem e organização, mas ao contrário, uma ligação entre elas. Vale repetir, citando uma observação científica de estudo dos fluxos caloríficos, realizada experimentalmente por Bénard, mencionada por Prigogine, quando se demonstra que condições de flutuação e instabilidade, ou seja de desordem, podem transformar moléculas em estrutura: uma forma organizada. É, portanto, possível entender a formação do universo, constituindo “sua ordem e sua organização na turbulência, na instabilidade, no desvio, na improbabilidade, na dissipação energética” (2008:61). É possível, então, estabelecer uma complementaridade simultânea entre desordem de um lado e ordem e organização de outro, comprovada por várias experiências científicas citadas por Morin. A teoria do Big Bang, segundo Morin, é uma consequência lógica da teoria da expansão e como tal, busca um início pontual, um acontecimento explosivo, que na verdade ele considera uma dúvida (hoje já existe alguma comprovação), mais ainda, uma contradição que contrapõe o pontual ao infinito. Surge então uma relação preliminar com toda teoria de origem: não se pode teorizar como se o problema não fosse hipotético em nossas estruturas mentais. Disso podemos concluir que o principal não é uma teoria, mas o modo de constituição desta teoria: “não se trata apenas de nos interrogarmos sobre nossos conhecimentos, precisamos nos interrogar sobre nosso entendimento” (2008:64). E, neste ponto, a ligação com o urbanismo torna-se importante. A teoria urbana produziu uma grande quantidade de estudos urbanísticos na primeira metade do séc. XX. Como mencionado no primeiro capítulo, Choay nos indica que a amplitude dos problemas urbanos é atestada pela abundância de publicações a respeito. “Segundo ela, o urbanismo não questiona a necessidade das 59

soluções que preconiza” (1998:02), pois seu eixo central é inserido nas perspectivas da certeza cartesiana. Mesmo a crítica é feita em nome da verdade. Ela formula uma questão importante para este trabalho: “em que se baseia essa discussão de verdades parciais e antagônicas”? Ela responde com uma análise e inventário de projetos e teorias urbanísticas. Nosso trabalho pretende respondêla com a proposta de um exercício epistemológico do urbanismo a partir da teoria da complexidade moriniana. Para tal é necessário, pensarmos na essência, considerarmos o Big Bang em sua noção fundamentalmente teórica, ou seja, a noção de catástrofe, no seu sentido de mudança/ruptura da forma, conforme concebido por René Thom (Morin 2002:64): relacionada a toda morfogênese ou criação. Dessa forma é possível perceber, nos mesmos processos, desintegração e gênese. Essa noção traz em si a ideia de acontecimento, singular ou plural, e mais que isso, inclui a desordem criadora, já que a ruptura de uma forma antiga é o primeiro passo constitutivo no processo criativo de uma nova forma. “Ela contribui para fazer entender que a organização e a ordem do mundo se edificam por desequilíbrio e instabilidade” (2008:64). Quando se fala de Big Bang, pode haver a dúvida sobre as ligações pertinentes ao tema deste trabalho, mas o que é fundamental na observação da revolução hubbleana é a de tornar mais preciso um princípio complexo de explicação: não se pode substituir a ideia simples da ordem eterna, sempre em evolução, por outra ideia simples: a da desordem. Não existe somente o progresso em ascensão, a evolução vai ser também degradação e construção, dispersão e concentração. Trata-se de uma mudança de princípio e método. O que interessa, prioritariamente, são as escolhas conceituais, teóricas, ou lógicas e paradigmáticas, que depois da destruição do velho vão permitir a concepção do novo. Tendo como base a cosmogênese, Morin estuda os processos pelos quais se desencadeiam as desigualdades de desenvolvimento no cosmos, identificando as desigualdades térmicas, aquelas provenientes de turbulências, mas de encontros e de transformações, as outras provocadas por rupturas, dissociações, colisões e explosões. Todos esses processos se interagindo e retroagindo vão constituir o que ele denomina da usina cósmica de ordem e organização e que serão, a despeito dos desperdícios, os indícios do processo cosmogenético. 60

Ainda no mesmo sentido da cosmogênese, Morin (2008:72) elenca as características das interações que podem provocar modificações e que podem por analogia, relacionar-se à vida nas cidades: —

supõem elementos, seres ou objetos materiais, que podem encontrar-se (ou configurar-se no mesmo espaço);



supõem condições de encontro, ou seja, agitação, turbulência, fluxos contrários etc. (a cidade ainda precisa das condições de encontro);



obedecem a determinações/imposições que dependem da natureza dos elementos, objetos ou seres que se encontram (tal como na cidade);



tornam-se, em certas condições, inter-relações associações, ligações, combinações, comunicação etc, ou seja, dão origem a fenômenos de organização (tal como no urbanismo). Assim, para que haja organização, é preciso que haja interações; para que haja interações, é preciso que haja encontros; para que haja encontros, é preciso que haja desordem (agitação, turbulência). Tanto maior a diversidade e a complexidade dos fenômenos em interação, mais crescem a diversidade e a complexidade dos efeitos e das transformações saídos destas interações. É deste jogo de interações que devem nascer as leis (organização) que vão permitir uma nova ordem. Pode-se resumir o processo, estabelecendo que, sob o efeito das imposições originais e das potencialidades organizacionais, os movimentos desordenados, desencadeando encontros aleatórios, produziriam a organização e a ordem, completando um ciclo: ordem desordem interações organizações

ordem

desordem

interações

organizações

Como a organização se deu pelo próprio processo, a exemplo da experiência order from noise (ordem a partir do ruído) de Von Foerster (Morin,2008:74), este ciclo vai permitir uma certa estabilidade da ordem, como definido por Morin: “uma vez constituídas, a organização e a sua ordem própria são capazes de resistir a um grande número 61

de desordens (2008:76). Daí deduz-se que aquilo que é estabelecido no processo de organização pelas pessoas envolvidas, tende a ser mais resistente às turbulências da desordem. Morin indica que, “desde o século passado, as ciências antropossociais, cujo objetivo é, todavia, extremamente aleatório, esforçam-se por reduzir a aleatoriedade e a desordem, estabelecendo ou julgando estabelecer determinismos econômicos, demográficos, sociológicos. Mas é impossível, tanto no domínio do conhecimento do mundo natural como no conhecimento do mundo histórico ou social, reduzir nossa visão quer à desordem, quer à ordem” (2010a:196). Neste ponto é importante realçar o conceito de ordem que a complexidade moriniana adota. Primeiramente, a ordem não é um conceito simples. Ela ultrapassa a concepção de lei anônima, impessoal e suprema, que vai reger todas as coisas no universo, a verdade. Se percebemos determinismo na ordem, pode-se também detectar aí a noção de coação, mais radical do que a ideia de lei. O que se estabelece como ordem? Tudo aquilo que é repetição, constância, invariância, tudo o que pode ser posto sob uma relação altamente provável, enquadrado sob a dependência de uma lei ou de um processo estruturador, classificador. E a desordem? É tudo aquilo que é irregularidade, desvios com relação a uma estrutura dada, acaso, imprevisibilidade. Num universo de pura ordem não haveria inovação nem evolução. A inovação pressupõe a ruptura, ou seja, a desordem. A ordem já perdeu sua caracterização generalista, mas hoje está ligada a singularidades. Não existe mais a possibilidade, na complexidade contemporânea, de uma ordem geral, anônima. E, no mundo de comunicação global atual, a ordem está submetida às interações. Morin estabelece que, com a noção de estrutura, a ordem se relaciona à ideia de organização: a ordem seria como a estrutura que organiza um elo entre ordem e organização. “A organização, entretanto, não pode ser reduzida à ordem, embora a comporte e produza” (...) Uma organização constitui e mantém um conjunto ou “todo” não redutível às partes, porque dispõe de qualidades emergentes e de coações próprias, e comporta retroação das qualidades emergentes do “todo” sobre as partes (2010a:198). Já a desordem comporta agitações, dispersões, colisões, irregulari62

dades, instabilidades; desvios que aparecem num processo, choques, encontros aleatórios, novos acontecimentos, acidentes; desorganizações, desintegrações, erros. Mas é preciso atentar que a desordem traduz-se pela incerteza, de dimensão subjetiva. E, finalmente, pensamos que são as tentativas de trabalhar as incertezas que nos tornam criativos e criadores.

2.3.3

O circuito tetralógico Ainda com base na cosmogênese, Morin nos propõe o circuito tetralógico, no qual “as interações são inconcebíveis sem desordem, ou seja, sem desigualdades, turbulências, agitações etc., que provocam os encontros” (2008:78). Isto significa que para haver ordem e organização são necessários os encontros e, para que a organização redunde em ordem, é necessária à interligação entre os dois conceitos definida pelo observador. “A organização precisa de princípios de ordem intervindo através das interações que a constituem” (2008:79). No circuito tetralógico as relações se configuram assim:

desordem

interações reencontros

organização

ordem

Observando-se os encadeamentos a partir das análises anteriores, conclui-se que não é possível isolar nenhum destes termos, ”é preciso concebê-los juntos, ou seja, como termos ao mesmo tempo complementares, concorrentes e antagônicos” (2008:79), o que vai nos remeter à dialógica, próximo princípio moriniano a ser evidenciado. Nenhum corpo ou sistema pode ser concebido sem as interações que lhe constituíram. São interdependentes: “a ordem só se desenvolve quando a organização cria seu próprio determinismo e o faz reinar 63

em seu ambiente” (Morin, 2008:78). Quanto mais existir organização e ordem, maior a complexidade e maior a necessidade de desordem. O circuito nos faz entender que esses três conceitos ordem/organização/desordem se relacionam mutuamente através da interação, observando a criação em cada sistema das suas próprias determinações e suas próprias finalidades, considerando o princípio da autonomia/dependência e compreendendo o significado de sujeito. Também é preciso perceber que a desordem precede a ordem, não numa hierarquia, nem num processo linear, mas numa conjugação interdependente com seu oposto à ordem desejada.

2.3.4

A dialógica Morin (2008:106) determina ser preciso considerar uma ligação fundamental entre ordem e desordem: uma ligação de ordem dialógica, citada anteriormente e que será explicitada neste item que, basicamente, trabalha com a complementaridade e o antagonismo. Essa ligação não nega a dialética, mas surge dela, não no nível dos fenômenos, mas naquele dos princípios, ou melhor, dos paradigmas. É uma relação complexa e que as define - dialética e dialógica - ao mesmo tempo unas e antagônicas, dependendo de como se observe:



una: ou seja, indistinta, pois uma não existe sem a outra, ou seja, a ordem se torna desordem, que organizada retorna à sua outra condição;



complementar: tudo que é organizado ou organizador trabalha na e pelas transformações através da desordem;



antagonista: a desordem destrói a ordem, mas é dissipada pela organização. Segundo Morin, a complexidade não é um fundamento; “é o princípio regulador que não perde de vista a realidade do tecido fenomênico no qual estamos e que constitui nosso mundo” (2011a:105); não é a essência do mundo, que acreditamos inconcebível; a complexidade é a dialógica ordem/desordem/organização.

39 Éric Letonturier, sociólogo e diretor

Letonturier39 (2011:106-109) destaca a imagem de rede, ligada à com-

adjunto do GEPECS

plexidade moriniana, como a ideia de religar os constituintes hetero-

- Groupe d’Étude pour

gêneos em um conjunto solidário que exprime os três princípios do

l’Europe de la Culture

programa que compartilham:

et de la Solidarité - Université Paris-Descartes.



a dialógica, que articula a unidade do conjunto e a diversidade de elementos;

64



a recursividade que contempla o modo de estruturação, fundado sobre a reciprocidade e a reversibilidade dos efeitos e influências e a permutabilidade das posições;



e o princípio hologramático, segundo o qual, desde Pascal, a parte produz e age sobre o todo que age, ele mesmo, sobre a parte. Desta forma, a inteligibilidade da complexidade passa pelo conceito de organização que dá o significado ao todo pela interação das partes. Note-se que os conceitos de rede e de complexidade convergem para a organização da diferença. Articuladora e multirramificada, a organização não é nada além da ligação das ligações, a rede graças a qual os elementos devem ser definidos dentro de suas características específicas, dentro e com as relações das quais participam, dentro e através das perspectivas do todo onde se integram. Com a rede (internet) adentrando todos os espaços da Terra, temos como resultado das práticas cotidianas, uma expansão de fontes individuais de cruzamentos que conectam os diversos fragmentos da humanidade, antes dispersos no mundo. Esse movimento tem permitido o surgimento de agenciamentos sociais plurais e descentralizados. Esse movimento parece fazer despertar um novo núcleo associativo, “o coletivo”, dado importante a se observar em relação ao urbanismo e que forma o seu todo, baseado em interesses e princípios comuns, ou seja, as regras da organização dentro do princípio da dialógica. Segundo Morin (2012b), nós, seres humanos, conhecemos o mundo através das mensagens transmitidas por nossos sentidos e nosso cérebro. Neste contexto, as analogias desempenham um papel fundamental e podem ser compreendidas de várias formas. O conhecimento por analogia é um conhecimento do semelhante pelo semelhante que detecta, utiliza e produz similaridades de modo a identificar objetos ou fenômenos (eu diria também sistemas) que percebemos ou conhecemos. Ainda segundo ele, o termo analogia contém sentidos diferentes, tais como: analogias de proporções e relações, de formas ou configurações, de organização e de função ou, por fim, analogias mais livres, que possuem um sentido evocador, sugestivo, mais ligadas à literatura. Morin nos indica que os múltiplos modos de reconhecimento e conhecimento se fazem por analogia, sem, contudo, restringir-se a ela. Incluem também a metáfora, um modo concreto de expressão e compreensão. A analogia é iniciadora e relaciona-se com a inovação, 65

ligando o concreto ao abstrato e entre o imaginário e o real, via metáfora. Essas fontes estimulam a concepção, ou seja, novas formas de organização do pensamento, via dialógica. Para Morin, a organização do conhecimento exige o trabalho binário (digital) da exclusão ou aceitação de uma analogia, pela discriminação da alternativa lógica do verdadeiro e do falso. Mas, correlativamente, as identidades nos obrigam a distinguir o que é apenas semelhante, mas não idêntico. (...) “os princípios/regras que organizam o conhecimento humano instituem, em nível cerebral e mental/espiritual, uma dialógica cooperativa digital/analógica” (2012b:155). Morin destaca que Von Foster notou que o cérebro não memoriza a percepção pelo conjunto, mas somente por algumas marcas a partir das quais ele pode reconstituir o conjunto, sob forma de lembrança. Sobre esse mesmo ponto, Lent (2001:555) nos indica que “os primeiros estágios da percepção consistem no processamento analítico realizado pelos sistemas sensoriais, destinado a extrair de cada objeto suas características (...) Combinações destas características passam então por vias paralelas cooperativas do SNC (Sistema Nervoso Central), que gradativamente reconstroem o objeto como um todo, para que ele possa ser reconhecido e memorizado ou reconhecido, e para que possamos orientar nosso comportamento em relação a ele”. Pribram, citado por Morin, concluiu que a memória é registrada de maneira hologramática. Serão registradas, não as representações, mas as computações que estabeleceram a representação no momento da percepção e que podem operar por recomputação. No surgimento da lembrança, a ideia chave: “o que é reunido se configura como uma computação não como um registro40. Assim, o conhecimento é registrado na memória como um conjunto de computações. E se pensarmos na cidade, é através de suas relações que se torna possível o reconhecimento dos lugares. E mesmo 40 Pribram, K.R. The brain, cognitive

um marco, que se destaca no espaço, estabelece-se como tal em referência ao contexto que encerra.

commodities and the enfolded order, in Boulding, K.E. et

Esse é um dado fundamental para o pensamento dialógico, ou seja,

Senesh, L. (org), The

criar os marcos e referências com os quais se pode trabalhar, sem

optimum utilization

estabelecer qualquer distinção a priori, em desordem. Através das

of the knowledge, Boulder, Westview

interações e a partir das premissas firmadas, estipular as possibi-

Press,1983, p.31.

lidades de organização, sem deixar de considerar os princípios da complexidade.

66

Morin ilustra o processo que é, às vezes, dialógico, recursivo e hologramático pelo exemplo da linguagem. Uma palavra é definida por outras palavras que são definidas por outras palavras. A definição de cada palavra implica na maior parte das palavras de uma língua. A precisão de uma palavra no contexto de um texto é um processo dialógico/recursivo, ou seja, a partir de várias possibilidades de significação, seu sentido será determinado pelo senso global da frase ou do texto. Compreendemos a fase a partir do sentido das palavras ao mesmo tempo em que este sentido se cristaliza a partir do que emerge da frase. Junte-se a isso a relação contextual que fazemos com o texto, utilizando a dialógica recursiva:

Palavras > texto > contexto > texto > palavra > contexto

Assim, segundo Morin (2012b:117), podemos supor que “a organização hiper-complexa do espírito/cérebro é inseparável do complexo trinitário”:

Dialógica > recorrência > holograma

O nosso cérebro conhece o mundo exterior por meio de variações/ diferenças percebidas por nossos receptores sensoriais. O mundo exterior apresenta variações, diferenças, semelhanças, constâncias. O cérebro vai trabalhar nas policomputações para tratar/transformar e organizar as informações recebidas, processando na polilógica do cérebro/espírito, até estabelecer, de modo quase simultâneo, a representação. É nesse processo que Morin determina os processos de “inter-trans-computação” que vão apresentar os esquemas padrões e categorias estabelecidos a priori no cérebro. A estes padrões básicos somam-se outros padrões secundários; e os esquemas cognitivos maleáveis trabalham as informações considerando simetria, assimetrias, analogias e diferenças. E numa situação nova, uma estratégia cognitiva de aplicação, modificação 67

ou mesmo de invenção de novos padrões vai acontecer. Assim, mobilizando competências inatas e adquiridas, conhecemos nossas representações. Morin(1986) utilizou o sentido da visão para explicar esse esquema de representação. Ele considera que a representação é uma síntese cognitiva, dotada de qualidades de globalidade, coerência, constância e estabilidade. Submetida a impressões na retina ela vai se modificando de acordo com a distância, se deformando segundo o ângulo de visão. São as qualidades mentais organizadoras que vão dotar essa representação, ou qualquer outra, de estabilidade e coerência. E isso vai permitir a avaliação a cada instante (distinção, seleção, focalização e estudo de detalhes) e a síntese (totalização, globalização, contextualização). Pode-se a cada instante corrigir, completar, enriquecer, contextualizar a representação, modificando o ângulo de visão e a distância do olhar. Pode-se mesmo, a cada instante retrabalhá-la, recomputá-la, ponderar sobre ela, reponderar, pois todas as representações são acompanhadas, explícita ou implicitamente, de palavras e ideias, que, a seu turno, exercem influências sobre as análises e sínteses. Assim se constitui o ciclo perceptivo, na parte dos estímulos psíquicos que recebem os terminais sensoriais: codifica, transforma, organiza, traduz os estímulos e opera os circuitos intercomputacionais entre as diversas regiões do cérebro, para reenviar aos órgãos dos sentidos uma percepção global da representação exterior. Esse ciclo perceptivo é (Morin, 2012b:120): —

seletivo > eliminando alguns dados;



aditivo > no sentido que o cérebro completa as informações com os esquemas de inteligibilidade já adquiridos – memorizados;



conectivo > no sentido que o cérebro corrige as informações para garantir estabilidade;



formador > no sentido que o cérebro aponta à percepção as referências e os esquemas de reconhecimento já estabelecidos;



construtivo > no sentido que a representação é uma construção; tradutor > no sentido da captação dos estímulos pelos sentidos em linguagem cerebral (representação) e espiritual (palavras e ideias). Desta forma, o processo da percepção que produz e necessita de uma representação é por sua vez:

— 68

dialógico > pois é fruto de uma dialógica entre o aparelho neurocere-

bral, ou seja, o espírito e o meio exterior - o mundo; —

recursivo > pois constitui um ciclo construtivo que parte do olho para retornar ao olho, reconstruindo o mundo a partir de amostragem;



holoscópico > pois produz uma visão do conjunto que invade o horizonte mental e pode-se dizer que é também hologramático no seu modo de inscrição e de rememoração . A partir desse ciclo, fica subentendido que a representação perceptiva contém em si duas ideias contrastantes:



é uma construção / transformação / tradução extremamente afastada do original;



se constitui numa analogia que carrega a presença do mundo exterior. Por analogia, consideramos o ciclo como possibilidade de abordagem urbanística. As teorias urbanísticas compreendem todas elas uma perspectiva dialógica, ou seja, a unidade simbiótica de lógicas que ao mesmo tempo se alimentam, competem entre si, parasitam-se mutuamente, se opõem e se antagonizam. A Carta de Atenas é um exemplo interessante: ao mesmo tempo em que faz uma análise crítica de uma realidade em desordem, é um texto reconhecidamente utópico da certeza, da possibilidade de ordem e do progresso incondicional. Morin nos indica que o que produz um sentimento de realidade na percepção é a coprodução, entre o mundo exterior e o espírito/ cérebro, de uma representação estável e coerente. O que produz o sentimento de realidade no sonho é a interrupção desta coprodução: é esta interrupção que vai permitir que a realidade do sonho se imponha como realidade. Ambas as percepções do real e do sonho têm origem nos mesmos esquemas que partem de dois mundos antagonistas e complementares: um da exploração empírico – racional; outro da fantasia e dos mitos. Os dois mundos se nutrem, um do outro, mais ainda, há sempre um dentro do outro. É com estas atitudes centrais que a humanidade vai desenvolver simultaneamente um conhecimento objetivo do universo e as mais fabulosas construções do universo imaginário: a representação da realidade e a utopia. E, com o reconhecimento da dialógica, poderemos estar atentos as possibilidades para ambos os casos. 69

2.3.5

Os sistemas Da mesma maneira que a teoria da complexidade, a teoria dos sistemas tem algumas versões diferentes. Interessa a este estudo, a teoria dos sistemas que traz em si o princípio da complexidade. Neste ângulo, a virtude sistêmica se refere a:



ter como unidade um todo complexo, que não se resume a soma de suas partes;



ter partido de uma noção de sistema que não se estabelece como uma noção real, nem puramente formal, mas que contenha ambiguidades;



situar-se num nível transdisciplinar, não apenas segundo a natureza material do seu objeto, mas também de acordo com as complexidades dos fenômenos de associação/ organização. A noção de sistema pode ser percebida como um facilitador no estudo do urbano. Compreender os sistemas envolvidos nos problemas apresentados, estabelecer suas interligações, conflitos e contradições, pode ser um processo de desenvolvimento pela aprendizagem em ciclo, ou seja, a tentativa de não se estabelecer um conhecimento dominante, mas ao contrário buscar os pontos estratégicos, os nós de comunicação, as articulações organizacionais entre esferas separadas de cada sistema envolvido na organização do espaço urbano. Morin entende o ser vivo como um sistema auto-organizador, que não pode bastar-se a si mesmo, “ele só pode ser totalmente lógico ao abarcar em si o ambiente externo”. Não tem como fechar-se, ser autossuficiente. O sujeito é considerado parte do sistema. Como tal, ele emerge como elemento auto-organizador, para trabalhar com a incerteza e a ambiguidade. Para Morin, tudo que era objeto, tornou-se sistema, ficando de fora somente a dispersão das partículas, no estado de desorganização. A unidade elementar, o átomo, tornou-se um sistema, vide novamente a nanotecnologia. “Encontram-se na natureza concentrações, agregados de sistemas (...)”. Nosso universo “é uma impressionante arquitetura de sistemas (...)”, onde “o ser humano faz parte de um sistema social, no seio de um ecossistema natural, que está no seio de um sistema solar, que está no seio de um sistema galáctico: ele

70

(o homem) é constituído de sistemas celulares, que são constituídos de sistemas moleculares, que são constituídos de sistemas atômicos. Há nesse encadeamento sobreposição, confusão, superposição de sistemas e há, na necessária dependência de um em relação a outros, (...) um fenômeno e um problema-chave”, o da capacidade de se entre-arquiteturarem, de se constituírem uns pelos outros, cada um podendo ser ao mesmo tempo a parte e o todo (2008:128-129). “Sempre se trataram os sistemas como objetos: trata-se de agora em diante de conceber os objetos como sistemas” (Morin, 2008: 129). E, para isso, é preciso entender bem o que seja um sistema. Neste sentido Morin nos apresenta, entre outras, algumas definições que nos permitem refletir: —

“um sistema é um conjunto de unidades em interações mútuas”, de Karl Ludwig von Bertalanffy41;



Lincoln Ackoff 42;

41 The theory of open systems, General

“é a unidade resultando das partes em interação mútua”, de Russell



System Yearbook,

“uma totalidade organizada, feita de elementos solidários que só podem definir-se uns em relação aos outros em função do lugar que

1956.

ocupam nesta totalidade”, de Ferdinand de Saussure43.

42 Ackoff (R. L.), Churman (C.W.),

Na análise das três definições Morin define que não basta associar

Arnoff (E. L.) Introduction to

a inter-relação à totalidade, mas sim, ligar o todo à inter-relação

operations research,

pela ideia de organização, concluindo por sua definição de

Wiley, Nova Iorque,

“sistema como unidade global organizada de inter-relações entre

1957, trad. fr., Éléments de recherche

elementos, ações ou indivíduos” (2008:132), considerando ainda

opérationnelle, Dunod,

que o sistema é diferente da soma das partes, porque contém as

Paris, 1960

interações, complementaridades, imposições, inibições, repressões e antagonismos. Daí a conclusão, que um sistema toma forma ao

43 Cours de inguistique

mesmo tempo em que seus elementos se transformam, donde tudo

générale, Payot,

o que forma, transforma, nos remetendo ao circuito recursivo,

Genebra, 1931

que está sempre em atuação nas transformações do mundo, por consequência, da cidade. A noção de sistema contribui para: —

revelar uma unidade complexa, que não se reduz a soma de suas partes;



expressar a noção ambígua uma vez que a noção de sistema não pode ser nem formal, nem real, mas em transmutação;



situar-se num nível transdisciplinar, não apenas segundo a natu reza material do seu objeto, mas também segundo os tipos e as com71

plexidades dos fenômenos de associação/organização. Neste ponto é importante estabelecer a diferença entre a percepção de um sistema fechado e de um sistema aberto, considerando que estas diferenças estejam no cerne das questões de complexidade urbana. Morin considera que o sistema vivo, ou em constante modificação precisa ser aberto e fechado, concomitantemente. Não se pode colocar em alternativa de exclusão o fechamento ou a abertura, já que não há sistema hermético num espaço neutro. O sistema pode ser fechado sob determinada condição. A abertura dos sistemas, com suas organizações ativas, permite as transformações que alimentam a sua continuidade, assim, o sistema se abre para se fechar novamente e manter a sua estrutura, se abrindo novamente. Esses processos precisam ser constantes para evitar a degenerescência. A diferença entre sistema aberto e sistema fechado, para ser entendida, pode ser ilustrada a partir do exemplo da dependência energética com o exterior, considerando-se esta uma condição determinada (Morin,2011a:21). Um sistema fechado, como por exemplo, uma pedra ou uma mesa, está em estado de equilíbrio com o exterior, sob o ponto de vista energético, já que não necessita de troca para subsistir. Uma vela acesa ou uma célula do corpo humano não subsistem sem um processo de troca. Há desequilíbrio, pois sem esse fluxo haveria desordem organizacional: a vela se apagaria e a célula definharia, ou seja, existe um processo de troca que é determinado pela necessidade ou carência. Pode se dizer então que, o desequilíbrio alimenta e que o sistema aberto sem a energia se fecharia. Se pensarmos no corpo humano, um sistema aberto que depende de energia exterior, podemos observar que, enquanto existe o desequilíbrio alimentador, nossas células se renovam sem cessar, mas o conjunto permanece estável e estacionário. Assim, por um lado, o sistema deve se fechar ao mundo exterior para manter a sua estrutura, mas é sua abertura ou desequilíbrio alimentador que vai permitir esse fechamento. Conclui-se que o sistema aberto organiza seu fechamento (sua autonomia) na e pela abertura. Deste ponto, podem ser deduzidas algumas observações importantes: —

as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio recuperado;

— 72

a inteligibilidade do sistema não está ligada somente a ele mesmo,

mas ao meio ambiente; —

e que essa relação não é somente de dependência, mas constitutiva do sistema. “A realidade está tanto no elo quanto na distinção entre o sistema aberto e o seu meio ambiente. O sistema só pode ser compreendido se nele incluirmos o meio ambiente, que lhe é ao mesmo tempo íntimo e estranho e o integra sendo ao mesmo tempo exterior a ele” (Morin, 2011a:22). Quando relacionamos este ponto ao urbanismo, podemos entender melhor o insucesso de planos que tinham no cerne do seu conteúdo o fechamento e o controle. A noção de sistema aberto se abre sobre um devir físico ambíguo, que tende ao mesmo tempo à desordem (entropia) e à organização (constituição de sistemas cada vez mais complexos44. Segundo Morin os objetos dão lugar aos sistemas: “em lugar das essências e das substâncias, a organização; em vez das unidades simples e ele-

44 Morin recomenda três obras

mentares, as unidades complexas; em vez dos agregados formando corpos, os sistemas de sistemas de sistemas” (2008:156).

importantes: La théorie du système général. Théorie de la modélisation [PUF,

Ele nos indica, ainda, que o objeto já não é uma forma-essência, mas a totalidade da unidade complexa organizada que se manifesta no

1990]; Le paradoxe et

tempo e no espaço; a forma Gestalt é o produto das inter-relações/

le systeme: Essai sur

interações entre elementos, da organização interna, das condições,

le fantastique social

pressões e imposições do meio. A forma deixa de ser uma ideia de

de Yves Barel [PUG, 1979] e Concept de

essência, para tornar-se uma ideia de existência e de organização.

système politique, de J.L Vuillerme [PUF, 1989]. O próprio

O que emerge desta ideia é que o “modelo aristotélico (forma/subs-

Morin escreveu

tância) e o modelo cartesiano (objetos simplificáveis e decomponí-

L’Intelligence de la

veis), ambos subjacentes à nossa concepção dos objetos, não cons-

Complexité, 2001, Éd.

tituem princípios de inteligibilidade do sistema” (Morin,2008:156).

l’Harmattan, com J.L. Le Moigne 45 Qualidades ou

Precisamos, hoje, das interações; precisamos, hoje, do conceito de sistema, que nos permita observar concomitantemente a unidade, a

propriedades dum

multiplicidade, a totalidade, a diversidade, a organização e a comple-

sistema que apre-

xidade que surgem no conjunto. Precisamos de uma organização que

sentam um caráter de novidade em re-

contenha as partes, o todo, as interações e as emergências45.

lação às qualidades ou propriedades dos

Morin chama atenção para duas questões: o reducionismo e a abs-

componentes consi-

tração geral. Primeiramente nos indica que ao tentarmos separar,

derados isoladamente ou dispostos de

dividir, decompor perdemos tanto as interações como as emergên-

maneira diferente

cias. Não conseguimos perceber nem as complementaridades nem

em outro tipo de

os antagonismos. Por outro lado, é preciso atentar para um sistemis-

sistema

73

mo tecnocrático ou de vale-tudo: uma abstração geral excessiva, que afasta do concreto e não chega a formar um modelo. Sobre isto, um texto de vários autores46 (2011:145), nos informa que existem muitas definições de um sistema complexo, sendo ainda um tema globalmente aberto. Do ponto de vista das ciências dos sistemas complexos eles acreditam que a abordagem complexa se relacione com a dinâmica da interação entre unidades micro, que geram outra unidade de observação – a macro. Enfatizam também que essa observação macro deve estar relacionada com o olhar observador e sua capacidade de compreender. 46 Éric Bertin, Olivier Gandrillon, Guillaume Beslon,

Observam também, citando Morin e La Moigne47, a importância de se

Sébastian Grauwin,

atentar para a distinção entre complexidade restrita e complexidade

Pablo Jensen,

generalizada: a primeira, “permitiu avanços importantes na forma-

Nicolas Shabanel,

lização, dentro das possibilidades de modelização, que favorecem as

pesquisadores do Institut Rhônalpin

potencialidades interdisciplinares”. Neste caso, o sistema complexo

des Systèmes

estabelece-se em ligação com a epistemologia da ciência clássica. Em

Complexes - IXXI.

contrapartida, “a complexidade generalizada supõe que se interrogue

47 Intelligence de

a própria noção de complexidade, ao nível epistemológico” (2011:147).

La Complexité. Épistemologie e pragmatique

Usando a mesma terminologia, Zoya e Roggero48 (2011:151) citam a

[collloque de Cerisy,

complexidade restrita – cuja vocação científica e metodológica se

juin 2005, La tour

constitui principalmente no interesse dos fenômenos de emergên-

d’Aigues. Éditions de

cia e não inclui uma renovação epistemológica, e a complexidade

l’Aube, 2007 48 Leonardo Rodríguez Zoya e Pascal Roggero. Zoya era em

generalizada que, sem excluir seu caráter científico, se questiona sobre o conhecimento do conhecimento, articulado à reflexão ética e política. Tanto Morin como La Moigne e os pesquisadores citados

2009 um doutorando

anteriormente enfatizam a necessidade da articulação entre as duas

das Universidades

complexidades: a restrita e a generalizada.

de Buenos Aires e de Toulouse 1-Capitole, e professor assisten-

Zoya e Roggero indicam que já existe uma série de experiências

te de metodologia da

neste sentido, incluindo como exemplo a própria pesquisa por eles

pesquisa, em Buenos

desenvolvida no SocLab49. Além dessa experiência, eles citam a

Aires. Roggero professor de Sociologia

Comunidad de Pensamiento Complejo, na Argentina; o Santa Fé

na Université de

Institute, no Novo México, o New England Complex System Institute,

Toulouse 1-Capi-

de Cambridge; o Center for Study of complex systems, em Michigan,

tole e coordenador do projeto SocLab, visando a utiliza-

Estados Unidos; e o Complexity Research Group da London School of Economics.

ção de sistemas multi-agentes em sociologia 49 Idem nota 48.

74

Para tal aporte apontam algumas premissas: a primeira delas, orientar-se pela proposição paradigmática de Morin que apresenta as três dimensões: ontológica, epistemológica e metodológica, que

inclui a reflexão ética e política, ou seja, o questionamento de seus resultados numa dimensão reflexiva. “Parece-nos indispensável que nos interroguemos sobre por quem e por que temos necessidade de estudar (controlar, dominar) os sistemas complexos. É justamente neste nível que consideramos que o pensamento complexo pode constituir-se em um aporte decisivo às ciências do sistema complexo, fornecendo-lhes um quadro reflexivo e crítico que lhes parece faltar”(2011:153). Para os autores, dotar o pensamento complexo da potência operacional dos sistemas complexos e articular esses últimos ao quadro epistemológico moriniano pode tornar possível uma prática concreta da ciência com consciência. La Moigne50 nos fala da amplitude de significados da palavra sistema e da criação do substantivo ‘sistêmica’, em 1970, na França, para tentar evitar a confusão com o holismo sugerido pela General System Theory de Ludwig Von Bertanffy. Sobre isto, La Moigne cita Morin, no tomo 1 do Método, quando ele critica Bertanffy, sem deixar de reconhecer o seu sentido inovador, mas enfatizando a não reflexão sobre o conceito de sistema. Aponta, também, um aspecto importante na academia, em relação às ciências sociais ou aplicadas. Para ele, alguns pesquisadores, no intuito de assegurar alguma notoriedade aos resultados dos seus 50 Jean-Louis Le

trabalhos, utilizam este ou aquele método, desenvolvido mais recen-

Moigne. L’exercice de

temente pelas ciências duras, sem considerar, de forma mais exi-

La pensée complexe

gente, a pertinência sociocultural de seus conhecimentos, que são,

permet l’intelligence

ainda, destinados a serem acionáveis, ou seja, passam por uma ação

des systèmes complexes. Entrevista

que gera decisão. Falta, então, uma crítica epistemológica interna,

realizada por Jaques

que vai permitir compreender a incompletude, comprometida pelos

Perriaut, Stéphanie

postulados fechados e de redução quantitativa. Esta visão crítica,

Proutheau, Édouard Kleinpeter e Alfredo Pena-

La Moigne considera possível, dentro do conhecimento sistêmico ou conhecimento de processo.

Vega, in Hermés 60: Cognition, Communication,

Finalmente ele evidencia que, de acordo com Morin51 é preciso “reli-

Politique. Dominique

gar, religar sempre (...) É isto que eu teria por método, tentar apreen-

Wolton [org]. Institut

der as ligações mutantes. Religar, sempre religar é um método mais

des sciences de la Communication du

rico, no mesmo nível teórico das teorias blindadas, encouraçadas

CNRS, p. 61, CNRS

epistemologicamente e logicamente; metodologicamente aptas a

Éditions, Paris,

tudo afrontar, salvo, evidentemente a complexidade da realidade”.

2011, p. 157]

51 La Méthode, t. 4,

Vale atentar, como disse La Moigne, que Morin considera que a

Seuil, Paris,

General System Theory (Teoria Geral dos Sistemas) reagiu ao redu-

1991, p. 48

cionismo pelo ‘holismo’ ou ideia do todo. Mas, ao tentar vencer o 75

reducionismo, o ‘holismo’ também trabalhou a redução, uma redução ao todo, quando não se considera as partes e todas as interações e emergências, e mais ainda a organização que as interliga. Em um caso ou outro o que se busca é a simplificação do problema da unidade complexa. Uma reduz a explicação do todo às propriedades das partes concebidas isoladamente. A outra reduz as propriedades das partes às propriedades do todo, também concebido isoladamente. Estas duas explicações, que se rejeitam uma à outra, provêm de um único paradigma. Contudo é preciso observar que as partes devem ser exploradas, pois é a partir delas que se podem estabelecer as organizações, ou seja, os encontros e interações que vão formalizar suas relações com o todo. Isto significa que nenhum dos dois termos é redutível ao outro. Ainda segundo Morin (2008:159), “o circuito

>

>

>

elementos > inter-relações > organização > todo explicativo todo/partes não pode, como acabamos de ver, escamotear

>

>

>

relações:

>

a ideia de organização”. Deve, entretanto, estabelecer as seguintes

elementos

inter-relações

organização

todo

elementos

inter-relações

organização

todo

Todavia, assim definido, o sistema se fecha, requerendo uma abertura na relação com o ambiente, na relação com o tempo, na relação com o observador. Assim, para tomar a forma complexa, o sistema deve incluir em sua conceituação: —

elementos inter-relações organização a problemática do todo (o todo não é tudo);



a problemática da organização;



sua situação no tempo e no espaço (ambiente);



a relação do sistema com o observador.

todo

Na era que vivemos, a noção de sistema é fundamental. Para Morin, “uma verdadeira sociedade da informação baseia-se na capacidade de integrar as informações num conhecimento pertinente” (2012a:272). Acreditamos que este seja um dado fundamental do desenvolvimento contemporâneo; de nada adianta esse volume enorme de informações produzidas a cada período, sem um real aproveitamento delas num sistema de interligação do conhecimento em torno de um tema ou de uma problemática. A ideia de sistema urbano, a 76

nosso ver, poderá se desenvolver em função do sistema de atores, do sistema de ações e do sistema de objetos. E, nesse caso, o trabalho num circuito tetralógico pode organizar as interações. Neste sentido a proposta de Morin acentua que “alguns processos de complexificação de campos de investigação disciplinar apela a disciplinas muito diversas ao mesmo tempo que à policompetência do investigador.” Ele cita diversos exemplos, entre eles a ciência ecológica, que se constitui “sobre um objeto e um projeto poli e interdisciplinar a partir do momento que não só o conceito de nicho ecológico, mas o de ecossistema foi criado” (2002:118). A nossa hipótese é que o urbanismo também trabalha sobre um objeto e um projeto polidisciplinar e necessita de um conceito organizador sistêmico para lidar com a diversidade de conhecimentos relacionados.

2.4

A transdisciplinaridade moriniana Neste texto já foi afirmado que as disciplinas são justificáveis e que a dificuldade está em encontrar a articulação entre elas, uma vez que cada uma tem seu próprio discurso, sua própria linguagem e, mais ainda, conceitos que não passam de uma linguagem à outra. Para trabalhar neste sentido, Morin estabelece que é indispensável uma mudança de paradigmas, ou seja, trabalhar a partir do paradigma da complexidade, observando os seus princípios, sua lógica. Deste ponto se conclui que a nova transdisciplinaridade por ele proposta seria aquela que se organiza pelos princípios hologramático e sistêmico; os princípios recursivo e retroativo; o princípio da autonomia/ dependência ( auto-eco-organização) e o princípios dialógico e seu ciclo perceptivo e da interação dos conhecimentos. Apesar das dificuldades, algumas noções migram e fecundam um novo campo. Foi considerando essas migrações que Brandão (2008:15) conclui que” uma das características exigidas do profissional do século XXI é a capacidade de trafegar em vários campos; de viabilizar a migração de conceitos, metodologias e conhecimentos, entre eles; estabelecer relações entre (...) contextos e saberes os mais diversos (...)”, como fez Leonardo da Vinci. Morin nos indica que a questão não consiste em “fazer transdisciplinar”, mas sim que transdisciplinar fazer (20010:136). Porém, a transdisciplinaridade é polissêmica. Apresenta uma diversidade de estu77

dos e experiências que se multiplicam nas instituições de ensino. O conceito de interdisciplinaridade, ou seja do trabalho que reúne diversas disciplinas ou práticas não é novo. Já era praticado e discutido nas escolas de Design da Bauhaus e de Ulm, na Alemanha. Mas, segundo Klein (1996:02), as estruturas acadêmicas foram organizadas pela disciplinaridade, de maneira tão intensa que na sociedade contemporânea os seus efeitos são visíveis de muitas formas, tanto na academia como na organização profissional. A interdisciplinaridade se manteve sempre num segundo plano; tendo sido tratada como uma oposição à disciplinaridade e mapeá-la se torna difícil, pois tem se organizado de forma complexa e contraditória com coordenadas inconstantes. E ainda, “as noções de profundidade e rigor são equacionadas na abordagem disciplinar”, mas redefinidas em relação à transdisciplinaridade: profundidade é a competência ligada aos conhecimentos e abordagens pertinentes ao tema, e rigor deriva da atenção ao processo integrativo (Klein, 1996:212). Para colocar em discussão a possibilidade de um trabalho transdisciplinar no urbanismo, é preciso uma aposta num termo que se ajuste às reflexões pretendidas. Os termos inter-poli-trans-multidisciplinar são cada um deles usados de diferentes formas. A observação dessa polissemia se torna importante para decidir o caminho deste exercício sob a ótica da complexidade. Buscamos então entender a interação entre disciplinas, a partir de alguns exemplos e conceitos, que já incluem essas definições para concluir melhor a nova complexidade moriniana. O universo é extenso. São muitos os autores que se dedicam a pesquisar o assunto e a propor definições e classificações. Selecionamos alguns, de um universo maior. O critério de seleção passa pela diversidade de conclusões, porém não foram esgotadas todas as tendências, pelo volume apresentado. Interessou-nos mais a diversidade e alguma relação epistemológica próxima à nossa proposta de exercício.

Segundo Morin, a interdisciplinaridade pode significar pura e simplesmente que diferentes disciplinas se sentem à mesma mesa, mas pode significar também troca e cooperação. A polidisciplinaridade constitui uma associação das disciplinas em virtude de um projeto ou de um tema que lhes é comum. E no que concerne a transdisciplinaridade, “ela opera frequentemente os esquemas cognitivos que podem transversalizar as disciplinas, às vezes com uma virulência tal que as modifica” (1999: 136). 78

Zeisel (2006: 77), por outro lado, cita os procedimentos transdisciplinares, explicitados quando os membros da equipe tomam decisões em conjunto, contrapondo à interdisciplinaridade, que pressupõe responsabilidades separadas, uma decisão final em conjunto. Nicolescu (2008:02) apresenta outra abordagem sobre a definição de cada um desses temas: —

a multidisciplinaridade se relaciona com o estudo de um objeto de uma única disciplina, por várias disciplinas de uma só vez;



a interdisciplinaridade se refere à transferência de métodos de uma disciplina à outra;



a transdisciplinaridade, de acordo com o próprio prefixo “trans”, indica atuação transversal entre disciplinas ou para além delas, concordando com Morin. Sua finalidade é compreender o mundo atual. Doucet e Jansens apresentam textos sobre a transdisciplinaridade, a partir dos temas de arquitetura e urbanismo, que observam algumas dificuldades para a pesquisa e a prática da transdisciplinaridade. Os autores indicam uma série de conceituações concernentes aos termos polissêmicos do trabalho compartilhado. Consideram a combinação dos diferentes tipos de produção, que não pode se limitar a juntar disciplinas, traduzida por uma pletora de termos utilizados para descrever diferentes maneiras, métodos e graus destas relações entre diferentes disciplinas: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, posdisciplinaridade, crossdisciplinarity e transdisciplinaridade. Para os autores, a transdisciplinaridade deveria ser o termo adotado, uma vez que esse tipo de método de trabalho deve se referir a uma hibridação de conhecimentos e maneiras de contextualização, elementos importantes para as disciplinas de arquitetura e urbanismo (2011:01). Outra dificuldade da complexidade arquitetônica e urbanística estaria relacionada ao que eles denominam, ‘estar no mundo’, ou seja, estarem indubitavelmente relacionadas, na prática, a outros saberes. Citam Rendell (2011:3), enfatizando, como Secchi (2006:07), que a arquitetura e o urbanismo são disciplinas lideradas pela prática. No nosso ponto de vista, esta questão se apresenta, como diz Morin, ao mesmo tempo contraditória e complementar. É um obstáculo, pois ‘estar no mundo’ significa abarcar um todo difícil, e que, de certa forma contrapõe-se a teorias simplificadoras. Contudo, po79

demos considerar que ‘estar no mundo’ ao mesmo tempo facilita a compreensão da transdisciplinaridade, pois a ligação com a prática pode facilitar o entendimento da necessidade e aplicabilidade, se tornando consequentemente em um elemento facilitador do processo, neste tipo de metodologia. Biggs e Buchlek (2011:76) concluem que a reconceitualização da transdisciplinaridade no caso da arquitetura deve compreender o viés da reinstalação dos valores de uma comunidade específica no sentido de deixar vir à tona problemas importantes e desenvolver métodos que permitam a sua integração nos processos de trabalho. Este é um dos aspectos mais relevantes da proposta moriniana do amétodo, ou seja, que o próprio desenvolvimento do trabalho signifique um processo de aprendizagem e de definição de valores para todos os envolvidos, o que pode possibilitar um envolvimento mais responsável e, consequentemente, uma nova solidariedade. A proposta de Morin é definir, no processo, sobre que valores se poderá trabalhar de forma transdisciplinar, para fazer emergir uma outra solidariedade, uma vez que o trabalho conjunto pode propiciar, se bem realizado, algum consenso e aprendizagem. Os autores citam Guba e Lincoln (2011:77), introduzindo na transdisciplinaridade a existência de diferentes paradigmas de investigação operando simultaneamente com base nas diferentes perspectivas específicas, cujas respostas ontológicas, epistemológicas e metodológicas vão constituir o específico entendimento comum da realidade. Acreditam ainda que a arquitetura apresenta uma resposta original a essas três questões, que lhe aufere o potencial de ter uma visão de mundo específica, mas que precisa ser ‘desencaixotada’, ou seja, transversalizada. Acerca deste ponto, Dunin-Woyseth e Nilson (2011:80) destacam a transdisciplinaridade como uma nova maneira de aprendizagem e de solução dos problemas entre as diferentes partes da academia, a fim de se adequar às mudanças complexas da sociedade. Citam, como suporte do seu texto, um trecho do relatório de avaliação da arquitetura sueca (1995 – 2005), que estabelece dentre outros, alguns princípios já abordados por Morin na sua teoria: A pesquisa interdisciplinar pode ser considerada como uma maneira de partilhar o conhecimento transdisciplinar, com o objetivo de estabelecer novos conceitos e teorias, de criar produtos ou 80

de resolver problemas específicos. Do outro lado, a contribuição transdisciplinar implica numa fusão dos saberes disciplinares com o savoir-faire dos profissionais e dos leigos, com o estabelecimento de um novo híbrido, que é diferente de todas as partes constitutivas. Não é um processo que segue automaticamente uma reunião de pessoas de diferentes disciplinas: necessita de um ingrediente que alguns denominam transcendência. Implica no abandono da soberania do conhecimento, na produção de uma nova inserção, no conhecimento por colaboração e na capacidade de levar em consideração, em pé de igualdade o savoir-faire dos profissionais e dos leigos. Coletivamente, a contribuição da transdisciplinaridade permite a fertilização cruzada das ideias dos conhecimentos dos diferentes atores, o que pode conduzir a uma visão mais ampla do tema, bem como de suas teorias explicativas. Couto e Neves fazem uma análise de autores que procuram a definição tanto do termo, quanto das relações estabelecidas. Em Boisot elas destacam três tipos de interdisciplinaridade: a linear, quando um “fenômeno bruto que pertence a uma dada disciplina é legalizado ou explicado por uma lei, própria de uma outra disciplina; o estrutural, “quando ocorre a interação entre disciplinas, capaz de gerar um corpo de leis novas, isto é, de dar lugar a uma disciplina nova e original, não redutível, portanto, às disciplinas que lhe deram origem” e restritiva, que se refere à “reunião de diferentes disciplinas para se alcançar objetivos concretos, sem ensejar reciprocidade entre os elementos constitutivos das disciplinas” (1997:30). As autoras citam também Piaget que define a interdisciplinaridade, quando há “reciprocidade nos intercâmbios, capaz de gerar enriquecimento mútuo”; a multidisciplinaridade, supondo “a solução de um problema através de diferentes disciplinas, havendo, contudo, empréstimo, sem enriquecimento mútuo” e a transdisciplinaridade, se efetuando como “integração total entre disciplinas, com eliminação de fronteiras estáveis”. Nestes dois casos, as definições de certa forma correspondem a outras tantas, tais como Morin ou Nicolescu, sem, contudo, haver uma correspondência dos termos. Couto e Neves, entretanto, estabelecem que a “interdisciplinaridade pressupõe novos questionamentos, novas buscas, transformação da própria realidade”. Para elas, isto vai implicar em uma mudança de atitude, para possibilitar “o conhecimento, por parte do indiví81

duo, dos limites de seu saber para poder acolher contribuições de outras disciplinas”. Envolve a ruptura com “a postura positivista da fragmentação”, que pode permitir uma compreensão do real e uma interação efetiva. Kourisky52 (2002:11,12) destaca que existe uma ilusão corrente que acredita bastar juntar disciplinas diferentes numa mesma atividade para criar a interdisciplinaridade. Ele ressalta a dificuldade de diálogo criada pelo uso de linguagens específicas – o jargão – e mais ainda pelas diferentes aproximações conceituais que vão influenciar a racionalização, as formas de demonstração e expressão. Para ele a interdisciplinaridade do tipo pluri, de funcionamento aditivo, é comumente aceita e implica no princípio que ela não pode se desdobrar, senão a partir de uma disciplina pela importação de conceitos, métodos e modelos recolhidos das disciplinas vizinhas e presumivelmente assimiláveis. Já a interdisciplinaridade do tipo trans não é tão facilmente encontrada, sendo mais relacionada à questão epistemológica do conhecimento que ela pode produzir. Privilegia o fazer sobre o fato e inclui a junção, a conexão, o relacionamento, a religação e a contextualização. O conhecimento que ela produz não ambiciona a certeza, mas a inteligibilidade plausível e culturalmente aceita. Na mesma publicação, Mégie e Rouquié (2012:135) apresentam o resultado do relatório do conselho do CNRS | Centre National de la Recherche Scientifique, com a intenção de privilegiar a interdisciplinaridade, através de um texto de reflexão epistemológica sobre o tema escrito por Elizabeth Dubois-Violette, Danièle Hervieu-Léger e 52 L’ingénierie de l’interdisciplinarité, dir. François

Denis Peschanski.

Kourilsky avec

Para estes a comunidade de pesquisadores contemporâneos partilha

le concours de

um sentimento de estar vivendo uma revolução do conhecimento.

Jean Tellez, L’ Harmattan, 2002

Também é preciso ver a pesquisa como um espaço integrado de

: livro organizado

atividades que, a partir de dados novos, que as plataformas tecno-

por Kourilsky com

lógicas lhes permite constituir, podem se autorizar desenvolver as

a ajuda de François

ciências dos homens.

Tellez, com o material da primeira Conferência/Debate

Dentre outras recomendações o texto destaca a construção coopera-

MCX - H.A.Simon,

tiva de temas transdisciplinares para a humanização das ciências; a

dedicada a Simon em 25 de outubro de

criação de novos instrumentos do pensar, que permitam desvendar

2001 em Paris.

os fenômenos de retroação, as lógicas recursivas e as situações de autonomia relativa; que a exploração da complexidade se apresente

82

como um projeto com abertura permanente, no próprio trabalho de pesquisa, com o reconhecimento constante da imprevisibilidade; e que todos os domínios da pesquisa sejam igualmente integrados e, mais que isso, integrados em conjunto. Para isso, o CNRS define uma estratégia científica em torno de três orientações principais: —

a prioridade central para o pensamento e a prática interdisciplinar, vistos de três maneiras: a pluridisciplinaridade, já em atividade entre os departamentos da instituição e que junta diferentes disciplinas de pesquisa em torno de um objeto comum; a pesquisa de metodologias e instrumentos interdisciplinares através da troca de conceitos, modelos e técnicas de análise; e a transdisciplinaridade que visa construir conjuntamente tanto os objetos de pesquisa como os pensamentos ou conceitos que eles requerem;



a definição necessária dos meios de avaliação e das formas de se levar em consideração as demandas da sociedade;



o reforço sistemático de uma prática coletiva de autorreflexão científica; através, entre outras coisas de um local no qual os pesquisadores e cientistas possam colocar conjuntamente suas experiências e suas interrogações; No nosso entender, o que dificulta a construção da terminologia e das definições não se resume às diferentes formações disciplinares dos autores dos estudos, já que pode se perceber que as variáveis não são significativas e de certa forma se inserem na diversidade de perspectivas contextuais que a própria complexidade contemporânea sugere. Talvez, se tivessem na base dos seus raciocínios um elemento de ligação, uma ontologia e epistemologia comum, poder-se-ia estabelecer um entendimento melhor destas práticas. Esta é a proposta do nosso exercício epistemológico com base na Teoria da Complexidade de Morin.

Assim, com base nestas observações levantadas e com base nos princípios morinianos, elencamos para o nosso exercício dois grupos de pressupostos que podem nos ajudar a pensar o trabalho, tanto teórico como prático, de forma transdisciplinar. O primeiro grupo se relaciona aos conceitos que devem ser trabalhados na organização do elenco de atores que atuariam num processo baseado na transdisciplinaridade. 83



Entre os termos polissêmicos do trabalho de interação disciplinar, transdisciplinaridade seria o termo adotado para definir os esquemas cognitivos que transversalizam as disciplinas;



privilegiar o fazer sobre o fato, no sentido de que o fato decorra do fazer (organizar), como no circuito tetralógico;



é preciso buscar o conjunto do conhecimento entre todas as disciplinas envolvidas, a partir de operações de religação (conjunção, inclusão e implicação); de separação (diferenciação, oposição, seleção e exclusão) num processo circular passando da separação à ligação, da ligação à separação; concomitantemente com o processo de análise à síntese e da síntese à análise, para finalizar na formulação de critérios e valores;



as decisões do grupo devem ser fundamentalmente realizadas em conjunto;



considerar o princípio dialógico, observando as contradições, antagonismos e complementaridades;



trabalhar contextualmente, conjugando os saberes dos profissionais e dos leigos envolvidos;



fazer do processo de trabalho uma aprendizagem para os que dele participam;



reinstalar os valores desejados em cada caso específico;



reconhecer a imprevisibilidade. No segundo grupo, mais relacionado com a institucionalização, percebe-se que ainda há dificuldade de se trabalhar transdisciplinarmente, principalmente em relação à pesquisa, uma vez que a avaliação dos organismos interligados à teoria e à pesquisa, de uma maneira geral, ainda é feita em termos de departamentos disciplinares. Klein (1996:211) assinala que, “critérios de julgamento constituem-se nos aspectos menos compreendidos da interdisciplinaridade, em parte porque é o aspecto menos estudado e em parte porque a multiplicidade de tarefas parece ir contra padrões únicos”. Institucionalmente, nos chama atenção para a definição necessária dos meios de avaliação, que, na nossa perspectiva, se constitui num dos principais obstáculos ao desenvolvimento dos procedimentos transdisciplinares tanto nas universidades como, a nosso ver, na prática profissional. Por outro lado, Morin considera que dentro dos princípios epistemológicos da complexidade não existe um referencial soberano para controlar/verificar o conhecimento, mas sim, múltiplos referenciais que devem surgir de processos de autorreflexão, tendo por base os critérios e valores estabelecidos.

84

A proposta de Morin é aquela da articulação teórica: “a partir da qual uma teoria complexa da organização tenta autoconstituir-se, sobretudo com ajuda dos conceitos cibernéticos, sistêmicos, mas criticando-os e tentando ir além”. Como colocado no início, neste tempo de perguntas não se pode propor a criação de outro princípio unitário, que novamente reduziria o real; precisamos aprender a lidar com a realidade complexa, e, acima de tudo, encontrar novas solidariedades.

85

86

3.

As interações com os autores de referência

3.1

Introdução As ligações entre os textos sobre o Urbanismo e a teoria moriniana foram se fazendo gradualmente à medida que estudávamos a complexidade. Consideramos que para realizar o exercício epistemológico proposto, de interação entre a complexidade urbanística e a teoria da complexidade de Morin, era fundamental estabelecer algum referencial nos textos urbanísticos. Com este objetivo, selecionamos autores que já trabalhassem com a perspectiva da complexidade na cidade contemporânea. Contudo, é importante destacar que as ligações são referenciais, muitas vezes análogas, outras tantas correspondentes a questões que justificam o pensamento moriniano relacionado ao Urbanismo. A intenção da abordagem dos autores é destacar algumas dessas interações entre a complexidade moriniana e o Urbanismo, não de analisar seus respectivos textos como um todo. Imaginamos que os leitores podem ter estabelecido, ao longo do texto do capítulo anterior sobre a complexidade moriniana, algumas interações mais evidentes. Muitos destes conceitos relacionados à complexidade urbana já são consagrados seja por autores que tratam especificamente da complexidade, em outras áreas, seja por autores da área da Arquitetura e do Urbanismo. Ao nosso exercício epistemológico interessam essas interações: é preciso enfatizá-las. Também acreditamos que não vão se esgotar nesta pesquisa todas as possibilida-

87

des deste tipo de análise, tanto por parte de outros autores, muitos deles já elencados para um possível trabalho de desdobramento da tese, como por exemplo, Félix Guattari em Caosmose; como considerando a teoria moriniana, que abarca outros tantos conceitos, que podem também contribuir para um exercício epistemológico como o que estamos propondo . Fique claro que, este exercício marca apenas o início de um estudo que pode gerar, ainda, muitos desdobramentos. Analisamos os conceitos da complexidade urbanística a partir de algumas das transversalidades de conceitos que, de alguma forma, estariam presentes no pensamento complexo moriniano. O objetivo é que a demonstração de algumas dessas interações funcione como reforço da compreensão da hipótese de que a teoria moriniana tem muitos pontos em comum com o pensamento crítico do Urbanismo, desenvolvido a partir da segunda metade do século passado. A teoria da complexidade de Morin foi introduzida nesta pesquisa, na metade final do nosso processo de desenvolvimento da tese de doutorado. Na medida da concomitância das leituras de textos dos dois temas, complexidade e Urbanismo e complexidade moriniana, as correspondências foram surgindo aqui e ali, de forma cada vez mais presente. Uma observação, no entanto, se faz fundamental para o entendimento destas interações. Em entrevista a Foyer (2011:183), mencionada anteriormente, Morin afirma que se interessa pelos pensamentos, mesmo que estejam em sociologias que discorda, e que foi através da junção de uma diversidade de pensamentos, que ele formulou sua teoria. Desta mesma maneira, coletando pensamentos correlatos, nós estabelecemos as interações neste trabalho, desprezando padrões de contextualização dos autores. Segundo Foyer, citando Feyerabend53, Morin seria um anarquista teórico e metodológico. Sigo-o. O ponto de interesse se concentra nos conceitos e nas possíveis ligações entre teorias, o foco é o entendimento. E é neste sentido que o método proposto por Morin também se constitui no nosso método. Segundo ele, para trabalhar com a complexidade é preciso buscar o método, começar pelo método como caminho a ser percorrido especificamente. Porém, mais que isso, este caminho deve proporcionar a 53 Feyerabend, P. Against Method,

88

articulação do que está separado; a reunião do que está disjunto. As-

Verso Books,

sim, se o entendimento sobre determinado ponto é comum, podemos

London, 2009

fazer associações. Aqui é importante firmar que, como estratégia,

nós usamos as próprias palavras dos autores em citações, para que o texto seja compreendido como referencial, na sua origem. O que significaria buscar o método? Pode-se definir como a busca de um caminho capaz de detectar, e não de ocultar, as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interdependências e as complexidades, específicas não no modo de ver de uma disciplina, mas das disciplinas necessárias para enfrentar um problema particular, preciso, limitado. Consiste, portanto, em abrir a porta à investigação destas relações. Foi neste sentido que selecionamos os autores: Venturi, arquiteto da complexidade, que no seu texto estabelece conceitos análogos à teoria moriniana; Koolhaas, arquiteto e urbanista, teórico e crítico, cuja visão de cidade rompe com a teoria moderna e apresenta ligações com o pensamento moriniano, principalmente em relação ao princípio dialógico; Secchi, arquiteto e urbanista com uma visão histórica e propositiva, que nos oferece tanto conceitos como práticas que em alguns pontos servem de referência; Sassen socióloga com um viés na organização econômica e suas consequências nas relações na cidade, considerando seus espaços inter-relacionados, apontando aspectos que remetem ao nosso exercício; e, finalmente, Santos, geógrafo urbano que aborda a complexidade do espaço e complementa a análise da cidade global de Sassen: dentre os autores o único que cita Morin. Alguns dos pensadores estudados expressam intenções no mesmo sentido metodológico moriniano. Sassen propõe ouvir o discurso da cidade, e diz que para isto é preciso uma estratégia, não um método, já que o considera limitador e ela acredita ser necessário ser livre para explorar as táticas analíticas54. Secchi nos indica que, para enfrentar os problemas da cidade contemporânea, faz-se necessário um processo que trabalhe com a aceitação da nossa ignorância e com os diversos fenômenos que existem na cidade, na economia e na sociedade, de modo a poder avaliar as consequências. Indica ainda que para enfrentar a dispersão e a fragmentação da cidade contemporânea impõe-se trabalhar com a dúvida, a exploração, a experimentação (2006:175-177), ou seja, o caminho moriniano do vir a ser. E se nós pensarmos no nosso propósito como urbanistas, trabalhando com o projeto, é certo 54 Does the City Have

que atuamos nesta perspectiva.

Speech? Public Culture 25:2. Duke University Press.

Em outro sentido, Santos cita Morin para analisar a parte e o todo

2013, pp.209-221

e Koolhaas comunga com a curiosidade moriniana, na abertura a 89

qualquer interferência, quando declara trabalhar como um jornalista, “um regime de curiosidades aberto a qualquer interferência” (2013:24). Assim, nossa proposta de cruzar cada um destes autores com o pensamento moriniano se faz no sentido de sublinhar em cada um deles as possibilidades de referências que possam justificar o nosso exercício epistemológico.

3.2

A complexidade de Venturi A complexidade de Venturi, desenvolvida em 1962, traduz não uma contraposição ao trabalho de Le Corbusier, que se tornara paradigmático para a Arquitetura Moderna, mas uma mudança de ênfase, com o espírito crítico contra o que se produziu como Arquitetura até aquele período, como ele mesmo afirma no prefácio do seu livro (2004:XXIII). Em Venturi pode-se pressentir a conciliação, a possibilidade da coexistência da diversidade, da multiplicidade, as ligações entre as partes, no seu caso, sua preocupação com as ligações entre interior e exterior; a ambiguidade, a inclusão do diverso e o trabalho com a contradição e o compromisso com o todo. Em essência, todos esses conceitos estão implícitos nos princípios morinianos, como por exemplo, a coexistência da diversidade, que é condição dialógica do pensar complexo. Como declara Venturi (2004:02):

Uma Arquitetura válida evoca muitos níveis de significados e combinações de enfoques: o espaço arquitetônico e seus elementos tornam-se legíveis e viáveis de muitas maneiras e ao mesmo tempo. Mas uma Arquitetura de complexidade e contradição tem uma obrigação especial em relação ao todo: sua verdade deve estar na sua totalidade ou em suas implicações de totalidade. Deve consubstanciar a difícil unidade de inclusão, em vez da fácil unidade de exclusão. Mais não é menos.

Tanto a multiplicidade de significados como as relações entre a parte e o todo são princípios trabalhados na teoria moriniana. Assim, examinar os conceitos nos quais Venturi se baseou para formular a sua 90

proposta de complexidade e contradição, pode nos levar a compreender melhor este exercício epistemológico em relação à Arquitetura e ao Urbanismo. Nesta busca de referências, um critério a ressaltar em Venturi é a contraposição entre simplificação e complexidade, que ele considera assumida pelo saber em geral, exceto na Arquitetura, a partir da comprovação matemática de Gödel sobre a inconsistência55. Esta inconsistência, comprovada por ele, é para Morin a “brecha última e irreparável (...) na lógica do conhecimento” regido pelo pensamento disjuntor. (2008:259). Venturi declara que os arquitetos modernos ortodoxos aclamaram a novidade relativa ao pensamento das funções modernas, sem levar em conta suas relações. Defenderam “com veemência puritana a separação e exclusão de elementos, em vez da inclusão de vários requisitos e suas justaposições” (2004:03). No mundo que se transformou, ele acredita estar num tempo em que os problemas aumentam tanto em número como em complexidade. Citando Heckscher56, ele, assim como Morin, defende que “o racionalismo prova ser inadequado em qualquer período de convulsão. O equilíbrio deve ser criado a partir de opostos (...) Uma sensibilidade especial para o paradoxo permite 55 Os teoremas da incompletude de Kurt Gödel de 1931, são dois teoremas da

que coisas aparentemente dessemelhantes existam lado a lado, sua própria incongruência sugerindo uma espécie de verdade”, conceito que explica o princípio dialógico de Morin.

lógica matemática que estabeleceram as limitações inerentes aos siste-

Realça que a modernidade enfatizou a decisão ‘ou...ou’, e que o melhor seria permitir apreciar distinções mais sutis, ou mais ainda,

mas axiomáticos,

contradições mesmo, incluindo o ‘tanto....como’, que vai gerar uma

provando que um

Arquitetura que inclui vários níveis de significado e cria ambiguida-

conjunto de axiomas

de e tensão. Observamos que opor um contra reflexo cumulativo ao

para toda a matemática era impossível,

reflexo alternativo: tentar substituir o ‘ou....ou’ pelo ‘e....e’, proposta

e que não se poderia

moriniana, se integra à proposição de Venturi, que chama atenção

provar uma con-

para o fato de a simplificação ‘ou...ou’ permitir à seleção do arquiteto

sistência dentro do próprio sistema. Ver:

quanto aos problemas a resolver, o que nos remete às visões espe-

On Formally Undeci-

cíficas de cada um, construídas a partir das próprias experiências,

dable Propositions of

interesses e conhecimentos, e que podem estar desconectadas da

Principia Mathematica and Related Systems 56 August Heckscher: The Public Happiness, Atheneum

vida e das necessidades específicas do lugar. O duplo significado ou, melhor dizendo, a ambiguidade inerente ao fenômeno ‘tanto... como’ pode envolver metamorfose ou contradição.

Publishers, New

Uma parte da cidade pode ser ‘tanto’ compreendida a partir de um

York, 1962;p.51

significado ‘como’ de forma contraditória. Hoje, pode-se, amiúde, 91

observar situações com esse tipo de contradição nos ambientes urbanos. Se pensarmos nas transformações da relação público/privado, podemos intuir uma série de ocorrências de situações dialógicas. Quantos são os locais das grandes cidades que outrora seriam somente públicos e, hoje, são tanto públicos como privados, tais como, por exemplo, os estacionamentos nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Mas, isto também pode acontecer quando “o observador caminha através de um edifício ou em torno dele e, por extensão, através da cidade: num dado momento, um significado pode ser percebido como dominante; num outro momento, um significado diferente parece ser supremo” (Venturi, 2004:30). Ainda segundo Venturi, se pensarmos em eixos dominantes de uma cidade, podemos perceber que, conforme a posição do observador, cada um dos eixos pode ser o dominante, e o mesmo espaço muda seu significado. Edifícios multifuncionais e salas multifuncionais são exemplos de ‘tanto ...como’ são respostas da Arquitetura Moderna à necessidade de flexibilidade. Para ele, “a ambiguidade válida promove a flexibilidade útil” (2004:33). Espaços da cidade também se caracterizam como exemplos dessa característica ambígua: a praia é um dos exemplos contemporâneos: natureza e palco de eventos, simultaneamente.

O elemento de duplo funcionamento tem sido pouco usado na arqui-



tetura moderna. Ao contrário, esta encorajou a separação e a espe-



cialização em todas as escalas – tanto em materiais e estrutura



quanto em programa e espaço (Venturi, 2004:33).

Embora existam exceções, a Arquitetura Moderna nunca é implícita, além de especializar as formas e materiais, no detalhamento, tende a realçar a separação. Sobre isto vale observar que a crítica ao modernismo tem se dedicado, com frequência, a destacar a diversidade como fator de relevância na riqueza dos contextos urbanos; contrapondo a homogeneização e a segregação, características do Urbanismo que se desenvolveu a partir dos conceitos modernistas. Sobre este ponto Venturi declara-se favorável à vitalidade desordenada, contrapondo-se às visões de simplicidade, homogeneidade extensa, separação e/ou exclusão de elementos. Refuta o racionalismo que trabalha com a simplicidade e a ordem e evidencia a possibilidade de se trabalhar com opostos.

92

Ao mesmo tempo, chama atenção para o fato de a complexidade não ser um dado novo, reconhece-a sempre atuante e analisa obras arquitetônicas que apresentam visões complexas e que se estendem por períodos de diferentes épocas com exemplos de Michelângelo, Palladio, Borromi, Vambrugh, Hawsmoor, Soane e Butterfield, dentre outros. Encontra a complexidade até mesmo em obras de arquitetos ligados ao modernismo tais como Furness, Sullivan, Lutyens, Le Corbusier, Aalto, Khan e outros. Sobre Le Corbusier, atenta para a desconexão entre a realização de algumas de suas obras e seus escritos (2004:07). A seleção de obras feita por Venturi, como ele mesmo enfatiza, reflete sua parcialidade, sobre aquilo que ele realmente admira e que se traduz pela complexidade e pela contradição. Assim como Morin, ele juntou obras que, em outras perspectivas, não seriam relacionadas. Numa outra observação, destaca que a simplificação induz à seleção do arquiteto quanto aos problemas a resolver, sinalizando para o risco em relação às visões específicas de cada um, enfatizando aquelas relativas à separação da Arquitetura das experiências da vida e das necessidades da sociedade (2004:05). Morin observa o mesmo risco em função da superespecialização. Venturi ressalta que, desde a definição dos elementos vitruvianos de comodidade, firmeza e prazer, a Arquitetura já se fazia complexa. Num outro contexto, Choay reitera essa visão, quando concorda em sua análise do tratado De re aedificatoria, que Alberti, ao incluir a demanda e o desejo humano nas necessidades elementares do homem, complexifica o projeto (1980:311). A partir deste sentido da complexidade, fomentado pelos anseios humanos, podemos compreender a preferência do autor pela riqueza de significado em detrimento da clareza; e a sua consideração por ambas as funções: implícita e explícita, requerendo a multiplicidade de significados legíveis e viáveis, de muitas maneiras e ao mesmo tempo, pressuposto moriniano já mencionado. Ele também indica que acolhe “com prazer os problemas” e “explora as incertezas” e que ao aderir à complexidade e à contradição, o faz visando à vitalidade e à validade (2004:01). A incerteza, um conceito transversal à complexidade moriniana, junta-se aqui ao princípio da dialógica, ou seja, o acolhimento da complexidade e da contradição. Por outro lado, ela avalia que se a ordem extrema pode gerar um formalismo rígido, a subordinação incondicional a determinados fins sem ordem pode gerar o caos. “A ordem deve existir antes que possa 93

ser quebrada. Nenhum artista pode subestimar o papel da ordem como um modo de ver um todo pertinente às suas próprias características e contexto” (2004:44). A ordem e a conciliação estão na base da ideia de renovação em construção e de evolução em planejamento urbano. Como exemplo ele destaca que uma considerável dose de desordem não conseguiu destruir o espaço da Grand Central Station, em Nova Iorque (2004:46). Aqui há duas concepções, que de acordo com a teoria moriniana, entram em oposição: a primeira se refere ao fato de que, para Venturi, a ordem deve existir antes que possa ser quebrada e a segunda indica que a ordem e a conciliação estão na base da construção. A teoria moriniana pressupõe que para ter ordem é preciso haver uma organização que entendemos estar na ideia de conciliação proposta por Venturi. Mas se houve conciliação é porque havia algo em desordem, em oposição já que conciliar significa: pôr de acordo ou chegar a acordo com; aliar, congraçar, juntar, reunir, combinar elementos divergentes, contrários, ou incompatíveis; articular, compatibilizar, concertar, ou seja organizar o que estava em desordem. Assim, consideramos que embora Venturi estivesse trabalhando com a incerteza, a contradição e a complexidade ainda o fazia sob certos paradigmas de ordenação, muito presentes nos anos 60 do século passado, permitindo, no entanto, através do seu próprio texto essa nossa compreensão. Ele também nos indica que “uma ordem válida acomoda contradições circunstanciais de uma realidade complexa”. Não só acomoda, mas também impõe. Ele enfatiza que a complexidade e a contradição decorrem tanto dentro como fora do programa arquitetônico - no ambiente, como também em todos os níveis de experiência. Chama atenção para a limitação de todas as ordens compostas pelo homem, acentuando que anomalias e incertezas dão validade à Arquitetura (2004:44). No tocante à padronização, acredita que ela deva ser trabalhada tendo em vista a possibilidade de poder ser utilizada de forma contraditória, ou seja, como um “reconhecimento do circunstancial e do contextual” (2004:51). É dessa forma que analisa a combinação peculiar de Aalto entre padronização e contradição. Embora Venturi ressalte a complexidade na expressão da Arquitetura, sinaliza que esta deve refletir as perspectivas ampliadas da Arquitetura (2004:15), evidenciando as crescentes multiplicidades dos pro94

blemas funcionais detectados por ele nos anos 60. Imagine-se hoje, na cidade contemporânea, reflexo de transformações ainda mais contundentes, provocadas por uma aceleração de novas tecnologias e equipamentos, que modificaram profundamente o viver urbano. Neste ponto é pertinente seguir Vincent Scully, na introdução do texto de Venturi, quando afirma num exercício de comparação entre Venturi e Le Corbusier, dois arquitetos atuantes, que abraçaram a crítica, rompendo com padrões anteriores e “cujo foco preciso sobre edifícios individuais acarreta uma nova atitude visual e simbólica em relação ao Urbanismo em geral - não uma visão esquemática e bidimensionalmente diagramática para a qual tendem muitos urbanistas, mas a um conjunto de sólidas imagens, a própria Arquitetura em sua escala total” (2004:XV). Para esta pesquisa este é um ponto importante que ressalta a relação de totalidade entre a Arquitetura e o Urbanismo; uma parte do outro, e o outro inexistente sem a primeira. Venturi também acentua esta interdependência, nos sinalizando outro conceito a ser considerado nesta proposta - a relação entre a parte e o todo, ressaltando que “o principal trabalho do arquiteto é a organização de um todo único através das partes convencionais e a jubilosa introdução de novas partes quando as antigas não bastarem” (2004:48). Segundo ele, assim como a psicologia da Gestalt aponta que qualquer mudança nas partes causa mudança no significado do todo, a Arquitetura e o Urbanismo, ao trabalhar por partes, criam novos contextos significativos e modifica as interações dentro do todo, aproximando-se de Morin ao considerar as emergências, ou seja, os novos contextos significativos emergentes das relações estabelecidas. Cita, também, Eliel Saarinen57 definindo que tal como um edifício é “a organização de espaço em espaço, assim é a comunidade, assim é a cidade” (2004:91), ressaltando as relações tanto entre o edifício e seu contexto, como entre os espaços interiores dentro dos interiores e entre os interiores relacionados aos espaços exteriores da cidade. Considera um compromisso especial perceber a relação do todo, porque o todo é difícil de realizar. Destaca a unidade contraposta à simplificação. Enfatiza a Arquitetura em busca da totalidade ou das suas implicações: “é a difícil unidade através da inclusão, em vez da 57 Search of Form, Reinhold Publishing Corp., New York, 1948, p. 254

fácil unidade através da exclusão” (2004:45). Referindo-se novamente à psicologia da Gestalt, ele reforça que o todo é muito mais que a soma das partes. Citando Herbert A. Simon, destaca que um sistema 95

complexo inclui “um grande número de partes que interatuam de um modo não-simples” (2004:121). Observando que a Arquitetura daquele tempo havia suprimido dualidades, conclama, então, para uma visão complexa que as englobe sem disfarçá-las, e resulte na multiplicidade. Enfatiza que, na complexidade, trabalha- se o todo em relação à possibilidade do número de partes e de direções variadas: uma única parte ou a multiplicidade de partes, considerando que “as partes podem mais ou menos constituir um todo em si mesmas, (...) as propriedades das partes podem ser mais ou menos articuladas. (...) as propriedades do todo podem ser mais ou menos acentuadas”, num texto análogo ao texto moriniano (2008). Venturi trabalha com o todo inclusivo, como possibilidade de uma arquitetura de opostos, que opera sem simplificações. Defende também a não exclusão do edifício inacabado, ratificando que, hoje se aprecia muito mais as “Pietás inacabadas” de Michelangelo do que sua primeira obra, uma vez que o trabalho incompleto tem seu conteúdo sugerido, ou seja, tem sua expressão “completada além de si mesma” (2004:145). Ao nos falar de um todo difícil, nos fala também do reconhecimento da unidade, não aquela derivada de uma “ordem de padrão em composições mais simples e menos contraditórias, mas a derivada de uma ordem complexa e ilusória do todo difícil” (2004:147). Neste ponto ressalta que são os aspectos contraditórios, que ao criar tensões, podem provocar a vitalidade da diversidade. São eles também os caracteres enfáticos de reconhecimento da complexidade. Esse todo urbanístico vai demandar outra abordagem, que Venturi, citando Alexander58 aponta, num mundo cujos problemas aumentam em quantidade, dificuldade e rapidez - a necessidade de se trabalhar com a complexidade. Defende que o equilíbrio deve ser estabelecido a partir de opostos, do paradoxo da diversidade coexistente (dialógica moriniana) e de certa tensão entre contradições e incertezas. Propõe, quanto aos problemas que possam ser considerados insolú58 Christopher Alexander, Notes on

exclusivo, considerando “o fragmento, a contradição, a improvisação

the Synthesis of Form,

e as tensões que tudo isso produz” (2004:04). Tanto em relação a sua

Harvard University

96

veis, que seja possível trabalhar num sentido mais inclusivo do que

Press, Cambridge,

forma de expressão como aos seus problemas funcionais, a Arquite-

1964, p.2

tura deve reconhecer a complexidade e trabalhar nesta perspectiva.

A duplicidade vai caracterizar o edifício como um ‘elemento vestigial’, ou seja, representa uma fase da Arquitetura passada, com vestígios do seu antigo significado e ao mesmo tempo apresenta uma nova função a ele associada. Para ele essa duplicidade se torna um aspecto contraditório, um novo contexto urbano, cujo novo funcionamento tem por base elementos antigos. Esta contradição enriquece tanto a Arquitetura quanto a paisagem urbana e tem sido usada como política de revitalização dos espaços urbanos. Este é um exemplo da possibilidade, no Urbanismo, de trabalhar o espaço urbano a partir da dialógica. Relacionando a dualidade aos poetas americanos da primeira metade do século XX, Venturi lembra que eles se utilizam dessa “perpétua e trivial alteração de linguagem, palavras perpetuamente justapostas em novas e súbitas combinações”. Fala também de uma observação de Alan R. Solomon59 sobre a pop arte, quando o pintor dá “um significado incomum a elementos comuns...” transformando antigos lugares comuns em novos contextos que adquirem novos significados que são “ambiguamente velhos e novos, banais e brilhantes” (Venturi,2004:49). Em relação ao contexto urbano, chama atenção para o fato de, com frequência, os elementos vulgares serem a fonte de variedade de nossas cidades, considerados na sua relação contextual de espaço e escala (Venturi, 2004:51). De certa forma, essa visão contextualiza o texto num período da cultura americana, que tendia para os conceitos emergentes da cultura de massa, que emergia neste momento. Desde o final do século XIX até os anos 60, numa sequência intensa, o mundo viu surgir e se desenvolverem o telégrafo, o telefone, o radar, a rádio difusão em AM e FM, a televisão e a comunicação via satélite com o lançamento do primeiro satélite de comunicações passivo. É obvio que o impacto desses sistemas de comunicação e de informação massificados se fez sentir em todos os campos do conhecimento, como já explicitado anteriormente neste texto como um princípio recursivo. Na introdução de livro, Scully o declara um livro muito americano. Talvez seja, se considerarmos o tempo da primeira edição. Hoje, no entanto, as análises nele contidas são retroações de conceitos não mais específicos ao pensamento americano. Tanto a 59 in Jasper Johns, The

poesia como a arte abraçaram os novos significados do cotidiano em

Jewish Museum, New

diversos pontos do mundo, introduzindo uma diversidade ricamente

York, 1964; p.5

cultural, considerando-se as especificidades de cotidianos.

97

É através das análises de obras arquitetônicas, que Venturi identifica dois tipos de contradições que vão acontecer tanto na Arquitetura como no Urbanismo. A ‘contradição adaptada’, que se realiza pela acomodação e ajuste entre os seus elementos, é tolerante e flexível, admite improvisações, ajusta-se ao circunstancial e termina em aproximação e qualificação. São ideias “aplicáveis ao design e à percepção das cidades, que têm programas mais extensos e complexos...” (2004:54-64). Já a contraposição justaposta se expressa pelo “uso de elementos sobrepostos ou adjacentes contrastantes”, e é inflexível e contraposta, e termina num todo que ainda pode estar por resolver. Suas relações contraditórias se manifestam em “ritmos, direções e adjacências discordantes... e sobreposição de vários elementos” (2004:54). Algumas vezes “produz quebra de ritmos e reflete dualidades contraditórias de escalas públicas e particulares, ordenadas e circunstanciais.” (2004:70) Na contraposição justaposta, a superadjacência é “mais inclusiva do que exclusiva”. Inclui elementos contrastantes, algumas vezes irreconciliáveis, permite opostos em um todo, admite a não conexão e a multiplicidade de significados em seus diversos contextos inerentes às adjacências e estabelece pontos de vista inesperados. Segundo Venturi, mais que os arquitetos no projeto dos edifícios, os urbanistas aceitam as violentas proximidades em suas planificações (2004:88). Sobre isto, pode-se dizer que a cidade contemporânea é um exemplo de superadjacências, a maioria delas não intencional. E como diz Venturi, tudo ainda para se resolver, sempre, pois a cidade é movimento contínuo, impossível como acomodação, que só acontece de forma temporária ou em partes rigidamente preservadas. Assim, Venturi trabalha conceitos que correspondem a alguns princípios morinianos tais como: —

o princípio hologramático, quando estabelece a obrigação do arquiteto em relação ao todo; critica a modernidade por desprezar as relações; indica a multiplicidade de significados e combinações;



o princípio da autonomia/dependência quando observa a ligação sujeito/objeto ao reconhecer, desde Vitruvius, os elementos de comodidade e prazer na base da Arquitetura, ressaltando também que a complexidade existe há muito no processo histórico, não é uma situação nova;

— 98

o princípio da dialógica, quando analisa a legibilidade da arquitetura

de muitas maneiras e ao mesmo tempo; recomenda a inclusão ao invés da fácil exclusão; propõe a substituição da decisão “ou...ou”, indicada pela modernidade, para “tanto...como”, correspondente à proposta moriniana; quando indica o paradoxo da diversidade coexistente; e ainda, quando define o edifício vestigial que contém ao mesmo tempo o passado e o presente, resultado de sua recuperação com outros usos. Além disso, Venturi pontua também a possível característica autoritária da ordem e a percepção da incerteza e da incompletude, quando nos aponta a cidade sempre em movimento.

3.3

Os conceitos análogos de Secchi Secchi, ao contrário de Venturi, não conceitua explicitamente a complexidade. No entanto, na sua análise do Urbanismo (2006) se utiliza de conceitos que analogicamente correspondem a princípios da teoria da complexidade, tornando-se, por isso, referência para o nosso exercício. Já em sua introdução à edição brasileira, Secchi considera que o Urbanismo não nasce como disciplina especializada, mas “finca suas próprias raízes na história da nossa cultura e no terreno que as alimentou” (...) e também na imaginação que construiu “as interpretações da cidade e da sociedade para as quais aqueles projetos e aquelas políticas foram construídas” (2006:10). Entende o Urbanismo como uma atividade prática, de resultado concreto, resultado cumulativo de decisões, estabelecidas por normas e regras ou por ações espontâneas. Relaciona assim, o Urbanismo ao princípio da autonomia/dependência, ou da autoeco-organização. De início, introduz a incerteza, citando Barthes e propondo discutir dúvidas, questões e temas, muito mais do que certezas, incluindo-se assim na oposição conceitual às propostas da modernidade que colocavam a certeza na base de seus conceitos. Ligando a Descartes e a racionalidade, Secchi define a figura da continuidade como a principal da era moderna. Segundo ele, desde o século XVII, até o séc. XIX, a continuidade veio se desenvolvendo até atingir sua expressão mais coerente na transformação do espaço urbano das capitais europeias, tornando-se universalista. Concomitantemente, considera que todas as disciplinas que surgi99

ram nesta mesma época estavam baseadas na figura da continuidade. Essa continuidade é abordada por Morin no sentido da noção de certeza do progresso, de um mundo que caminha para uma solução: “o progresso é noção aparentemente evidente; sendo de natureza cumulativa e linear” (2010b:95). Ainda segundo este autor, vivemos por muito tempo na certeza de um crescimento que nos levaria ao progresso, num percurso contínuo. Contudo, não se pode dizer que a figura da continuidade tenha se instalado plenamente na “cidade moderna, pois persistirão e se formarão, incessantemente, arranjos que, como fragmentos de um mundo do passado ou germes de um futuro, construindo diferenças, tenderão a disputar o espaço simbólico, físico, social e econômico da continuidade” (Secchi, 2006:29). Assim, pode-se constatar que a modernidade não teve êxito na figura da continuidade, provocando conflitos, fragmentos, descontinuidades. Outras figuras, criadas por Secchi, vão consolidar o pressuposto da complexidade urbana. A primeira delas, a concentração, e tudo que a ela está associado, traduzem o medo e a angústia que se intensificam no existir das cidades a partir do século XIX. A observação de problemas tais como as multidões, a falta de higiene e o engarrafamento, ou seja, a depreciação do morar urbano resulta em uma oposição entre a cidade e o campo, considerando-se o processo industrial como responsável pelo adensamento urbano. Disso decorre, primeiramente, a inclusão da cidade como protagonista dos problemas sociais: “é supérfluo dizer que parte do Urbanismo moderno se constrói como hipótese a alternativa à concentração, que se faz recorrendo à figura da descentralização...”; segundo a tendência a considerar a concentração como característica indissociável da cidade e uma “inexorável previsão para o futuro...” (2006:32-33). O fragmento, figura oposta à continuidade, segundo Secchi, remete a uma “concepção topológica do espaço, à importância da diferença e da especificidade dos lugares” (2006:34), feita de intervenções nas partes, de subtrações e acréscimos que, embora pontuais, vão modificar o todo urbano. A oposição entre as duas figuras ocorreu simultaneamente durante toda a modernidade, numa luta sem limites. A fragmentação, tal como a continuidade, vista de início como uma nova liberação, constitui-se em novos temores, dentre eles a dificuldade de estabelecer um denominador comum, ou seja, a dificuldade de se formalizar um todo relacional.

100

As figuras da concentração e da fragmentação, observadas por Secchi, hoje ainda simultaneamente presentes na cidade contemporânea, nos fornecem uma justificativa para a observação dialógica da cidade, ou seja, dentro de uma lógica ‘unidual’, constituída por duas lógicas antagonistas e complementares ao mesmo tempo. Analisando sob o ponto de vista disciplinar, Secchi considera que “um campo científico, artístico ou disciplinar é um espaço relativamente autônomo”, que “têm suas próprias regras internas: escolha de temas relevantes, critérios para sua construção conceitual, vocabulários que traduzem de forma específica as demandas que provêm de fora”. Ele constata também que quanto mais autônomo, mais se distancia do senso comum, mais se torna especializado e fechado. Por outro lado, os campos disciplinares de menor autonomia, como ele entende ser o caso do Urbanismo, estão mais abertos: “nas últimas décadas do século XX, o campo das práticas urbanísticas inesperadamente se dilatou e se abriu”, sem, contudo, deixar de ser estruturado. Destaca também que o fechamento de alguns campos pode levar a opinião pública a entender essa postura num sentido corporativo, tanto acadêmico quanto técnico, induzindo a descrença. Ainda, segundo ele, o urbanista, mais do que qualquer ator de outra profissão deve considerar as opiniões de todos “os sujeitos, individuais ou coletivos, (...) dotados de poderes e movidos por interesses, aspirações, imaginários, estilos de pensamento e de comportamento bem diversos e, na maioria das vezes opostos; sujeitos que em relação à construção, modificação e transformação da cidade, têm responsabilidades morais culturais e jurídicas muito diferentes” (2006:48-50). Considera também que, seguindo a tendência das outras disciplinas, o Urbanismo se afastou do canteiro de obras, das suas práticas discursivas do trabalho manual, do saber teórico sobre as práticas. Tal como todas as áreas do conhecimento, se organizou em subdivisões não totalmente coincidentes entre si, passando de um aspecto teórico a outro. Mais subdividida na argumentação, a teoria do Urbanismo corre o risco de “perder a capacidade de entender e julgar corretamente as principais modificações e transformações da cidade e do território”. Como Morin, preocupa-se com a responsabilidade cada vez mais restrita. Secchi cita dois exemplos no sentido da subdivisão, com relações conflituosas com o passado: o primeiro se baseando na destruição que vai dar lugar à construção do novo e o outro, a partir da nostalgia do passado, acreditando que só dessa 101

forma se poder-se-ia reconhecer as identidades individuais e coletivas (2006:65-66). Nos primeiro caso, a desordem ou a destruição é proposta para dar lugar a uma ordem genericamente estabelecida; no segundo, podemos perceber o princípio recursivo e o retroativo elencados por Morin. Segundo Secchi, há mais de um século o mundo trabalha com as incertezas sobre o projeto moderno. Nesta perspectiva, ele cita alguns autores e suas demandas, tais como Simmel, Freud, Habermas, Berlin e Lyotard (2006:86), destacando seus pontos de vista como o fim do Iluminismo e da Modernidade. Sobre as cidades europeias e norte-americanas, considera que elas se tornaram espantosas concentrações da pobreza, ao mesmo tempo em que se transformaram, algumas delas, em importantes centros mundiais. Contrapondo à nostalgia da cidade moderna – um lugar seguro – o mundo contemporâneo aparece como “confuso, dominado pelo caos, desprovido de forma, incompreensível e imprevisível...” (2006:87). Contudo, citando Henry Miller, afirma que confusão é uma palavra inventada para indicar uma ordem que não se compreende, mas que consideramos poderia se configurar também como uma desordem que reclama organização. Na contraposição entre o simples e o complexo, Secchi indentifica a angústia do progresso, ou seja, a confiança no novo desejado pela modernidade, despertando “ansiedade, contínua aceleração, ritmo frenético, medo de não manter o ritmo...” (2006: 36) e provocando nostalgia da cidade do passado, principalmente em relação aos equilíbrios que se imagina existissem nela. Em oposição a isso, a modernidade desenvolveu sua narrativa como se fosse ela mesma uma situação de equilíbrio, acreditando poder formalizá-la e realizá-la. O recurso da utopia, é desde Morus, um procedimento crítico que manifestando as incertezas do contexto social, conceitua e representa uma sociedade justa. “A cidade torna-se, nos textos utópicos, figuração conceitual de um possível estado da sociedade”, provocando projetos correspondentes. Secchi vê a utopia como um extremo esforço de imaginação no sentido de explicitar como a cidade de uma sociedade justa poderia ser conceituada. (2006:73) Acerca dos projetos para a cidade contemporânea, destaca que ainda persistem dois tipos de relação com o passado, considerando-se a cidade fragmentada e a recusa de sua heterogeneidade. O primeiro divide o tempo em “um passado a conservar, a defender e a imitar 102

ciosamente” (2006:118), tem uma visão conservadora, e a outra, mais crítica, adota a forma de projetar da cidade moderna, retomando seus conceitos com reinterpretações no contexto das práticas sociais da cidade contemporânea. A segunda atitude, segundo ele, tem uma relação com a tradição, “mais de conhecimento do que de obediência”, considerando o mundo inconcluso, trabalhando com a pesquisa no sentido de rever e/ou melhorar os materiais urbanos e proceder a “contínua reconstrução das regras e das práticas da construção e da composição” (Gregotti appud Secchi, 2006:122). Neste ponto, ele reforça a incompletude defendida por Morin. Em seguida, observa outra forma de olhar e trabalhar com o passado, com a renovação de partes inteiras da cidade, numa política de transformação do sentido, do papel e das funções ali desenvolvidas, através de intervenções pontuais diversas, exemplificadas tanto por edifícios como por outras modificações. Neste caso, não é um retorno ao passado, e adquire o sentido pelas decisões de projeto relativas às transformações citadas e às arquiteturas exemplares, como a reconstrução recente de Berlim. Essas intervenções não se resumem à arquitetura, mas precisam ser complementadas por todas as atividades requeridas e envolvidas no espaço urbano, indício da transdisciplinaridade. As perspectivas de se trabalhar o urbano são diversas e traduzem as contínuas transformações, interagindo em territórios comuns, indicando a diversidade como uma característica da cidade contemporânea. A divisão dos critérios de observação entre cidade moderna e contemporânea é por ele mesmo indicada como pertencente a campos diferentes, que interagem. Indica a importância desse tipo de análise para conhecer a transição entre dois polos que na verdade se integram numa mescla que vai depender das situações específicas de cada território. Sua análise da cidade contemporânea apresenta uma forma do tempo diversa da cidade moderna, com tal mescla de pessoas e diversificação de atividades, que evidenciam o anacronismo. “Mescla, diversificação e obsolescência, sucedendo-se, destroem valores posicionais e continuamente propõem novos problemas culturais...” (2006:91). Em uma análise de uma possível descrição técnica da cidade contemporânea, o autor percebeu a dificuldade de realizá-la, principalmente considerando-se que ela é feita sob a linguagem codificada do Urbanismo moderno. Nesta busca, encontrou termos de grande amplitude semântica, como, por exemplo, desordem e heterogenei103

dade e, também, analogias, como a da rede ou da figura fractal. Considerou que, em todas as imagens descritivas havia a proposta de estabelecer uma ordem, uma tentativa de unir o uno ao múltiplo, essência da proposta moriniana. Entende a cidade contemporânea como um ponto de “convergência de um conjunto de correntes opostas e de tendências conflitantes” (2006:116), tanto de natureza econômica e social, quanto tecnológica, quanto relativa às decisões de projetos urbanos, todos imprevisíveis. Assim como Morin, Secchi cita Von Foster60. No seu caso, observa a relação da máquina banal e de seu oposto a máquina não banal, considerando que a primeira funciona sempre do mesmo modo e, consequentemente a segunda vai apresentar funcionamentos complexos. Declara que “por muito tempo, os urbanistas acreditaram lidar com máquinas banais e persistiram em construí-las de maneira cada vez mais aperfeiçoada” (2006:139). Contudo, o crescimento das cidades em áreas metropolitanas, o desaparecimento da hierarquia moderna na sua organização, o fracasso do modelo gravitacional simples, a descoberta do serendipity61 revelaram gradualmente o caráter não banal do projeto urbanístico. Por fim, percebeu-se que não seria possível trabalhar a cidade contemporânea com os mecanismos de transformação da cidade moderna, seria necessário um plano que funcionasse como uma máquina não banal, cujos resultados dependerão das diversas especificidades dos territórios. Seria como um programa de computador, uma estrutura que estabeleça possibilidades a serem trabalhadas na concepção do projeto de cada cidade. Destaca, entretanto que este projeto muda, localmente, em relação ao tempo e aos lugares; à cultura do lugar e da época, considerando que “a cidade contemporânea está repleta de políticas muitas vezes contraditórias entre si, de dispositivos, frequentemente obsoletos e de fatos desprovidos de projeto” (2006:144). 60 Von Foster, H. Cibernetica ed epistemologia; storia

Ao pressupor a necessidade de uma estrutura a ser trabalhada em

e prospettive. In

variação para cada território, Secchi nos remete ao sistema aberto

Bocchi, G. e

estabelecido por Morin, e que vai operar de acordo com as trocas

Cerruti, M. (org). La sfida della complexitá.

obrigatórias com o meio ambiente.

Feltrinelli Editore. Milano, 1985 61 Descobertas ao acaso.

104

Neste sentido, apresenta, como uma das estratégias de representação do equilíbrio, a relação da cidade com o corpo humano, que poderia expressar a complexidade, mas que foi tratada “de maneira

muito redutiva” (2006:37). Mas esta relação contém, segundo ele, um critério de interesse para este estudo, qual seja: o corpo como cidade visto como um todo indissolúvel; um todo “composto por partes distintas, em função de suas propriedades intrínsecas, mas indissoluvelmente ligadas entre si...” (2006:38). Secchi destaca um aspecto desta relação das partes, qual seja a dinâmica dos processos semelhantes àqueles da polis, que se traduzem em conflito e tentativa de equilíbrio. Aponta também as últimas tentativas de se pensar a cidade como um todo unitário, com exemplos de Maurice Baillard (Genebra, 19341935); as greenbelt towns de Henry Wright e Clarence Stein; o plano de Dessau de Ludwig Hilberseimer e o plano de Sabaudia de Luigi Piccinato, além dos Kibutz e das cidades soviéticas. Desde então, no novo espaço cada vez mais dilatado das metrópoles, a visão unitária da cidade parece impossível. “Temas como o anacronismo, o inacabado, a obra aberta tornam-se mais importantes e estimulantes” (2006:79), reforçando a incompletude proposta pela teoria moriniana. O autor então se pergunta por que o Urbanismo perdeu seu prestígio alcançado no início do século passado e a confiança que a sociedade lhe havia depositado. Sua resposta credita responsabilidade aos urbanistas, sobretudo na excessiva e progressiva formalização burocrática via normatização; o insucesso da reconstrução pós-bélica e a dificuldade de compreensão da passagem da cidade moderna para a cidade contemporânea. Sobre as normas, classifica-as em duas vertentes: de adequação contínua e recíproca - as regras escritas e desenhadas; e aquelas da construção, por meio do controle e limitação das vantagens individuais; além de todas as outras, relativas às áreas as quais os urbanistas se associaram para pensar a cidade tais como, normas de higiene, regulação do tráfego, comércio etc... Sobre normas, Morin considera-as como eliminação do estranho, do mistério, do específico em adesão à regra da universalidade, contrapondo-se a definição de valores que surgiriam a partir das interações de um projeto transdisciplinar, e que no caso poderia se configurar como um exercício de mudanças e adequações específicas. Para Secchi, em termos de concretização, o plano urbanístico é um conjunto composto de futuro do território, programação de intervenções, distribuição de competências, formalização de regras, definição de áreas e de responsabilidades tanto dos atores como das institui105

ções. O plano deve ter uma característica geral precedente seguida de outras, operativas, “relativas às pequenas porções do território”, contrapondo o “olhar de longe”, para as tendências gerais, com o “olhar de perto”, para o detalhe em destaque (2006:134). Compara esse movimento com o desenho de maior dimensão realizado no computador, no vai e vem das diversas ampliações para o total e das reduções para a parte. Destaca as interdependências, associando-as à tolerância, as metas compartilhadas e a normas abstratas e universais. O olhar de longe e o olhar de perto se integram na proposta Moriniana de ir da parte ao todo e vice-versa. Mas, Secchi entra em divergência com Morin, pois considera que o plano define áreas de responsabilidade, estabelece hierarquias de conhecimento, o que na visão moriniana pode dificultar a emergência de questões importantes, nas inter-relações entre as áreas. Pensamos que o plano estabelecido a priori pode ser um ponto de partida para ser desordenado, organizado e reordenado no caminho do método proposto por Morin e que vai depender tanto do tema ou questão estabelecida, como dos interesses e atores envolvidos. Contudo, um dos pontos cuja interação com nosso trabalho se faz de forma mais acentuada é quando Secchi compara a pesquisa e o projeto com o processo jurídico, considerando os seguintes aspectos: partem de uma dúvida, de uma hipótese ou de indícios; requerem a divisão do trabalho com vários atores; suscitam a participação dos habitantes, mesmo que indiretamente. Para a conclusão do processo, estabelece-se o surgimento de um arranjo diferente das trocas e das interações entre as partes, que pode, porém, deixar dúvidas e permitir a reabertura do processo. Considera a realização do processo, como “ação histórica, filha do seu tempo, sujeita a erro” (2006:39), e reafirma que esta tem sido a característica do projeto urbanístico, ou seja, o ‘processo-debate’. Neste sentido, destaca as formas de participação na construção do plano e do projeto urbano, e afirma que “qualquer cidadão é competente a partir do momento que vivencia a cidade”, apesar da ambiguidade possibilitada pelo saber difuso e o conhecimento especializado, que muitas vezes é utilizado e outras vezes negado. Sobre isto, ressalta o procedimento das especialidades em se fechar dentro da “figura do processo, em procedimentos codificados” (2006:40). Neste ponto, como reflexão, vale relacionar a análise de Choay sobre 106

os editos comunais, que ela denomina textos argumentadores. “Entre o início do Trecento e a segunda metade do Quattrocento, o texto argumentador realiza um equilíbrio, jamais encontrado depois, entre a cidade como realidade material e como conjunto de instituições, entre a força da tradição e o poder de inovação, entre a iniciativa dos indivíduos e o consenso da coletividade”. Ela argumenta que, tanto o exemplo como a análise destes textos poderiam servir para “esclarecer o problema, atualmente muito evocado e quase sempre mal colocado da participação no ordenamento urbano” (1985:29). Observe-se que esses editos eram formulados por um grupo de pessoas que não eram especialistas, “mas cuja condição de cidadão qualifica-os, sem distinção de classe social ou profissional, a lidar com todos os problemas da cidade” (1985:28). Os registros do Consiglio Generale de Siena, pesquisados pela autora, definem a abrangência de ordenamentos que vão responder às necessidades dos habitantes no plano urbano. Apresentam um caráter propositivo e, numa metodologia muito interessante, eram revistos ano a ano, para atualização da evolução dos dados. Os editos comunais são um exemplo da inter-relação sujeito/autor/objeto/conhecimento transversal. Podemos perceber que o processo de Secchi, os editos de Choay e a nova transdisciplinaridade de Morin convergem, de uma forma geral, para as mesmas questões, ou seja, partem da dúvida ou da informação como ponto de partida, requerem a participação integrada dos vários atores; e, para a conclusão dos trabalhos, necessitam da interação entre as partes, estabelecendo a possibilidade de reabertura do processo. Para Secchi, a ideia de Urbanismo é muito mais a de um saber do que de uma ciência; um saber multifacetado, com várias origens e histórias; um saber que finca “suas próprias raízes no passado, sujeito a mudanças contínuas, acréscimos, subtrações, mas do que a revoluções”. (2006:43) Contudo, podemos considerar que o Urbanismo, como todo o saber, sofre rupturas de processo. O saber conquistado nunca é totalmente desprezado nessas mudanças contínuas, mas há rupturas, como por exemplo, a proposta de “tabula rasa” da Arquitetura Modernista. Outras vezes, como no caso do exercício aqui proposto, não se aventa a mudança do saber, mas do seu entendimento e das consequentes modificações de processo. Nessas modificações, há uma tendência contemporânea, relativa à morte do autor como ator exclusivo. No caso do Urbanismo, Secchi, 107

escreve que, na maioria das vezes, o próprio urbanista apresenta seu trabalho como produto de uma equipe, remetendo aos “sujeitos coletivos, aliás, vagamente identificáveis”. As transformações da cidade são diversas e comumente é difícil “dizer quais são os limites de uma coleção de eventos e discursos pertinentes ao Urbanismo”. A cidade é informação cotidiana em qualquer mídia e seria impensável ignorar essa influência, no “modo de pensar e sentir a cidade e suas possíveis transformações”. Considera, também, que a cidade é um conjunto de suas transformações e das relações estabelecidas, estas difíceis de serem avaliadas em termos de figura e fundo, ou seja, “para construir, modificar e transformar a cidade, a multidão anônima é frequentemente um protagonista tão importante quanto os grandes autores” (2006:46-48). Na maioria das vezes, o urbanista vai trabalhar com interessados com poder e direito de aprovação, modificação ou veto. Neste sentido, ele acredita que o urbanista vai precisar dispor de uma estratégia que deve incluir além do saber específico “a autoridade da imaginação, da retórica e do mito”. Segundo ele, no caso do Urbanismo não se deve ocultar o autor, sob pena de desconhecermos as complexas razões decisórias do projeto. Em contrapartida, não se pode esquecer a autocrítica das últimas décadas do século XX, quanto ao distanciamento da cultura e da sociedade (2006:52). A proposta moriniana coletiviza o autor e, no nosso entender, redistribui tanto as complexas razões decisórias do projeto, que pode resultar em mais solidariedade e responsabilidades compartilhadas. Muitos poderão concluir que, como Secchi, o autor deve assumir as responsabilidades do processo. Morin acredita que com o avanço do conhecimento técnico, essa responsabilidade precisa ser compartilhada. E sabemos que o conhecimento humano cresceu vertiginosamente. Hoje o urbanista se depara com um universo de informações relativas ao projeto dificilmente dominado por um só campo disciplinar. O próprio Secchi destaca que “alguns consideram que esse espectro seja muito amplo, que uma prática que abarca questões e temas tão distantes possa corresponder a um saber unitário com suficiente profundidade e vigor”. Lembra, também, que, num tempo cuja velocidade das transformações é tão intensa, o urbanista é um dos poucos que se ocupa da construção de um futuro que ainda se estenderá por um longo período; que se posiciona de forma consciente sobre como “decisões coerentes no momento imediato possam se demonstrar contraditórias a longo prazo” (2006:53-54).

108

Essa, talvez, seja uma importante diferença entre o Urbanismo e as outras disciplinas: a indefinível duração de uma decisão, de um ato imaginado e construído. O que nos remete a Doucet e Jansens, já citados, que consideram que a dificuldade da complexidade arquitetônica e urbanística para conceituar a transdisciplinaridade estaria relacionada ao que eles denominam, ‘estar no mundo’, ou seja, estarem relacionadas, na prática, a outros saberes. Secchi atenta que, talvez, seja em consequência disso que os urbanistas mais recentemente têm se unido aos filósofos, biólogos, estudiosos da natureza, geólogos, ecologistas, economistas, trabalhando conceitos tais como a diversidade, a sustentabilidade e o desenvolvimento alternativo. Segundo Secchi, “o urbanista é hoje uma figura inevitavelmente situada entre a ética do poder (ou a falta dela) e a busca de uma verdade consensual (ou a expressão de um poder político ou econômico)”, e sendo essa é uma posição difícil, alguns urbanistas refugiam-se em outras posturas, tais como a descrição comparativa do estado das coisas; a especialização em aspectos cada vez mais particulares; a renúncia ao imaginário ou a redução à militância, missão ou contra–poder (2006:52). Quando Morin propõe que, no desenvolvimento do seu amétodo, se estabeleçam em conjunto os valores que devem reger o processo, entendemos a intenção de buscar uma ética comum, que não seja uma norma distante, estabelecida fora daquele escopo, mas algo que vai emergir das próprias interações do processo, e, como tal, mais assimiláveis e de maior pertinência e resistência ao tempo. Secchi afirma que na reconstrução da história do Urbanismo, há duas linhas de abordagem: uma relacionada a tudo que é externo ao Urbanismo, isto é, as mudanças sociais; outra, ao contrário, faz referência a tudo que é interno – conflitos e contradições no interior do campo urbanístico – na busca de uma “coerência própria”. Embora considere as duas linhas importantes, acredita que o saber urbanístico, diferentemente das outras disciplinas, não surge de um distanciamento, “é, sobretudo, o resultado da convergência de práticas e conhecimentos com longuíssima história; (...) tem raízes em diferentes direções e com diferentes profundidades históricas” (...) num “território extremamente vasto”; (...) “sem origem ou data de nascimento”; (...) “nômade e exogâmico por natureza, o saber urbanístico deve a essa posição uma perene dificuldade de definição do seu próprio estatuto e de seu próprio lugar na sociedade, mas a ela deve também seu fascínio e sua extraordinária atualidade” (2006:61). 109

Concebendo o Urbanismo como um conjunto de práticas que redundam num “esforço contínuo de construção de uma transição entre imaginação coletiva e realidade e vice-versa” (2006:62}, verifica contribuições à sua formação vindas de diversas áreas tais como: práticas construtivas dos edifícios e infraestruturas; práticas dos agrimensores, militares, topógrafos; práticas médicas, higiênicas e esportivas; práticas jurídicas, policiais, administrativas, mercantis, fiscais; práticas dos ritos religiosos, festividades e sociabilidades; mitos, superstições, falsas crenças; aos manufaturados e aos produtos e sua produção. Quando Secchi elenca todas as questões que vão impactar nas decisões no projeto urbano, ele nos remete à citação de Lichnerowicz62, feita por Morin (2002:13):

Nossa Universidade atual forma, pelo mundo afora, uma proporção demasiado grande de especialistas em disciplinas predeterminadas, portanto artificialmente delimitadas, enquanto uma grande parte das atividades sociais, como o próprio desenvolvimento da ciência, exige homens capazes de um ângulo de visão muito mais amplo e, ao mesmo tempo, de um enfoque dos problemas em profundidade, além de novos progressos que transgridam as fronteiras históricas das disciplinas.

Imaginamos qual a possibilidade, num projeto urbano, no estado de desenvolvimento atual do conhecimento, de atender de forma equânime a todas as questões consideradas por Secchi. É essa dificuldade do todo difícil, já mencionada por Venturi, que nos leva a entender que, a partir do enfoque dos princípios morinianos da complexidade, poderemos, de forma compartilhada, chegar a propostas mais ade62 André Lichnerowicz

quadas a um mundo em constante transformação.

[1915 –1998) foi um destacado matemá-

Secchi observa que, no século XX, tal como as outras disciplinas, o

tico francês cuja

Urbanismo procurou delimitar e definir de maneira rigorosa o seu

fórmula criada em 1963, nomeada em

objeto de estudo, codificar sua linguagem e institucionalizar suas

sua homenagem, é

práticas, numa tentativa de construir uma distância crítica entre

uma equação que

imaginação e fantasia. Foi estabelecida, também, uma série de nor-

analisa os complexos espaços veto-

mas e legislações urbanísticas, espécie de autocontrole, desconhe-

riais.

cido em outras áreas disciplinares. O auge destas transformações

110

se situa no período entre as duas guerras do século XX, quando os urbanistas acreditavam na eficácia de suas práticas e de seu saber, propondo à sociedade a “Carta de Atenas”, para um “futuro melhor para as cidades” (2006:64-65). Por volta dos anos 30, no século XX, o futuro das cidades tendeu, em grande parte dos casos, a identificar-se com as extensas regiões metropolitanas e não se demonstrou observável em termos simples, tendendo, segundo Secchi, para uma “complexidade (que) parece necessitar ao mesmo tempo, de um maior nível de abstração e de uma maior precisão”. A partir dos anos 60, produziu-se uma mudança nas ciências sociais, com um retorno à experiência como fonte primária do conhecimento. Muitas disciplinas seguiram este caminho, e para os urbanistas isto significou “estudar as relações entre o mundo dos objetos e o dos sujeitos” (2006:148), redefinindo o seu próprio objeto. Contudo, para esse retorno à experiência, o autor considera que é preciso caminhar na cidade, vendo e analisando sua constante mutação, constituindo-se numa operação complexa e de dificuldade na análise dos dados. Secchi estabelece algumas condições indispensáveis para essa observação: Quanto ao urbanista: —

educar o olhar;



ver e fazer ver como a cidade é feita;



interrogar-se sobre como poderia ser feita;



observar os locais onde se desenvolvem as práticas sociais;



observar os materiais urbanos na interação social. Quanto aos materiais urbanos:



atentar para suas características dimensionais, materiais, tipológicas; seu estado de conservação, manutenção e degradação; sua adaptabilidade e sua possibilidade de transformação. Quanto aos atores envolvidos:



entrar em contato com as práticas sociais tal qual são vividas, narradas pelos próprios;



apreender suas diferentes temporalidades;



reconstituir suas micro-histórias;



reconhecer seus mitos e imagens; 111



registrar o que para eles possa se constituir como obstáculos ao completo desenvolvimento dos seus projetos individuais e coletivos. Atente-se que nesta sua proposta, todas as informações levantadas passam pelo filtro do autor, que vai dirigir o processo. Na verdade, apesar de ser um processo que já caminhou muito em relação à universalidade proposta pelo paradigma universal modernista, ainda vai depender da intencionalidade do autor. O que Morin considera importante neste ponto é a tomada conjunta de decisões. Secchi interpreta que a grande dificuldade estaria na conjunção entre o mundo dos objetos urbanos e os projetos de vida dos sujeitos que os utilizam e habitam. Considera também, que por muito tempo este foi um aspecto subentendido, pressuposto por evidência ideológica, sem distinguir o saber contextual daquilo que pertence à vivência dos indivíduos ou dos grupos. Para ele, retomar a experiência denota redescobrir o sentido das coisas através dos próprios sentidos

63 Ausência de conexão entre os elementos ou sequência de

do corpo. Destaca que “a modernidade havia expropriado a cidade da presença do corpo; a fenomenologia da contemporaneidade a reco-

frases justapostas,

loca no centro da experiência” (2006:150). Ressalta também os riscos

sem conjunção coor-

da “miopia ético-intelectual”, possibilitada pela concentração da

denativa. “Tomada

atenção no interior, sem as ligações com o mundo externo. Para ele

posteriormente como uma metáfora

este aspecto se resolveria num distanciamento crítico.

de ordem política, a parataxe transcendeu de vez o campo

Todavia, para vencer os pretensos universalismos da cidade mo-

da sintaxe para

derna, Secchi preconiza que, além do distanciamento crítico há

inscrever-se em uma

que estabelecer um novo estilo de análise, uma nova organização

esfera muito mais

discursiva e novas figuras, explorando situações variadas em uma

ampla de discussão. Adorno, por exem-

perspectiva que rejeita a unificação, a codificação, a redução formal

plo, ao analisar a

e linguística, a generalidade. “Temas reciprocamente cruzados e que

poesia de Hölderlin,

não podem ser separados uns dos outros, tais como a conservação

considera os usos da parataxe como

dos centros antigos, a manutenção e requalificação das periferias da

desordens artísticas,

cidade moderna, a construção de novos espaços de moradia ou de

que se esquivam à

novas infraestruturas e equipamentos, que se tornam novos luga-

hierarquia lógica da sintaxe subordi-

res de sociabilidade, solicitam dispositivos projetuais parcialmente

nativa” [em Ricardo

diferentes nos diversos lugares e nas diversas partes da cidade e do

da Silva Sobreira,

território...”(2006:155), mas disso deve resultar uma cidade concei-

A escrita paratática e

tualmente unitária. Para tal, sugere que, na cidade contemporânea,

pós-moderna de Esdras do Nascimento e Sam

se confie ao espaço aberto a missão de “dar forma a cidade, miti-

Shepard, in ESTUDOS

gando-lhe a fragmentação e a aproximação paratática63” (2006:165),

LINGUÍSTICOS, São

definindo assim seu caráter de material urbano fundamental, que

Paulo, 37 (3): 349358, set.-dez. 2008,

carece de ligações. Por outro lado, o autor define os fragmentos da

p. 350]

cidade contemporânea como elementos de um sistema aberto, que

112

se estabelecem por repetição, conexão ou composição. Secchi usa o jogo de varetas (Shangai) como figura para estabelecer como se deve proceder frente ao projeto da cidade contemporânea. Neste jogo, varetas finas, de diversas cores, correspondentes a diversos valores, devem ser jogadas na superfície de forma aleatória. Estabelecida a configuração, cada jogador deve retirar varetas, sem mover as outras, sob pena de parar a jogada. O objetivo é maximizar o número de pontos somados por cada jogador e suas estratégias, num tempo estruturado pelo jogo, de acordo com as regras e limites. Assim como na cidade contemporânea, cada jogador “é continuamente posto de frente ao problema do antes e do depois, da prioridade e do valor” (2006:170). Nestes últimos parágrafos Secchi apresenta alguns pontos importantes a se observar. Primeiramente, a mudança para a experiência como foco inicial, isto é, como fonte das informações que Morin considera o ponto de partida. Ao fazer recomendações sobre as condições necessárias para a observação e o levantamento das informações, Secchi considera a arquitetura como centro, ou seja, toda a organização do caminhar na cidade parte de pressupostos definidos neste campo disciplinar, quando o observador já tem uma lista das informações que deve conseguir junto aos atores envolvidos. Acreditamos que neste ponto resida, talvez, uma distinção importante entre os pensamentos de Secchi e Morin. Examinemos o elenco de interações destacadas por Morin, em analogia à cosmogênese: —

supõem elementos, seres ou objetos materiais, que podem encontrar-se ou configurar-se no mesmo espaço;



supõem condições de encontro, ou seja, agitação, turbulência, fluxos contrários etc.



obedecem a determinações/imposições que dependem da natureza dos elementos, objetos ou seres que se encontram;



tornam-se, em certas condições, inter-relações (associações, ligações, combinações, comunicação, etc.), ou seja, dão origem a fenômenos de organização. A partir daí, podemos verificar que todas as ações propostas por Secchi se encaixam nessas condições morinianas, exceto pela necessidade da indeterminação, que vai permitir o acaso das condições de encontro, fundamental no processo complexo, para fazer emergir novas qualidades. Mas, ao propor o jogo de varetas, Secchi restabelece essa condição na definição do processo. 113

Considerando o futuro, Secchi nos chama atenção para algumas previsões no contexto da cidade: uma conscientização cada vez maior das nossas responsabilidades em relação ao ambiente e à mobilidade, de complexidade crescente; tanto relativa aos fluxos de comunicação geográfica entre os polos urbanos, como considerando a comunicação virtual com interações entre os dois níveis, como resultado e causa de uma “nova geografia de valores posicionais”. Atenta também para as interdependências entre espaço público e privado, ressaltando a tendência da diminuição da gestão pública contraposta ao aumento da gestão privada para os primeiros, o que deve redundar em processos mais contundentes de inclusão-exclusão (2006:180). Ressalta ainda que “é difícil pensar o futuro da cidade sem pensar também o futuro da sociedade, da economia e da política, campos nos quais a contemporaneidade é marcada por profundas mudanças, mas também por forte inércia” (2006:178). Mais uma vez, o reconhecimento do princípio da dialógica no contexto da cidade. Embora Secchi considere que modificações nas cidades contemporâneas dificilmente possam ser pensadas em médio prazo, prevê a “necessidade de um novo projeto”, sem, contudo, pretender substituir o “ complexo de instrumentos aperfeiçoados em um arco de experiências plurisseculares por um só único e principal modo de construção do projeto da cidade e do plano” (2006:176). Considera que a cidade contemporânea demonstra “a obsolescência e desativação temática e conceitual” do Urbanismo do século XX. Entende que o problema não está relacionado aos instrumentos, e defende uma estratégia que se utilize de cenários e mapas estratégicos. Para ele, isto não se caracteriza como uma previsão nem como realização de desejos, mas como um processo que trabalha com a aceitação da nossa ignorância e com os diversos fenômenos que existem na cidade, na economia e na sociedade, “para esclarecer suas consequências”. Tal procedimento indica que se questione de modo não banal, “as relações que se estabelecem entre as diferentes escalas, entre populações e territórios pertinentes” (2006:175-178). Reacende aqui as observações morinianas que rechaçam o pensamento único e nos avalia cegos, ignorantes, por causa do saber segmentado. Ao definir estratégia, Secchi se aproxima da complexidade moriniana, considerando-a como um modo de coordenar, no espaço e no tempo, um conjunto de ações conduzidas por uma pluralidade de atores movidos por interesses específicos e dotados de competências especí114

ficas, com autonomia ou com uma coordenação não muito explicitada, e que vai necessitar do consenso para poder resultar em realizações futuras. Avalia, ainda, o consenso como fundamental, devendo “configurar-se como projeto, mecanismo e conjunto de políticas, que possam ser reconhecidas e aceitas”. Segundo ele, vai existir neste processo uma multiplicidade de racionalidades, firmadas de modo irredutível pelos respectivos protagonistas. Como cenários e estratégias nos falam do futuro, que não é mensurável, o processo se torna muito difícil: são esperados os conflitos e as falsificações; que, no entanto, por esta mesma razão se tornam muito importantes. Secchi aponta que, para tal, é preciso limitarmo-nos aos “cenários parciais, pedaços de um quadro geral”, considerando que como fragmentos, sua posição pode mudar de marginais e essenciais (2006: 179), ao que adicionamos a necessidade das relações entre as partes e o todo, entre o todo e as partes sem descuidar das emergências que vão surgir dessas relações. O zoneamento, alvo de críticas contundentes, não é, segundo Secchi, a causa da segregação na cidade europeia nos séculos XIX e XX. Ele considera que a forma da cidade mudou seguindo as mudanças estabelecidas pela reconfiguração dos sistemas de solidariedade e intolerância, de compatibilidades e incompatibilidades, levando-se em conta, nestes polos, as situações de higiene, ruídos, religiões, étnicas, estilos de vida, níveis de renda, costumes, consumo, habitação. A reurbanização passou, através dessa reconfiguração, a expulsar aquilo que não se adequava aos novos códigos renovados. Pode-se considerar que Secchi não deixa de ter razão, contudo há que se pensar também na origem dessas reconfigurações, que certamente seguiam tendências estabelecidas pelos países centrais, no processo globalizador e que reverberaram de formas diversas em todo o mundo. Secchi considera que embora a dispersão e a fragmentação da cidade contemporânea já se caracterizem como uma resposta aos problemas instituídos pela cidade moderna, não se configuram como sua evolução. Para tal, é importante uma resposta plural, através de constantes explorações projetuais, sem tentar estabelecer obrigações e proibições por meio de normas, mas sim trabalhar com a dúvida e a exploração, a experimentação; “em projetos mais abertos e de mecanismos mais articulados e estratificados”, em uma base que possa ser considerada “um pacto entre a administração e os cidadãos” (2006:185).

115

Afirma que o Urbanismo não pode ser uma prática que aceite a tentativa de reduzir de maneira homogênea e quantitativa os valores que governam as construções e transformam as cidades, baseados no sistema financeiro, “na monetarização de cada elemento da cidade (...), na transformação do território da cidade em um imenso depósito de mercadorias substituíveis em imagem física do mercado”. Para ele, o urbanista deve permanecer em contínuo exercício de radical crítica social. Sinaliza para as dificuldades que esta postura pode gerar, indicando na diversidade das sociedades, aquelas menos estruturadas, e que os planos e projetos resultam em comportamentos sociais contraditórios, em ineficácia das administrações e mau funcionamento político, subentendidas as demandas parciais e setoriais que conseguem participar das trocas entre recursos econômicos e políticos (2006:185). Ao indicar a permanente crítica social ele estabelece como Morin um alerta para a degenerescência. Entretanto, no nosso exercício epistemológico, apostamos na crítica conjunta entre os profissionais de todos os saberes envolvidos no projeto, descentralizando a figura do arquiteto, permitindo, contudo a formação de um consenso que pode ser mais efetivo do que a critica parcelada de uma disciplina. Secchi destaca, por fim, que o Urbanismo se faz também pelos “textos que acompanham e atravessam as diversas formas do projeto da cidade e do território: descrevem, ilustram, demonstram, argumentam, sugerem, solicitam os imaginários coletivos e individuais”, e representam diferentes vozes (2006:187). É nossa proposta fazer emergir da sequência deste exercício, de forma coletiva, uma alternativa de trabalhar as questões levantadas por ele, e que se relacionam à teoria moriniana. Para tal, vale ressaltar algumas das interações entre este autor e os princípios e pressupostos morinianos, observando que: —

os princípios dialógicos e da interação dos conhecimentos estão na base das inter-relações disciplinares. Neste sentido, Secchi considera que o Urbanismo, sendo uma atividade que finca suas raízes na prática e na própria cultura, apresenta um trabalho como produto de uma equipe, remetendo a sujeitos coletivos vagamente identificáveis, que a nosso ver poderiam não só estar mais presentes como compartilhar as responsabilidades. Ele entende o Urbanismo como uma convergência de práticas e conhecimentos de longuíssima história, e aposta na crítica conjunta dos profissionais, nosso objetivo neste

116

trabalho. Assim como Koolhaas, critica a postura dos urbanistas indicando um excesso de formalização burocrática e normalização. Em relação ao princípio dialógico, conjugado com o princípio recursivo, opõe as figuras da continuidade, ligada à modernidade, e a da fragmentação, referente à contemporaneidade, considerando que hoje coabitam o mesmo espaço e que o fragmento, embora visto de início como uma libertação, vai se transformar em novos temores; —

adere aos princípios hologramático e sistêmico, primeiro ao relacionar a parte e o todo através da metáfora do corpo e, em seguida propondo observar a cidade com o olhar de longe e de perto alternadamente, pressuposto que vai trabalhar no projeto do Grand Paris, apresentado no item em sequência. Enfatiza na relação sistêmica a necessidade de trocas objeto/ambiente;



na relação do princípio de autonomia/dependência, coloca o urbanista entre a ética do poder ou a falta dela e a busca de um consenso. Examinando o seu texto (2006), já no início percebemos o destaque da incerteza, que ele referencia em Barthes64, e ao logo do texto enfatiza-a na comparação entre o simples e o complexo, da mesma forma que Morin. Introduz a contraposição entre a continuidade da modernidade e a complexidade contemporânea. Finalmente, ao comparar o

64 Barthes, R. Leçon. Leçon inaugurale de la chaire de sémio-

projeto ou processo de pesquisa ao processo jurídico, resume vários pressupostos morinianos tais como, a incerteza, o acaso, a participa-

logie litteraire du

ção, o trabalho e a decisão conjunta e a possibilidade de erro ou in-

Collège de France,

completude. Contudo, como julga difícil conjugar o mundo dos que

pronunciada em 7

usam e dos que projetam, vai trabalhar, na prática, com cenários e

de janeiro de 1977, em Paris. Editions

estatísticas que possibilitem organizar alguns consensos. O texto a

du Seuil, Paris, 1978

seguir é uma análise desta tentativa.

3.3.1

Os conceitos de Secchi na prática A possibilidade de avaliar, em um processo de trabalho, a correspondência desses conceitos análogos à teoria moriniana surgiu com o projeto Grand Paris, desenvolvido pelo Studio 9, de Bernardo Secchi e Paola Vigano. Atente-se que nossa intenção não foi proceder a uma análise do projeto, mas perceber, no contexto deste trabalho, que conceitos utilizados podem reforçar as referências de alguns pontos para nosso exercício.

65 http://observatoiregrandparis.files.wordpress.com/2008/11/

Inicialmente, fizemos uma leitura da problemática metodológica

competences-tot-

conforme tratada pelo Observatoire du Grand Paris65, uma pesqui-

-light.jpg

sa coordenada por: Laboratoire Architecture Anthropologie (LAA/ 117

ENSAPLV - l’École nationale supérieure d’architecture de Paris La Villette) que desenvolveu um gráfico que analisa em cada equipe as inter-relações disciplinares na participação dos diversos atores envolvidos no espaço urbano. Numa primeira observação a abordagem com a inclusão de diversos atores não foi significativa em relação à equipe do Studio 9. Examninando os gráficos realizados pela pesquisa para todas as equipes, constata-se inclusive que comparativamente, a equipe estudada é uma das que mais se concentra na área temática, que inclui Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo. Há, no entanto, um viés que se aproxima da complexidade - a modelização: Ao estudar melhor a proposta66, entendemos que a equipe internacional era formada por outras equipes que incluíam desde uma instituição de pesquisa de mercado, a PTV France, como também uma

66 http://observatoiregrandparis.org/ le-grand-paris/ les-equipes/equipe-studio-9/ e Secchi, B; Vigano, P, 2011.

Fig. 8

Análise

das relações interdisciplinares das equipes do Grand Paris 118

equipe do MIT-P-REX67 e, que se apresenta transdisciplinar, além de engenheiros alemães68 e mestrandos e doutorandos em Urbanismo69, que organizaram seminários participativos. As pesquisas se ocuparam de uma amplitude de questões consideráveis e envolveram uma diversidade de atores e, embora os documentos examinados só incluíssem resultados, pudemos aferir essa participação, sem, contudo, perceber uma apresentação metodológica do processo decisório. A equipe considera que o verdadeiro tema de uma visão do Grand Paris do futuro deve se relacionar à questão de como seus habitantes poderão viver juntos, satisfatoriamente, isto é, com uma melhoria da qualidade de vida, destacando os aspectos relativos ao meio ambiente, na redução do consumo de energia, no contraste das desigualdades e, fundamentalmente, nos aspectos de mobilidade. Segundo Secchi e Vigano, o livro que descreve o projeto é um testemunho das reflexões e resultados de pesquisas, não é um projeto, mas uma proposta. Foi uma resposta a requisição do governo francês às equipes para formalizar um “diagnóstico prospectivo, urbanístico e paisagístico, sobre o Grand Paris, num horizonte de 20, 30 e certamente 40 anos” (Gauthier, 2009:32). A equipe entendeu que os atores envolvidos, identificados na proposta realizada neste estágio preliminar, são numerosos; o tempo necessário à duração do desenvolvimento de um projeto, neste escopo, é longo e ainda existe a possibilidade de que novos eventos venham enriquecer a proposta. Virificamos que a proposta era um estudo preliminar prospectivo que além de respaldar, como suporte material, a construção da transformação e do desenvolvimento de Paris, pretende estabelecer a infraestrutura conceitual do debate e das decisões para o Grand Paris do futuro (2011:285). Neste sentido alguns conceitos da organização da proposta se aproximam como referencial do desenvolvimento 67 Project for Reclamation Excellence do MITUrban Planning

deste exercício epistemológico.

do Massachusetts

Eles entendem o resultado de seu projeto preliminar como uma fer-

Institute of Technology.

ramenta de conhecimento, estabelecendo então que a participação dos cidadãos se torna indispensável. O importante, para eles, nesta

68 Da Ingenieurbüro Hausladen GMBH

69 Da IUAV-Universitá de

primeira fase foi o encontro de equipes e pesquisadores convidados para workshops, organizados pelos mestrandos. Na fase seguinte, destacaram a concepção do projeto como uma ferramenta do conhe-

Venezia e do European

cimento. Do momento que são estabelecidas alternativas e que eles

Master in Urbanism

se colocam em abertura para novidades significativas, o resultado 119

desta apresentação de um projeto preliminar conjuga-se à proposta moriniana da informação como ponto de partida e de sistema aberto, que apresenta uma estrutura a ser trabalhada. Presumem que no século XXI, “todas as metrópoles estarão submetidas aos mesmos problemas, mencionados anteriormente, mas suas soluções devem se desenvolver de formas diferentes em razão das especificidades das estruturas institucionais, sociais, econômicas e espaciais” (2011:19). Os autores apontam que a especificidade de Paris se relaciona à sua história, tanto no presente como em relação ao imaginário coletivo e individual de seus habitantes. Paris se tornou ao longo do século XX uma megalópole. Tornou-se também objeto de pesquisas sistemáticas de diferentes disciplinas. Campo de expressão de muitas formas artísticas, do teatro aos filmes, à música, à dança, as grandes metrópoles adentram o nosso cotidiano e influenciam nosso comportamento. Esse imaginário, tantas vezes menosprezado, mas que é considerado pelos autores passível de se constituir em obstáculo a propostas inovadoras. Neste sentido, eles propõem a construção de cenários como veículo de exploração do devir, como uma interrogação feita na incerteza, mas uma interrogação baseada em conceitos estabelecidos, ou seja, em cenários possíveis. Neste ponto, retornemos a Morin (2010b:220), que salienta que nós usamos estratégias, tanto individualmente como em conjunto para 70 Krigagem é um método de regressão usado em geoesta-

alcançar um objetivo; ”imaginamos nossas ações em função das certezas (ordem), das incertezas (desordem, eventualidades) e das

tística para aproxi-

nossas aptidões para organizar o pensamento (estratégias cogniti-

mar ou interpolar

vas, roteiro de ação), e agimos, modificando, eventualmente, nos-

dados. A teoria de

sas decisões ou caminhos em função das informações que surgem

Kriging foi desenvolvida, com base

durante o processo”. Para Morin, o ato de organizar pressupõe

nos trabalhos de

estratégias. Para a equipe do projeto também. Neste sentido, Secchi

Daniel G. Krige, pelo

e Vigano indicam, primeiramente, a estratégia cognitiva de conhecer

matemático francês Georges Matheron,

Paris passo a passo, nos mesmos parâmetros que Secchi recomenda

no começo dos anos

para a experiência como fonte primária do conhecimento, já obser-

60. A estimação com

vada anteriormente neste texto.

base em apenas um atributo insere-se no âmbito da Krigagem; a estimação de um

Na prática, eles recortaram um determinado espaço parisiense e

atributo à custa de

construíram a partir de suas observações, representações de cada

outros atributos insere-se no âmbito

fator analisado, recomendando sempre a observação do conjunto.

da co-krigagem

Na busca de uma precisão utilizaram-se do método de krigagem70,

120

para deduzir por interpolação as variáveis do objeto de estudo. O uso intenso da estatística por amostragem é um dos pontos que Morin interpreta como um quantitativo que pode ser por vezes enganador, por vezes tendencioso. Segundo ele, “a dominação da estatística faz reinar a probabilidade, ou seja, as regulações e as médias das populações” (2012a). Neste ponto, discordam. Numa outra análise, interagindo da parte ao todo, no sentido de propiciar as interações, a equipe representou Paris em vista aérea, decupando seu suporte territorial, sua topografia, considerando a porosidade dos cursos d’água, das infraestruturas de mobilidade, da rede rodoviária, da rede ferroviária, dos corredores ecológicos, do transporte público. Analisaram a Paris alta e a Paris baixa, edifícios comerciais, agrícolas e industriais. Decuparam as partes em partes. Mas, voltando a considerar os conjuntos e constatando suas inter- relações, chegaram a um resultado: dentro de certas condições, observaram que um conjunto de partículas que se deslocam no tecido urbano, em um nível macroscópico, comporta-se como o fluir de um líquido em um meio poroso. Esta constatação transformou a porosidade/permeabilidade no conceito que guiou a equipe para o trabalho (2011:47). Num parêntesis, essa constatação nos remeteu ao desprezo de Le Corbusier pelo caminho da mula, na construção de Paris71. Como um fluido a mula, ou qualquer animal, busca sempre o caminho mais natural, o menos agressivo ao ambiente, e mais ainda o que lhe permita mais alternativas de escolhas. Considerando os dados levantados, a literatura mundial sobre as grandes metrópoles e as especificidades da aglomeração parisiense, tais como suas características físicas, sociais, econômicas, institucionais, além de suas potencialidades e oportunidades, a equipe construiu quatro cenários, cada um focando diferentes atores, diferentes grupos de habitantes, diferentes territórios, mas no conjunto, todos 71 “A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabeça oca e

eles concernentes à totalidade parisiense. O objetivo era examinar a exploração dos futuros possíveis, considerando prováveis obstáculos

distraída [...] A mula

que impedissem o imaginado. Neste sentido, o objetivo nos parece

traçou todas as

o de vencer as incertezas, relacionando-se ao conceito moriniano

cidades do continen-

que indica que ”a complexidade é a incerteza no seio de sistemas

te. Paris também, infelizmente.” [Le

ricamente organizados, ligados a certa mistura de ordem/desordem”

Corbusier, 1992:05]

(Morin, 2011a:35).

121

Entenderam que o debate deveria partir daí, isto é, que individualmente cada cenário vai repercutir de forma diferente, mas coletivamente, todos os cenários e suas consequências precisavam estar implicados (Secchi e Vigano:285). Cada cenário proposto pela equipe é uma interrogação sobre os temas que ela considera importantes enfrentar. Contudo, também construíram um cenário zero, que é o questionamento das consequências dos projetos em curso na região parisiense. Seus atores se relacionam aos diversos níveis institucionais e funcionais, desde o Estado e suas subdivisões ao pequeno proprietário de um espaço público-privado. Apresentam uma diversidade grande de competência, de poder, de projeto e de escala e a tentativa é entender o todo e suas inter-relações. Concluíram observando diversas interações, algumas delas conflitantes entre os territórios, ideias e objetivos, como, por exemplo, no caso dos transportes (2001:65). Com projetos complexos, frequentemente de grande envergadura, as instituições não comungam em suas estratégias. Criam conflitos que obrigam a equipe a tentar compreender suas coerências e organização. Através desta compreensão, eles organizaram os projetos em cinco temas implicitamente compartilhados. Neste ponto opera-se um circuito tetralógico, ou seja, a percepção da desordem no cenário zero. Isso leva a uma organização nos cinco temas, estabelecendo como ordenação, dinâmicas mais complexas e mais complicadas que somente as relações centro-periferia, analisadas nos projetos observados e que necessitam de um projeto que as represente (2011:67). A partir deste cenário de reconhecimento prospectivo e interativo do existente, estabelecem seus quatro cenários projetuais. O cenário um (1) vai estudar as questões da situação energética 100% durável, considerando que as metrópoles, após-Kyoto, se inserem no problema global em situações geográficas e climáticas específicas. Em função disso, a equipe se questionou sobre a possibilidade de considerar a Região de Ile-de-France energeticamente autossuficiente. Procuraram exemplos bem sucedidos, como a circunscrição de Munique, e constatando sua possibilidade, mais uma vez, estabeleceram várias estratégias relativas ao consumo atual, ao status de isolamento térmico dos edifícios, às possibilidades de produção local da energia e as combinaram em exercícios prospectivos. Assim, a equipe reunida partiu de pressupostos, determinou estratégias e as testou em exercícios prospectivos que exploram as oportunidades/possibilidades de uma reciclagem do patrimônio bem como uma densificação do teci122

do suburbano, ambas ligadas a uma otimização do consumo energético. Neste exemplo nós percebemos tanto a desordenação de uma ordem anterior para introdução de uma nova organização, como a criação do novo em áreas existentes, numa “política de densificação definida pelo grande espaço suburbano do Grand Paris” (2011:95). Aqui só existe uma questão que o mundo já está enfrentando: a questão climática extrapola os territórios específicos e é um dos conceitos mais importantes da complexidade moriniana da ligação da parte ao todo e do todo à parte. Como exemplo transplantado para a nossa realidade, observe-se o conflito São Paulo - Rio de Janeiro em função do uso d’água do rio Paraíba do Sul72, em 2014. O cenário dois (2) vai estudar exatamente este problema: viver com água. E neste ponto Secchi e Vigano avaliam que a água a cada dia mais, se transforma num recurso que vai gerar conflitos (como já ocorre hoje), e, como diz Morin, “ela requer dialógicas e negociações que extrapolam os perímetros da comunidade, da região ou do país” (2011a:105). O cenário viver com água se interroga sobre as possibilidades de evitar todos os riscos, ou vencer algumas incertezas e de elaborar estratégias para conviver com aquelas que não se conseguiu ultrapassar. Mais uma vez, a equipe considera estratégias, três orientações que podem alimentar discussões e trocas interessantes com especialistas e com responsáveis pelas políticas territoriais. O cenário três (3) remete a um sistema ecológico e de lazer a partir do Dross, ou seja, espaços residuais nos quais se pode reconhecer a mudança, o que os autores denominam de “porosidade de ruptura”, e que não se resumem aos espaços de transformação da atualidade, mas aqueles de um futuro estabelecido para 15 a 20 anos. Como exemplo, espaços industriais e comerciais, com plataformas ferroviárias abandonadas ou subutilizadas. Toda a pesquisa foi feita considerando as vistas aéreas do território, tentando estabelecer uma organização classificatória dessas áreas, que permitisse fazer emergir os temas geográficos, ou seja, a porosidade que poderia nascer de uma transformação importante e radical. Mais uma vez, a equipe fez análises que iam do todo às partes e 72 http://agenciabrasil. ebc.com.br/geral/

vice-versa no sentido de definir as interações e possibilidades destas

noticia/2014-03/

áreas com o todo e com o conceito de porosidade. Contudo, neste

alckmin-anuncia-

ponto, não foi mencionada uma discussão ou workshop que pudes-

interligacao-

se contribuir melhor para a delimitação destas áreas, embora a sua

de-represaspara-garantir-

definição fosse servir como informação de partida para a discussão

abastecimento-de-sp

dos cenários. 123

O quarto cenário aborda o que, em nossa opinião, começa a se configurar como um dos mais graves problemas urbanísticos deste século: a mobilidade. A equipe também concluiu no mesmo sentido:

Uma cidade porosa e permeável requer uma concepção dos problemas da mobilidade, inovadores e radicalmente diferentes daqueles do passado. Acontece, como em outros domínios, a partir de uma ruptura conceitual importante e de uma série de ações difíceis, mas talvez, necessárias. As consequências de um adiamento ou atraso podem ser, senão dramáticas, ao menos graves. (Secchi, Vigano, 2011:129)

Como critério de análise, os autores estabelecem uma interação com a questão energética, considerando que a alta do preço da energia pode implicar tanto na segregação territorial, levando em conta custos de transporte, como no aumento da tendência à verticalização, no sentido da concentração e da horizontalização dos transportes de grande velocidade. Analisam, na perspectiva do sujeito no seu ambiente, quais os critérios que poderiam significar qualidade de vida em relação à: moradia, transporte, tempo de deslocamento e local de trabalho. Concluem na construção de cenários da mobilidade, condicionando-os aos problemas levantados e suas possíveis soluções, condicionadas a fatores e escolhas diferenciadas, Observam que, como vivemos numa sociedade marcada pela complexidade, onde cada pessoa é livre para suas escolhas, a otimização se faz por um sistema de equações de variáveis, com possibilidade de influenciar os indivíduos (2011:133). A equipe sugere que o cenário se estabeleça pela substituição do sistema vertical e hierárquico da mobilidade, por um sistema isotrópico73 e horizontal, com passagens fluidas de uma condição 73 Diz-se do meio

à outra.

cujas propriedades físicas são iguais,

Neste ponto do trabalho desta equipe destacamos o retorno ao sujei-

qualquer que seja a

to integrado ao objeto, ou seja, não existe uma solução, mas vários

direção considerada. http://aulete.uol.

cenários possíveis, e uma possibilidade de interação entre os sujeitos

com.br

e soluções.

124

Com os temas e os problemas examinados nos quatro cenários, eles se dispuseram a avaliar a viabilidade de um projeto radical, considerando o objetivo de estabelecer um suporte ao desenvolvimento de Paris, no sentido amplo de sua definição: ambiental, infraestrutural e urbana, para que o ambiente da vida dos seus habitantes se tornasse melhor. Sobre isso declararam: “a ideia de um projeto radical não se refere à novidade, mas ao fato da tomada de consciência que nós vivemos atualmente uma época de crise e de transição, que nós assistimos à emergência de paradigmas inéditos”’ (Secchi e Vigano, 2011:147), exatamente como nossa proposta. Neste sentido, eles também indicam que a inovação não se reduz aos produtos ou técnicas, nem aos processos institucionais, mas constitui-se em uma mudança de perspectiva no pensamento da cidade contemporânea. Os critérios de trabalho surgiram do debate suscitado pelos próprios cenários, em seus temas e problemas, considerando-se o seu exame integrado, não separado, onde integrado significa soluções relacionadas à grande escala, com a participação de diferentes disciplinas e competências e dos atores envolvidos. Das análises do passo a passo extraíram alguns de seus problemas, como por exemplo, a segregação espacial e, mais ainda, enclaves territoriais que se tornavam barreiras intransponíveis. Atentaram, nos subúrbios, para a auto-organização dos imigrantes que se juntam no território estrangeiro, buscando solidariedades e ao mesmo tempo se relacionam, internacionalmente com o território de origem através da internet. Estudaram a formação da população e, através da representação cartográfica, demonstraram as segregações existentes. Para o projeto radical, consideraram o suporte, ou o significado territorial necessário para o devir; a esponja, caracterizada pelos locais de apropriação histórica, as características topográficas, as representações do imaginário e a rede capilar de percursos. Finalmente, a malha que vai servir de base para a isotropia proposta, com a distribuição de nós assegurando uma acessibilidade difusa e imparcial. A partir de todas as informações e debates, traçaram ainda, quatro estratégias propositivas para os problemas levantados. Cada uma delas estabeleceu pontos que teriam que ser observados na proposta de um projeto radical, cada uma delas considerou os dados das fases anteriores e ainda definiu outras aproximações e novos critérios: cada uma das estratégias traz uma proposta, que deve ser sempre interligada às outras. São propostas com uma quantidade 125

de dados considerável, com proposições baseadas em todo o processo. Não cabe aqui, descrever esses resultados, mas perceber que podemos reconhecer neste trabalho, ligações evidentes com a teoria moriniana, principalmente em relação ao circuito tetralógico e do processo em espiral, no qual o retorno ao começo, na apresentação de cada cenário, é precisamente o que afasta do começo na proposição das quatro estratégias para um projeto radical. Nosso objetivo é destacar que os caminhos de Secchi e Morin, ainda que separados, apresentam convergências, no que tange à intenção de fazer do processo de trabalho uma aprendizagem para os que dele participam; de reinstalar os valores desejados em cada caso específico, de reconhecer a imprevisibilidade, de acreditar no trabalho cada vez mais partilhado, de encontrar novas solidariedades, de não ter uma única solução e sim trabalhar com alternativas, de partir da desordem para a organização, para que a ordem se estabeleça.

3.4

A globalização, as cidades e a complexidade, por Sassen A pesquisa da equipe de Sassen (1991) sobre as cidades globais traz conceitos relativos à modificações na economia mundial, com suas correspondências na complexidade dos espaços urbanos, que justificam nossa alternativa epistemológica relativa ao pensamento moriniano. Em uma de suas últimas publicações, Morin indica que “quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais: ele se degrada, se desintegra, ou então se revela capaz de criar um metassistema capaz de lidar com seus problemas” (2012a:47). O autor acredita, com base em vários indícios, que o sistema Terra se encontra incapaz de se organizar para tratar de seus problemas fundamentais. Um destes indícios se refere à economia mundial desprovida de um sistema de controle/regulação. Sassen (2001:105) nos apresenta uma visão das cidades globais, estudando a mudança ocorrida nos anos 80 e 90 do século XX, derivada da privatização, da desregulamentação, da abertura das economias às empresas estrangeiras e da participação crescente de atores nacionais no mercado global. Ela nos demonstra que desses movimentos econômicos decorrem reorganizações nos territórios do mundo, e deste contexto surgem as cidades globais. Todo este movimento transforma as interações mundiais, desde o local até o global.

126

Considera que as atividades de dispersão econômica apresentaram processos específicos que atuaram em conjunto: —

reorganização da produção;



desenvolvimento das funções centrais de gerenciamento, controle, com desenvolvimento paralelo das empresas prestadoras de serviço para o gerenciamento da produção;



consolidação do processo eletrônico de comunicação que permitiu que esses serviços pudessem ser prestados à distância, facilitando o gerenciamento e o controle das atividades produtivas e financeiras;



as telecomunicações e tecnologias da informação, dispersando e concentrando simultaneamente, em função das necessidades de instalação e manutenção dos centros da rede necessária à globalização. Morin acredita que o mundo já se encontra em metamorfose, ainda que pouco percebida. Acredita, mesmo, que a globalização produziu a infraestrutura de uma sociedade mundo, na qual nós podemos considerar a terra como uma pátria, sem que isto negue as pátrias existentes, mas, ao contrário, as englobe e proteja. Contudo ele considera que essa consciência ainda se acha bastante deficiente. Pensa que há, entre as soberanias nacionais, uma contradição competitiva ainda presente e aponta a necessidade de autoridades supranacionais para tratar dos problemas vitais do planeta que, se persistirem, podem levar a destruições consideráveis. Para tornar a metamorfose criativa propõe caminhos alternativos, dentre eles a mundialização/desmundialização (2012a:53), que significa multiplicar os processos de comunicação cultural, no sentido da consciência da Terra como pátria, ou seja, o desenvolvimento do local dentro do global. Para tal recomenda um retorno da autoridade de Estado, corroída pelo processo de privatização/desregulamentação, preconizando neste sentido, a democracia participativa, entre outras estratégias. Ele considera que a desmundialização constitui um antagonismo necessário, quer dizer, complementar à mundialização e, para que seja possível observar em conjunto os dois antagonismos é preciso trabalhar dialogicamente, ou seja, examinando conjuntamente as duas possibilidades antagônicas, o local e o global, fazendo a interligação destas duas posições. Se o objetivo deste trabalho é referenciar a sua teoria em autores que trabalhem com conceitos paralelos ou com outros, complementares, 127

consideramos que da análise de Sassen sobre as cidades globais poderíamos destacar tanto a globalização que permite a infraestrutura da sociedade mundo, como os conceitos que indicam a complexidade do real, que surge neste processo, principalmente em relação às cidades, ou seja, ao local. Sassen observa que a geografia e a composição da economia globalizada mudaram para produzir uma dualidade complexa: a espacialidade dispersa e uma organização da atividade econômica concentrada e globalizada (1991:03). Sua pesquisa relacionou-se a três cidades chaves: Nova Iorque, Londres e Tóquio. Mas ao final do trabalho, ela se questiona : “há um novo tipo de hierarquização urbana, um novo sistema urbano surgindo como consequência da globalização ou essas transformações afetam somente estas cidades” (323:1991)? Nós acreditamos que os conceitos e mecanismos estabelecidos no processo de globalização que ela analisa trouxeram transformações radicais, que reverberaram de diferentes maneiras em vários territórios urbanos. Para entender as acentuadas mudanças nas principais cidades hoje, é necessário examinar os principais aspectos dessa nova economia mundial: desenvolvimento acentuado do mercado financeiro; expansão do comércio de serviços; a reorganização dos investimentos internacionais, considerando as formas de internacionalização da produção e da comercialização de produtos, canais de serviços e concentração econômica continuada. Nas cidades pesqui74 Professor da Gradu-

sadas, todo esse processo impôs formas específicas de organização

ate School of Archi-

espacial, com taxas extremas de densidade de ocupação e de com-

tecture, Planning and

plexidade de transações. Mas os modelos se expandiram em muitos

Preservation - Colum-

territórios, conforme vai ser explicitado na análise complementar de

bia University, em seu texto no projeto

Santos, no próximo item.

Extra State Craft - http://extrastatecraft.net/Projects/ Territory

Destaque-se, no entanto, que uma das grandes descontinuidades da economia mundial foi a dispersão territorial da produção, que antes era considerada um fator líder de crescimento geográfico. Fábricas foram responsáveis pelo crescimento e consolidação de cidades em

75 http://economia. estadao.com.br/

todo o mundo. O impacto da globalização foi grande, criando vazios

noticias/economia-

territoriais importantes. No escopo deste texto, Detroit torna-se

geral,detroit-pede-

exemplo. Jordan Carver74 informa que a população de Detroit enco-

falencia-a-maior-

lheu 25% e o desemprego estava em 11,1% em 2012. Como a cidade

da-historia-emuma-cidade-nos-

entrou com o pedido de concordata na corte americana em 201375,

eua,159545,0.htm

estima-se que a situação tenha piorado.

128

Fig. 9

Propriedades

abandonadas em Detroit, em 2012

Fig. 10 Fábrica desativada76

76 http://www.noticias automotivas.com.br/ motor-city-detroitnao-conseguepagar-dividas-epede-falencia/ 77 http://blogs. denverpost.com/ captued/2011/02/07/ captured-the-ruinsof-detroit/2672/

Fig 11 Michigan Central Station77 129

Fig. 12 Outra fábrica fechada78

Fig. 13 A destruição em pontos da cidade79

Mas Detroit não é a única cidade que se desintegrou em função dos novos processos econômicos. É simbólica, no sentido de representar dois extremos, em dois contextos históricos e econômicos distintos. Considere-se ainda, que o complexo rearranjo da organização da produção também propicia um esquema de produção baseado na montagem de elementos e/ou subconjuntos criando novos esquemas de trabalho na produção dispersada, que reforçam, num outro “sentido” o trabalho de uma mão de obra menos especializada em outras cidades; além do surgimento de um outro tipo de planta industrial. 78 http://veja.abril.

Assim, não só a mobilidade do capital, mas também a multiplicidade

com.br/noticia/

de organização estrutural podem resultar em outras necessidades

economia/terra-

na área urbana, agora não só nas cidades globais, mas também na-

arrasada

quelas que passam a integrar o sistema de produção dispersada.

79 http://www.bbc. com/news/magazi-

Sassen atenta que se pode declarar que, numa imagem mais simples

ne-18271118

do que a complexidade que a afirmação envolve, as cidades globais,

130

com a organização econômica baseada no setor financeiro, tomaram a liderança do complexo industrial centrado na indústria automobilística sem, contudo, tirar toda força deste setor. “As formas sociopolíticas, pelas quais o novo regime é implementado e se constitui, remontam para um novo alinhamento das classes, para uma nova norma de consumo onde a provisão de bens públicos e de previdência do Estado não são mais tão centrais quanto o eram no período dominado pela produção de massa” (1991:338) O foco no processo de trabalho atual, com todas as transformações e combinações redundantes, contêm os elementos de um novo tipo de cidade, com ligações neste processo global. Outra questão que influencia a transformação e a dispersão espacial é a entrada de grandes corporações nos negócios de serviços e logística, antes dominados por empresas pequenas ou unidirecionadas. Disso derivou a centralização acelerada do planejamento das franquias no mercado mundial, desdobrada em pontos de venda ou serviços, conectados ao centro, como por exemplo, restaurantes, hotéis, vários tipos de serviços de reparo, cinemas e lojas de aluguel de carros, foto-processamento, e varejo; todas elas se transformando em foco dos empreendedores locais das outras cidades mundiais. Toda essa transformação redundou em um processo de extremas desigualdades, tanto no setor de competição entre empresas, como no rearranjo do mercado de trabalho, afetando diretamente a parte de trabalhadores menos especializados que passou a ter grande dificuldade para sobreviver nestas três cidades estudadas, levando à outra questão: até que ponto esta situação torna-se insustentável? Consolidou-se, no processo, a incerteza e a perspectiva de crise. As desigualdades se espalharam pelo mundo no modelo dos centros da globalização, gerando perspectivas de conflitos. Já não há certezas 80 Bluestone, Barry,

a considerar.

and Bennett Harrison. The Deindustrialization of America.

O fechamento de empresas, por exemplo, levou à eliminação de

New York: Basic

aproximadamente 22 milhões de empregos nos Estados Unidos,

Books. pp. 29, 1982

entre 1969 e 197680. No Reino Unido, houve um declínio de 25% no

81 When complexity

emprego industrial de 1978 a 1985 (Sassen. 1991:34). Deste tempo do

produces brutality, pu-

estudo até hoje, as desigualdades se intensificaram: Sassen81, em ar-

blicado na internet

tigo mais recente, constata, ainda, que o desenvolvimento econômi-

em 06/2010, http://

co dos países líderes da globalização é praticamente zero, enquanto

www.sens-public. org/article.php3?id_

as fortunas pessoais aumentaram drasticamente. De maneira geral,

article=753

o mundo apresenta mais pobreza, mais desigualdade, mais concentração de riqueza e mais economias devastadas. 131

Esse movimento demanda outra questão: até que ponto o aumento da pobreza entre trabalhadores começa a interferir direta ou indiretamente no desenvolvimento? Uma das respostas pode ser o já evidente enfraquecimento do poder do Estado, frente a problemas que se acumulam em decorrência de um sistema que consolida desigualdades sociais. Se voltarmos no tempo, para o período pós-guerra, constatamos que a economia dos países centrais se desenvolveu a partir da produção industrial e do consumo de massa, criando uma classe média que se consolidou via empregos de jornada diária, principalmente nos países desenvolvidos. Foram estabelecidos benefícios sociais definidos como férias, aposentadoria, sistemas de saúde e estabilidade profissional. Com a transformação econômica, a transição se fez por rupturas internas no mercado de trabalho, especialmente na estrutura de renda e no poder de sobrevivência das famílias e das empresas. Na pesquisa ficou claro que o desenvolvimento do novo modelo está mais voltado para o disperso mercado internacional do que para o consumo interno. A China, um exemplo de economia que cresceu exatamente em decorrência da dispersão da produção, experimentou um boom na exportação, especialmente a partir de 1984 até o início dos anos 2000, quando suas exportações cresceram de US$25 bilhões em 1984, para US$383 bilhões em 2003, o que representa um aumento de 1,5% para 5,8% em relação ao movimento mundial de exportações82.

82 The Development



of China’s Export

depois da crise de 2008. Em tese recente, Qionglei Yu83, discute a

Performance, de Javier

legitimidade da orientação para o mercado interno da China, como

Silva-Ruete, FMI –

motor de um novo desenvolvimento. A crise contribuiu para que

Fundo Monetário

Internacional,

alguns países procurassem internamente suas próprias soluções.

apresentado em

Esta fluidez econômica, que põe por terra a ideia de progresso pelo

conferência no

desenvolvimento, que se transforma constantemente e que afeta à

Central Reserve

Contudo, a fluidez das expectativas econômicas trouxe modificações

Bank of Peru Lima,

vida nas cidades, é que está nos fundamentos da nossa proposta de

Peru, March 7, 2006

tentar outro caminho epistemológico que nos proporcione outras formas de trabalhar o conhecimento na cidade; e de se considerar sempre a dualidade local e global.

83 Investigating Internal Market Orientation

Acrescente-se que, independente das flutuações de prioridade entre

and Organisational

o mercado interno ou externo, subsistem e se ampliam as desigual-

Performance in China.

dades que resultaram em novas formas sociais, citadas por Sassen,

PhD thesis, Univer-

como, por exemplo, a expansão dos mercados de trabalho informal

sity of Sheffield / http://etheses.white-

e temporário, duas formas que de acordo com os volumes efetivados

rose.ac.uk/4478/

podem impactar consideravelmente a organização urbana. Ela en-

132

fatiza, ainda neste sentido, as disparidades entre a distribuição dos rendimentos, dos aluguéis e a predominância da pobreza; além do investimento acentuado na construção tanto comercial como residencial de luxo. São consequências locais em relação ao desenvolvimento da globalização da atividade econômica. De acordo com a pesquisa, se pensarmos em termos de cidade, no seu desenvolvimento cotidiano, alguns fatores vão interferir na organização do espaço urbano, tais como a qualificação profissional; as divisões das classes trabalhadoras, que abrangem desde os executivos mais bem pagos até os desempregados, que se encaminham para os trabalhos informais e temporários, com demandas diferenciadas, dentre elas, aquelas relativas à habitação e localização do trabalho em áreas especiais, pelos mais abastados; até os processos de crescimento da habitação informal e dos processos de gentrificação. Vão pesar também fatores como a reorganização do consumo, que se divide entre um mercado informal que atende aos mais pobres, passando pelas pequenas e médias empresas, por um conjunto específico dos trabalhadores cujos salários lhes permitem algumas compras mais sofisticadas, até o consumo de alto luxo. Neste movimento, a presença de investidores internacionais nas cidades, principalmente na instalação de filiais de suas empresas, vai diferenciar esses espaços, que emergem como locais transnacionais, onde os principais arquitetos do mundo serão contratados para projetar e construir: seguindo-se a instalação de ricas residências, lojas de luxo, galerias de arte e restaurantes. Com preços muito altos em alguns locais, a descontinuidade se intensifica e, embora vá haver um reflexo em toda a região metropolitana, há uma disparidade no valor dos imóveis entre as áreas mais cobiçadas e o resto da cidade. Essas áreas terminam por fazer parte do mercado imobiliário internacional (Sassen,1991:186). Sassen havia estabelecido essas transformações para as cidades estudadas na pesquisa, mas não se pode deixar de considerar essas tendências como um movimento que reverbera em todo o mundo. Nessas modificações, transformam-se os hábitos, gerando novas necessidades e novos costumes urbanos, tanto relativos às classes mais altas que, em função das distâncias sociais e dos problemas de insegurança que elas acarretam, procuram, cada vez mais, os espaços especializados, fechados; quanto em relação às classes menos aquinhoadas que vão, por sua vez, criando mecanismos, cada vez

133

mais informais, para a sua sobrevivência. É um processo contínuo e conflituoso, que continua em movimento. Hoje, mais de dez anos após a publicação do seu texto, ela nos chama atenção para a complexidade das cidades84: tanto como sistema complexo como sistema incompleto, residindo aí, nesta incompletude, a possibilidade de transformação – do urbano, do político e do cívico, essência da cidade, seu DNA. Ela ressalta que cada cidade é distinta. Desta forma se a pretensão é estudar a cidade, será necessário trabalhar com esses três diferentes aspectos: incompletude, complexidade e a possibilidade de transformação, tendo em mente suas variações no espaço e no tempo. Neste ponto, referencia Morin. Ela também parte do princípio que a cidade tem um discurso, que sistematicamente pode ser lido e para exemplificá-lo, considera uma das questões mais importantes para as cidades de hoje: a mobilidade. Um carro, diz Sassen, fabricado para altas velocidades, sai da autoestrada e entra na cidade, se deparando com um enorme congestionamento, tanto de carros, como decorrente do movimento das pessoas. Construído para a velocidade ele se torna um prisioneiro, incapaz de cumprir seu objetivo veloz. A cidade falou!85 A primeira tese estabelecida na sua pesquisa define que a expansão territorial da atividade econômica criou uma necessidade maior de controle e gerenciamento central. Embora esse movimento tenha promovido o desenvolvimento econômico em mercados menores, o controle da gestão e das finanças concentrou-se em poucos países desenvolvidos. A dinâmica tende, então, à alta concentração das 84 http://www. saskiasassen.com/

funções centrais da economia global nas cidades que originalmente eram fortes pontos industriais no mundo.

PDFs/publications/ does-the-city-havespeech.pdf

Mas as necessidades locais de comércio das companhias transnacionais expandiram o processo em direção aos países em desenvolvi-

85 Does the City Have

mento, provocando novas mudanças e novas perspectivas urbanas.

Speech? Public

O rápido crescimento dos investimentos estrangeiros em serviços,

Culture 25:2. Duke

segundo Sassen (1991:52) é parte da internacionalização da atividade

University Press, 2013, pp.209-221

econômica, e embora tenha sido impulsionado pela internacionalização da produção, desenvolveu-se em outras frentes como o mercado

86 http://economia.

imobiliário, como no exemplo do boom das negociações em 2012,

estadao.com.

em nosso país, indicado em notícias tais como, “Brasil vira 2º me-

br/noticias/ geral,brasil-vira-2-

lhor mercado imobiliário”86. Esse movimento do comércio imobiliário

melhor-mercado-

internacional, que valoriza determinados espaços em determinados

imobiliario,97911e

países, vai provocar, em muitos locais, um novo processo de gentrifi-

134

cação diretamente ligado ao processo de globalização. Todavia, as mais recentes disputas político - econômicas internacionais e as transformações que ocorrem aceleradamente, sem que tenhamos como analisá-las, denotam um processo em constante movimento. Este pensamento nos conduz a base conceitual da teoria da complexidade moriniana, relativa à cosmogênese e à dispersão do cosmos, que metaforicamente estabelecem o foco do desenvolvimento na dispersão, na desordem; que vai poder ser trabalhada via organização, considerando-se o amétodo, ou como diz Morin:

Hoje, a nossa necessidade histórica é encontrar um método capaz de detectar, e não de ocultar, as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interdependências e as complexidades. Temos de partir da extinção das falsas clarezas. Não do claro e do distinto, mas do obscuro e do incerto; não do conhecimento seguro, mas da crítica da segurança. (...) A incerteza torna-se um viático: a dúvida sobre a dúvida dá à dúvida uma dimensão nova, a dimensão da reflexividade; a dúvida pela qual o sujeito se interroga sobre as condições de emergência e de existência do seu próprio pensamento constitui, desde então, um pensamento potencialmente relativista, relacionista e autocognoscente. (...) É certo que nos falta o método à partida; mas, pelo menos, podemos dispor do antimétodo, onde a ignorância, a incerteza e a confusão se tornam virtudes” (2008:28).

Virtudes, porque é a partir deste início em desordem, que surgirá a possibilidade de tentar uma organização que nos levará a uma ordem, esta sim, ligada ao contexto trabalhado. Sassen sugere também que se observe a alta densidade espacial nos distritos financeiros destas cidades globais como evidência da concentração de poder. A pesquisa também se refere ao impacto que esta política econômica global provoca nas pessoas, na cidade, na vida cotidiana. Mas o foco da pesquisa não está no estudo do poder desenvolvido em função da globalização, mas em analisar como este processo foi estabelecido, como se desenvolveu a produção dos inputs que vão permitir o controle global e qual infraestrutura que envolve essa produção. Neste sentido, ela define uma complexa rede 135

de interligações, que vai permitir o controle global e que passa pela produção, mais focada nas indústrias de ponta da área tecnológica digital, que vai suprir com os instrumentos de controle os governos, as corporações e os bancos transnacionais. As telecomunicações e tecnologias da informação, embora permitam o trabalho deslocado, foram elas mesmas fatores de concentração, uma vez que “os serviços financeiros especializados, principais usuários destas tecnologias, necessitam acesso aos mais avançados utilitários”, que por sua vez requerem infraestrutura técnica fixa, complexa e que demanda manutenção (1991:19). Estas demandas são as consequências deste movimento de transformação da economia mundial na organização espacial das cidades. Enquanto algumas cidades se tornavam centros, tais como Nova Iorque, Londres e Tóquio, outras, outrora industriais e exportadoras, perderam suas características de liderança, no deslocamento da produção, neste processo. São muitos os exemplos, entre eles cidades como Detroit (já mencionada), Liverpool, Manchester, Nagoya, Osaka, embora algumas delas tenham se mantido em melhores condições, em função do controle de suas indústrias globais. A organização espacial e social se modificou muito; a condição de crescimento de algumas cidades, neste modelo da produção dispersada e de concentração gerencial, criou polaridades dentro de um mesmo território-nação, com o desenvolvimento de algumas cidades e a decadência de outras ligadas aos modelos das economias mais industriais, acrescentando-se ainda o acirramento dos conflitos internos, em locais onde as necessidades são mais acentuadas. Desta forma, no caso do Urbanismo, nos interessa questionar como toda essa transformação afetou cidades, inseridas em zonas de declínio, como, por exemplo, Detroit, mas, principalmente, como essa reorganização afetou todos os níveis da hierarquia urbana; criando uma cidade descaracterizada em relação aos princípios da modernidade. Interessam também as relações entre cidades e nações. Nesse ponto Sassen destaca uma possível descontinuidade entre o desenvolvimento das cidades e da nação, incluindo certa discrepância de interesses e uma possível relação maior entre cidades, mesmo no nível internacional.

136

Neste quadro é importante perceber como se conformou a organização do trabalho, na tendência de uma educação mais aprimorada para o desenvolvimento dos novos serviços e a contrapartida da necessidade de baixos salários nos serviços em restaurantes, residências e hotéis de luxo, comércio de boutiques, lavanderias e outros que atendem às classes mais abastadas; além das modificações e da criação de outros níveis profissionais dentro das próprias indústrias remanescentes ou daquelas mais inovadoras, como as de produção eletrônica. Neste processo, a autora acredita que a relevância do conhecimento teórico e técnico, com bases científicas “tornou a sociedade pósindustrial baseada no conhecimento” (2013:247). O problema central da sociedade não é mais relativo ao capital ou à organização do trabalho industrial, mas da organização do trabalho científico, que vai proporcionar o desenvolvimento tecnológico, diretamente ligado às necessidades do processo globalizador. Isto significa que a classe de profissionais e técnicos não só se expande muito, mas se torna o centro vital da sociedade pós-industrial. Ela considera ainda que o núcleo deste conhecimento seja formado por engenheiros e cientistas. Na nossa análise, este é um dos pressupostos da superespecialização, para a qual se encaminhou o conhecimento e que tanto Morin como Secchi consideram inadequada para o mundo contemporâneo. Mas que, em contrapartida, se constitui em espaço de inovação, com o surgimento de novas formas de comercialização de serviços, instaladas em pequenas empresas, que por vezes crescem rapidamente modificando relações já estabelecidas. Vide Facebook. Sassen indica, contudo, que a tecnologia moderna não conseguiu abolir uma série de formas de trabalho do século XIX. Uma das razões seria o que ela denomina “linha de montagem global”, com a produção através da montagem de um processo de produção fragmentado em termos geográficos e organizacionais, que busca primordialmente um custo mais rentável (1991:10). Para ela, é esta “linha de montagem global” que cria o aumento da centralização e a complexidade de gerência, controle e planejamento. A transnacionalização da produção em partes contribui para o desenvolvimento de novos tipos de planejamento da produção e distribuição ao redor das empresas, consequentemente, para mudanças significativas tanto sociais como territoriais e até mesmo relativas às legislações de cada cidade. Nós acreditamos que esta linha de montagem global é um dos motores da constante mutação dos espaços na busca do custo 137

mais rentável, o que vai acentuar as transformações espaciais e obviamente o aumento das desigualdades sociais. É importante perceber que o texto dela, escrito em 1991, questiona por quanto tempo poderia durar este modelo de desenvolvimento, considerando a combinação de altos níveis de especulação e de fusões e a multiplicidade de pequenas empresas satélites como elemento fundamental. Questiona também a capacidade de fusão das empresas. Hoje já sabemos que o movimento, neste sentido de fusão, foi intenso, aumentando o poder especulativo que levou a economia mundial à crise de 2008. Sassen se apoia na noção weberiana, continuada por Bell87 que indica que, à medida que o capitalismo avança, mais o fundamental se desenvolve na direção do processo gerencial e financeiro. E aponta que, foi através do mercado financeiro que Nova Iorque, Londres e Tóquio se tornaram cidades líderes internacionais e locais de mercado, para o capital e a expertise internacional, funcionando não como competidoras entre si, mas sim como uma tríade, com diferentes papéis a cumprir: Tóquio, como exportadora de capital; Londres, como um principal centro de processamento desse capital; e Nova Iorque, como recebedora deste capital e como centro de decisão de investimento e de produção de inovações para maximizar a lucratividade. Neste ponto, chamamos atenção para o conceito de tríade, levantado por Sassen, que trabalha com complementaridades. É este o conceito que está na base do método moriniano, ou seja, juntar, ligar, interagir. Nesta terceira fase do capitalismo, este conceito se desenvolve paralelamente à teoria da rede. Sassen nos lembra Castells88, que destaca o impacto da tecnologia da informação e desenvolve uma 87 The Coming of Post-

nova concepção sobre o seu impacto no processo urbano e regional.

Industrial Society:

Ele postula a emergência de um novo processo de organização socio-

A Venture in Social

-técnica que permita uma nova matriz institucional e econômica

Forecasting, Daniel Bell. New York:

para a reestruturação do capitalismo.

Basic Books, 1973

Neste contexto, o rápido desenvolvimento das inovações requer suporte para a incorporação destas, tanto em termos de produção 88 The Informational City: Information

como de comercialização, e vai gerar processos inovadores também

Technology, Economic

nos serviços, apontando para um aumento da especialização e de

Restructuring, and

escala também em relação aos serviços.

the Urban Regional Process. Oxford, UK; Cambridge, MA:

Para Sassen a forma da internacionalização econômica se carac-

Blackwell,1989

teriza por uma rede cada vez mais global de fábricas, lojas de

138

serviços transnacionais e mercados financeiros, juntamente com a concentração econômica continuada (1991:323). Esta situação foi resultado de um processo de modificação da regulamentação, que continuamente interfere nas regras estabelecidas para cada cidade. No início do processo, as possibilidades dos mercados financeiros globais emergiram num contexto em que o quadro regulamentar, em alguns dos principais centros, continha vários tipos e níveis de restrição. Eventualmente, a evolução dos mercados financeiros, considerando as características dos marcos regulatórios locais, criava uma série de conflitos, que resultaram em várias inovações na área financeira, para resolver problemas ou evitar a regulamentação (Sassen,1991:112). Além disso, a autora nos lembra que o mercado financeiro “tem funcionado como um produtor-chave de serviços, com participação no desenvolvimento em todos os setores da economia global com a presença constante do risco e da especulação” (1991:124). Ao lado disto, a operação industrial em vários países simultaneamente leva as empresas prestadoras de serviço a esbarrarem nos códigos e regulações governamentais, tornando a desregulação, um tema importante para o crescimento pretendido da internacionalização das indústrias. Para enfrentar os problemas conflituosos, o GATT, hoje WTO89 , dita as regulações internacionais do comércio, realizando estudos para a possibilidade da transnacionalização dos serviços em diversas modalidades, algumas destas conflituosas com interesses locais. Esta é uma instituição supranacional, mas cujos interesses podem pender para as economias centrais, uma vez que seu propósito não se direciona ao desenvolvimento social ou a proteção das atividades em cada país, mas, ao contrário, a facilitação das operações de comércio. Em seu site a organização explica que “onde países têm encontrado barreiras de comércio e almejam que elas se diluam, as negocia89 GATT - General Agreement on Tariffs and Trade, que surgiu

ções ajudaram a abertura de mercados para o comércio”, e apesar de ressaltar que, algumas vezes, essas barreiras são mantidas, no

de uma rodada

processo mundial da mais-valia, essas negociações podem indicar

de negociações

fortes tendências. Desta forma, a proposta de Morin de instituições

entre 1986 e 1994,

supranacionais, é na verdade, uma contrapartida.

chamada Rodada do Uruguai, e se transformou na

O projeto arquitetônico é exemplo de serviço internacional que tem

WTO – World Trade

cruzado fronteiras com grande visibilidade (Sassen, 2013:43-44).

Organization, hoje responsável pela

Como exemplo, Eisenman propõe que se pense sobre como os arqui-

Agenda de Doha.

tetos precisam lidar com o problema da globalização, uma vez que 139

tanto ele como Koolhaas tendem a construir frequentemente em outros países e, não naqueles em que vivem. Exemplifica, mostrando como tem tentado (no momento do texto-debate em referência) entender o que significa lidar com a política local, ressaltando que considera o seu próprio projeto (Cidade da Cultura, na Galícia) “uma anomalia no contexto espanhol”; afirma, ainda, duvidar dos arquitetos como cidadãos globais, no verdadeiro sentido da palavra, devido à formação disciplinar: “o que fazemos é confrontar situações locais, que em última instância confrontam a arquitetura” (2013:37). Ainda avaliando o significado desta globalização de serviços, no exemplo do projeto arquitetônico, recorremos a uma análise comparativa de Eisenman entre os projetos dele - The Max Reinhardt House de 1992, nunca construído, e de Koolhaas para a CCTV – China Central Television, na China, em 2002, ambos tendo como referência a fita de Moebius. Nos dois projetos havia tanto a intenção de desvio do modelo da torre fálica, como a questão teórica do que significa “dentro” e “fora”, para Eisenman, uma investigação do substrato da arquitetura. Koolhaas contrapõe afirmando que, como profissionais públicos, devem ser capazes de abordar qualquer situação que encontrarem. Afirma ainda que “usamos o diagrama não só como elemento criativo para construir, mas também como um modo de olhar ....” (2013:30). Acrescentamos que, no caso, o olhar foi eficaz, uma vez que se tornou simbólico. (ver fig. 14, 15 e 16)

Fig. 14 Peter Eisenman, The Max Reinhardt House, Berlin – Alemanha, 1992, torre nunca construída 140

Fig. 15 Oma/ Rem Koolhaas. Torre da CCTV, em Pequim, de 2002

Fig. 16 Oma/ Rem Koolhaas. Torre da CCTV, transformada em símbolo

Num outro sentido, Sassen conclui que a gentrificação emergiu como um componente espacial visível, resultado de um processo de profunda transformação do capitalismo avançado, ou seja, a transformação espacial priorizando os serviços e seus resultados, a reestruturação das classes sociais adaptadas aos processos e a privatização mais acentuada. Esse movimento tornou-se evidente através de novos complexos luxuosos no centro das cidades (1991:251). 90 When complexity produces brutality,

Sassen, em recente artigo90 chama atenção para o número de pes-

publicado na

soas que tem sido ‘expulsas’ nesta fase do capitalismo avançado,

internet em 06/2010, http://www.sens-

principalmente nas últimas décadas; número muito maior do que

public.org/article.

a nova classe média resultante dos desenvolvimentos econômicos.

php3?id_article=753

Usa o termo ‘expulsas’ para a explicação da diversidade de condições 141

resultante deste desenvolvimento, destacando o aumento do número dos miseravelmente pobres, dos deslocados de suas habitações e que não encontram mais condições de continuidade, perdendo sua condição anterior, das minorias perseguidas nos países ricos, dos trabalhadores cujo físico é prejudicado no exercício do trabalho, tornando-os inabilitados ainda jovens, e das populações estigmatizadas em guetos e favelas. Coloca que esta situação tem sido analisada em partes, mas considera importante analisá-la em sua dinâmica global, estabelecendo as relações devidas. Observa, também, que o desenvolvimento de comunidades de emigrantes em cada local gerou uma demanda por uma diversidade de produtos, serviços e trabalhadores, caracterizando especificamente as áreas em que se instalaram pela diferenciação dos critérios formais das outras áreas, em suas formas e cores. Nas cidades, essas áreas representam outra forma de internacionalização. No nosso ponto de vista a gentrificação pode ser, e já se apresenta como tal, um estopim de violências urbanas constantes. Em 2012/2013, nossa atenção foi dirigida para a ocorrência de uma constante abordagem do tema em uma diversidade de encontros que tinham como referência os problemas e propostas urbanas. Percebemos, na ocasião, que a gentrificação vai se tornando um problema próprio das grandes cidades, e que os estudos se preocupam com suas consequências. Em observação recente, em seminários internacionais sobre cidades realizados em Paris91, a gentrificação foi um assunto repetido em relação a diversas cidades, tais como Lodz, Budapeste, Phnom Penh e Roma, tendo sempre o contexto cultural relacionado. Tal observação reforça o crescimento do problema e, mais que isso, instaura um me-

91 “Séminaire

canismo que não se sabe aonde vai chegar, se pensarmos em relação

international – Renouvellement urbain

às cidades do futuro.

en Europe“, em 1 de o

fevereiro de 2013 no Institut d’urbanisme de

Além disso, é preciso considerar que a preponderância do sistema

Paris, IUP, l’Université

econômico mundial permitiu movimentos de concentração, dilatação

de Paris-XII-Créteil

e esvaziamento de áreas das cidades, reconfigurando de forma con-

e “Appréhender la

tundente tanto os valores posicionais, como sua configuração social.

transformation de la ville » entre

Os efeitos que se fazem sentir nestes espaços são de todos os níveis,

5 e 8 de fevereiro

e já não se tem clareza das possibilidades futuras de reconfiguração

de 2013, na Ecole

das cidades com os parâmetros até aqui estabelecidos. Sassen acre-

Nationale Supérieure d’Architecture de Paris

dita que a brutalidade do sistema está transformando o mundo, e os

la Villette.

exemplos por ela apresentados são consideráveis: a acelerada aqui-

142

sição de milhões de hectares de terra, por investidores estrangeiros: “uma forma brutal de colocar as coisas, é dizer que as riquezas naturais de boa parte da África, América Latina e da Ásia Central contam mais que as pessoas, trabalhadores e consumidores destes territórios”92. Em artigo recente93, Sassen reafirma a complexidade e a incompletude das cidades, destacando sua proposta para compreender o porquê da intensa migração do campo para as cidades. Aponta como causa, a expulsão das famílias pelos megaempreendimentos tanto para agricultura como para a mineração e para outros setores da produção. Cita que a avaliação das curvas de crescimento desta migração acendeu um sinal de alerta, concordando com Morin. Fala do que ela denomina desurbanização e que ocorre agora em algumas cidades, incluindo formas extremas de desigualdade e privatização, novos tipos de violência urbana, guerras assimétricas e sistemas de vigilância massivos. Propõe uma análise para o que ela denomina “ouvir o discurso da cidade”. Sassen, neste artigo, indica que a globalização e o processo digital produziram deslocamentos e desestabilizações na ordem institucional existente, que vão além da organização das cidades, requerendo novos tipos de respostas e inovações tanto pelos mais poderosos quanto pelos mais desfavorecidos, com óbvia diversidade de motivação (2013:212). Os textos de Sassen foram incluídos neste estudo, não por se relacionarem diretamente com os princípios morinianos, mas constituirem uma das referências importantes do processo de transformação mundial que, dentre todos os fatores, destaca a transformação espacial urbana, objeto do nosso interesse. Além disso, para compreender 92 When complexity produces brutality, publicado na internet em 06/2010,

a complexidade urbanística é preciso entender as interações que se estabelecem na transformação do mundo via o processo recente de globalização. A autora vai influenciar vários estudos, entre eles o da

http://www.sens-

complexidade analisada por Koolhaas, no item a seguir, e a leitura

public.org/article.

dos novos conceitos e das transformações urbanas, sob o ponto de

php3?id_article=753

vista de um país periférico; e também o estudo de Santos, a ser apresentado no item subsequente.

93 Does the City Have Speech? Public Culture 25:2. Duke

A compreensão do seu texto nos leva a indagar, se a globalização não

University Press,

estaria no cerne de uma organização complexa, que carece de uma

2013, pp.209-221

nova perspectiva para ser analisada nos seus efeitos urbanos? Pode143

mos inferir que a proposta moriniana de mundialização/desmundialização pode ser um caminho de avaliação a partir das perspectivas que se apresentam na cidade contemporânea, com o enfoque dos locais que não estão no centro do processo. Esse movimento de transformação intensa da economia tem influenciado a organização do espaço urbano em tendências e contra-tendências já analisadas por alguns, como Koolhaas em suas pesquisas realizadas em Harvard, que serão apresentadas no próximo item deste capítulo.

3.5

As rupturas de Koolhaas Nosso entendimento da reflexão de Koolhaas foi lento. De início, a leitura de seus textos provocava um pensamento crítico, que se juntava às leituras críticas de sua obra. De certa forma, a interligação de seu texto com a teoria moriniana foi que nos permitiu uma compreensão melhor das suas posições. Constatamos que, mais que qualquer arquiteto, Koolhaas percebeu que o paradigma existente era contraditório com a realidade apresentada. Enquanto a teoria demandava uma simplificação, a realidade se apresentava complexa. De seus textos sobre a Grandeza, a Cidade Genérica e o Espaço-lixo (2010) emerge a constatação de fatores que modificaram o mundo tecnológica e economicamente. Em um processo recursivo, ele compara às introduções tecnológicas, sob as quais se assentou o paradigma modernista no início do século XX, como um Big Bang arquitetônico para a contemporaneidade. Nomeia, entre outros, a “aleatorização” da circulação com a redução das distâncias, a possibilidade de redução das massas e o aumento das alturas, o elevador, a eletricidade, o ar condicionado e a artificialização dos interiores, o uso do aço, a aceleração das construções, tudo isso contribuindo para uma nova arquitetura, que se estabelece em estruturas cada

94 Uma parceria entre Koolhaas/ OMA e o projeto de

vez mais altas e maiores e cujos efeitos atingem a reorganização do mundo social (2010:16). A cidade se torna complexa.

Harvard sobre a cidade, cujo objetivo era explorar as

Sassen contribui com sua pesquisa para o pensamento do arquiteto

condições urbanas

e foi parte integrante do projeto Mutations94. No seu texto, na pu-

instáveis deste

blicação resultante do projeto, Sassen (2001:105) coloca que o termo

início de século.

Cidades Globais não significa completude, mas se refere à lógica da

http://www.oma. eu/publications/

rede, que integra cidades em função da nova e abrangente extensão

mutations

da economia. Destaca que as telecomunicações engendraram uma

144

nova geografia transnacional da centralidade e da margem, que vai apresentar uma nova geopolítica não somente em relação ao capitalismo globalizante, mas também por suas consequências, como novos fluxos de trabalho, intensos fluxos de imigração e o surgimento de comunidades e de identidades translocais. Ela considera que a análise das cidades globais permite, com vantagem sobre as difusas dinâmicas de homogeneização que fizeram parte dos discursos críticos da mundialização, observar questões de poder e desigualdade entre os setores da economia e entre os espaços urbanos. A metrópole de hoje tornou-se o local estratégico de observação dessas novas operações sociais, que vão incluir a expressão concreta das reivindicações e as adaptações dos excluídos. Koolhaas entende a visão de Sassen e, de certa forma, tenta observar as cidades sob a perspectiva da ruptura, da transformação. Seus textos são muito críticos, e muitas vezes dúbios. É comumente considerado cínico (Chaslin, 2001:770) e muitas vezes incompreendido. Nós ousamos dizer que ele se expressa pelo pensamento dialógico moriniano, ou seja, o pressuposto que permite assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias, contrapostas para conceber um mesmo fenômeno complexo, como na sua conclusão sobre a cidade Romana, por ele considerada 100% genérica e 100% específica (2001:23). Entende o sistematismo da expansão da cidade Romana como um protótipo da globalização. Vê o jogo e o programa da internet como ferramentas para compreender o princípio da Cidade Romana como o início da cidade genérica. Sobre isso, Attali (2001:22), indica que a Tabua de Peutinger, ou tábula peutingeriana como uma pré-configuração do ciberespaço95, em reflexão recursiva. (ver imagem na página 95 A Tábula Peutingeriana é um mapa ilustrado

seguinte)

que mostra a rede

Justifica o Projeto sobre a cidade (Project on the city) como uma pes-

de estradas d o

quisa feita em cada região selecionada, no sentido de compreender

Império Romano. Recebeu esse nome

as mudanças específicas ocorridas até o início deste século. Nestas

em função de

incursões, ele vai levantando dados que referenciam as transforma-

Konrad Peutinger,

ções pelas quais a cidade passou para se tornar complexa. Uma das

um humanista e

suas peocupações, assim como Morin e Sassen, é o fluxo urbano em

antiquário alemão do século XV.

todo mundo: “a região subsahariana conheceu a mais alta taxa de urbanização mundial. (...) A previsão é que em 2020, 63% da popula-

96 UN - Global Urban

ção mundial viverá nas cidades.96

Observatory.

145

Fig. 17 Parte da Tábula Peutingeriana, com suas ligações das redes de estradas romanas

A aproximação de Koolhaas com a teoria da complexidade moriniana se configura entre as rupturas que estabelece com a arquitetura modernista e seus pressupostos de complexidade. Na sua crítica, por vezes ele chega a algumas observações convergentes com os conceitos da teoria moriniana, e que neste sentido reforçam também a possibilidade do exercício epistemológico. Suas referências mais incisivas aos conceitos da teoria moriniana estão na contraposição à modernidade e no pressuposto que ele mesmo estabelece: “fundamentalmente, penso que posso fazer arquitetura como um jornalista, e uma das coisas mais instigantes sobre jornalismo é ser uma profissão sem uma disciplina. O jornalismo é um regime de curiosidades, aplicável a qualquer assunto, e eu diria que esse ainda é um dos fatores importantes que movem minha arquitetura.” (2013:24). Nesta declaração Koolhaas se coloca exatamente no processo complexo, sem os limites e fronteiras disciplinares. Ele, de certa forma concorda com Morin, na questão relativa ao princípio de autonomia/ dependência, quando afirma que, em arquitetura, é muito difícil ter uma relação inocente à uma situação dada. “O interesse do arquiteto é ditado por uma série de aleatórias 146

conclusões de seus clientes e de seus projetos, o que não favorece as questões independentes do seu campo de visão” (2001:116). Ele recomenda aos arquitetos dois planos de ação: produzir sua arquitetura e tornar-se independente da produção para tentar compreender o que se passa no mundo e como determinados fenômenos afetam a arquitetura. Seguindo este critério, a OMA, escritório de arquitetura do qual é um dos sócios criou o AMO, um estúdio de pesquisa, na contrapartida da atividade prática do OMA, que se dedica aos projetos e construções de edifícios e projetos urbanos. Atentemos que o AMO opera além da curadoria, publicações e design gráfico97. Observando-se os campos disciplinares elencados no escopo do AMO, é possível concluir que existe um espaço para que as fronteiras disciplinares se rompam para “tentar compreender aquilo que se passa no mundo”, como ele mesmo defende em Mutations (2001:117). Segundo o site, a AMO muitas vezes trabalha em paralelo com os clientes da OMA para fertilizar a arquitetura com inteligência a partir deste conjunto de disciplinas.

Fig. 18 Parte da página do site que apresenta a relação OMA | AMO

97 http://www.oma.eu/ oma, em 18.04.2014

147

Em recente publicação, discorre sobre a disjunção dos saberes e declara que (...) “em nosso escritório, temos tentado nos tornar não intelectuais da arquitetura, mas intelectuais públicos – ou seja, capazes de contribuir em outros domínios além da arquitetura. Isto envolve também um esforço para explodir a divisão celular que é parte de um típico escritório de arquitetura. Temos buscado realizar isso, principalmente, tentando ver o trabalho não apenas como projetos arquitetônicos separados que chegam a nossos escritórios, mas em seu potencial de gerar novos tipos de trabalho”. Reafirma que a tentativa atual deve ser a de construir “um conhecimento sobre arquitetura, mas cada vez mais, um conhecimento sobre o mundo” (Eisenman & Koolhaas, 2013:28). Esta postura no desenvolvimento da atividade profissional referencia o pressuposto moriniano que estabelece que, o conhecimento pertinente é aquele capaz de situar toda a informação no seu contexto e se possível no conjunto em que se insere. E ainda, Koolhaas declara não entender como uma profissão, como a arquitetura, pode se realizar com uma acentuada modificação da prática, deixando a “reflexão à margem” (Eisenman & Koolhaas, 2013:27). Sobre disciplinas Koolhaas ainda faz outras considerações. Na análise da Grandeza, ele a indica, como a Arquitetura derradeira. Segundo ele, somente ela “instiga o regime de complexidade que mobiliza a inteligência total da Arquitetura e de seus campos afiliados” (2010:15-25). Ele considera que, somente a Grandeza trabalha tanto com a interação entre as atividades compactadas na sua estrutura como com a disjunção delas, nos apresentando novamente um processo dialógico. Observa, ainda que, sua amplidão não permite que sua totalidade seja determinada pela arquitetura. A grandeza é impessoal: o arquiteto já não está condenado ao estrelato, e, ainda, ele precisa trabalhar ligado a outros profissionais em uma equipe multidisciplinar, que inclui empreiteiros, engenheiros, fabricantes, políticos e outros.

148

Fig. 19 Comparação/ exemplos de Grandeza: Office for Metropolitan Architecture, OMA

Considera que, mesmo que se exija da Grandeza uma expectativa arquitetônica, isso só poderá acontecer se o autor desistir do controle e aceitar tanto “uma rede de cordões umbilicais com outras disciplinas, cujo desempenho é tão crítico como o do arquiteto”, como uma rendição à tecnologia e seus atores implicados (2010:25). Koolhaas entende que a Grandeza destrói, mas que ela também pode ser considerada como um novo começo, equiparando-se à análise da desordem moriniana, no início do processo criativo, e ainda ao princípio retroativo. Analisa-a como a única arquitetura que programa o imprevisível (o acaso) e depende da agregação da máxima diferença. Em relação às interações dos sujeitos, ele sinaliza para o entendimento do contexto global, que a arquitetura, tradicionalmente, esteve sempre interessada nas pessoas, mas que na atualidade se deve buscar “entender como as pessoas existem nos fluxos e comportamentos da cultura global”, destacando ainda, que como as culturas estão interagindo e influenciando umas às outras, existem portanto, novas condições de fluxo e troca, o que torna importante “averiguar se podemos ou não trabalhar de dentro dessas condições para criar

149

condições novas e melhores” (2013:34). A nosso ver, esta é uma condição para se considerar a Terra-pátria, como sugere Morin. Koolhaas declara que, para ele, no seu trabalho, existe uma relação direta com o sujeito: “para mim, o público se constitui tanto das pessoas que produzem um edifício, quanto das que o usam...”, tanto no sentido concreto como imagético, pois as duas formas se constituem num interminável diálogo que se modifica no tempo (2013:3435). Essa interligação sujeito/observados/criador é um dos pontos que Morin contrapõe à modernidade: “hoje temos de pôr metodicamente em dúvida o próprio princípio do método cartesiano, a disjunção dos objetos entre si, das noções entre si (as ideias claras e distintas), a disjunção absoluta do objeto e do sujeito” (2008:29). E é por perceber o sujeito como integrante do conhecimento, que ambos, Koolhaas e Morin, se aproximam nas preocupações relativas às populações: Morin, como apresentado no capítulo anterior, indicando o crescimento populacional como um fator de complexidade da realidade atual, e, da mesma forma que Koolhaas (2001), indicando um processo de urbanização acelerado (2012). Kollhaas no texto sobre a Cidade Genérica assinala que esta se apresenta rigorosamente multirracial e multicultural, com uma divisão percentual: 8% de negros, 12% de brancos, 27% de hispânicos, 37% de chineses/asiáticos, 6% de indeterminados e 10% de outros (2010:41). Reinier de Graaf, seu companheiro no OMA| AMO, em recente palestra98, ao falar do crescimento/decrescimento da população mundial, citou Birmingham, na Inglaterra, como exemplo de cidade de país do Primeiro Mundo em crescimento populacional, com características inglesas cada vez menores: 26,6 % da população da cidade são de grupos étnicos não brancos, percentual que, comparado aos 9,1% deste grupo na Inglaterra, demonstra que o crescimento das cidades nos países mais desenvolvidos se faz através da miscigenação racial, confirmando a previsão de Koolhaas. Já nas primeiras páginas de “Mutations”, o destaque é o aumento da população urbana. Mas, poder-se-ia dizer que a atenção ao crescimento populacional não é novidade, Thomas Malthus já avaliava o assunto no século XVIII. Contudo, tanto Koolhaas como Morin não estabe98 PICNIC conference,

lecem uma proposta de ordenação do problema. Nos dois casos, o



em Amsterdam,



em 23.09.2010 -

importante é o conhecimento da realidade e como isto deve ser ob-



http://www.

servado como risco e incerteza; como dados de uma realidade a ser

picnicnetwork.org

considerada e trabalhada da forma mais coletiva possível, não como

150

uma realidade que vai, através de uma proposta ou projeto, estabelecer uma ordem, uma solução única. Outros pontos de referência, Koolhaas os define em longa entrevista a Chaslin (2001:758), reforçando ou explicando melhor as partes de seu texto e de sua postura, não compreendidas pelos críticos. O primeiro ponto que nos interessou destacar é o questionamento da Chaslin sobre o fim do Urbanismo, definindo como severa, a posição de Koolhaas neste julgamento desta disciplina centenária. Koolhaas responde: “de tudo que faço e digo, há uma parte retórica, como um jogo de provocação. Eu raramente tendo para a objetividade perfeita. Minhas análises oferecem um componente de manifesto, e sempre, uma mistura de reflexão retroativa e de démarche prospectiva. (...) Mas eu estou convencido que o Urbanismo tal como é pensado hoje não é mais tolerável, porque pressupõe sistemas de domínio e de controle dos fenômenos que não mais existem”. Considera também que os valores de referência são muito antigos, impróprios para a compreensão dos eventos que se desenvolvem aceleradamente (2001:759). Attali (2011:270), em reforço, entende que “a cidade deixou de ser o objeto ou o fim; ela se transformou na condição, no dado inicial e insuperável, quer dizer, o meio a partir do qual se forma a ação urbana, e que a tem muito mais sob seu controle do que é dirigido por ela”. Quando Koolhaas descreve a Cidade Genérica, sinalizando o enfraquecimento do Urbanismo, demonstra essa metamorfose. Mas este autor nos indica outra possibilidade, citando o próprio Koolhaas: “se deverá haver um novo Urbanismo, ele não será fundado sobre os fantasmas gêmeos da ordem e da onipotência, mas entrará em cena com a incerteza, seu trabalho não será mais de desenvolver objetos mais ou menos permanentes, mas de irrigar territórios potenciais”99.. Koolhaas neste texto referencia tanto a incerteza proposta por Morin, como seu amétodo. Voltando a entrevista com Chaslin, ele declara estar trabalhando para uma mudança de paradigma. Instigado sobre seu pressuposto que estabelece a necessidade de observar, sem procurar respostas 99 In Koolhaas. R.

imediatas, uma vez que é a própria realidade que demonstrará suas

What ever happen to

possibilidades, ele esclarece que esta proposta é uma crítica a um

urbanism in X, M,

comportamento característico do arquiteto, em geral, que ao supor

L, XL New York/ Rotterdan, 1995, p.

uma necessidade de transformação se designa como veículo da mu-

958-971

dança (2001:760). Isto nos sinaliza para a convergência entre o pen151

samento de Koolhaas e o de Morin, uma vez que ambos consideram que é preciso primeiro observar, estabelecer relações e aceitar as contradições, ou seja, agir dialogicamente. Ao ser perguntado como se considera, um observador lúcido ou um profeta, ele responde que joga de acordo com o contexto, engajado em certa transformação da cidade e contra certas concepções ocidentais. Considera negativo refutar sistematicamente, a priori, o que se passa na realidade, e trabalha para se liberar desta obrigação. Até aqui, percebemos que Koolhaas referencia o princípio sistêmico de Morin, tanto no sentido de compreender a realidade como sistema de operação incontrolável, como de criticar a separação do objeto de seu contexto, sem levar em conta as emergências que, segundo Morin, se estabelecem entre as partes. É ainda Attali, no texto do projeto Mutations, que reforça o princípio da relação parte e todo, quando aborda a inseparabilidade da arquitetura e do Urbanismo, significando que toda situação ou evento, na cidade, pode ter seu correspondente (ou sua imagem) na Arquitetura; que a Arquitetura pode emprestar à semiótica urbana as orientações e motivos de seu próprio poder de composição. E, ainda segundo ele, a Arquitetura realiza suas potencialidades desde que o Urbanismo se atualize. Quanto à posição de Koolhas, na contraposição entre o Urbanismo e a arquitetura, ele a coloca ao nível da liberação de modelos de julgamento, ou seja, no sentido de permitir que “a cidade revele uma grande parte daquilo que ela pode” (2001:273). Além de Attali, Tazi complementa a análise da complexidade urbana, estabelecendo interações relacionadas aos pressupostos morinianos. Explicita a necessidade de pensar o urbano em um paradigma diferente, uma vez que o velho conceito de cidade não se ajusta mais aos espaços em constante movimento: as cidades se tornaram metabolizadas sob formas indefinidas e redes globais. Indica que se evitem as categorias sumárias ou muito abstratas e que se perceba pragmaticamente o cruzamento do global (net) e do urbano (local). Neste cenário ela observa que são os sujeitos que produzem a cidade, ou mais ainda, atualiza-na reinventando o cotidiano anônimo, performativamente, no cinza das ocasiões e das apropriações individuais. “É preciso doravante articular o global, enfrentar a mundialidade sob o título de urbana, com seu elemento coextensivo, 152

metabolizado na ordem indefinida das trocas planetárias e da rede eletrônica” (2001:43). Indica assim, a possibilidade para a proposta moriniana de ligar o local ao global, via essa outra dimensão urbana.

Observamos que nossa análise se pautou pela constatação de alguns conceitos, expressos tanto nos textos de Koolhaas como de seus parceiros de projeto, que pudessem referenciar nossa proposta de um exercício epistemológico entre os princípios morinianos e a complexidade urbanística. Mas não encontramos em Koolhaas um princí-

100 http://www. archdaily. com/75420/dutch-

pio epistemológico, ou mesmo a proposta de um novo paradigma. A

profiles-video-rem-

própria divisão OMA | AMO sinaliza uma disjunção entre a pesquisa

koolhas/

e a observação, embora ele declare100:

Não penso que se pode fazer uma arquitetura crítica porque a arquitetura sempre suporta o impulso de alguém. E por outro lado eu penso que a nossa arquitetura (da OMA) é completamente crítica, porque todos os assuntos, todas as questões, todas as ambições são analisadas e colocadas sobre a mesa do trabalho para vermos como podemos projetar de uma maneira nova ou como poderemos criar uma nova relação ou como poderemos organizar esses ingredientes de tal forma que gerem diferentes valores. E tentamos fazer isso de toda a forma.

Ainda assim, dessa observação emergem paralelos importantes. Encontramos nas bases das rupturas propostas por Koolhaas, referências para quase todos os princípios morinianos: —

no princípio da autonomia/dependência, quando afirma, como no texto acima, que o projeto é o resultado de intenções, não somente



as do arquiteto; ou quando repudia os valores da modernidade para uma realidade que se transformou;



no princípio da interação do conhecimento, quando estabelece a dependência de outras disciplinas, tanto na própria organização do escritório; como ao analisar a Grandeza; quando trabalha com propostas que se estabelecem dentro do principio da dialógica;



quando invoca o princípio recursivo, ao admitir que as próprias consequências da modernidade permitiram sua própria modificação,

153

como no caso da Grandeza e do shopping que se tornaram possíveis graças aos subprodutos arquitetônicos daquele período. Ao privilegiar a observação e a especificidade de cada contexto Koolhaas, na verdade, adere ao processo da complexidade moriniana; cada vez que ele coloca sobre a mesa todos os assuntos, todas as questões, todas as ambições para serem analisadas com o objetivo de projetar de uma maneira nova ou até mesmo criar uma nova relação, os pressupostos de trabalho, desenvolvido por Koolhaas, são similares aqueles propostos pelo amétodo moriniano, pelo qual o processo é como um grande jogo constituído de suas peças (elementos materiais), regras do jogo (imposições iniciais e princípios de interação) e o acaso das distribuições e dos encontros. E, segundo Morin, o jogo pode então tornar-se cada vez mais variado, cada vez mais aleatório, cada vez mais rico, cada vez mais complexo, cada vez mais organizador (2008:78). As interações são concebidas pelas desordens, ou seja, pelas desigualdades, turbulências, agitações etc.. que provocam os encontros, que vão permitir a organização, que precisa de princípios de ordem, intervindo através de interações que a constituem. O que significa dizer que a desordem a organização e a ordem só adquirem sentido na inter-relação entre elas, como termos complementares, concorrentes e antagônicos, como apontado em alguns pontos por Koolhaas . Assim surge a questão: se Koolhaas se posiciona complexamente, mas não propõe um novo paradigma para o Urbanismo, avaliar a possibilidade da interação entre os seus pressupostos e a teoria moriniana, através de um exercício epistemológico, nos parece não só viável, como uma proposta interessante. Considere-se, no

101 Alfred North Whitehead, An enquiry concerning

entanto, que a pretensão não é ter um método para trabalhar,

the principles of

mas sim criar o entendimento, um pensamento que vai permitir o

natural knowledge

trabalho de acordo com as circunstâncias e contextos. Na verdade,

[1919], Modes of

a proposta do amétodo é criar possibilidades de reflexão que

thought [1938] e The concept of nature

poderão desenvolver alternativas de se trabalhar sob o paradigma

[1971].

da complexidade.

3.6

A complexidade e a globalização sob a perspectiva de Santos A escolha deste autor partiu de várias inter-relações, tanto com a teoria proposta por Morin, inclusive por citação no texto, como pela abordagem de autores comuns, como por exemplo, Whitehead101

154

(1919, 1938, 1971). Ele ambém interage com Koolhaas, e com Sassen, no trato das relações da complexidade contemporânea e a globalização. Seu texto é intenso no tratamento dos conceitos e das análises que tentam entender a complexidade da cidade contemporânea. Fala das relações entre a parte e o todo e percebe com clareza o princípio recursivo. Contudo, há ainda no seu texto, uma tendência à classificação e a ordenação a priori, como no exemplo a seguir:

Falar em objeto sem falar em método pode ser apenas o anúncio de um problema, sem, todavia enunciá-lo. É indispensável uma preocupação ontológica, um esforço interpretativo de dentro (grifo meu), o que contribui para identificar a natureza do espaço, como para encontrar as categorias de estudo que permitam corretamente analisá-lo (Santos, 2008:19).

Nestes termos, Santos condiciona a análise a uma ordenação a priori, uma contraposição à proposta moriniana de permitir que a organização da desordem, através das interações, possibilite a definição das análises e classificações a partir das interações, incluindo objetos, sujeitos e contexto. Contudo, sua proposta complementa-se com um processo de interação organizadora, quando indica que esta tarefa supõe a busca de conceitos, tirados da realidade, fertilizados reciprocamente por sua associação obrigatória (interação) e tornados utilizáveis sobre a realidade em movimento. A ideia de tirar da realidade e promover associações se conjuga com a proposta moriniana, contudo a definição de uma classificação a priori e a obrigatoriedade da associação, provavelmente relativa aos critérios de análise definidas, apontam para uma direção e reduz as outras possibilidades de interações que poderiam enriquecer o processo; contrapondo-se ao método moriniano. Ele mesmo, num outro ponto de vista, analisa estas relações, quando questiona a necessidade da definição do objeto geográfico e propõe 102 Ritchot, Gilles. Études de géographie structurale., Centre

partir de outro começo, buscar “a construção epistemológica de um objeto de pensamento, a partir da província da experiência que nos

de recherches em

interessa”. Ele observa também, que diante de um mesmo objeto, po-

aménagement e

demos “atribuir-lhe diferentes estatutos epistemológicos” (2008:76),

em développement

lembrando sempre da indivisibilidade do processo social. Citando

– CRAD, Universté Laval, / Cahier

G. Ritcho102, nos adverte para o perigo reducionista, na sobreposição

Special 15. Quebéc,

dos níveis de organização geográfica do objeto semiótico, antropo-

1991, p. 17

lógico e econômico. Ressalta, então, que a questão se concentra no 155

método, na “construção de um sistema intelectual que permita, analiticamente, abordar uma realidade (complexa) a partir de um ponto de vista”, descartando então “a busca de um objeto com existência separada”. Destaca, ainda, a necessidade de buscar as categorias analíticas que permitam rever o todo como realidade e como processo, como uma situação em movimento. Trata-se de formular “um sistema de conceitos (jamais um só conceito!) que dê conta do todo e das partes em sua interação” (2008:77). Neste ponto há uma convergência com o pensamento moriniano. Quando ele enfoca o princípio hologramático estabelece uma interação mais direta com a complexidade, citando Morin103 (2008:314) e indicando que “cada um de nós é como o ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que o contém”. Refere-se ainda à dificuldade de um tratamento teórico, a inconsistência de um tratamento localista sem suas interligações e de “nos perder em uma nova simplificação cega”, a partir de uma noção de particularidade generalizada. Ele também adere ao princípio hologramático, quando sinaliza que tempo, espaço e mundo são realidades históricas, que devem ser mutuamente conversíveis, se nossa preocupação epistemológica é totalizadora. Defende que o ponto de partida desta análise é a sociedade humana em processo, ou seja, o espaço e seu uso, o tempo e seu uso, a materialidade em suas diversas formas, as ações e suas feições. Aponta que “a partir do reconhecimento dos objetos na paisagem, e no espaço, somos alertados para as relações que existem entre os lugares” (2008:72). Essas relações são respostas ao processo produtivo, no sentido mais amplo, incluindo desde a produção de mercadorias à produção simbólica. Segundo Santos, ao espaço do geógrafo, não interessa apenas aqueles objetos móveis, mas sim todos os objetos existentes num espaço contínuo, e pode caracterizar-se tanto simbolicamente como funcionalmente. 103 Morin Edgar, L’Homme dominet-il sa planète?,

cruzamento, instalação e acomodação das técnicas num lugar espe-

Le Nouvel

cífico. “Cada objeto ou ação se instala e se insere num tecido pree-

Observateur.

xistente e seu valor real é encontrado no funcionamento concreto do

Collection Dossier

conjunto” (2008:59), recebendo uma significação relativa, provisoria-

: La Pensée

156

Para Santos, existe um tempo espacial, ou seja, o tempo relativo ao

aujourd’hui, n°2,

mente verdadeira, diferente da anterior, impossível em outro lugar.

1990, p. 44.

O autor acredita também que essas relações estabelecem a hierar-

quia entre lugares produtivos, considerando-se as possibilidades de expansão ou de estancamento, e são o resultado da produção local, do conjunto de lugares de um território. Quando define que “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único onde a história se dá” (2008:63), se aproxima do principio retroativo e recursivo da tese moriniana. Para ele, os objetos podem ser naturais ou artificiais, fabricados, e não têm realidade filosófica se vistos de forma independente do sistema de ações, da mesma forma que as ações não podem ser vistas sem a referência do sistema de objetos. Desta forma “sistemas de objetos e sistemas de ação interagem”. Um condiciona o outro, ou seja, o sistema de objetos gera um sistema de ações que vai interferir no sistema de objetos, renovando-o ou criando novos objetos. “É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma”, num ciclo recursivo contínuo, noção que se consolida como referência ao nosso exercício. Adiciona ainda, concordando com nossa perspectiva já definida no início deste trabalho, que todo e qualquer período da história se afirma com um elenco correspondente de técnicas que o caracterizam com um elenco de objetos correspondente e, acrescenta, que “cada padrão espacial não é apenas morfológico, mas também funcional, ou seja, há mudanças tanto de novos objetos quanto de velhos objetos que se transformam. A cada novo momento impõe-se captar o que é mais característico do novo sistema de objetos e do novo sistema de ações” Ainda sobre este ponto, cita Laclau104, para quem “ler os objetos equivale a incluí-los no conjunto das condições relacionais”, que abrangem o espaço e nele se operacionalizam. “Neste sentido é o espaço considerado em seu conjunto que redefine os objetos que o formam” (2008:97). Continuando, conclui que “forma e causa, forma e vida, devem ser tomadas em sua unidade. Buscar interpretá-las separadamente pode conduzir a graves erros de julgamento, já que nem a forma, nem a vida têm existência autônoma” (2008:99), e como a cada evento a forma se recria, não se pode disjuntar forma espaço 104 Laclau, Ernesto.

e ação.

New Reflections on the Revolution of our Time. Verso,

Reforçando tanto seu pensamento como a relação com a proposta

London, 1990,

moriniana, ele indica que “a noção de totalidade é uma das mais

p. 109.

fecundas que a filosofia clássica nos legou, constituindo elemento 157

fundamental para o conhecimento e a análise da realidade”. Tudo se relaciona a uma unidade. “Cada coisa nada mais é que parte da unidade, do todo, mas a totalidade não é uma simples soma das partes. As partes que formam a totalidade não bastam para explicá-la” (2008:115), uma vez que o todo é maior que a soma das suas partes, pois, além das partes, contém suas relações. Santos, neste ponto, assume totalmente o princípio hologramático moriniano. Da mesma forma, quando, ainda no sentido da totalidade, considera que o processo histórico é um processo de complexificação, quando a totalidade se vai fazendo mais densa. Mas o universo não é desordenado, nele podemos buscar reconhecer sua ordem: “a ordem buscada não é aquela com a qual organizo as coisas no meu espírito, mas a ordem que as coisas, elas próprias têm” (2008:116), como na cosmogênese, que Morin adota como base da sua teoria. Santos considera que o conhecimento pressupõe análise e a análise pressupõe divisão. Assim, consequentemente, o conhecimento da totalidade pressupõe a divisão. Para ele, o processo pelo qual o todo se religa a outro todo é um processo de desordem e organização, através do “desmanche, de fragmentação e de recomposição, um processo de análise e síntese ao mesmo tempo (...), num movimento pelo qual o único se torna múltiplo e vice-versa” (2008:120)”. O todo múltiplo volta a ser único no momento seguinte para ser novamente despedaçado em múltiplos. Evocando Whitehead105, ele declara o presente iminente, ou seja, um presente que já contém um futuro não realizado. Donde ele conclui que “o mundo se dá como latência, como um conjunto de possibilidades que ficam por aí vagando, até que, chamadas a se realizar...” (2008:123) transformam-se em qualidades e quantidades. A totalidade como latência é dada pelas possibilidades irrealizadas, que através da ação se tornam realidades. Para Santos é a ação que une o Universal ao particular. Cada particularidade ultrapassada precede a universalidade atual, que sucede a universalidade defunta, numa 105 Sem referência

fertilização constante entre a particularidade e a universalidade.

específica. Na bibliografia três obras do autor: An enquiry concerning

quando ele define a questão da identidade complexa, que denomina

the principles of

a unitas multiplex, ou seja, a unidade de, na diversidade. “É, ainda,

natural knowledge;

mais difícil pensarmos o uno e o diverso juntos: aquele que privile-

Modes of thought;

158

Neste ponto, relacionamos Santos ao texto moriniano (2008: 182),

The concept of

gia o uno (como princípio fundamental) desvaloriza o diverso (como

nature.

aparência fenomenal); aquele que privilegia o diverso (como realida-

de diversa) desvaloriza o uno (como princípio abstrato). (...) O sistema é uma compleição (conjunto de partes diversas inter-relacionadas); a ideia de compleição nos conduz a de complexidade quando associa o uno e o diverso”, o que nos remete à ligação Santos/Morin, em relação ao princípio sistêmico e ao dialógico, uma vez que uno e diverso são duas noções não apenas antagonistas ou contraditórias, mas também complementares e inseparáveis. Neste movimento do uno ao todo e vice-versa, Santos define um processo dirigido à particularização, através da espacialização, observando-se as condições, as circunstâncias, o meio histórico que é também geográfico, pois “não podem ser reduzidos à lógica universal”, considerando a unidade e a diferença (2008:125). Quando observa as relações entre tempo e espaço, Santos nos indica a coexistência de diversos atores e diversas ações que ocorrem simultaneamente nos diferentes espaços e simultaneamente em diferentes tempos. Neste sentido, indica a importância da interdependência dos eventos, pois, “na realidade, somente há situações, porque os eventos se sucedem ao mesmo tempo em que se superpõem e interdependem” (2008:163). Esta simultaneidade, para Santos, se relaciona também aos sistemas técnicos atuais e suas correspondências na sociedade. Ele observa uma simultaneidade entre técnicas elitistas e populares, “dois modos extremos de existência” (2008:180). As primeiras trabalham com as demandas das classes mais altas, utilizando-se de meios tecnológicos e especialistas; as segundas resultam da combinação, do savoir-faire e da criatividade das massas. Relativamente às primeiras, aborda também a não conexão com o ambiente em que se instalam, ou seja, não necessitam compor, a priori, com a herança cultural, descolando-se da relação antropológica. Menciona, ainda, a inevitabilidade, comandada por uma mais-valia que se instalou em todo o mundo. É a reversão desse descolamento da realidade que Morin quer, ao propor a mundialização/desmundialização através da inserção, na globalidade, da relação entre a parte e o todo, através da multiplicação dos processos de comunicação cultural, no sentido da consciência da Terra como pátria. Sua proposta se insere na constatação da rede como uma possibilidade de interpenetração. Se o objeto técnico serviu às técnicas de controle e de gestão de uma produção dispersa e do sistema financeiro, pode servir também para a interligação das culturas, num outro nível, o da comunicação, e que vai depender das condições e das possibilidades de religar, religar sempre. 159

Segundo Santos, a artificialidade do objeto técnico atual é garantia da sua eficácia e constrói por isso uma racionalidade que se impõe à custa da espontaneidade e da criatividade, tornando-se auto-expansiva e relativamente autônoma. Considera, ainda, que a informação essencial (a do poder) circula apenas em circuitos restritos: “cerca de noventa por cento de todos os dados veiculados por meio de satélites o fazem entre as grandes corporações e metade das mensagens transnacionais cabe dentro das redes das empresas multinacionais” (2008:184). Apesar de não discordarmos de Santos no sentido de se perceber que a informatização, juntamente com o processo de globalização, provoca desigualdades e se configura como pilar da concentração de poder, nós acreditamos que há brechas para uma contrapartida, no sentido proposto por Morin. Tanto a auto-expansividade, mencionada por ele, como os últimos movimentos sociais em todo o mundo são indícios dessa possibilidade. Ainda em referência aos objetos técnicos, e especificamente sobre o computador, Santos considera que vivemos um momento fundamental da nossa evolução, atentando, no entanto, para o seu caráter redutor: “para ser eficaz, o pensamento calculante exclui o acidente... (e) impõe sua lógica própria, isto é, o domínio da lógica matemática sobre a lógica da história” (2008:186). Esse rigor matemático extrapola para o território, como no exemplo da vida cotidiana atual, em que o acúmulo de atividades, muitas vezes, perde até o seu sentido mais pragmático. O que Santos destaca é a exigência de um discurso nos objetos como um dado contemporâneo. Os objetos técnicos carregam cada vez mais informações e precisam indicações de como utilizá-los. Existem dois discursos que interagem em relação aos objetos: o discurso do uso e da sedução que juntamente com o discurso das ações, nos tornam a cada dia, mais ignorantes. Como o mundo está em vertiginosa modificação, os discursos se acumulam; somos todo tempo instigados a aprender algo mais e ficamos em meio a informações e contrainformações. Contudo, Santos acredita que, outras ações, mediadas pela interação humana e por objetos tecnicamente mais antigos e que permitem o exercício da criatividade, são a força do lugar. Morin acredita nisso, mas não só isso, pois para a inserção do local no global, a rede se torna indispensável. Santos (2008) reconhece os mesmos caminhos da globalização colocados por Sassen (1991), embora ela não conste da sua biblio160

grafia. Citando vários autores confirma a predominância das cidades globais: Nova Iorque, Londres e Tóquio, gerenciando o processo, exemplificado nas seguintes transações totais dessas cidades: 56% do movimento de ações, 74% do mercado a termo e 38% do mercado de câmbio (2008:209). Deduz daí que duas condições novas emergem deste processo: a concentração geográfica do poder e a substituição da velha competição pela competitividade, que, adotada pelas empresas transnacionais, acaba se transformando num valor agregado ao motor único: a mais-valia. É neste caminho da busca da competitividade que as cidades globais analisadas por Sassen assumem papéis complementares. Ele destaca a contradição entre o fluxo de investimentos públicos e o fluxo da mais-valia, que vai beneficiar, muitas vezes, o capital mundial e vai levar à descapitalização local. Indica que “a busca da mais-valia ao nível global faz com que a sede primeira do impulso produtivo seja apátrida, extraterritorial, indiferente às realidades locais e também às realidades ambientais” (2008:253), responsabilizando a incapacidade local de poder controlar as forças desencade106 Fruto das discussões estabelecidas

adas num sentido global, pela crise ambiental que vivemos. É neste sentido que Morin sugere a criação de instituições supranacionais106

depois da Rio+20, a

que tenham o poder de estancar a degenerescência do nosso planeta.

proposta é a cria-

Se existem instituições como o WTO, as possibilidades, no sentido

ção de um Tribunal Internacional

proposto por Morin, podem emergir das consequências, hoje, mais

do Meio Ambiente

previsíveis em função dos últimos relatórios da pesquisa do IPCC -

encarregado de

Intergovernmental Panel on Climate Change107.

julgar os crimes contra o futuro da humanidade, em

Ainda em função da deslocalização da mais-valia, temos a tendên-

nome das gerações

cia da união vertical entre lugares, ou seja, “a construção de redes

futuras - http://

modernas que se estabeleçam a serviço do grande capital”, criando,

www.tribunal-nature.org/

mundialmente, pontos de entropia local, a partir do estabelecimento de uma ordem que beneficia esse capital internacional. Numa pers-

107 O 5º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças

pectiva horizontal, na base da vida em comum de um território, Santos invoca a possibilidade de se criar normas locais que vão conflitar com as normas rígidas determinadas pelo mercado internacional.

Climáticas (IPCC),

Mas o que Sassen destaca é justamente o contrário, normas locais

apresentado no dia

que foram suprimidas para facilitar as operações financeiras globais.

1º de abril de 2014,

Para que haja possibilidade de reverter o processo, é preciso que

traz conclusões econômicas que

os estados sejam fortalecidos, e, para tal, as mudanças só poderão

podem começar a

emergir, no nosso ponto de vista, a partir das perspectivas de crise

afetar as tomadas

intuídas como efeitos das mudanças climáticas, conforme estabele-

de decisão sobre assuntos sobre o

cido no relatório do IPCC. Mas este é um indício, uma hipótese, para

tema.

um estudo futuro. 161

Ainda assim, precisamos considerar que, historicamente, “o Lugar – não importa sua dimensão - é espontaneamente, a sede da resistência, às vezes involuntária, da sociedade civil, e é possível pensar em elevar esse movimento a desígnios mais amplos e escalas mais altas” (Santos, 2008:259). No entanto, Santos aponta que através das redes podemos conhecer três tipos de níveis de solidariedade, que ele denomina de totalidades. A primeira delas é o próprio mundo, unido pela comunicação e pelos fluxos econômicos. A segunda o território, um país, um estado, instituições definidas por fronteiras, enfraquecidas pela primeira. “O lugar é a terceira totalidade, onde fragmentos da rede ganham uma dimensão única e socialmente concreta, graças à ocorrência, na contiguidade de fenômenos sociais agregados, baseados num acontecimento solidário, que é fruto da diversidade e num acontecer repetitivo, que não exclui a surpresa”. Ligando-se a existência das redes ao poder, podemos perceber que alguns atores ganham um papel de destaque na organização do espaço, e, ao mesmo tempo, a própria “estrutura do espaço constitui uma condição fundamental ao exercício do poder e à natureza local ou regional deste poder” (2008: 271). No processo globalizador, a cidade resulta, cada vez mais, de um processo de urbanização intensa. Nela, “as diversas frações se distinguem pelas diferenças das respectivas densidades técnicas e informacionais” (2008:306), num espaço diferenciado cada vez mais pelo acirramento das diferenças de objetos técnicos, que vai resultar num processo irracional. A cidade já vinha criando os seus excluídos e irracionais. O processo de globalização reforçou esta tendência, com atores privilegiados com demandas possíveis e a produção de irracionalidade para a maior parte. Segundo Morin, “o curso do desenvolvimento, na abrangência da economia globalizada, tende a sacrificar aquele que não obedece à lógica da competição estabelecida” (2012a:85). E voltamos à exacerbação de um valor único: o rendimento financeiro. Outro ponto referencial é a indicação que “uma dada situação não pode ser apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações intersubjetivas que a ca108 Bakhtin, E. Toward a philosophy of act, Austin University

162

racterizam” É preciso então se permitir identificar todos os tipos de ligações possíveis, considerando-se a preservação da alteridade para

of Texas Press,

a definição de novos pressupostos e de novos valores. Neste sentido

1993, p. 54.

e citando Baktin108, Santos indica que hoje há três situações básicas

nas relações: “Eu-para-mim mesmo; o outro-para-mim; o Eu-para-o outro” (2008:315). É nestas bases, acredita ele, que se constroem os valores através de um processo incessante de interações. Morin defende que essas interações devam estar ligadas também ao contexto. Observando sob a ótica do arranjo espacial, Santos define dois recortes: de um lado, “há extensões formadas por pontos que se agregam sem descontinuidade, como a definição tradicional de região. São as horizontalidades. De outro lado, há pontos no espaço que separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia” (2008:284). O autor entende essa conjunção como novas formas de solidariedade entre os lugares: as solidariedades organizacionais e, nos lembra que a verticalidade cria interdependências para a cooperação entre lugares. Essa interdependência relativa às informações, ligadas ao serviço das forças hegemônicas e ao serviço do Estado, vão permitir a definição de novas realidades espaciais, num incessante processo de entropia, que modifica constantemente os mapas de um mesmo território. Sobre entropia, que se constitui a base da cosmogênese, Morin não considera somente “uma ideia física à qual eu reduzo ou conduzo a ideia de desordem. É uma ideia termodinâmica que nos conduz à ideia física geral de que existe, no tempo do nosso universo, uma tendência para a degradação e para a dispersão, e, no que se refere às coisas e aos seres organizados, para a desorganização” (2008:46). É uma ideia que insere a desordem como um processo real, não metafórico. E é analisando os reflexos da globalização, que Santos, para analisá-los, define a cidade como a interseção entre as verticalidades e horizontalidades. As primeiras criando, pelos setores hegemônicos, “um cotidiano obediente e disciplinado”, apresentam uma tendência cada vez maior de união internacional. Nas outras aparecem tanto 109 Winner, Langdon.

a finalidade imposta de fora como sua contrapartida, localmente

Do artifact have

estabelecida, podendo se caracterizar como “o lugar da cegueira e da

politics? In:

descoberta, da complacência e da revolta” concomitantes (2008:286).

Machenzie, D&Wajcman, J. The social shape

Neste cenário, Santos, citando Winner109, destaca que as escolhas,

of Technology.

de cada lado, tendem a uma forte relação com a técnica: “é como,

Philadélphia, Open

diz ele, se as inovações técnicas se comportassem como se fossem

Universty Press/ Milton Keynes,

leis. A cada período técnico corresponde uma mudança geral nas

1985, p. 30.

relações sociais” (1008:299). 163

Santos aponta o espaço do saber técnico como suporte do saber hegemônico, enquanto outros espaços se tornam os espaços do fazer. Percebe o mundo formado por vários espaços que se cruzam e que são marcados pela ciência, pela tecnologia, pela informação e por uma carga de racionalidade, que vai significar o mecanismo pelo qual cada peça convida as demais a se pôr em movimento, considerando-se um poder ordenador. Observa, assim, que há espaços do mandar e espaços do obedecer, complementados por espaços onde esta racionalidade é menor ou mesmo inexistente e, portanto, apresentam outra lógica. Morin, ao considerar a racionalidade como o jogo, o diálogo incessante entre nossa mente e o mundo real, reconhecendo as irracionalidades conecta os autores. Neste processo, a cidade resulta, cada vez mais, de um movimento de urbanização intensa. Nela, “as diversas frações se distinguem pelas diferenças das respectivas densidades técnicas e informacionais” (Santos, 2008:306), num espaço diferenciado, que vai resultar num processo irracional. A cidade já vinha criando os seus excluídos e irracionais. O processo de globalização reforçou esta tendência, com atores privilegiados com demandas possíveis e a produção de irracionalidade para a maior parte. Na contemporaneidade todos os lugares se mundializaram. Segundo Santos, há locais globais simples, onde apenas alguns vetores da atual modernidade se instalaram e locais globais complexos, que coincidem com as grandes metrópoles, onde há profusão de vetores, de todas as técnicas e fins. É nesse espaço, segundo ele, que os fracos podem subsistir. Atualmente acolhe multidões expulsas do campo, ampliando a diversidade socio-espacial; ampliando as formas e divisões do trabalho e criando interações e intersubjetividades. “Há um lado da economia explicitamente globalizada, produzida de cima e um setor produzido de baixo, que nos países pobres, é um setor popular, (que se organiza na e pela sobrevivência), e que nos países ricos, inclui os setores desprivilegiados da sociedade, incluídos os emigrantes (2008:323)”. É uma situação-tipo, com variáveis em todo o mundo, consequência cada vez mais acentuada dos processos de concentração financeira da globalização. No sistema globalizado, segundo Sassen (1991), a economia produzida de baixo tende cada vez mais para a informalidade, criando dois tipos de sociedade distintos, incluindo neste processo a repartição das áreas das cidades. Santos expõe tanto a subordinação das camadas mais altas da população às regras rígidas, com normas implacáveis, que requerem 164

obediência para eficácia do sistema global, como a reflexão desta situação, como a característica imitativa, talvez caricatural, que se reproduz nas classes mais baixas. Deste segundo caso, entretanto, emergem outras características, como a organização móvel do trabalho, adaptando-se às necessidades internas e externas. Vivemos anteriormente uma época em que nos acostumávamos a uma existência longa e repetitiva, com os mesmos objetos que se modificavam em tempos mais lentos. Hoje é a mobilidade que se tornou praticamente uma regra. Tudo está em movimento, surgindo a ideia da desterritorialização, que traz junto a desculturalização. “Quando o homem se defronta com um espaço novo que não ajudou a criar, (...) esse lugar é sede de uma vigorosa alienação” (2008:328). Segundo Santos, isto acontece num primeiro momento de atordoamento. A sua interação com o novo meio vai se operando e mudando o homem, que vai se integrando e paralelamente recuperando a memória perdida. Não importa quanto tempo dure, esse “quadro de vida” vai interferir no cotidiano do homem a partir da experiência. Diante de um mundo em aceleração, esse processo requer um estado de alerta, pois dele emerge uma força renovadora, que tanto pode enriquecer as relações interpessoais como pode desconectar culturalmente. Neste ponto fizemos uma relação com Koolhaas e a Cidade Genérica. Contudo, “a noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história”. Dessa forma o presente, ou o conjunto de eventos num dado momento, é o dado dinâmico da nova história, ainda que carregue as ligações de um passado que permitiram a sua ocorrência. “O presente não é um resultado, uma decorrência do passado, do mesmo modo que o futuro não pode ser uma decorrência do presente” (2008:330). Neste mesmo sentido, Morin nos alerta que a cada novo presente, o passado se modifica, num processo reflexivo e recursivo. Quanto ao futuro, ”antes que chegue, já está lá (como mostra o exemplo da nossa dependência energética) ao mesmo tempo em que ainda não está” (2010(2):14). Morin propõe que se substitua o esquema linear da modernidade:

165

Pela concepção complexa que possa permitir uma reflexão menos utópica para o futuro.

Santos apresenta, ainda, três conceitos para observação da realidade geográfica (2008:332): —

A indissociabilidade do sistema de ações e do sistema de objetos;



A existência de ações globais, desterritorializadas, que ainda assim constituem normas de uso de sistemas de objeto localizados em paralelo a ações locais, determinadas pelo território, em si mesmo;



A superposição dessas duas ordens, que podem tanto se associar como se contrapor. Esses conceitos referenciam tanto o princípio hologramático como o dialógico, uma vez que complementaridades e antagonismos deverão ser analisados simultaneamente como partes de um todo, e também em sua coexistência no espaço. Santos, como já mencionado, destaca que a globalização é, num certo sentido, “perversa para toda a humanidade”, uma vez que suas ações autorreferenciadas criam, localmente, a desordem, com suas mudanças funcionais e estruturais, carentes de sentido contextual, já que o objetivo é o mercado global, formado por empresas gigantes, com suas próprias normas, de muitas formas indiferentes aos diversos lugares onde atuam. Neste contexto, “a complexidade espacial é agravada, como um problema coletivo” (2008:334-335), como por exemplo, no conflito entre o público e o privado, na utilização do espaço da cidade, a partir da lei da concorrência ou da chamada competitividade, que sugere uma utilização cada vez mais privatista, e que vai interferir na mobilidade para toda a população. Finalmente, ele constata que “o Mundo é apenas um conjunto de possibilidades, cuja efetivação vai depender das oportunidades oferecidas pelos lugares” (2008:338). Assim, os lugares competem para oferecer às ações globalizadas condições de ocorrência. Neste sentido, muitas normas e valores locais são rompidos. Mas o Mundo, ao mesmo tempo, depende da existência desses lugares e os escolhe

166

ou rejeita, modificando num processo contínuo a configuração do espaço como um todo, quebrando partes, modificando fluxos. A ordem global desterritorializa, a local territorializa. A global reparte, a local se faz a liga que ainda mantém os territórios, onde cada lugar é dialogicamente objeto de uma razão global e de uma razão local. Santos, neste texto, afirma uma busca evidente de uma definição ontológica para a Geografia, recusando mesmo a proposta de Giddens quando este indica que a Sociologia teria “muito a ganhar com a contribuição teórica da Geografia”, pois permitiria que os sociólogos incorporassem os conceitos de espaço em suas análises. Santos contrapõe que, “é à geografia que cabe elaborar seus próprios conceitos, antes de tentar emprestar formulações a outros campos” (2008:87). Neste quesito, o autor se opõe de certa maneira a proposta da complexidade, que se relaciona diretamente à dissolução das fronteiras disciplinares, e propõe uma nova transdisciplinaridade. Mas ele reconhece a interação entre as partes e observa a necessidade da coerência externa, ou seja , estruturas que definem a sociedade e o planeta e que dão sentido às disciplinas. Complementando, ele ainda busca critérios de organização definidos a priori e internamente à própria disciplina, como para reforçar este campo, e só então se permitir trocar com outros campos. Contudo, como alguém que atravessa um processo em transformação e de forma inteligente percebe a complexidade do real, ele estabelece várias interações com os conceitos que são a base do pensamento complexo moriniano. Declara a pertinência da cosmogênese moriniana. Aborda as relações do princípio hologramático, descrevendo-as de forma similar a Morin, apresenta nas suas análises situações dialógicas, entendendo com clareza a simultaneidade e os conflitos, analisa adequadamente tanto a recursividade do tempo como aquela que acontece na transformação do espaço urbano. Observa as consequências da globalização na sociedade, indica a transformação do valor financeiro como predominante e a consequente necessidade de novos valores. Percebe a divisão das redes mundiais em três níveis, o global, o território enfraquecido e o local. Assim como Morin, Santos diz não acreditar que o Estado tornou-se desnecessário, com o crescimento das empresas transnacionais. Mais que nunca, existe a necessidade do poder nacional para que cada país tenha algum comando na nova ordem global. Mas as con167

dições atuais fazem com que regiões se transformem continuamente, com um nível de complexidade e de velocidade de mudanças muito intenso. Percebe nisso novas emergências relativas ao habitante que se desloca para outros países. Referencia Morin na sua proposta de mundialização/desmundialização, baseada na comunicação das culturas num nível global. Observa as rupturas que convivem no espaço urbano classificando-as de verticalidades ligadas às regras da globalização e horizontalidades, formadas por pontos sem descontinuidade, e que reforçam a tênue estrutura da territorialidade. Enfim, percorre conceitos que reforçam a nossa hipótese de que um exercício epistemológico de interação entre a complexidade urbanística e a teoria da complexidade moriniana é uma possibilidade real. Tanto ele como os outros autores escolhidos não apresentam uma ligação direta de método com a proposta moriniana. Mas cada um deles, em sua abordagem, apresenta conceitos que estabelecem as interações referenciais, que provam que uma experimentação teórico-prática, neste sentido, poderia contribuir para uma nova perspectiva de estudo do Urbanismo. No próximo capítulo, apresentaremos algumas tendências e exemplos de atividades que substanciam alguns princípios da nossa proposta epistemológica para uma conclusão final no capítulo cinco.

168

4.

Tendências e atividades pertinentes ao nosso exercício

4.1

Diálogo com a incerteza Morin nos faz atentar que há uma considerável distância entre o evento e a consciência de seu significado, sempre em atraso em relação ao imediato. O presente só é perceptível superficialmente e suas interações invisíveis, em geral, só são esclarecidas recursivamente. Por outro lado, o conhecimento tem sido atropelado “pela rapidez das evoluções e transformações contemporâneas e pela complexidade própria da globalização...” (Morin, 2012a:24). Destacamos no texto, que o conhecimento humano cresceu vertiginosamente e que hoje o urbanista se depara com um universo de informações relativas ao projeto dificilmente dominadas por um só campo disciplinar. Além disso, o urbanista está entre os profissionais que se ocupa da construção de um futuro, que é incerto e, por isso, pode tomar decisões coerentes no momento imediato, mas que podem se monstrar contraditórias em longo prazo. Também é possível observar que a velocidade das transformações é intensa. O conhecimento tanto se desenvolve em seus conteúdos específicos, como se processa em tempos cada vez mais curtos. Este processo tende a impedir o distanciamento reflexivo, ou seja, a possibilidade de um aprofundamento em longo prazo.

169

Morin propõe que comecemos pela extinção das falsas clarezas, do conhecimento seguro, e adotemos a crítica da segurança. A incerteza torna-se uma previsão do processo: a dúvida como dimensão da reflexividade; a dúvida pela qual o sujeito se interroga sobre as condições de emergência e de existência do seu próprio pensamento. Muitos urbanistas têm se questionado sobre o que significa esta atividade no contexto atual, como por exemplo, Levy (2012:105), que defende o urbanismo que ele denomina transacional, e que vai partir de quatro princípios, que poderíamos qualificar de estratégias. No primeiro caso ele define que o projeto urbano, que se alonga no tempo, mobiliza, no curso de seu desenvolvimento, diferentes funções de adaptação, todas conservando as relações interativas entre elas. A velha ideia da concepção-realização é rompida. O projeto precisa ser maleável para se adaptar às diferentes conjunturas que surgirão. Em relação à crise ecológica atual, Levy considera que podemos nos questionar se estamos diante de um novo discurso urbanístico sobre cidade sustentável, sem, contudo, estabelecer regras gerais. Observando a importância das características específicas, recusa um modelo formal geral, no sentido de permitir a cada cidade o cuidado de encontrar suas próprias respostas aos seus próprios problemas de sustentabilidade (2012:109). Seu segundo princípio, em consequência, é a recusa do grande projeto único, dominador e imposto - o projeto moderno – que deu lugar à confrontação/colaboração de projetos múltiplos, mais limitados e particulares, tomando a forma de co-concepção e co-produção, que resultam num projeto global (ou total) fruto da síntese negociada de vários pequenos projetos, reduzidos, limitados dentro do espaço, e que mobilizam diversos autores, competências e responsabilidades políticas eleitas (2012:111). Na introdução do terceiro ponto, indica que se baseou em dois autores: Y. Janvier e G. Pinson que estudaram bem as transformações referentes ao sistema de atores diversos. Segundo Levy, Janvier declara que passamos de um modelo de decisão administrativo-gerencial, autoritário, hierárquico, piramidal e vertical para outro modelo negociado, aberto, horizontal e pluralista, com uma multiplicidade de atores que intervêm em interação. Este processo realiza quatro grandes funções de organização: estratégica, de partilha política, de coordenação técnica, e de realização. O atual modelo consiste num vai-e-vem entre essas funções, uma ida e vinda às fases do projeto, 170

mantendo-se flexível e aberto às mudanças. Ele define três fases de projeto: montante, ou seja, concepção e estratégia; intermediária que se realiza pela condução do processo; e aval que possibilita sua efetuação (2012:112). O último ponto, complementar ao terceiro, diz respeito à introdução do habitante e cidadão como ator do debate e do processo de decisão. Ele leva em consideração o desenvolvimento participativo da democracia local, a partir da exigência de participação dos habitantes e usuários, na administração do ambiente, reformulando um urbanismo autoritário e arbitrário, e considerando à qualidade de vida cotidiana. Esse processo tende a se consolidar na vontade dos políticos eleitos de associar os eleitores à gestão urbana, frequentemente com o objetivo de desarmar a contestação e prevenir as possíveis oposições (2012:113). Contudo ele cita uma abundante literatura sobre a participação cidadã110 que pode ser consultada para que se estude melhor o assunto, tanto do ponto de vista das estratégias como dos possíveis conflitos. Desta forma, Levy considera que o sistema de atores de um projeto tornou-se complexo, com a entrada do ator cidadão, tornando o processo de decisão mais pesado e lento. Nestas condições, o projeto não é mais definido a priori; resultando agora de uma discussão, de um processo de negociação mais ou menos longo, método que define como aproximação construtivista. Ele constata ainda que, esse processo pode redundar tanto no aporte de novas ideias e de substância de conteúdo para o projeto, como pode significar uma desubstancialização do urbanismo, o que pode explicar a emergência da doutrina de cidades sustentáveis, como uma tentativa de trazer novo entusiasmo a este tema. Chama atenção ainda para o contexto de enfraquecimento do poder do Estado, citando Pinson para ressaltar que “não é mais uma coali110 Callon, M;

zão que faz o projeto, mas sim o projeto que faz a coalizão, como um

Lascoumes, P;

agrupamento de interesses comuns”, dando ao projeto uma caracte-

Barthes, Y. Agir

rística de construir um sistema de atores capazes de se mobilizar e

dans un monde

de se aliar de maneira estável (2012:214).

incertain, Seuil, Paris, 2001 ; Blondiaux, L

São vários os pontos comuns entre Levy e a teoria da complexida-

et Sintomer, Y

de moriniana, propostos para o enfrentamento das novas questões

[dir] Démocratie et déliberation, in

da urbanidade contemporânea, tais como: o compartilhamento das

Politix, no 57, 2002;

decisões na cocriação, a participação de vários agentes, na síntese

entre outros.

negociada, com a mudança de um modelo de decisão administra171

tivo-gerencial, autoritário, hierárquico, piramidal e vertical para outro modelo negociado, aberto, horizontal e pluralista e por último a participação cidadã. Mas um dos pontos mais interessantes é sua visão de que o projeto não é mais definido a priori, ou seja, parte da organização de todos os atores e critérios relacionados. Morin acredita que vivemos um tempo de metamorfose e esta metamorfose precisa ter uma ebulição criativa. Considera, também, que esse processo já começou, sem que tenhamos plena consciência disto (2012a:51). Há múltiplos caminhos, se desenvolvendo aqui e ali, mas ainda desconectados. Segundo ele, é preciso um censo, é preciso religar. São caminhos dispersos que podem, se observados conjuntamente, conjugarem- se para formar novas alternativas. Nós, no escopo desta pesquisa, temos encontrado tendências e critérios convergentes no sentido da teoria da complexidade, como os autores apresentados no capítulo três e as propostas de Levy, estabelecidas acima. Independentemente da teoria da complexidade moriniana, eixo teórico do nosso exercício epistemológico, temos também encontrado experiências, atividades ou tendências que contêm todas elas indícios ou interações com os critérios até aqui elencados. Cada qual, desenvolvida em um caminho, cada qual buscando mudanças para um trabalho mais adequado à cidade e à vida contemporâneas. Em pontos separados ou consecutivos, são exemplos de um conjunto maior tendendo à mudanças ainda em processo, dispersas e desconectadas, mas que apresentam um fio comum como pontos de ligação com a teoria aqui apresentada. São essas tendências que nos fazem, também, acreditar na possibilidade do nosso exercício epistemológico. Dentre elas, há algumas que podem repercutir na organização das cidades, como por exemplo, as discussões sobre as medições de desenvolvimento pelo Produto Interno Bruto. Há tentativas de modificação que incluem o Índice de Qualidade de Vida para avaliação internacional. Esse índice mede algumas relações do urbano com seus habitantes, que podem influenciar decisões de projetos urbanos. Consideramos importante apontar algumas dessas experiências ou atividades, no intuito de relacioná-las ao nosso exercício, para análises relativas à nossa hipótese sobre a possibilidade de se trabalhar o urbanismo através da complexidade moriniana. 172

4.2

A participação dos diversos atores no projeto urbano Morin crê que é necessário que se estabeleçam formas de participação dos cidadãos nas decisões, “principalmente nas escalas locais” (2012a:104). Indica que essa participação pode amenisar ‘as escleroses e insuficiências da democracia representativa’, mas destaca que é preciso considerar certos perigos., dentre os quais a sub-representatividade ou abstenção. É preciso encontrar motivação para gerar interesse e participação. Mencionamos no texto os editos comunais, um exemplo de equilíbrio, entre a cidade como realidade material e como conjunto de instituições, entre a força da tradição e o poder de inovação, entre a iniciativa dos indivíduos e o consenso da coletividade. A crítica, neste ponto, tem sido relativa às escalas. Acreditamos que precisamos observar as diferentes escalas, principalmente quando a participação é requisitada em territórios maiores. Nste aspecto, é possível concordar. Contudo, há que enfrentar a questão tanto de forma prática como nas pesquisas teóricas, pois a participação, dentro do exercício aqui proposto, não só cria compreensão do processo, como estimula às solidariedades e responsabilidades. Muitos podem argumentar que, como as escalas se modificaram, na complexidade contemporânea a participação ou é uma atividade pró-forma, que visa somente respaldar uma teoria, sem na realidade fazer diferença nas decisões; ou se dissolve nos conflitos que ela mesma pode gerar. Existem problemas, obviamente, mas quantas impossibilidades o mundo já viu caírem por terra com rupturas e inovações? Acreditamos, então, que testar possibilidades seja um caminho.

111 Texto baseado na publicação Design for small communities: a report

Ao longo deste estudo, e mesmo antes dele, observamos alguns exemplos que julgamos do interesse desta pesquisa mencionarmos.

of Interdesign’74/

O primeiro deles, no cerne do interesse que culminou com este tra-

Ontario, editada

balho, data dos anos 70 do século passado e se insere numa série de

por David Fulton, em um projeto

workshops. Foram experiências promovidas pelo ICSID – International

da Associação

Council of Societies of Industrial Design; dentre elas, o evento denomina-

dos Desenhistas

do Design for Small Communities | Interdesign’74/Ontario.

Industriais do Canadá, com a cooperação

Em sua descrição de propósitos111, o presidente do ICSID declara que

do governo de

o futuro do design estaria ligado a habilidade dos profissionais em

Ontário, publicada

responder aos problemas emergentes no ambiente construído pelo

por Macmillan Company of

homem. Destaca que aquele evento teria uma abordagem única,

Canada Ltda,

porque o método de trabalho dos designers inscritos iria requerer o

Toronto, 1975.

envolvimento deles com os residentes da área estudada. O resultado 173

para a comunidade foi um balanço do existente e das possibilidades futuras, relativas a aspectos que continuam, até hoje, nas agendas das cidades. No evento, realizado no Canadá, a área destinada ao estudo era formada pelas cidades de Port Hope e Cobourg, juntamente com os distritos rurais de Hope e Township, cobrindo uma totalidade de 500km2, situados a 100 km a leste da Toronto metropolitana. O evento vinha a propósito de algumas decisões de planejamento, que pressupunham a agregação dessa área à outra cidade, Osawa. Com a reação contrária da população, o governo incluiu o evento Interdesign 74, entre as atividades preparatórias para definir como essa área deveria crescer. Na área, já eram conhecidos muitos problemas, com conflitos de interesse e perda da identidade local. Para prover os participantes com temas- guia foram definidos cinco temas de interesse: produção industrial, serviços, meio ambiente, recreação e turismo e atividades comunitárias. Nas áreas rurais não existia um transporte regular, com alta taxa de dependência do transporte individual, em veículos próprios, incluindo, também, dificuldades na distribuição de água. Questões ligadas à educação também preocupavam. A região parecia estar num estágio de transição, com muitas incertezas futuras. A dinâmica do workshop se tornou complexa, já que cerca de 40 designers, arquitetos e engenheiros de 26 diferentes países, se inscreveram. Assim, a primeira proposta do evento era fazer com que essa diversidade de participantes não só se conhecesse e se integrasse como também tivessem contato com os residentes das áreas. Para tal, os dois primeiros dias tiveram esse objetivo, e foi exatamente a urgência do tempo, duas semanas para definir resultados, que de certa forma ajudou na integração. Mas o processo começou seis meses antes: os designers receberam um relatório de coleta de dados, desenvolvido durante três meses, e que eles teriam mais três meses para analisar. Este era o documento, elaborado por uma equipe de pesquisadores, que, contendo informações detalhadas da área a ser estudada, abriria o diálogo com os habitantes. Mas, na verdade, o diálogo começou antes, com visitas ao local por uma equipe de pesquisadores, quando foram recolhidas estatísticas, gráficos, informações que fizeram parte do levantamento de dados. As visitas não foram somente formais, mas incluíam encontros casuais ou programados em fábricas, residências, na rua 174

e em bares. Os cidadãos foram estimulados a participar do processo. Alguns deles se destacaram e seus talentos foram, então, muito bem aproveitados. Em um dos relatos dos habitantes, destaca-se um texto que 40 anos depois, ainda parece atual!

Nós não podemos enfatizar a necessidade de um meio ambiente equilibrado e saudável. O desenvolvimento urbano se expressa por formas incompatíveis com esses objetivos. Mas, nós acreditamos que nosso sistema ecológico precisa ser preservado. O curso d’água e as nascentes dos principais rios podem ser destruídos 112 De um relato



pelo avanço do desenvolvimento urbano. Não sabemos quanta

de cidadãos do

pressão por desenvolvimento nossas áreas podem suportar. O de-

distrito de Hope,

safio é como gerenciar, criar e projetar crescimento e formas que

idem nota

são compatíveis com água e ar limpos, vida selvagem e matas.112

119, p.51.

O relatório enfatiza que a interação especial, que surgiu entre todos os participantes, criou um diálogo fora do comum nas relações cliente/designer. Mais de cem desenhos foram produzidos, juntamente com textos, fotografias, e vídeos. Os resultados não foram identificados individualmente, mas por grupos e se constituíam em recomendações sobre todos os problemas levantados e algumas sugestões para o desenho urbano, entre as quais, seguem exemplos:

Fig. 20 – Símbolo da identidade da área Fig. 21 Proposta de uso da identidade 175

Fig. 22 – Análise e proposta urbana

Fig. 23 Proposta de uma rua de pedestres para funcionar como centro [planta]

Fig. 24 Proposta de uma rua de pedestres para funcionar como centro [perspectiva]

176

Observando do ponto de vista da transversalidade de conhecimentos e da aprendizagem pelo processo, consideramos este trabalho exemplar. A equipe de pesquisa era multidisciplinar e envolvia cinco diretores das diversas áreas ou temas da comunidade e seus técnicos, tais como: indústria, serviços, recreação e turismo, atividades comunitárias e meio ambiente. Entre os participantes havia designers gráficos e de produto, engenheiros, arquitetos e urbanistas. Segundo Carl Auböck, presidente do ICSID, neste período, o problema apresentado aos participantes não foi fácil, de forma nenhuma, e envolveu soluções desde o planejamento geral para a área até a comunicação e o planejamento de produtos urbanos. “Os pessimistas prediziam que seria virtualmente impossível se concluir com alguma coisa meio séria no curto espaço de tempo disponível de uma quinzena”113. Mas o grupo internacional surpreendeu, e suas contribuições, as que puderam acontecer no tempo previsto, foram úteis para as duas comunidades, provocando a participação intensa dos habitantes, permitindo a discussão pública, motivando reflexões de base para a ação futura. Muitos podem argumentar que esse tipo de método de trabalho só vai funcionar em sociedades mais estruturadas, que culturalmente já envolvam o cidadão. Embora possamos considerar um desafio difícil, nós cremos que este é um argumento de manutenção de um processo autoritário, que defende as soluções impostas. Entendemos, também, que a própria condição comunicativa atual, contém instrumentos que podem facilitar a operacionalidade destes processos. Na França, onde estivemos em pesquisa, há exemplos de diversas formas de participação cidadã em projetos urbanos. Algumas de estruturação mais fechada, mais definida, com um caráter mais informativo e outras, mais abertas, expostas a intervenções mais efetivas, ainda que reduzidas a grupos específicos. O processo participativo está cada vez mais consolidado naquele país como veremos adiante. As mesmas formas de participação são encontradas em outros locais, contudo, apresentamos o material a que tivemos acesso e que observamos, no sentido de indicar atividades, que emergiram a 113 Statement, de Carl

partir dos meados do século passado e se constituem como uma ten-

Auböck , idem nota

dência, com diferentes abordagens, dependendo dos projetos e das

119, p.129.

políticas de cada local. Colecionamos alguns exemplos.

177

Em 2001, visitamos o Centre d’information da Paris Rive Gauche | Atelier Ville, no 13º arrondissement de Paris. Lá estava montado todo um sistema de informação sobre a obra, que poderia ser pesquisado tanto pelos habitantes como por turistas no sentido de se obter detalhes e informações sobre o projeto. Aquele Atelier foi aberto em dezembro de 1999, com um convite à participação popular. No folheto do convite o prefeito local apresenta a arquiteta urbanista Odile Widermann Zachariasen, com experiência refletir com os habitantes sobre grandes obras e capaz de manter com eles um diálogo verdadeiro. Em nossa visita, estrangeira, recebemos todas as informações e publicações que solicitamos, mas na época não consultamos sobre o método de participação cidadã adotado naquela experiência.

Fig. 25 Arquiteta urbanista Odile Widermann Zachariasen, no folheto convite à participação dos habitantes.

Embora desconhecendo os mecanismos de participação, cremos que tanto a ênfase do convite como a disponibilização de um responsável, no caso a arquiteta, por todo o tempo da obra, abre o diálogo com quem quiser se organizar para participar. Contudo, é muito mais um processo informativo do que uma atividade de conhecimento transversal. A menção deste exemplo se faz pela demonstração de uma tendência. Já em 2012, em relação ao projeto Port Seine-Métropole, encontramos um processo de encontros de decisões. No folheto informativo, há um relatório síntese da última consulta aos atores parceiros, indicando a participação de 80 pessoas, e relacionando duas interpelações que deveriam seguir como critérios do empreendimento:

178



que o projeto deve considerar as vistas (paisagens) a proteger;



e que a parte modal, ou seja, aquela subordinada às condições mais ou menos desconhecidas ou prováveis da via férrea seja considerada. No mesmo impresso, há o anúncio da reunião subsequente, bem como uma previsão de calendário deste movimento em relação às possíveis participações:

2012

Continuação dos estudos e da consulta aos pareciros

2013

Debate público (segundo decisão da CNPD)

2014/16

Estudo do impacto da solução mantida/consulta pública

2016

Início dos trabalhos

2018

Primeiras unidades à funcionar

Fig. 26 Previsão de calendário de reuniões com o anuncio de cada etapa de consulta.

Neste exemplo, temos indícios de que entre os parceiros do empreendimento existe sim a transversalidade das decisões, acredita-se, a partir de discussões e negociações, mas o debate público é estabelecido por decisão externa, da CNPD – Comission Nationale du Débat Public114. Avaliando este exemplo, percebemos um processo participativo em consolidação na França. Desde os anos 70 a participação cidadã nas obras públicas começou a ganhar importância. Finalmente, em 1995, 114 Comissão Nacional do Debate Público, regulamentada

a lei Barnier institucionalizou essa tendência, criando a Comissão Nacional do Debate Público (CNDP). Em 2002, a lei Voynet tornou-a

por uma série

autoridade administrativa independente, aumentando sua compe-

de leis - http://

tência..

www.debatpublic. fr/debat-public/ textes-fondateurs.

Existem as leis, mas, sem uma pesquisa específica e direcionada,

html

não é possível julgar se o debate assim como a consulta pública 179

115 Centre Scientifique

subsequente realmente afetaram as decisões de projeto e implan-

et Technique du

tação do complexo, e de que maneira há interligações da área com

Bâtiment - CSTB

as demandas gerais da cidade. Há indícios de que haveria alguma transversalidade de decisões uma vez que o estudo de impacto ocorre depois do debate e antes da última consulta pública. Em outro estudo, realizado por duas instituições: o CSTB115- Centre Scientifique et Technique du Bâtiment e o PUCA116- Plan Urbanisme Cons-

116 Plan Urbanisme

truction Architecture, sobre fatores e condições de sucesso dos proje-

Construction Architecture é

tos urbanos complexos117 em que também se aborda a participação

um serviço

dos atores, analisando inclusive formas legais de registro e contrato

interministerial ligado à Direction

destas participações, percebemos a preocupação tanto da consulta

générale de

de projeto aos parceiros, como a construção de instrumentos que

l’Aménagement, du

facilitem o desenvolvimento do projeto frente aos possíveis conflitos

Logement et de la

que, caminhando pelos processos jurídicos possam intervir no anda-

Nature (DGALN)

mento do projeto e sua implantação.

do Ministério da Ecologia, do Desenvolvimento e da Energia e

Analisando os procedimentos de uma intervenção urbanística com-

do Ministério da

plexa, Le quartier des Bassins à Flôts à Bordeaux, eles mencionam os

Igualdade dos

mecanismos e instrumentos que tornam possível o desenvolvimento

Territórios e da

do projeto que se constitui de:

Habitação.



Programa: 442.000 m2 de habitações com acréscimos de acessibilidade; 57.000 m2 para o comércio; 95.000 m2 para o setor terciário, 81.000 m2 para atividades industriais e náuticas; 25.000 m2 para equipamentos coletivos;

— 117 Facteurs et conditions

Atores: a comunidade urbana de Bordeaux, em parceria com a Prefeitura e o Porto; os arquitetos da Agence Nicolas Michelin et Associés

de réussite des

(ANMA) e diversos organismos que compõem o conselho urbanístico

projets urbains

destinado a acompanhar o projeto; operadores privados da constru-

complexes: l’exemple

ção e das negociações imobiliárias mais 68 equipes de arquitetos que

des bassins à Flots à Bordeaux, por Marie

trabalham em bacias com eclusas.

Llorente [CSTB] e Thierry Vilmin [Logiville], juillet 2012, monografie,

O objetivo do projeto é beneficiar dois setores econômicos da região: O Centro Cultural e Turístico do Vinho e a Base Subaquática.

janvier 2013 fascicule.

Todo o trabalho é fundamentado na economia neo-institucional – NEI, aplicada à organização urbana, dentre outros sentidos, para entender o nível de integração ou de dispersão dos atores, em função do tipo de operação e do quadro institucional, além de perceber as variáveis dos custos de transações. Essas análises têm na sua origem conceitos de Herbert Simon, um dos precursores da complexidade, e Oliver Eaton Williamson, prêmio Nobel de economia de 2009.

180

O projeto é apresentado como PAE - Plan d’Aménagement d’Ensemble e se inscreve juridicamente no PLU - Plan Local d’Urbanisme118. Mas o verdadeiro plano de urbanismo não é o PLU, mas um plano-guia, documento em evolução constante, sem valor legal ou possibilidade de contestação jurídica, que retoma as proposições do arquiteto Nicolas Michelin, detalhadas a partir das discussões e dos estudos de viabilidade. O Plano-guia precede o PLU, este de validade jurídica, que vai sendo modificado a cada ano em função do avanço do plano-guia. A metodologia do trabalho é definida juntamente com L’Ateliers de Bassins e dispõe de vários procedimentos ou pressupostos que direcionam as interações.

118 PAE - Plano de

As primeiras consultas aos habitantes se iniciaram em 2008, antes

desenvolvimento

do trabalho de criação, e como a área era pouco habitada, o interesse

de conjunto;

veio dos territórios vizinhos. As reuniões aconteceram primeira-

PLU – Plano Local de Urbanismo

mente em número de três ou quatro, seguidas de duas por ano. A proposta é politicamente bem aceita e a Prefeitura juntamente com L’Atelier se encarrega da difusão das informações, o que permite uma estrutura de governança relativamente pouco formalizada.

Fig. 27 Foto antes da proposta de projeto – Les Bassins à Flot, em Bordeaux [Fotos ANMA].

Fig. 28 Foto depois da proposta de projeto – Les Bassins à Flot, em Bordeaux [Fotos ANMA]. 181

Fig. 29 Vista aérea da área do projeto Les Bassins à flots. [Google]

Ainda sobre a participação em projetos urbanos, há que se fazer referência a uma instituição francesa cujo objetivo é trabalhar neste sentido - Les Ateliers119. Mais que descrever seu trabalho, é importante citar um trecho de um folheto, assinado por Bertrand Warnier, presidente do comitê cientifico do Les Ateliers:

Produzindo cidades: Se a arquitetura ou a arte possa vir de uma única mente, a produção da cidade não pode ser atribuída a uma personalidade que vai dominar todos os aspectos da produção urbana, que é inerente ao coletivo. O método proposto por Les Ateliers de abordar tópicos do planejamento e desenvolvimento de forma integrada é similar a um laboratório que deve integrar várias disciplinas que interferem com a cidade e suas interações. ...

119 L’association

Na fig. 30 um instante do workshop de Les Ateliers, em setembro de

Les Ateliers

2012, para a comunidade da aglomeração Cergy-Pontoise, contando

Internationaux de

com a presença de profissionais de várias disciplinas. A proposta

Maîtrise d’Oeuvre Urbaine de Cergy-

foi discutir, durante quatro semanas, os problemas urbanos reais e

Pontoise

levar proposições aos agentes de decisão. É um exemplo similar ao Interdesign 74, apresentado anteriormente.

182

Fig. 30 Workshop de Les Ateliers, em setembro de 2012, para a comunidade da aglomeração Cergy-Pontoise.

Finalmente, uma proposta que pode alterar as relações de governança das cidades e que, em consequência, vai influenciar as decisões de projeto urbano, tanto na prática como reflexivamente, são as propostas de gestão participativa. Morin, como já dissemos, cita neste sentido, as experiências brasileiras e colombianas. A partir de folhetos de divulgação deste tipo de governança, verificamos que, no Rio Grande do Sul, o sistema de orçamento participativo se transformou, no nível estadual, num Sistema Estadual de Participação Popular e Cidadã. Não cabe aqui neste trabalho uma análise da sua realização e eficácia, somente a citação de um processo pensado e que se desenvolve atualmente. Não temos como fazer juízos, nem é nossa proposta, assim como nos exemplos anteriores. Nossa intenção é demonstrar tendências. Em folheto sobre o processo, Tarso Genro afirma que “as democracias em crise nos demonstram que, se nós nos ativermos a exercer a representação política sem uma relação dialógica com a sociedade, que permita, através de mecanismos de transparência e de participação que as comunidades interfiram sobre a conduta dos governantes, nós teremos estados cada vez mais autoritários, cada vez mais deslegitimados”. Considera esta a questão chave da proposta, que tem bases legais e de organização administrativa. A lei 13.601/2011 atribui à Secretaria do Planejamento e Gestão a tarefa da participação cidadã. A gestão administrativa integra: a Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul com noventa membros da sociedade civil; o Gabinete dos Prefeitos e das Relações Federativas, porta de entrada para o relacionamento federativo entre cidades e Estado; o aproveitamento da existência 183

tanto do COREDES – Conselhos Regionais de Desenvolvimento, em atividade há mais de 20 anos, em 28 regiões do Estado como dos aproximadamente 20 conselhos setoriais de políticas públicas. O trabalho visa: —

a participação cidadã presencial ou digital;



a transversalidade das decisões e das execuções das políticas públicas;



a realização de reuniões plenárias públicas de livre acesso;



a presença estruturada do governo em todo o Estado;



a promoção de um diálogo qualificado e sistemático. Das várias atividades apresentadas nos folhetos, destacam-se a aprovação do orçamento de 2012 com a participação de 1.134.141 votantes, no dia 10 de agosto e a itinerância do governo no interior

120 http://www.portaldaparticipacao. rs.gov.br

do Estado. De acordo com as informações no portal digital120, a programação deste sistema continua em atividade, conforme agenda de participação do site (fig. 31).

Fig. 31 Agenda do Sistema Estadual de Participação Popular e Cidadã

Acreditamos que a tendência da participação cidadã já é um processo em andamento. Contudo, é preciso para tal que os atores dos setores da governança também interajam entre si. O processo é difícil, com diversas vertentes, institucionalizado em alguns países ou cidades e ainda em desenvolvimento em outros. locais, tanto pelos pesquisadores, de forma auto-organizada, como no caso das diversas ONGs e coletivos que trabalham com o tema.

184

Há uma tendência entre os jovens estudantes de experimentar o trabalho em coletivos. Em recente trabalho de graduação no curso de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes, um aluno121 selecionou 260 instituições nacionais e internacionais, para sua pesquisa relativa ao tema de mobiliário urbano, e destas obteve 60 respostas ao seu questionário, em três semanas. Este é um movimento novo, mais uma tendência que demonstra o processo de inserção do conhecimento, estabelecido no princípio da autoeco-organização estabelecido por Morin. 121 Mobiliário Urbano - faça você mesmo,

Abaixo, alguns dos links de alguns dos coletivos selecionados pelo

de Pedro Caetano

aluno.

Éboli, trabalho de graduação em Design de Produto,

http://abi.abo.free.fr/

apresentado à

http://www.brokencitylab.org/

banca em março

http://www.belarua.com.br/#viva

de 2014, no Departamento

http://www.72hoururbanaction.com/#!72-cities/c13tl

de Desenho

http://www.bruitdufrigo.com/index.php?id=59

Industrial,

https://www.facebook.com/atelier.urbain.strasbourg

da Escola de Belas Artes, da

https://www.facebook.com/causaco

Universidade

http://cidadesparalelas.tumblr.com/

Federal do Rio de Janeiro.

Da observação das experiências aqui apresentadas, podemos concluir que a diversidade de tendências é grande, mas com um vetor de transformação comum - a inserção do habitante nas decisões que afetam as cidades e consequentemente o cotidiano de todos. Quando a modernidade se utilizou de conceitos universais, que excluíam o sujeito, as propostas se mantinham separadas das demandas dos habitantes. Acreditamos, no entanto, que o sujeito sempre esteve incluído, só que de maneira implícita e direcionada pelos decisores do projeto. Quando a contemporaneidade passa a considerar o sujeito como parte integrante do objeto, os conceitos tendem à complexidade. E, neste sentido, acreditamos, como Morin (2012a:327) que, para uma reflexão efetiva sobre o presente e o futuro, para um “urbanismo reflexivo”, é preciso trabalhar de modo conjunto, é preciso desenvolver possibilidades transdisciplinares.

185

4.3

A transdisciplinaridade comparada Revendo alguns conceitos definidos no capítulo dois, observamos que a falta de percepção para ações entre as partes e o todo e vice-versa não nos permitia a constatação daquilo que Morin denomina de emergências, e que tanto podem ser positivas, resultando em novas perspectivas como podem se constituir em problemas ocultos. Também abordamos a questão da circularidade das ciências ou dos saberes, que abre a possibilidade de um método que, pela interação se tornaria produtivo através dos processos de trocas. Seria a busca de uma aprendizagem em ciclo, ou seja, a tentativa de trabalhar sem estabelecer um conhecimento dominante, mas ao contrário buscar os pontos estratégicos, os nós de comunicação, as articulações organizacionais entre esferas separadas de cada disciplina envolvida (Morin, 2008:33). Outro ponto a destacar, novamente, se refere ao atual processo de desenvolvimento do mundo, quando o conhecimento é atropelado pela rapidez dos fatos. Temos um mundo em constante evolução e regressão. Valores são substituídos, frente aos novos desafios que a realidade impõe às sociedades. Vivenciamos um processo de globalização que se intensifica e se diversifica em espaços de tempo cada vez menores. Também observamos que a incompletude e a incerteza ganham novas dimensões, juntamente com os riscos que derivam dos processos de globalização e das condições ecológicas atuais. Atentamos também para a falência dos paradigmas e a necessidade de descobrir novas maneiras de se trabalhar a complexidade contemporânea. Neste contexto, os processos interdisciplinares têm sido indicados, juntamente com formas de participação da sociedade civil, com o objetivo de resolver situações nas quais a incerteza é dominante, ou outras questões que envolvem a mitigação de problemas complexos, ou em decisões estratégicas que podem causar impacto nas comunidades, e mais recentemente nos eventos severos decorrentes das mudanças climáticas. Essas observações, entre outras, são indícios da oportunidade de se trabalhar de forma conjugada, através de processos interdisciplinares, procedimento que tem sido estudado pelas diversas áreas do saber. Buscando referências de estudos ou projetos transdisciplinares, constatamos que o volume de pesquisas sobre o tema se avoluma

186

e já há sites organizados para apresentar uma visão mais conjunta destes trabalhos122. Na organização educacional , o Indian Institute for Human Settlements (IIHS) é uma universidade cujos cursos foram estruturados considerando somente a metodologia interdisciplinar. As universidades, em geral, apresentam projetos que se alinham neste sentido em vários países, por exemplo, Alemanha123, Suíça124, Estados Unidos125, Brasil126. A UNESCO também está trabalhando o tema, via seminários e colóquios127, da mesma forma que o CNRS, na França128, que também desenvolve vários projetos. Buscamos, no capítulo 2, entender os diferentes conceitos estabe122 http://www. transdisciplinarity. ch/e/Bibliography/ new.php

123 http://pub. uni-bielefeld.de/

lecidos para dar conta da diversidade de enfoques dos projetos ou pesquisas que se propõem trabalhar com a diversidade disciplinar conjunta. Terminamos por adotar para o nosso exercício epistemológico a nova transdisciplinaridade proposta por Morin, como um ponto de partida para o nosso trabalho.

publication/

Assim, elencamos dois tipos de pressupostos para o trabalho, tanto

2320135

teórico como prático, de forma transdisciplinar. O primeiro gru-

124 http://www.trans-

po se relaciona aos conceitos que devem ser trabalhados junto ao

disciplinarity.ch/e/

elenco de atores: a transdisciplinaridade seria o termo escolhido; as

Transdisciplinari-

decisões do grupo precisam ser, fundamentalmente, tomadas em

ty/

conjunto; é importante definir o conjunto do conhecimento forma-

125 http://www5.usp.

do pelas disciplinas envolvidas, mas manter o sistema aberto para

br buscar projetos

modificações possíveis; o trabalho deve contextualmente, conjugar

transdisciplinares

os saberes dos profissionais e dos leigos envolvidos, constituindo-se num processo de aprendizagem para os que dele participam. Deve,

126 http://www. learndev.org/

também, privilegiar o fazer sobre o fato, no sentido de que o fato decorra do fazer ou do organizar; reinstalar os valores desejados em cada caso específico e reconhecer a imprevisibilidade.

127 http://portal. unesco.org/ education/en/

No segundo grupo, elaborar múltiplos referenciais, que devem surgir

file_download.php/

de processos de autorreflexão, tendo por base os critérios e valores

bbf62dcbe22c3c1c1

estabelecidos e que poderão servir de critérios de avaliação tanto

742131c079419cebr ief+Transdisciplina

interna como externamente.

ry+Nature+of+ESD. pdf

Os processos pesquisados, relativos à transdisciplinaridade têm muitos pontos em comum com os princípios morinianos, e algumas

128 https://lejournal. cnrs.fr/Pour

diferenças. Segundo Morin (1999:19), a transdisciplinaridade é muito

l’excellence, on la

mais uma atitude do pesquisador do que uma metodologia rigorosa,

joue collectif ?

que vai orientar e determinar cada etapa do trabalho.

187

Contudo, vale reforçar que, segundo Morin, “as disciplinas são plenamente justificáveis intelectualmente, desde que elas conservem um campo de visão que reconheça e compreenda a existência de ligações e de solidariedades” (1999:134), e que não se fechem às mudanças necessárias. O que se quer evitar é a hiperespecialização que se mantém separada como uma estratégia de poder de decisão. É preciso atentar que a hiperespecialização passou a trabalhar com um corte arbitrário do real, estabelecendo-o como o próprio real. O pensamento simplificador não instaura a conjugação entre o uno e o múltiplo; ou “unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou justapõe a diversidade sem conceber a unidade” (Morin, 2011a:12). Para isso, é importante adsmitir um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe; que reconheça os níveis de emergência da realidade sem reduzi-los às unidades elementares e às leis gerais. Morin estabelece que o método se traduz por religar, em um convite para se pensar na complexidade, sem propor um roteiro predefinido. Essa proposta moriniana se ajusta à constatação de alguns autores que a metrópole se transformou na cidade genérica, que vive sob o domínio da mutação, sob o poder da emergência tomada como modelo. Segundo Uyttenhove (2012:33) tanto o projeto Mutations (2000) de Koolhaas, Boeri, Kwinter e outros, como o outro projeto de Boeri (2003) - USE (Uncertain States of Europe) sublinham “explicitamente que a metrópole não se planifica mais, ela se faz dela mesma”, tornando-se incerta e complexa. Morin nos indica que para trabalhar com a complexidade é preciso considerar que o método é uma progressão, que se caracteriza pelo desenvolvimento cíclico, e que ele denomina de “amétodo” (2008:36). Nesta perspectiva, a informação é um conceito, um conceito de partida. É a matéria prima que vai ser trabalhada pelo conhecimento, num ciclo recursivo. Para isso, é preciso, enfatizando mais uma vez, que os atores envolvidos sejam motivados a: —

exercitar sua curiosidade, buscar essas informações nos três níveis: ontológico, epistemológico e metodológico;



estimular o pensamento para as possibilidades e problemas do nosso próprio tempo, dentro de valores acordados pelo grupo, buscando a reinstalação dos valores da comunidade específica;



exercitar a dúvida, repensando o pensado, tentando vencer as incertezas, ou seja, exercendo a recursividade;

188



formular a organização do conhecimento a partir de operações de religação (conjunção, inclusão e implicação); de separação (diferenciação, oposição, seleção e exclusão) num processo circular passando da separação à ligação, da ligação à separação; concomitantemente com o processo de análise à síntese e da síntese à análise, para finalizar na formulação de critérios, na proposta do desenvolvimento em ciclos;



colocar seu objeto de pensamento no contexto natural e no conjunto do qual faz parte, ou seja, contextualizar e globalizar;



abrir as fronteiras do conhecimento através da transformação dos princípios organizadores do conhecimento, formulando adjacências.



trabalhar o conjunto de disciplinas sem estabelecer dominâncias ou lideranças, mas ao contrário, definido os pontos estratégicos e as necessidades de interação, e a partir disto, estabelecer a organização sobre a qual se vai trabalhar com todas as disciplinas envolvidas. Pohl e Hadorn (2008:112) estabeleceram desafios metodológicos para a pesquisa transdisciplinar que, em muitos pontos, convergem para o pensamento moriniano. A escolha deste trabalho para uma análise comparativa não se deu pelo que as duas visões apresentam em comum, mas por entender que, nas diferenças de alguns pressupostos básicos, podemos detectar pontos que nos permitam a reflexão do exercício epistemológico proposto. Os autores consideram a transdisciplinaridade como uma atividade de pesquisa para problemas, que possam se considerados socialmente relevantes, ou por envolver um grande interesse sobre o tema, ou por estar sob disputa na sociedade. Neste sentido, eles apresentam quatro requisitos fundamentais:



abordar a complexidade dos problemas, inter-relacionando uma ampla gama de fatores, no sentido da obtenção de um entendimento integrado do problema;



considerar a diversidade de percepções e perspectivas, considerando tanto os atores relacionados à disciplina como os sujeitos e contextos da realidade;



fazer a ligação entre o abstrato e o conhecimento específico do caso, ou seja, uma ponte entre o conhecimento científico, produzido sob condições ideais, e a realidade concreta;



desenvolver conhecimentos e práticas que promovam o que é percebido como de interesse comum.

189

Ao observar a diversidade da realidade, eles indicam a inclusão dos atores do setor privado, das agências públicas e da sociedade civil. Eles propõem uma figura descritiva da pesquisa transdisciplinar, organizada em um sistema, entendido como interação dos elementos em processo. Os elementos do sistema precisam estar relacionados através de um problema específico, como no caso do diagrama apresentado (fig. 32), a fome.

Fig. 32 Figura descritiva da pesquisa transdisciplinar

O início do trabalho se daria pela discussão dos elementos do problema, pela investigação sobre o problema no contexto, pela deliberação sobre os valores, objetivos e requisitos para o desenvolvimento do trabalho. Para tal, o processo de trabalho se constitui em três fases: (1) identificação e estruturação do problema, (2) análise do problema e (3) fruição do resultado, com idas e vindas entre a teoria e a prática. Destacam o trabalho de acordo com o modelo recursivo, que substitui o raciocínio linear, considerando-se o teste contínuo da teoria aplicada à prática, sublinhando a possibilidade de modificação caso haja alguma inadequação percebida.

190

As questões da abordagem complexa; a consideração das diversas percepções e perspectivas; a inclusão dos diversos atores, o interesse ético na discussão e definição dos valores de interesse comum e a organização sistêmica são pontos comuns com os princípios morinianos. Contudo, há diferenças significativas. Para eles, a atividade transdisciplinar se relaciona à pesquisa de um tema ou tópico socialmente relevante, definido a priori. Para Morin, a nova transdisciplinaridade precisa do paradigma da complexidade, ou seja, dos princípios morinianos anteriormente descritos. Esses princípios estabelecem outra lógica, outra perspectiva que reconhece que é a desordem que vai se transformar em ordem via organização através dos encontros e interações. Para operacionalizar neste sentido, antes da identificação do problema, como proposto por Pohl e Hadorn, é importante que se faça um exercício de encontros desordenados com os atores envolvidos, ainda sem o objetivo de identificação. Através do levantamento das informações de partida, ou seja, dos dados da questão, considerando complementaridades e contradições, ainda sem responder as questões que possam dirigir as respostas para as definições que impliquem em percepções e perspectivas no início das atividades, os encontros aleatórios poderão permitir a organização, que vai redundar na identificação compartilhada do problema. O objetivo deste encontro desordenado é estabelecer a partir desta desordem, com o trabalho integrado dos atores, a estruturação dos conceitos. Essa estruturação dos conceitos ou organização, a partir das próprias inter-relações estabelecidas dentro do quadro da desordem, serviria então para identificar o problema de maneira conjunta, que no exemplo dado pode se configurar não pela fome, mas pelas conjunturas que causam a fome, ou considerar que a perspectiva seria esta, mas conjugada a tantas interações como definidas pelo grupo. Este procedimento, a nosso ver, impediria confrontos interdisciplinares, provocados por percepções e perspectivas diferentes, pois o objetivo desta fase é levantar e reunir todos os dados do problema, independentemente da tentativa de responder objetivamente a questões que visem indicar as causas, necessidades, objetivos ou interesses comuns relativos à identificação do problema. Essas respostas vão fazer parte da organização e devem resultar da interação entre os participantes.

191

Este método de encontros, tanto entre os dados de referência como entre atores, vai permitir, no processo de organização, a formação de uma compreensão comum entre os participantes antes de qualquer tentativa que implique em definições, ou seja, de percepções e perspectivas diferentes e estabelecidas a priori. A tentativa de organização destes dados é ela mesma, a matéria prima que vai ser trabalhada pelo conhecimento, o elemento estruturador que redundará na possibilidade das definições do problema. Se voltarmos ao circuito tetralógico (abaixo) de Morin e o situarmos na proposta do desenvolvimento em ciclos, intuímos a possibilidade deste procedimento para estabelecer as ligações necessárias à identificação e estruturação do problema, análise do problema e fruição do resultado, em cada fase do trabalho.

Fig. 33 Circuito tetralógico

Morin define que é preciso enraizar o conhecimento, que “a missão desse método (transdisciplinar) não é fornecer fórmulas de um pensamento (...) é convidar a pensar-se na complexidade” (2010a:140). O circuito tetralógico insere a desordem como ponto de partida e de encontro simultaneamente: de partida, pois por ela se estabelece o conhecimento que todos precisam entender para organizar; e de encontro, pois, é através da sua organização que todos vão criar a compreensão e a solidariedade. E na sequência desses ciclos em espiral cria-se a possibilidade de trabalhar e concluir conjuntamente.

192

4.4

Um momento crísico Morin observa que nós, habitantes do mundo ocidentalizado, estamos submetidos sem ter plena consciência disso, a dois tipos de carências cognitivas:



a cegueira provocada pela compartimentação dos saberes, que desintegra os problemas fundamentais e globais, que necessitam de um conhecimento transdisciplinar;



o centrismo das nações mais desenvolvidas do Ocidente que se julgam no ‘trono’ da racionalidade, partilhando a ilusão do domínio universal do saber. Portanto não é só a ignorância que provoca a cegueira, mas o conhecimento também; principalmente no caso dos especialistas que não se permitem interagir com outros saberes. Destaca também, que os problemas se inter-relacionam, nos levando a considerar que tanto os problemas ecológicos como os estudos dos eventos climáticos extremos, estão diretamente relacionados às possíveis propostas do urbanismo para as cidades do futuro. Mesmo Harvey, que se declara contra a transdisciplinaridade, quando afirma que “alguns questionam que uma linguagem transdisciplinar é requerida para melhor representar e resolver os problemas ecológicos e que a própria existência dessas múltiplas linguagens faz parte do problema” (1996:172), sugere que a exploração de nosso “potencial como espécie” e nossa capacidade de autorrealização requerem que conquistemos o conhecimento da necessidade de iniciar, implementar e manter os projetos ecológicos e suas relações sociais. As situações deverão se apresentar contraditórias, mas é preciso, primeiramente, reconhecer plenamente a tensão e agir para encontrar meios de lidar com as situações (1996:199). Define, ainda, que a busca é por um conceito que agregue mais do que divida. Harvey cita Leopold129 (1996:120): “Abusa-se da terra porque nós a vemos como uma ‘commodity’ que nos pertence. Quando pudermos ver a terra como uma comunidade a qual pertencemos, nós podemos começar a usá-la com amor e respeito” e propõe buscar uma “lingua-

129 Leopold, Aldo. A Sand County

gem para tornar a ecologia radical, realmente radical” (1996:175). E

Almanac, New York:

isso pode ser evidenciado quando se estabelecem as ligações entre

Oxford University

as diversas causas e consequências dos problemas ecológicos e dos

Press, 1968

eventos extremos, ou seja, quando não se desprezarem as ligações.

193

Contudo, na complexidade que ainda mantém a disjunção cartesiana como lógica, os debates sobre a problemática ecológica, limites naturais, superpopulação, fluxos migratórios e sustentabilidade são muitas vezes debates sobre a preservação de uma ordem social particular, e não sobre a preservação da própria natureza, ou de melhores condições para as cidades. Essas ideias não são neutras e mais do que isso, na maioria das vezes, encobrem outros objetivos, às vezes opostos ao explicitado. Observemos os problemas ecológicos que atualmente enfrentamos como a simultaneidade de escassez de água versus a sua superabundância; ou mesmo, alternativas energéticas ainda incapazes de substituir, em nível mundial, energias de possibilidades catastróficas, como a energia nuclear, causadora, entre outros, de grandes desastres tais como: —

na usina de Three Mile Island, no condado de Dauphin, no Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, em 28 de Março de 1979;



em Chernobil, em 26 de abril de 1986, na Ucrânia, naquela época União Soviética;



na usina nuclear de Fukushima I, com a falha nos sistemas de refrigeração, em 11 de março de 2011, causada por um terremoto seguido de um tsunami. Na ocasião, foi declarada, pela primeira vez no Japão, uma emergência nuclear, sendo que 140 mil habitantes em um raio de 20 quilômetros da usina foram evacuados. E hoje, três anos depois do evento, há indícios que os níveis de radiação continuam contaminando não somente aquela área do Japão, mas as cercanias do Oceano Pacífico. Entre 1957 e 2012, ocorreram 26 acidentes ou incidentes com

130 http://en.wikipedia. org/wiki/Nuclear_ and_radiation_ accidents

fatalidade, e mais de US$ 100 milhões de danos à propriedades130. Nos últimos 35 anos, ocorreram os três maiores eventos. Todavia, ainda persistem planos de crescimento deste setor, como declara a IAEA – International Atomic Energy Agency: “o aumento da produção elétrica nuclear, até 2030, poderá ser de 25% para projeções

131 http://iaea.org/ Publications/

194

conservadoras e de 93% para as altas expectativas”, principalmente

Magazines/

nas regiões onde já está estabelecida

Bulletin/Bull492/

apresentado na página seguinte.

131

, como indicado no gráfico

Fig. 34 Projeção da capacidade de geração de energia nuclear no mundo. Fonte IAEA –

International Atomic Energy Agency

132 Frederic Mialet, De la ville centre au territoire

O Protocolo de Kyoto, tratado complementar à Convenção das Nações

metropolitain , in

Unidas sobre Mudança do Clima, foi criado em 1997, definindo metas

AMC/Le Moniteur

de redução de emissões para os países desenvolvidos, responsáveis

Archtecture, Le Grand Pari(s):

históricos pela mudança atual do clima, que se comprometeram a

consultation

reduzir suas emissões totais de gases de efeito estufa em percenta-

internationale

gens para cada tipo de desenvolvimento entre os países signatários.

sur l’avenir de la métropole

O Protocolo prevê três mecanismos de flexibilização, com a intenção

parisienne. Goupe

de ajudar os países a alcançar suas metas de redução de emissões:

Moniteur, Paris,

Comércio de Emissões, Implementação Conjunta e Mecanismo de

2009.

Desenvolvimento Limpo (MDL). Neste último caso, prevê-se o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de energia limpa. Para o projeto urbano esses são pontos de importante ligação. A consulta

133 Sustainability: advancement vs. Apocalypse,

para projeto urbano do Grand Paris, por exemplo, se articulou com base em dois componentes: a metrópole pós-Kyoto e as necessidades da aglomeração parisiense132.

Rem Koolhaas, Ecological Urbanism

As novas necessidades de cidades sustentáveis redirecionam as pers-

Conference,

pectivas das aglomerações urbanas. Sobre isto, Koolhaas133 adverte

http://www.oma.

que, hoje, a Arquitetura deve desistir do amálgama de boas inten-

eu/lectures/

ções e de construção de uma imagem na direção da política e na

sustainabilityadvancement-vs-

direção da engenharia e se preocupar com outras questões, como os

apocalypse

projetos energéticos, por exemplo.

195

Mas, apesar de alguns exemplos consideráveis como a cidade de Freiburg134, na Alemanha, e outros por todo o mundo, nem o problema energético, nem os eventos climáticos têm sido considerados especialmente relacionados a princípios urbanos. As últimas análises do IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change135, cujas previsões nos colocam em alerta, trazem informações que precisam ser consideradas, nas relações com o projeto urbano:

As mudanças climáticas ao longo do sec. XXI projetam a redução tanto das águas de superfície como dos mananciais subterrâneos, mais significativamente na maioria das regiões secas, subtropicais, intensificando a competição pela água entre os setores. Nas regiões mais secas, a frequência da estiagem vai aumentar até o fim do século XXI. Em contraste, o volume de água vai aumentar nas regiões de alta latitude. As mudanças climáticas projetam, também, a redução da qualidade da água e estabelecem riscos para a qualidade da água para beber, mesmo com os tratamentos tradicionais, devido a fatores interativos, tais como: aumento da temperatura; aumento de sedimentos, nutrientes e poluentes transportados pelas fortes chuvas; aumento da concentração de poluentes durante as secas e rompimento de instalações de tratamento durante as enchentes. Técnicas adaptáveis de tratamento da água, incluindo o planejamento por cenários, abordagens baseadas em aprendizagem, e soluções flexíveis e de baixo impacto para perdas, podem ajudar na criação da resiliência necessária para as incertezas das mudanças hidrológicas e para os impactos das mudanças climáticas. 134 http://www. ecotippingpoints. org/our-stories/ indepth/ germany-freiburg-

Se compararmos os prognósticos do IPCC com as atuais notícias de

sustainability-

chuvas e secas em todo o mundo, perceberemos que o fim do século

transportationenergy-greeneconomy.html

XXI já chegou e a situação das cidades é de incerteza. Também podemos perceber que os técnicos do IPCC privilegiam a flexibilidade e a aprendizagem no processo.

135 http://ipcc-wg2. gov/AR5/images/

Além disso, Morin observa que nos encontramos em um tempo de

uploads/IPCC_

policrises, deflagradas pelo processo de globalização (2012a:30). São

WG2AR5_SPM_

196

Approved.pdf, p.15

crises financeiras, que se iniciam em 2008, e que vão se desdobran-

in http://ipcc.ch/

do como ondas em vários países. Sobre isso, cita Artus e Virard, que

na apresentação do livro136 profetizam, antes da crise de 2008: “o pior está por vir da conjunção de cinco características principais da globalização: uma máquina de desigualdade que mina o tecido social e atiça as tensões com mecanismos de proteção; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja políticas de monopólio e acelera o aquecimento climático do planeta; uma máquina que inunda o mundo de papéis com liquidez, encorajando a irresponsabilidade bancária, um cassino, onde se experimenta todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrífuga que pode fazer explodir a Europa!” E a explosão pode não ser a palavra, talvez a melhor palavra seja ‘degenerescência’. Mas também existem as crises ecológicas, com a degradação contínua da Biosfera; a crise dos valores das sociedades tradicionais; a crise demográfica com desequilíbrios habitacionais em todo o mundo, a crise do campo que tanto tende para o processo urbanizador, como tem sua população expulsa seja pelas monoculturas seja pela escassez/ abundância da água. A crise urbana, onde diariamente os habitantes são submetidos a uma diversidade de possibilidades de estresses e de desigualdades econômicas, políticas, sociais, culturais e espaciais. A crise do processo político, incapaz de pensar a complexidade, em instituições muitas vezes estruturadas em modelos ultrapassados e desafiadas continuamente pelas próprias exigências de um capitalismo financeiro deslocado de seus objetivos territoriais. A crise religiosa que se amplifica pelo recrudescimento de tendências radicais e conflituosas. Assim, temos um contexto em crise, que de várias formas vão afetar 136 Patrick Artus et

o desenvolvimento das cidades contemporâneas e do futuro, apre-

Marie-Paule Virard,

sentando problemas de tal monta, que se torna impossível acreditar

Globalization: le

que, sem um processo de solidariedades entre os vários saberes dis-

pire est à venir. La Découverte, Paris,

ciplinares, se possa chegar às mínimas condiçõesa de enfrentamento

2008

das suas consequências.

4.5

A finalidade de observar tendências O elenco das tendências e atividades pertinentes ao nosso exercício, apresentadas neste capítulo, visam, primordialmente, chamar atenção para as modificações de procedimentos que vão sendo experimentadas na prática das atividades, algumas delas já estudadas, outras ainda em pesquisa. Essas atividades e experiências, no nosso

197

entender, são decorrentes dos diálogos com a incerteza que as vivências humanas passaram a detectar em contraposição às certezas proclamadas na modernidade. São caminhos alternativos que foram e estão sendo buscados para contemplar os anseios de mudança que a própria situação contemporânea nos coloca. Criar novas estratégias para o enfrentamento das intensas modificações e variáveis que o cotidiano urbano nos apresenta tem sido o propósito daqueles que pesquisam e analisam a participação dos diversos atores como daqueles que se dedicam à transdisciplinaridade. A participação pública tem sido debatida há muito e hoje já há leis e programas oficiais que procuram consolidar este procedimento. Mazzoni e Tsiomis (2012:15), por exemplo, consideram como estratégia urbana para Paris, que “a inovação verdadeira da atualidade será imaginar uma constituição original que alie o local ao nacional, conjugando a democracia representativa e a democracia de participação”, proposta que alia o existente às novas tendências. Morin já considera que a democracia participativa seria uma forma de possibilitar a difusão das informações e do conhecimento. Como já explicitado, seria a maneira de vencer as escleroses e insuficiências da democracia representativa. Os caminhos divergem, mas a exigência de participação se consolida a cada tempo. A transdisciplinaridade se espraia, polissêmica, com inúmeros pesquisadores imbuídos da sua premência num mundo onde as fronteiras se tornam cada vez mais tênues, com os conhecimentos disciplinares necessitando de suas ligações transdisciplinares para evoluir. Assim, a investida, neste trabalho, não é discorrer especificamente sobre cada um destes temas, mas sim, demonstrar, através de exemplos selecionados, suas emergências na contemporaneidade e suas ligações com a teoria moriniana, eixo do nosso exercício epistemológico. Imaginamos com este reforço, tornar mais clara ainda a pertinência do nosso trabalho.

198

5.

Conclusões

5.1

Considerações finais Embora retiradas de outro contexto, permitam-me, no início desta conclusão, tomar emprestado de Foucault (2000: XVIII). algumas ideias que se conjugam ao nosso objetivo. Cito seu texto, considerando-o em analogia aos propósitos deste trabalho:



Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu



progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência



(ou nosso saber) de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se



quer trazer à luz é o campo epistemológico, a episteme onde os



conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu



valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade



e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição



crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade (grifo



meu); neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as



configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento

empírico” ou, neste caso específico à princípios anarquicamen

te relacionados.

O nosso objetivo, ao tentar convergir princípios da complexidade moriniana com outros da complexidade urbanística, nem todos eles

199

dentro das mesmas posturas conceituais, não se enquadra numa proposta cuja objetividade trará uma resposta aos anseios paradigmáticos que a contemporaneidade nos provoca. O que imaginamos conseguir são as interligações epistemológicas, que de nenhuma maneira se concluem em completudes, mas sim em condições de possibilidades. O real interesse é demonstrar que se existem ligações, a experiência de trabalhar o urbanismo via complexidade moriniana pode se constituir numa alternativa nestes tempos de contemporaneidade complexa. Porém, como a própria proposta moriniana sublinha, esta tarefa precisa ser coletiva, ou seja, reunir disciplinas e atores que possam continuar este caminho de forma a encontrar as ligações conjuntas. Também consideramos importante observar que nosso conceito de urbanismo segue o pensamento de Secchi, ou seja, uma atividade prática, de resultado concreto: resultado cumulativo de decisões e, que, reflexivamente, se refere a uma história de ideias e imaginários (2006:10). Assim, o resultado do nosso exercício sugere a percepção que o urbanismo, no seu caminho mais contemporâneo, apresenta pontos em comum com a complexidade moriniana; o que nos dá a possibilidade de abordar esse saber a partir dos princípios e critérios estabelecidos por Morin. Mas, ainda neste ponto, pode se colocar a questão: por que Morin? Como dissemos no início, em consenso com Bachelard, há tempos na história do homem em que o instinto conservador se torna dominante, quando então, as respostas são mais valorizadas que as perguntas. Há outros tempos de tal transformação do real, que poderá haver certa dificuldade de compreensão teórica sobre essa evolução. É um tempo de valorização das perguntas; tanto mais se questiona mais possibilidades de novas alternativas. O tempo presente é um tempo de muitas perguntas. Entre elas, por que pensar na complexidade moriniana em relação ao urbanismo? Ao que podemos responder: para questionar outras possibilidades de trabalhar a cidade, partindo de outros princípios, que não estiveram explicitamente relacionados a este saber até o presente. Ou ainda, porque acreditamos na pertinência dos princípios estabelecidos por Morin para fazer face às complexidades urbanísticas da contemporaneidade. Os princípios morinianos apresentados neste trabalho se baseiam num paradigma diferente daquele sob o qual construímos nosso saber - o paradigma da modernidade. Por mais críticos que tenhamos sido, desde a segunda metade do século passado, não logramos 200

rompê-lo definitivamente. A teoria moriniana, por outro lado, situa-se no contraponto da disjunção, que neste trabalho mostrou-se inadequada ao desenvolvimento do saber contemporâneo; tece seus princípios em oposição à modernidade. Tendo entre seus pressupostos básicos o estudo do segundo princípio da Termodinâmica, que revela a entropia ou degradação dos sistemas; e que, por sua vez, pode gerar a organização, como provado na experiência dos Turbilhões de Bénard, descrita por Prigogine137 (2008:61), Morin chega à Cosmogênese como princípio que estabelece 137 Prigogine, I. La

a desordem como parte do processo. No nosso ponto de vista, é essa

thermodynamique

uma das chaves para o entendimento da teoria da complexidade mo-

de la vie, La

riniana. Partindo da teoria do Big Bang, tese que começa a ser com-

Recherche, vol. 3, no 24, junho de 1972, p. 547-562.

provada na atualidade138, Morin demonstra a interligação inequívoca entre um sistema e o contexto ou com sistemas entre si, através da entropia: “é possivel explorar a ideia de um universo que constitui

138 http://g1.globo. com/cienciae-saude/ noticia/2014/03/

sua ordem e sua organização na turbulência, na instabilidade, no desvio, na improbabilidade, na dissipação energética” (2008:61). É importante destacar a noção de sistema como “conceito complexo

cientistas-

de base, referindo-se à organização” (2008:187), ou seja o que reli-

detectam-pela-

ga. E essa ideia de condicionamento entre as partes é um conceito

primeira-vez-ecos-

que modifica fundamentalmente a racionalidade da separação, da

diretos-do-bigbang.html [Postado

disjunção, além de introduzir a desordem como parte do processo de

em 17/03/2014]

criação, de acordo com o circuito tetralógico. Essa nova perspectiva aliada às análises sobre a complexidade na cidade contemporânea nos fazem crer que o nosso exercício é válido. Voltamos a chamar atenção para a nossa seleção de autores, reafirmando que as escolhas não refletem a adesão total às teorias desses autores, mas destacam critérios importantes que poderão tecer relações para o exercício proposto, um trabalho prospectivo, um caminho a outras reflexões futuras que possam analisar a cidade e o urbanismo a partir destas interações estabelecidas, como uma possibilidade. Acreditamos que este exercício nos aponta, ainda num primeiro estágio, a integração possível entre as disjunções estabelecidas pelo pensamento cartesiano. Neste sentido, a complexidade moriniana vai religar o conceito ao processo, e como tal, apontar uma palavra-problema, não uma palavra-solução. Assim, trabalhar com esta teoria, vai demandar que o foco esteja concentrado na operacionalização do processo. A solução ou as alternativas possíveis deverão emergir deste processo. Desta forma, nos interessa, nesta conclusão, 201

destacar conceitos estabelecidos por estes autores, que de alguma forma convergem para o nosso propósito. Mencionamos anteriormente que Morin, ele próprio, parte do que alguns definem como uma anarquia metodológica, que enseja a apreciação de autores considerados pouco compatíveis, que apresentem complementaridades ou até mesmo contradições. Para ele, o importante é destacar os pontos estratégicos, os nós de comunicação, as articulações organizacionais que nos permitam perceber o tecido da complexidade. Entendemos que a proposta contém algumas dificuldades, mas cremos nas suas possibilidades. Venturi colocou a ideia do todo difícil. Intuímos que ao formular seus critérios de complexidade ainda com uma ligação com o pensamento cartesiano, tenha tido a sensibilidade para perceber essa dificuldade. Morin também aborda a dificuldade das ligações entre a parte e o todo indicando que nem devemos adotar a disjunção das partes, nem trabalhar com a totalidade generalizadora, observada como uma unidade. O fundamental é compreender as ligações possíveis entre as partes e trabalhar na proposta moriniana do amétodo, quando o processo se torna mais importante que critérios pre-estabelecidos. Reconhecemos a dificuldade, pois esbarramos nela ao longo de todo o trabalho. Mas ao final, pudemos concluir que a compreensão dos princípios morinianos tornou a observação da contemporaneidade mais compreensível. Cada autor lança um olhar diferente para a complexidade, em diferentes formas de conceituar. Observar estes conceitos religando-os à teoria moriniana nos demonstrou, ao longo do trabalho, a possibilidade de partir dos princípios morinianos para concluir que o principal não é uma teoria, que ao longo da história vai se modificando a cada tempo, mas o modo de constituição desta teoria: “não se trata apenas de nos interrogarmos sobre nossos conhecimentos, precisamos nos interrogar sobre nosso entendimento” (Morin, 2008:64). Choay(1998:02), ao analisar o urbanismo a partir do sec. XIX, nos faz ver uma série de propostas de soluções que se antagonizam em seus princípios e se proclamam verdadeiras. Mostra-nos também que mesmo a crítica é feita em nome da verdade. Ela formula uma questão importante para este trabalho: “em que se baseia essa discussão de verdades parciais e antagônicas”? E responde com uma análise e inventário de projetos e teorias urbanísticas. Nosso 202

trabalho pretende respondê-la com a proposta de um exercício epistemológico do urbanismo a partir da teoria da complexidade moriniana, considerando a dialógica, que nos permite assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias, contrapostas para conceber um mesmo fenômeno complexo. Neste sentido, todos os autores analisados, por criarem em suas teorias pontos estratégicos e articulações, nos permitem transversalisar o pensamento moriniano. Contudo, é preciso reafirmar que não pretendemos uma solução totalizadora, mas, ao contrário, o início de uma possibilidade de abordagem do urbanismo considerando-se os princípios morinianos estabelecidos e analisados. Morin preconiza uma metamorfose no nosso entendimento, cujas bases principais estariam vinculadas ao seus princípios. Sugere caminhos múltiplos, que conjugados em quatro alternativas dialógicas, podem nos direcionar para a metamorfose: Mundialização/ desmundialização; Crescimento/decrescimento; Desenvolvimento/envolvimento; Conservação /transformação. Sobre a mundialização/ desmundialização já falamos no capítulo anterior. Vale, no entanto, reforçar que a desmundialização se apresenta como um processo de reterritorialização, com a revitalização das atividades locais de acordo com as necessidades específicas da cada lugar. Para isso, deve se desenvolver conjuntamente um processo de democracia participativa. Morin cita, neste sentido, o exemplo das experiências de orçamento participativo do Brasil e da Colômbia (2012a:104). Por outro lado, não se deve deixar de trabalhar os aspectos positivos da mundialização, como a rede digital, que permite um espraiamento da informação, que pode levar à religação de experiências separadas. Em relação ao crescimento/decrescimento, primeiramente é preciso ter consciência que o desenvolvimento técnico não é certeza de progresso. No início da década de 80 do século passado, Morin já se referia às contradições do progresso, considerando o desenvolvimento como uma realidade que traz tanto destruições como criações, tanto regressões como progressões; ressaltando que a ideia de desenvolvi203

mento “sob sua forma simplista e eufórica, economista e tecnológica, era um mito demente do pensamento tecnoburocrático moderno...” (2010b:28) Isso nos leva à posição dialógica de que precisamos tanto de um como do outro - crescimento/decrescimento - e que, acima de tudo, fazem-se necessárias as interligações que vão nos dar respostas sobre as possibilidades de decisões que impactarão de forma positiva e aquelas que precisam ser evitadas. Imaginamos que estas decisões devam ser compartilhadas de maneira esclarecedora; imaginamos que quanto mais coletivas as decisões, mais condições de sucesso para compreensão elas terão. E se pensarmos na interligação com os problemas ecológicos da atualidade, construímos um argumento que a cada dia torna-se mais irrefutável, para as opções entre crescimento e decrescimento. Na orientação desenvolvimento/ envolvimento, vamos perceber que o incremento de bens materiais, da eficácia, da rentabilidade, do calculável são objetivos que começam a perder terreno entre os valores de imagem social, tanto das grandes corporações, como de empresas de menor porte e até mesmo de cidades. Grande parte das empresas atuais procura passar uma imagem ecologicamente correta ou inserida num processo de responsabilidade social, transformando, algumas vezes, o que deveria ser uma política empresarial em uma estratégia de marketing. Esta postura empresarial demonstra uma preocupação com a imagem, descolada da compreensão das interligações com o real e até mesmo uma irresponsabilidade na deturpação dos valores divulgados, tendo o foco exclusivo do mercado. Contudo, a difusão de imagem ecologicamente comprometida, real ou falsa, nos leva a perceber uma modificação gradual do conceito de desenvolvimento. O envolvimento se traduz pela manutenção e inserção, em oposição à exclusão, de culturas específicas das comunidades; pela intenção de privilegiar a qualidade de vida e de estimular a compreensão do outro. Para Morin, o desenvolvimento favorece o individualismo, o envolvimento favorece a comunidade. Juntar os dois vai responder aos anseios humanos de autonomia e comunidade (2012a:56). A orientação conservação/transformação se refere ao retorno a produtos que vão demandar a conservação de saberes herdados do passado, no caso de pensarmos em termos ecológicos. Para tal será necessário manter e reaprender saberes ancestrais que poderão 204

manter vivo o planeta. A revalorização das ervas medicinais139 é o exemplo deste conceito, trabalhado na transformação recursiva. Esses caminhos ou orientações devem se interligar para tornar possível uma metamorfose que nos leve à conservação da vida na Terra. Esse processo não funcionaria se estabelecido como regras ou leis, impostas por um poder autoritário e centralizado. É preciso compartilhar; é preciso que o processo se consolide na aprendizagem do processo e de novas formas de olhar o mundo, como de alguma forma já indicamos no capítulo quatro. Já discorremos no texto sobre a questão da responsabilidade compartimentada, sem a ligação entre as partes e o todo e vice-versa. Já enfatizamos que sem as interações entre as disciplinas, o desen-

139 Biodiversidade e propriedade

volvimento vai acentuando a especialização, que descolada do con-

intelectual no Direito

texto não se responsabiliza frente ao todo. O desenvolvimento do

Internacional de Airton Guilherme

mundo baseado na lógica cartesiana nos transformou em pedaços

Berger Filho in

que desconhecem as possíveis emergências resultantes das ligações

http://www.

entre as partes ou entre as partes e o todo. Perdemos a perspectiva

ambito-juridico. com.br/site/

da cidade e passamos a funcionar de modo sectário. Fizemos cone-

index.php?n_

xões mundiais, sem entender bem para onde o planeta caminha.

link=revista_

Construímos valores dentro de uma episteme da disjunção, o que

artigos_

nos leva, em todos os setores da vida, a procedimentos unifocados,

leitura&artigo_ id=6383 26/04/2014

que terminam por embasar as desigualdades sociais cada vez mais agudas e que se traduzem na organização da cidade, como indicado por Sassen..

5.2

A conclusão Este processo de estudos, hipóteses e averiguações se iniciou,há tempos, pela percepção, na prática do desenvolvimento de projeto, na atividade projetual em suas etapas, que os processos vivenciados não se desenvolviam da melhor forma, uma vez que entre incompreensões e refeituras de planos e resultados, muito desperdício era gerado. Percebemos no início dos estudos deste curso de doutorado, a necessidade de trabalhar sem fronteiras muito definidas das disciplinas. As fronteiras são sempre fluidas, são sempre interferentes. Remetem à condição da Academia, onde cada pesquisador deve consagrar toda a sua inteligência a um saber específico, dentro de uma 205

equipe de especialistas. Neste ponto precisamos atentar que existe uma apropriação de poder pelos peritos, pelos especialistas, que se introduz nas decisões, viabilizando o perigo das inadequações e inconsistências das decisões de um saber codificado e personalizado. Neste sentido, Morin propõe trabalhar a complexidade com a transdisciplinaridade, observando que a diversidade de saberes reunidos possibilita menor grau de ignorância e mais qualidade e quantidade de pressupostos, de trocas, de aprendizagem de novas situações e de soluções mais compartilhadas. No desenrolar da tese, encontramos grande diversidade de pesquisas, de conceitos, de definições para esta metodologia de trabalho. A busca por uma lógica, pelo entendimento de uma epistemologia relacionada à interdisciplinaridade nos levou a Morin, que por interligação dos princípios nos direcionou à complexidade urbanística. Se a leitura de um lado, provocava ligações entre urbanismo e complexidade, o vice-versa era constante. Deparamos-nos com uma teoria que contribuia para o melhor entendimento do caminho da outra: Morin nos levou a outras reflexões sobre a complexidade urbanística, incluindo a fruição de antigas incompreensões, que revistas na perspectiva dos conceitos morinianos ganharam uma nova compreensão. A partir da dialógica proposta por Morin, pudemos abordar os autores que de certa forma trabalhavam com pontos da complexidade, sem precisar estabelecer um grupo homogêneo que caminhasse no mesmo diapasão. Pudemos ler Venturi sem abordar a sua análise arquitetônica, mas a partir dos princípios que dirigiram esta análise. Percebemos que Koolhaas entende a visão de Sassen e, de certa forma, tenta observar as cidades sob a perspectiva da ruptura, da transformação. Seus textos são muito críticos e por muitas vezes dúbios. É comunmente considerado cínico (Chaslin, 2001:770) e muitas vezes incompreensível. Nós ousamos dizer que ele se expressa pelo pensamento dialógico moriniano, ou seja, o pressuposto que permite assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias, contrapostas para conceber um mesmo fenômeno complexo. A própria esrtruturação do seu escritório dividido entre OMA | AMO nos sinalisa a ambiguidade produtiva. Pudemos trabalhar o texto de Santos (2008), interligando-o tanto à Morin como ao texto de Sassen aqui estudado. Deste autor, extraímos uma compreensão dos efeitos da globalização 206

nas sociedades em desenvolvimento, que nos permitiu perceber a adequação das propostas de Morin à metamorfose. Nossa hipótese se concentra na viabilidade da interação entre o urbanismo e a complexidade moriniana. Morin tem mais de 60 anos de textos refletindo sobre o tema da complexidade e o urbanismo é uma teoria milenar. Nosso objetivo se situa, então, num exercício inicial, um exercício epistemológico, que a partir dos autores selecionados, pudesse indicar a possibilidade de pensar o urbanismo a partir da complexidade moriniana. De Morin, trouxemos os seus princípios básicos e outros conceitos paralelos, considerados pertinentes a este estudo. Nos outros autores buscamos pontos que, de alguma forma estariam interligados aos princípios da complexidade. Analisamos cada um, destacando suas ligações com o pensamento complexo moriniano. Venturi trabalha conceitos que correspondem ao princípio hologramático, quando estabelece a obrigação do arquiteto em relação ao todo; quando critica a modernidade por desprezar as relações e indica a multiplicidade de significados e combinações. Referencia o princípio da autonomia/dependência quando observa a ligação sujeito/objeto ao reconhecer desde Vitruvius os elementos de comodidade e prazer na base da arquitetura, ressaltando também que a complexidade existe há muito no processo histórico, que não se constitui em uma situação nova. Enfatizou o princípio da dialógica quando analisou a legibilidade da arquitetura de muitas maneiras e ao mesmo tempo, recomendando a inclusão ao invés da fácil exclusão, e propondo a substituição da decisão “ou...ou”, por “tanto...como”. Destaca também a possível característica autoritária da ordem e a percepção da incerteza e da incompletude, quando aponta a cidade sempre em movimento. Em Secchi, ressaltamos o princípio da interação dos conhecimentos na base das inter-relações disciplinares de uma atividade, cujas raízes, ele considera, estão na prática e na própria cultura, e que necessita de um trabalho de equipe. Em relação ao princípio dialógico e conjugado com o princípio recursivo, opõe as figuras da continuidade, ligada à modernidade, e da fragmentação, referente à contemporaneidade, entendendo que hoje coabitam o mesmo espaço, e que o fragmento, embora considerado de início como uma libertação, vai se transformar em novos temores, se inserindo na recursividade. Adere aos princípios hologramático e sistêmico, primeiro 207

ao relacionar a parte e o todo através da metáfora do corpo e, em seguida, propondo observar a cidade com o olhar de longe e de perto alternadamente, pressuposto que vai trabalhar no projeto do Grand Paris. Enfatiza, na relação sistêmica, a necessidade de trocas objeto/ ambiente. Finalmente, indica o princípio de autonomia/dependência, colocando o urbanista entre a ética do poder ou a falta dela e a busca de um consenso. Enfatiza a incerteza na comparação entre o simples e o complexo, da mesma forma que Morin. Por fim, ao comparar o projeto ou processo de pesquisa ao processo jurídico, resume vários pressupostos morinianos tais como a incerteza, o acaso, a participação, o trabalho e a decisão conjunta e a possibilidade de erro ou incompletude. Os textos de Sassen escolhidos para este estudo se referem à sua pesquisa sobre o processo de globalização via Cidades Globais. Para nós, um ponto importante era situar o contexto no qual Morin constrói a sua teoria, e como este contexto vai afetar as possíveis interações entre a teoria moriniana e a complexidade urbanística, servindo de base para diversos pressupostos apresentados ao longo do capítulo três. Sassen reafirma a complexidade e a incompletude das cidades. Assim como Morin, atenta para a intensa migração do campo para as cidades. Fala do que ela denomina desurbanização, que ocorre agora em algumas cidades, incluindo formas extremas de desigualdade e privatização, novos tipos de violência urbana, guerras assimétricas e sistemas de vigilância massivos. Propõe uma análise para o que ela denomina “ouvir o discurso da cidade”, que se conjuga com a teoria Moriniana de observar a desordem para a partir de sua organização interativa iniciar o trabalho. As rupturas propostas por Koolhaas referenciam também os princípios morinianos: —

no princípio da autonomia/dependência, quando afirma que o projeto é o resultado de intenções, não somente as do arquiteto;



no princípio da interação do conhecimento, quando estabelece a dependência de outras disciplinas, na própria organização do escritório;



quando trabalha com propostas que se estabelecem dentro do princípio da dialógica como na sua análise da Cidade Genérica e da Grandeza;



quando indica o princípio recursivo, ao admitir que as próprias consequências da modernidade permitiram sua modificação, como no

208

caso da Grandeza e do shopping que se tornaram possíveis graças aos subprodutos arquitetônicos daquele período. O trabalho desenvolvido sob os pressupostos de Koolhaas é similar aquele proposto pelo amétodo moriniano, pela qual o processo é como um grande jogo constituído de suas peças (elementos materiais), regras do jogo (imposições iniciais e princípios de interação) e o acaso das distribuições e dos encontros. Koolhaas se posiciona complexamente, mas não propõe um novo paradigma para o urbanismo. Sua atitude, muitas vezes, é incompreendida, criticada pela dualidade da teoria e da prática. Contudo, avaliar a possibilidade da interação entre os seus pressupostos e a teoria moriniana através de um exercício epistemológico, nos pareceu viável. Confessamos que Morin nos forneceu instrumentos de compreensão mais efetiva dos textos de Koolhaas. Estes reanalisados sob esta perspectiva, ganharam novos significados. Contudo também identificamos uma contradição entre a postura de Koolhaas e a de Morin. O primeiro, apesar de propor rupturas, tem um comportamento mais de projeto mais inserido nas regras do mercado, Morin é um humanista, e propõe sérias mudanças de paradigma. Koolhaas destaca que, embora os arquitetos forneçam os ícones da atual economia de mercado, a arquitetura é “a única disciplina artística que não se beneficia realmente disso” (2013:26), comparando-se financeiramente com as estrelas de cinema e os ícones do esporte. Todavia, essas posições antagônicas não impedem que os dois apontem pontos estratégicos comuns, que tornam a cidade e suas possibilidades de transformação cada vez mais complexas. Santos estabelece uma forte relação com Morin, no que se refere ao princípio hologramático. Nas suas análises, retorna várias vezes a esta questão. Cita Morin e define que o movimento da totalidade para existir é um processo dirigido à particularização, através da espacialização. Neste processo, as condições, as circunstâncias, o meio histórico que é também geográfico devem ser considerados, pois “não podem ser reduzidos à lógica universal” (2008:125). Também referencia o princípio recursivo quando indica que: “sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se 209

realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma” (2008:63), trazendo para as relações espaciais, o princípio moriniano. A relação de seu trabalho com o texto de Sassen, estabelecida na perspectiva dos países periféricos, emerge na constatação de rupturas do espaço urbano, dentre elas aquelas que ele denomina verticalidades, ligadas ao processo globalizador; contrapostas à horizontalidade, de continuidade territorial e de sentido comunitário. Estas duas rupturas podem interagir na proposta moriniana de mundialização/desmundialização. Esses autores não são os únicos que podem nos fornecer materiais para esse exercício epistemológico. Há outros que poderão complementar essa perspectiva complexa. O exercício aqui estabelecido visou, através desses exemplos, reforçar a correspondência da complexidade moriniana aos conceitos que vêm sendo estabelecidos na complexidade urbanística. Há ainda experiências outras, tanto aquelas relativas às pesquisas transdisciplinares como outras relativas aos sistemas complexos que poderão, no futuro, se constituir num desdobramento complementar deste trabalho. Considere-se, ainda, que a pretensão não é estabelecer um método para trabalhar, mas sim criar o entendimento, um pensamento que vai permitir o trabalho de acordo com as circunstâncias e contextos. Na verdade, a proposta do amétodo é criar possibilidades de reflexão que possam levar a alternativas de trabalho sob o paradigma da complexidade. Contudo, a proposta intui que, se o exercício se intere na complexidade moriniana, deve estar fundamentalmente ligado aos seus princípios. Desta forma, este início funcionaria como um primeiro ciclo recursivo, que requer a interação de outros conhecimentos para se efetivar de acordo com o próprio pressuposto teórico em que se baseia, e que pode se constituir nas bases de um projeto futuro. Morin propõe, e acreditamos ser importante atentar para isto, é “mudar as bases de lançamento de um raciocínio”. Ele mesmo considera uma tarefa difícil, pois não há nada mais fácil do que explicar algo a partir de premissas simples, acordadas entre quem fala e quem ouve. Todavia, neste início de século, toda a estrutura do pensamento se encontra abalada. A cada dia, há menos consenso e compreensão de como nós vamos nos desenvolver, ou sobre o que se espera do 210

nosso futuro, ou mesmo, quanto futuro teremos? Da mesma forma que Leopold, citado por Harvey, acreditamos que precisamos nos perceber como uma comunidade para criarmos um ambiente que sobreviva aos desafios que nos são postos hoje. E, mais uma vez, em reforço à nossa proposta, precisamos de um entendimento que nos permita um futuro. Para se conseguir o desenvolvimento desta inteligência, Morin recomenda a curiosidade; o questionamento; a avaliação de um leque maior de possibilidades na solução de problemas; a constante interação entre observador/objeto e contexto; a contextualização concomitante à globalização e à abertuira das fronteiras disciplinares. Como colocado no início, neste tempo de perguntas não se pode propor a criação de outro princípio unitário, que novamente reduziria o real, precisamos aprender a lidar com a realidade complexa. O circuito tetralógico, proposto por Morin, insere a desordem como ponto de partida e de encontro simultaneamente: de partida, pois, por ela, se estabelece o conhecimento que todos precisam entender para organizar; e de encontro, pois, é através da sua organização que todos vão criar a compreensão e a solidariedade. E na sequência desses ciclos em espiral cria-se a possibilidade de trabalhar e concluir conjuntamente. Finalmente, ousamos indicar que a continuação deste estudo pode representar, pela sua proposta intrínseca de trabalho coletivo baseado em princípios, o surgimento de novas solidariedades que viabilizem um trabalho mais integrado ao homem, nas cidades que são sua morada e seu viver.

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