O USO DA ARTE COMO INSTRUMENTAL PELO ASSISTENTE SOCIAL

July 4, 2017 | Autor: Jackson Silva | Categoria: Conhecimento Em Serviço Social
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A arte como matéria-prima e instrumento de trabalho para o assistente social1 2  (The art as a raw material and work tool for the social worker) Jane Cruz Prates3

Resumo – O presente artigo aporta reflexões sobre a arte como forma de expressão da matéria- prima do trabalho do assistente social, na medida em que os sujeitos utilizam diferentes maneiras para exprimir as refrações da questão social nas suas vidas, entre as quais as produções artísticas que caracterizam seus contextos e tempos históricos. Concomitantemente, busca dar visibilidade ao uso da arte como instrumento pedagógico, a partir do qual processos sociais reflexivos podem ser mediados, contribuindo para ações organizativas e educativas que caracterizam uma intervenção social emancipatória, ou junto aos sujeitos usuários dos serviços sociais ou profissionais em formação. Traz exemplos do uso da arte como instrumento pedagógico a partir de experiências profissionais na área da formação de pesquisadores, ensino em Serviço Social e processos de assessoria e supervisão. Palavras-chave – Arte e trabalho social. Instrumentais. Ensino. Processo de trabalho. Estratégias pedagógicas.

Abstract - The present article presents reflections about art as a form of expression of social worker’s raw data to the extent that the subjects use different manners to express the refractions of social issue in their lives, among them the artistic productions that characterize their contexts and historical time. Concurrently, it seeks to make visible the use of art as a pedagogic tool, from which reflexive social processes could be mediated, contributing to organized and educational actions that characterize and emancipatory social intervention. Key-words: art and social work. Tools. Teaching. Work Process. Pedagogic Strategies.

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Socializar o debate sobre esta possibilidade de mediação foi instigado pelas provocações sempre estimulantes e profícuas do Prof. Dr. Carlos Nelson dos Reis, relativas à tênue linha que separa o uso abusivo e inadequado de expressões da arte nas exposições acadêmicas e a sua utilização cuidadosa como fonte e instrumento de trabalho ou mesmo para fins estéticos e que, do mesmo modo, não podem prescindir da conexão necessária e estreita com os conteúdos trabalhados centrais a produção. O presente artigo compõe parte de um dos capítulos de nossa Tese de Doutorado intitulada “Possibilidades de mediação entre a teoria marxiana e o trabalho do assistente social”, apresentada ao PPG da FSS/PUCRS, em 2003, acrescida de algumas adequações e breves complementações, fruto de novas experiências posteriormente mediadas. Artigo recebido em 31.03.2007. Aprovado em 15.06.2007. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, Porto Alegre/RS, Brasil. Assistente Social, Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUCRS, Pesquisadora da Rede Latino-Americana – Laboratório Internacional de Estudos Sociais organizada pela Federação Internacional dede Universidades Católicas – FIUC e do Núcleo de Pesquisas sobre Demandas e Políticas Sociais – NEDEPS da FSS/PUCRS. E-mail: [email protected]. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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Introdução As chamadas áreas humano-sociais (em especial, o Serviço Social), por seu caráter

interventivo, são hoje, cada vez mais, desafiadas a construir ou utilizar cadeias de mediações alternativas que possam dar conta da complexidade dos fenômenos sociais. Velhas e novas demandas tencionam nosso cotidiano de trabalho, exigindo uma capacidade estratégica que possibilite não só o seu desvendamento, como também uma intervenção efetiva que contribua com o desenvolvimento de processos sociais emancipatórios. Se a questão social se manifesta no cotidiano dos sujeitos através de refrações materializadas no desemprego estrutural, precarização de relações de trabalho, de vínculos familiares, de espaços de pertencimento, e em novos modos de resistência, como características contemporâneas, velhas expressões tais como as dificuldades de trabalhar a mobilização, o engajamento dos sujeitos, enfim os processos de participação, continuam manifestando-se como necessidades primordiais para o desenvolvimento de processos de trabalho pautados pela defesa dos direitos e justiça social, da democracia, do protagonismo e autonomia dos sujeitos, condições para uma efetiva cidadania. Estes desafios que compõem os processos de trabalho do Assistente Social não nos são exclusivos. Felizmente, hoje, reconhecemos que nenhuma área pode sozinha, dar conta da complexidade destes fenômenos e, apesar de ainda as áreas do saber estarem estruturalmente fragmentadas, caminhamos para a unidade na interdisciplinaridade. Isso não significa, em hipótese alguma, que as áreas percam sua identidade ou não tenham suas particularidades, mas sim que reconheçam a unidade dos sujeitos, dos fenômenos, da sociedade, que não podem ser tratados de forma efetiva, a não ser como totalidades, como unidades dialéticas. Portanto, quanto mais alongado este olhar que os desvenda e planejados de modo integrado os processos interventivos, que, ressalte-se, não podem prescindir da participação concreta dos sujeitos usuários, maior alcance social e efetividade, sem dúvida, lograrão. O caso das políticas sociais é ilustrativo quanto à redução da efetividade que ocorre como resultado da fragmentação. Muitas vezes investimos recursos volumosos em programas e serviços que perdem substância política porque desarticulados de outras ações necessárias à garantia de sua efetividade. Por exemplo, abrigamos moradores de rua, oferecemos tratamento para o alcoolismo, mas não trabalhamos estratégias para sua reinserção produtiva e os sujeitos permanecem por longos períodos institucionalizados, o que reforça processos de dependência e desmotivação. Concedemos o recurso de casa emergencial ao morador de rua e, após algum

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tempo, o encontramos regressando a equipamentos de abrigagem pública expressando: “não deu... não consegui... bebi a casa” (REIS; PRATES; MENDES, 1995). Situações como estas, que sabemos serem multicausais, são tratadas a partir de intervenções que não consideram a totalidade ou a diversidade de determinantes que a conformam, portanto agem sobre alguns aspectos do fenômeno, não conseguindo a efetividade esperada, reforçando em alguns casos o sentimento de frustração e derrota dos sujeitos que as vivenciam não como perdas que tem componentes conjunturais e estruturais ou, no caso do alcoolismo, não como doença, mas como “incompetência individual” ou a culpabilização, reforçando a fragilidade e baixa auto-estima dos sujeitos vulnerabilizados. A necessária articulação entre a política de Assistência Social, de Saúde, de Habitação, entre outras, de acordo com cada situação singular, é condição para a efetividade dos processos de reinserção. Parece óbvio, mas o óbvio precisa ser dito, reiterado, reforçado, até mesmo porque historicamente fomos (e ainda somos) fragmentados para atender aos interesses do capital, desde a nossa formação acadêmica. A exigência deste olhar múltiplo, que articula diversos âmbitos do fenômeno, diversas estratégias, pressupõe posturas abertas à complementaridade das áreas. Isso implica o reconhecimento da importância de todas e cada uma delas e pressupõe também a abertura para o uso alternativo de estratégias criativas que permitam desvendamentos e intervenções concretas, que valorizem o “saber feito”, como bem expressava Paulo Freire, dos sujeitos usuários, e reconheçam a importância da pesquisa em nossos processos de trabalho. Portanto, problematizar o alternativo, ensaiar e socializar nossos avanços, mesmo embrionários, em parcerias interdisciplinares concretas e a partir do uso de estratégias criativas, é fundamental para que possamos avançar nesta área e contribuir com a produção de conhecimentos que qualifiquem processos interventivos. Afinal, considerando que a intervenção é uma característica constitutiva de nossa identidade, o Serviço Social tem muito a contribuir neste âmbito da produção de conhecimentos. Mais um aspecto merece destaque: antes de procurarmos estabelecer as conexões sobre o que vimos refletindo e a arte, trata-se do processo de formação. Se reconhecermos que o contexto atual exige o trabalho interdisciplinar e o uso de estratégias alternativas e criativas, lembremos que criatividade é um dos critérios de cientificidade. Diante disso, devemos garantir que estes processos permeiem, de forma cada vez mais significativa, a formação profissional. Logo, mediações que exercitem a sensibilidade e a criação podem propiciar o desenvolvimento de habilidades necessárias ao exercício de algumas atribuições ou competências que precisam ser solidificadas na formação. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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A relação da arte e do trabalho criador com as áreas humano-sociais Segundo Hegel, a função da arte consiste em tornar a idéia acessível a nossa

contemplação mediante uma forma sensível, representação esta que resulta da correspondência entre a idéia e a forma que se fundem e interpenetram (HEGEL, 1974). Estas representações refletem valores e concepções que o homem tem sobre o mundo, sobre si próprio, sobre a natureza, expressam seus hábitos, seus costumes; logo expressam a sua subjetividade, conformada, de acordo como a concebe Marx, pelo conjunto de suas relações sociais, históricas, processuais. A arte, portanto, expressa valores e concepções históricas, modos de vida, sentidos e significados atribuídos aos fenômenos pelos sujeitos que os vivenciam e interpretam. Contudo, se expressa objetivações, expressa também processos de alienação que compõem estas subjetividades. Ora, Marx já dizia nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos que o olho que não aprende a ver não enxerga, que para o ouvido não-musical a mais bela música não tem sentido. E ressaltando a importância dos sentidos, destacava que o homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos. No entanto, destaca que o desenvolvimento dos sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias e que “o sentido que é prisioneiro da grosseira necessidade prática tem apenas um sentido limitado” (MARX, 1975). A arte é importante instrumento de reprodução do ser social. Exprimimos – através do traço, da cor, do som, dos gestos – sentimentos, valores, hábitos, costumes, indignações, paixões, modos de ver o mundo, a vida, a nós mesmos e materializamos na pintura, na dança, na culinária, na escultura, na dramatização, na arquitetura, na música, nossas objetivações, em parte histórica e socialmente construídas, em parte histórica e socialmente determinadas, possibilitando que sejam apreendidas pela razão e sensibilidade do outro; mas, por outro lado, reduzimos também o sentido estético, o gozo humano do belo, do bom, do confortável, quando nossa sensibilidade é alienada. Por exemplo, como bem aponta Marx, destacando a miséria e a pobreza da sociedade que tem por base a propriedade privada, o comerciante de minerais não vê sua beleza e peculiaridades senão somente o seu valor comercial, o seu valor de troca. Para o homem que está morrendo de fome, o alimentar-se é reduzido à satisfação de uma necessidade de sobrevivência, não muito diferente de um instinto animal. O prazer do alimentar-se, o paladar do alimento, o ritual, a vivência grupal possibilitada pela alimentação compartilhada perdem totalmente o sentido. O significado atribuído ao alimentar-se é alienado pela necessidade, a representação de mundo anteriormente associada a este rito é Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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reduzida e sofre alterações de acordo com a cultura dos povos e os processos históricos por eles vivenciados. Dizia o filósofo Grassi (apud KUJAWISKI: 1991), referindo-se ao estágio mítico dos povos primitivos: “Si mangia, mordendo il divino”. E complementa Kujawiski (1991, p. 51), fazendo uma analogia com os ritos contemporâneos associados à alimentação: “Se assim é, os ritos que hoje acompanham nossa refeição não passam das sobrevivências profanas de liturgia muito mais essencial”. O habitar, categoria típica do cotidiano, segundo Kujawski (1991), significa, em forma superlativa, “não sujeitar-se a nada e a ninguém de fora, dispor totalmente de si mesmo para si mesmo”, por isso, diz o autor, os escravos e os servos não habitam, pois não dispõem de si mesmos. A habitação que pode constituir-se em objetivação humana, ter a cor, a disposição espacial, o “jeito” dos sujeitos que ali vivem; pode, por outro lado, materializar a negação desta necessidade humana. Marx, referindo-se à habitação do pobre, diz: O selvagem, na sua caverna, não se sente como estranho, pelo contrário sente-se tão bem nela como o peixe na água. Mas a habitação do pobre é uma habitação hostil [...] não a podem considerar como sua casa, sentem-se antes na casa de outra pessoa, na casa de um estranho, que todos os dias se encontra à espreita e o expulsa, se não pagar a renda (III Manuscrito, 216).

Ora, quando pensamos em um espaço escolar, ou em um abrigo para adolescentes (por exemplo, colorido, claro, enfeitado com objetos tais como fotos “de bandas” de “times de futebol”, de mensagens, pensamentos, letras de música e outros estímulos auditivos, odoríferos e visuais que tenham eco para os jovens que ali desenvolvem suas atividades), não podemos negar que o ambiente torna-se mais acolhedor e propício para a aprendizagem, a troca,

o

desenvolvimento

do sentido de

pertencimento,

favorecendo

o próprio

desenvolvimento dos sentidos. O mesmo vale para a casa, para o centro comunitário, para o espaço onde realizamos atividades grupais, etc. Muitas vezes dispomos de ambientes inadequados, descuidados, sem manutenção ou pintura, sem objetos que exprimam a identidade dos sujeitos e/ou grupos que os ocupam e pretendemos trabalhar auto-organização, resgate de auto-estima entre outros processos. Será que o ambiente, que o espaço, não se configura como um dos elementos básicos para garantir a qualidade destes processos? Acreditamos que sim. O espaço desordenado (o quarto) expressa a desordem interna do adolescente, em seu rito de passagem à idade adulta, quando aparenta uma crise natural de identidade, seu movimento sofrido de ruptura e revolução. Como pretendermos estimular o cuidado com a higiene corporal, por exemplo, dos adolescentes, se trabalhamos em ambientes desleixados, sujos, descuidados que nada têm de acolhedores? Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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Para o Serviço Social é fundamental desvendar o modo de ser e de reproduzir-se do ser social expressas no seu cotidiano. Segundo Lukács (apud NETO, 1994), no plano da cotidianidade, o critério da utilidade confunde-se com o da verdade. A vida cotidiana, diz Neto (1994, p. 68) com base em Lukács, não equivale à vida privada, mas à vida equacionada a partir da perspectiva estrita da singularidade, marcada por um materialismo espontâneo e por um tendencial pragmatismo. Destaca o autor (1994, p. 67), sempre conforme Lukács, que as determinações fundamentais da cotidianidade (ou seus componentes ontológico-estruturais) são a heterogeneidade (composição entre linguagem, trabalho, interação, jogo, etc.), a imediaticidade (espontaneísmo, relação direta entre pensamento e ação) e a superficialidade extensiva (soma de fenômenos que compõem a situação sem conectá-los). Segundo Lukács (1966), o imediatismo e a superficialidade do cotidiano são resultados da divisão social do trabalho que fragmenta suas múltiplas determinações encobrindo seu sentido real mais profundo. Para o autor (LUKÁCS apud NETO, 1994), há três modos privilegiados de superação momentânea ou suspensão da homogeneidade cotidiana. São eles: o trabalho criador, a arte e a ciência. Estas suspensões permitem que os sujeitos assumam-se como seres humano-genéricos e, neste movimento de consciência e superação, retornem ao cotidiano percebendo-o de forma diferenciada. Diz Neto (1994, p. 70-71): Está contida aqui, nitidamente, uma dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão (seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais refinado, educado (justamente porque se alçou à consciência humano-genérica). [...] A dialética cotidianidade/suspensão é a dialética da processualidade da constituição e do desenvolvimento do ser social” (Grifo do autor).

Conforme Lukács (apud NETO, 1994), a arte é processo de autoconsciência da humanidade, portanto um reflexo antropomorfizador da realidade. Para Marcuse (1978) e Schiller (in Duarte: 1977), a arte desafia o principio da razão predominante ao representar a ordem da sensualidade (cognição sensitiva), pois invoca a lógica da gratificação contra a da repressão. Ora, numa sociedade onde o trabalho é reduzido a emprego, onde a produção de valores de troca se sobrepõe aos valores de uso, a socialização de uma lógica que privilegie a gratificação em detrimento de uma razão tecnicista submissa aos valores do capital e, portanto, repressora, seria absolutamente contrária aos interesses do sistema. Mas, para que Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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esta concepção de arte e cultura possa prevalecer, diz Marcuse (1997), é preciso uma transformação nas relações materiais de existência, no modo de vida (entendido como sentido atribuído pelos sujeitos ao seu viver histórico), na forma de trabalho e prazer. 3 Os instrumentos oferecidos pela arte e a arte em si como matéria-prima para o Serviço Social Como vimos, a arte expressa, em cada época histórica, a representação que os sujeitos fazem do real, seus valores, sentimentos, suas concepções, suas percepções. O Serviço Social, para desvendar as refrações da questão social, de seu objeto, precisa decifrá-las a partir do acesso às múltiplas fontes onde ela se expressa – na sala de aula, no espaço da instituição, no movimento social e comunitário, na vida da comunidade, na casa dos usuários, nos textos dos jornais, nos documentos institucionais, nas poesias, nas peças de teatro, nos filmes, nas letras de música, na literatura, na fala, no silêncio e demais expressões dos sujeitos. A expressão dos sujeitos através da arte é importante material para a análise do Serviço Social, pois este desvendamento (e ressalte-se: histórico e processual) é condição para planejarmos estratégias de intervenção. A leitura dessas expressões, no entanto, não pode ser descontextualizada, pois é localizada histórica, social, geográfica e ideologicamente. O uso de filmes, letras de música, fotos e outros registros são ricos materiais dos quais podemos nos valer para interpretar o real. Uma foto, por exemplo, sobre o modo como os moradores de rua se organizam em grupos sob pontes ou viadutos, muitas vezes pode ser bem mais rica em detalhes, do que uma descrição escrita, para que uma equipe possa, coletivamente, analisar o uso do espaço por estes sujeitos. A análise de trechos de música popular de uma região ou país expressa, nas estrofes, valores, mazelas, indignações, representações, estigmas que são socialmente veiculados, diferentes modos de apreender contextos e fenômenos que compõem estas realidades. Mas, para além da análise e interpretação, fundamentais à realização de uma intervenção conseqüente, estas fontes podem ser transformadas em estratégias e utilizadas como instrumentos para o desenvolvimento de processos sociais que instiguem processos reflexivos e mediações com realidades similares. A dramatização, por exemplo, de cenas cotidianas pode em muito auxiliar grupos a perceberem representações, preconceitos, dificuldades, potencialidades que muitas vezes não são expressas no cotidiano de trabalho ou de convivência.

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Em uma experiência profissional, na condição de assistente social supervisora de unidades operacionais da FASC/PMPA, realizamos algumas intervenções junto a uma unidade, propondo a dramatização de um dia de trabalho, a partir da troca de papéis entre os técnicos e demais funcionários. Os mesmos deveriam representar-se através da dramatização nas suas inter-relações e nas relações com os usuários, também por eles representados, de modo que externassem a leitura que faziam uns dos outros e esses sentidos pudessem ser trabalhados, com e pelo grupo. Ressalte-se que a escolha da estratégia pautou-se em diagnóstico realizado com base na avaliação da dinâmica grupal. O teatro experimental, onde o grupo cria o personagem e o texto, também pode ser importante instrumento para a explicitação de sentidos e significados, de sentimentos, de leituras sobre a realidade, de aflições e representações que precisam ser problematizadas e enfrentadas. Numa experiência de trabalho com um grupo de adolescentes por nós realizada em uma vila periférica de Porto Alegre (cuja demanda dos jovens, entre outras, era problematizar as dificuldades que tinham em relacionar-se com os pais), utilizamos o teatro experimental como instrumento e, a partir do congelamento de cenas e de sua problematização e da criação de novas cenas sugeridas pelo grupo como alternativas diversas de conduzir as situações explicitadas, o grupo progressivamente foi ampliando sua capacidade de leitura da realidade e capacitando-se para o seu enfrentamento. A avaliação e a contextualização das situações explicitadas para instigar o alongamento do olhar dos jovens, mediando situações singulares com questões mais amplas, comuns ao cotidiano de muitos dos elementos do grupo, constituiu-se em mediação fundamental para ampliar as leituras reducionistas, reduzindo sentimentos de revolta e culpabilização individual dos sujeitos. Na mesma perspectiva, o uso do grafodrama, técnica que articula o desenho à vida dada pelo pesquisado às figuras representadas, é importante estratégia para que acessemos a sentimentos guardados, muitas vezes difíceis de expressar, sem o auxílio de estratégias que estimulem a superação de bloqueios de ordem psicológica, cultural e/ou social. Em outra experiência de trabalho por nós realizada junto a um adolescente hospitalizado com quadro de leucemia, que exigia o isolamento, nos deparamos com um jovem tímido, oriundo do meio rural, que não se comunicava com a equipe. A mediação realizada a partir do desenho e a vida a ele atribuída pelo menino, que explicitava alguns elementos de seus cotidiano, possibilitou o início de um canal de comunicação pautado na valorização do que Paulo Freire chama de “o saber feito”, ou a experiência social dos sujeitos,

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na medida em que partimos do que para ele fazia sentido, a fim de acessarmos o seu mundo e estabelecermos o vínculo. Em se tratando de estratégia pedagógica, técnicas alternativas que trabalham com a dramatização ou o grafodrama, também se mostraram bastante efetivas em nossa experiência na capacitação de pesquisadores, pelas mesmas razões já mencionadas. Em uma oficina que tinha por objetivo realizar a capacitação de entrevistadores para a coleta direta junto a moradores de rua adultos, a técnica utilizada foi a dramatização. Um grupo de alunos representou os entrevistados e uma dupla encenou o processo de abordagem. Utilizando a estratégia de congelamento de cenas, questionamos o subgrupo que representava os entrevistados sobre os seus sentimentos quanto ao processo, que resultou no movimento pedagógico sintetizado conforme segue: Um dos alunos referiu sentir-se invadido pela forma abrupta como fora abordado pelos pesquisadores. A verificação desse sentimento possibilitou que os pesquisadores desencadeassem um processo de reflexão com o grupo sobre a qualificação de estratégias para aproximação dos entrevistados. Da mesma forma foi realizada uma avaliação sobre as angústias naturais de ambos os atores frente à experiência desconhecida e às habilidades necessárias para criar um ambiente de confiança e estabelecer os primeiros vínculos, fundamentais ao desenvolvimento do processo. A experiência foi extremamente rica tanto em termos de expressões de conteúdos e possibilidades de mediação, como em termos de resultados pedagógicos, observados posteriormente a partir dos resultados da prática realizada pelos alunos entrevistadores (PRATES in BARRILI et al., 1998, p. 103).

O uso da prosa, da poesia (e aqui incluímos também as letras de música analisadas em sala de aula ou com grupos de usuários) para mediar o desvendamento de processos de alienação, as contradições cotidianas, os sentimentos dos sujeitos, estigmas, intolerâncias e outras expressões da questão social, também tem se mostrado bastante efetivo como instrumento pedagógico. Entre tantos exemplos, podemos citar a articulação do poema A Família de Olhos, de Baudrillard (1991) como texto auxiliar para trabalhar a teoria da alienação em Marx; ou ainda, a articulação do texto ou do filme O Estudante de Praga com os Manuscritos Econômicos e Filosóficos para interpretar os processos de alienação; ou ainda a utilização de letras de música, como as de Chico Buarque de Holanda, para identificação de expressões da questão social ou contradições cotidianas, como a inversão de valores imposta pela sociedade capitalista, processos de discriminação e violência; ou ainda, de sonhos e estratégias de resistência dos sujeitos sociais.

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A abertura de um texto sobre precarização do trabalho poderia muito bem ser iniciada com a seguinte estrofe da música Vai trabalhar vagabundo, de Chico Buarque: “carimba o teu documento, carimba o teu coração... vai te entregar, vai te estragar, vai trabalhar...”. Ou um debate sobre a submissão imposta pela dependência, como contraponto à perspectiva que reconhece o direito dos sujeitos sociais, poderia ser articulada a outra brilhante estrofe de Chico Buarque que bem a expressa, na música Deus lhe pague, quando diz: “por este pão para comer, por este chão para dormir, por eu poder respirar, por eu poder existir, Deus lhe pague...”. Durante o período de ditadura, a música era instrumento utilizado para, de modo sutil, expressar a indignação e também a esperança de superação, como na música Apesar de você, do mesmo autor: “apesar de você amanhã há de ser outro dia [...] e eu vou morrer de rir porque este dia há de vir antes do que você pensa”. Outra pérola do mesmo período, de Vandré, instigando a mobilização e o protagonismo diz: “Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”. Em uma reunião de trabalho com lideranças do Orçamento Participativo, representantes de diversas comunidades do Estado do RS, ao finalizarmos nossa exposição, utilizamos um trecho de Ode a Poesia, de Neruda, onde o poeta rende a sua homenagem a seu instrumento de trabalho, explicitando sua potencialidade de mediar valores, provocar reflexões, sintetizar processos e lutas. Para nossa surpresa, após o término da reunião, as lideranças solicitaram que a poesia fosse reproduzida para que as utilizassem em suas comunidades no sentido de instigar a mobilização de seus pares, valorizando todas as suas formas singulares de contribuição, tal como Neruda valorizara a poesia. Em outra ocasião, durante uma palestra, utilizamos a articulação de índices que explicitavam a desigualdade no Brasil, e as complementamos com extratos de expressões dos sujeitos, trechos de música e trechos de romances, que também as explicitavam, constituindose como contraprovas históricas, buscando, deste modo, destacar a complementaridade necessária entre dados quantitativos e qualitativos para, durante a exposição, buscar reconstituir a vida da realidade. Do mesmo modo que os índices, as expressões qualitativas também refletem a realidade do modo como a apreendem os sujeitos, portanto são contraprovas do contexto do qual são parte. Graciliano Ramos, em Vidas Secas, quando conta a saga sofrida por Fabiano, principal personagem de sua obra, um retirante nordestino que migra com a família para a cidade grande (como milhares de outros brasileiros) conta em determinado momento que, em razão da fome, ele come o papagaio, um de seus animais de estimação. Mas o papagaio não sabia falar direito, pensa Fabiano, e logo, refletindo um pouco mais, identifica-se com o animal, Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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porque também não sabia falar direito, era geralmente ludibriado pelos patrões, pois, quando usavam “palavras bonitas”, ele sabia que de algum modo ia perder, mas, mesmo sem entendêlas, as repetia a esmo, porque afinal, “eram tão bonitas...”. A expressão profunda e sofrida da desigualdade e da alienação é magistralmente descrita por Graciliano Ramos através da vivência e no modo de apreendê-la pelo personagem da ficção, muito próxima da realidade de tantos outros Fabianos, sujeitos de “carne e osso”, que sofrem com a seca e a expulsão de seus locais de origem. Certamente, uma obra que expressa a sensibilidade do autor no movimento de apreensão de algumas das mazelas vividas pelo povo de seu país, num dado contexto histórico-social, portanto, passível de mediação com a matéria-prima do trabalho social. O uso da arte, da música, da dramatização, de filmes e fotos podem ser estratégias utilizadas, por alunos e profissionais, como parte do método de exposição de suas produções, desde que articuladas aos conteúdos teóricos de modo adequado e pertinente. O cuidado com o método de exposição, segundo Marx é extremamente importante, tanto quanto com o método de investigação, pois neste momento, mais do que uma simples apresentação, expomos nossas sínteses como desdobramento, como complicação das antíteses, valendo-nos de todas as contraprovas históricas e as estratégias que possam tornálas mais consistentes e inteligíveis, mais apreensíveis pelos sujeitos, e porque não dizer, mais agradáveis, o que inclui a preocupação com a estética. Mesmo a dor, só é vivida de modo sensível pelo homem que desenvolve os sentidos, dizia Marx, no II Manuscrito, e quanto mais desenvolvido este sentido, maiores as possibilidades de identificação com a dor alheia, porque nos solidarizamos com ela ao invés de banalizá-la, naturalizá-la. Contudo, sobre este aspecto, é fundamental destacar que as estratégias para qualificar o processo de exposição não podem predominar ou ofuscar a riqueza do dado e do processo e o conteúdo dos achados, ou a essência e o adensamento das problematizações, porque, nestas circunstâncias, estariam servindo ao sentido inverso, qual seja, mascarar imprecisões, a falta de objetivação ou privilegiar o secundário sobre o essencial. Do mesmo modo que no trabalho com grupos o uso da técnica não pode se sobrepor a dinâmica grupal, sob pena de que a efetividade se perca no caminho (fetiche da técnica que esta na base do tecnicismo), o uso da arte, ou qualquer estratégia de exposição, não pode prevalecer sobre o que é essencial, o conteúdo aprofundado e problematizado da mensagem orientada para uma finalidade, ou a exposição perde densidade e substância. Ressalte-se, contudo, que no caso do uso da arte como fonte, os critérios para sua inclusão e a quantidade de estratos a serem utilizados dependem da existência e diversificação de expressões ali contidas, sobre aquilo que é objeto de nossa investigação ou reflexão. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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Para concluir, resta reiterar que precisamos nos valer de todas as estratégias que possam aguçar nossa sensibilidade para desvendar a realidade concreta, ou alongar o olhar; todas as estratégias que possam contribuir para o desenvolvimento de processos sociais, ampliando nossas cadeias de mediação, o que pressupõe o necessário reconhecimento de que, sem a articulação entre razão e sensibilidade, não avançamos em processos que se queiram transformadores. E, por fim, que dentre estes processos, a análise das expressões dos sujeitos materializadas na arte – como matéria-prima – e pela arte – como estratégia pedagógica e de exposição – são, sem dúvida, uma potencial alternativa para o trabalho do assistente social. Referências BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991. GARCIA, Maria de. Vamos fazer teatro. Porto Alegre: Garatuja, 1979. HEGEL, G. W. F. Preleções sobre a estética. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção Os Pensadores, v. I, cap. IV) KUJAWISKI, Gilberto de Mello. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1991. LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona: M. Grifalbo, 1966. v. 1. MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. São Paulo, Paz e Terra, 1997. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1993. MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. Temas Filosóficos 22. Lisboa, Edições 70, 1975. NETO, José P. CARVALHO, M.C. Brant. Cotidiano: conhecimento e crítica. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1994. PLEKHANOV, George. A arte e a vida social. São Paulo: Brasiliense,1964. PRATES, Jane Cruz. Possibilidades de mediação entre a teoria marxiana e o trabalho do assistente social. Tese de Doutorado. Porto Alegre, FSS-PUCRS, 2003. PRATES, Jane Cruz. Processo de capacitação de entrevistadores. In: BARRILI, Heloisa; ARAUJO, Jairo; BULLA, Leonia C. A pesquisa em Serviço Social e nas áreas humano-sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE/ PMPA – FASC. Relatórios de Supervisão de Unidades Operacionais. Porto Alegre, FASC, 1998. REIS, C. N.; PRATES, J. C.; MENDES, J. M. R. A realidade do morador de rua de Porto Alegre. Relatório de Pesquisa. Porto Alegre: FSS-UCRS / FASC-PMPA, 1995. SCHILLER, J. C. F. Über die ästbetische Erziebung des Menscben in einer Reibe von Briefen. In: DUARTE, Rodrigo. O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: UFMG, 1997.

Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007

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