O Uso da Estereoscopia Como Fator de Imersão na Franquia de Animação \"Como Treinar seu Dragão\"

July 21, 2017 | Autor: Diogo Gonçalves | Categoria: Animation, Animação, estereoscopia 3D, Cinema de Animação
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O USO DA ESTEREOSCOPIA COMO FATOR DE IMERSÃO NA FRANQUIA DE ANIMAÇÃO “COMO TREINAR SEU DRAGÃO”1 THE USE OF STEREOSCOPIC AS IMMERSION FACTOR IN THE ANIMATION’S FRANCHISE “HOW TO TRAIN YOUR DRAGON” Paula Poiet Sampedro2 Diogo Augusto Gonçalves3 Leonardo Antônio Andrade4 Resumo: A estereoscopia vem conquistando espaço na atualidade em virtude dos adventos tecnológicos que expandiram as obras audiovisuais das telas de cinema para televisores e telas que possibilitam a visualização em profundidade. Dentre essas obras, destacam-se as animações, pois em sua composição as duas imagens são captadas por câmeras virtuais que podem estar em quaisquer posições. No presente trabalho, o uso da estereoscopia como intensificador da imersão do espectador será analisado a partir da franquia cinematográfica de animação “Como Treinar seu Dragão”, cujo primeiro filme foi lançado em 2010 e o segundo em 2014, apresentando um estudo comparativo sobre a forma como a estereoscopia foi utilizada em ambos os filmes, assim como sua aliança com a modelagem dos personagens e cenários, enquadramento e composição de cenas. Dentre os resultados encontrados ressalta-se a necessidade de repensar o uso de determinados efeitos visuais herdados dos filmes bidimensionais em filmes estereoscópicos, assim como quais tipos de planos e composições de cena enfatizam a visualidade tridimensional e permitem enriquecer a experiência imersiva que a estereoscopia vem trazendo ao mundo cinematográfico. Palavras-Chave: Estereoscopia. 3D. Animação. Como Treinar Seu Dragão. Cinema. Abstract: The stereoscopy has been conquering more space nowadays because of technological advents that enlarged audiovisuals work from the cinema to television and screens that allow visualization in depth. Among this work, animation movies are underlined, because, in their composition both images are shooting by virtual cameras that could be in any positions. In this current work, the use of stereoscopy as a spectator immersion booster, is going to be analyzed from the cinematograph animation franchise “How to Train Your Dragon”, whose first film was released in 2010 and the second in 2014, presenting a comparative study about how the stereoscopy was used in both films, as well as their alliance with characters and scenario modeling, framing and scene compositions. Among the final results, it was underlined the need to rethink the use of some visual effects inherited by bidimensional films in stereoscopic films, as well as the types of planes and scene composition emphasize the tridimensional visuality and allow to improve the immersive experience that the stereoscopy has been bringing to the cinematographic world. Keywords: Stereoscopy. 3D. Animation. How To Train Your Dragon. Cinema. 1

Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom (Comunicação Audiovisual) do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, UFSCar, e-mail: [email protected] 3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, UFSCar, e-mail: [email protected] 4 Doutor, pesquisador do PPGIS – UFSCar, e-mail: [email protected]

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Introdução Desde os primórdios da humanidade o ser humano busca maneiras de registrar e dar vida à sua imaginação por meio de expressões artísticas. O desejo humano de representar e interpretar sua própria percepção, sua visão do mundo, impulsionou a arte durante séculos. A representação do espaço tridimensional nas artes plásticas passou por diversas tentativas e estudos ao longo de sua história (SANTOS, 2014). A tecnologia nos fascina e nos impressiona mais a cada momento, e quando seu uso através da exploração estética é realizado dentro da narrativa de uma obra, impressiona ainda mais o espectador. Essa evolução, além de aperfeiçoar as ferramentas midiáticas, traz novos recursos que fazem com que o espectador possa se relacionar de maneiras diferentes com o universo fictício apresentado. Como exemplo de novas ferramentas, podemos citar a manipulação de imagens tridimensionais concebidas por meio de softwares que emulam um espaço tridimensional computacionalmente; já com relação os aprimoramentos advindos pelas novas tecnologias, pode-se citar o grande avanço da estereoscopia (visualização tridimensional enxergada por meio de óculos e telas especiais), já conhecida há muito tempo e com considerável evolução tecnológica na última década. Nossa percepção de espaço tridimensional é permitida devido à capacidade que o ser humano tem de fundir duas imagens ligeiramente diferentes. Os olhos humanos estão, em média, distantes cerca de 65 milímetros um do outro (McKAY, 1953), e a convergência dos eixos ópticos acontecem quando um objeto está a poucos centímetros à frente do observador, sendo que os eixos ópticos ficam quase paralelos quando focamos objetos que estão distantes do observador. O cérebro trabalha de modo a coordenar e aferir o grau de convergência dos eixos ópticos, o que possibilita a nossa percepção de profundidade (ANDRADE, 2012). Essa distinta habilidade perceptiva foi provada cientificamente em 1833 por Charles Wheatstone e Sir David Breswster, os quais possuíam uma extensa bibliografia a respeito de ilusões óticas, teoria das cores, pós-imagem e outros fenômenos visuais (CRARY, 2012). Quando tratamos de imagens estereoscópicas em suporte bidimensional (como é o caso de fotografias, vídeos e filmes), exploramos essa característica fisiológica da distância entre os olhos e as diferentes imagens visualizadas por cada olho (LIPTON, 1982). Para obter essas duas imagens, também conhecidas como “par estéreo” registram-se duas imagens, 2

cada uma correspondente a um dos olhos, essas imagens são exibidas sobrepostas em um plano e, para direcioná-las cada uma ao olho apropriado, são usados dispositivos como, por exemplo, os óculos especiais que separam as imagens. Nesse sentido, a visão binocular utiliza a proximidade física para recongraçar a disparidade, numa operação que torna duas imagens distintas em uma única imagem. Segundo Lipton (1982) a diferença entre dois pontos correspondentes no par estéreo é denominada “paralaxe”. É essa diferença que da a sensação de volume aos objetos e a sensação de distância espacial em um filme ou imagem 3D. Quando temos a sensação dos objetos estarem dentro da superfície da tela, mais distantes de nós do que a tela de projeção, a paralaxe é chamada “positiva”; quando os objetos parecem saltar da tela, se apresentam mais próximos de nós, a paralaxe é negativa; quando não existe diferença entre esses dois pontos, as duas imagens se sobrepõem exatamente, a paralaxe é zero. A Figura 1 ilustra esses aspectos.

Figura 1. Tipos de paralaxe5.

A estereoscopia contribuiu transformando as imagens bidimensionais em ilusões tridimensionais, feito que permitiu realçar ainda mais, os elementos da narrativa. Há outra técnica, desenvolvida sob o viés cinematográfico, que se aproveitou de desenhos e fotografias e realçou a o aspecto fantástico, a animação. Pesquisadores se debruçaram sobre o processo de animar imagens ao longo dos séculos, porém, a primeira sequência animada frame6 a frame combinando desenhos e fotografias foi criada em 1906, desenhada por James Stuart Blackton e fotografada e animada por Thomas Edson (WILLIAMS, 2001). Em 1939 a união entre a animação e a estereoscopia veio a público em uma feira em Nova York. A animação foi feita em stop motion, produzida pelo estúdio Loucks and Norling para a empresa automobilística Chrysler e intitulada “In Tune with Tomorrow” com doze minutos de duração (ZONE, 2007). 5 6

ANDRADE, 2012, p.10. Cada quadro estático de uma obra audiovisual.

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Por volta de 1951, Norman McLaren, famoso animador devido ao seu desenvolvimento artístico, também desenvolveu animações estereoscópicas. Por volta de 1953 e 1954 grandes estúdios e cineastas investiram no sistema, porém, mesmo com o entusiasmo dos cineastas e dos estúdios, a técnica da estereoscopia sucumbiu rapidamente devido à inconsistência da tecnologia na época (GODOY DE SOUZA, 2005; ANDRADE, 2009). A evolução tecnológica propiciou novos caminhos e possibilidades à estereoscopia e hoje, essa se apresenta em filmes (seja para o cinema ou televisão), em jogos, câmeras de vídeo e mesmo em celulares. Esse novo nicho de mercado chama a atenção devido à forma como é usufruído, algumas vezes somente de forma mercadológica, onde o 3D estereoscópico é inserido com maior intuito de chamar a atenção do espectador, com pouco a acrescentar à narrativa. Já outras vezes a estereoscopia é inserida para incrementar a emoção que a mídia proporciona; o amplo uso dessa segunda vertente da visualização tridimensional exigiu dos produtores desses conteúdos um aperfeiçoamento na sua aplicação. Assim, filmes pensados para serem tridimensionais, necessitam de supervisores estereoscópicos, profissionais que auxiliam na forma como a estereoscopia vai agir no filme. Segundo Mendiburu (2009) a estereoscopia pode ser comparada a cor e ao som, ambos tem significante impacto na narrativa e no processo de criação, produção e pós produção. Atualmente, um dos maiores nomes nesse ramo é Phil “Captain 3D” MacNally, supervisor estereoscópico que participou das animações Como Treinar Seu Dragão (2010 e 2014), Gato de Botas (ambas produzidas pelo estúdio DreamWorks), entre outras. Ele destaca o poder da estereoscopia em deixar os personagens mais próximos ou distantes emotivamente, a partir do uso da ilusão espacial, além da grande influência na intensidade emocional da narrativa (PENNINGTON & GIARDINA, 2013). Atualmente vários filmes longas metragens estão sendo projetados pensando no uso da estereoscopia, os filmes Como Treinar seu Dragão 1 e 2 são exemplos dessa nova forma de realizar o cinema, ambos foram planejados com intuito de utilizar a percepção tridimensional para trazer mais emoção ao filme e mais imersão do espectador na narrativa. O primeiro filme da franquia animada foi dirigido por Chris Sanders e Dean DeBlois, enquanto o segundo manteve apenas DeBlois como diretor. DeBlois deixa claro que no primeiro filme o 3D foi utilizado somente nos momentos em que beneficiaria as cenas, nas palavras do diretor, “Nós não tentamos encaixar isso [a estereoscopia] nas cenas que não

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necessitaram ou não se beneficiariam disso ou traria problemas óticos”7 (tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p. 52). Sobre o assunto MacNally ainda ressalta “Tudo trabalha junto – luz, composição, animação, música – tudo está em sincronia. A estereoscopia está funcionando em sincronia com os outros componentes da narrativa”8 (tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p. 53). Por meio dessas citações podemos perceber como o 3D influencia na linguagem do longa metragem de animação e a maneira como ele foi inserido nessa franquia animada como ferramenta de aproximação entre as situações vividas pelos personagens e o espectador. Nota: Sempre que o ícone ao lado aparecer nas imagens será necessário o uso de óculos anaglífico para sua visualização.

Animação Muitas experimentações foram realizadas, porém, a animação é uma arte, e como tal, não é composta somente de técnicas e artifícios, esses são ferramentas para a constituição de uma obra, mas o sentido impregnado vem da mente do homem. No caso da animação, esse é expresso pela narrativa em conjunto dos modelos dos personagens, composição de cenas, cores, texturas e todas as outras técnicas empregadas. No ano de 2010 foi lançado o longa metragem Como Treinar Seu Dragão (DreamWorks), um filme que misturou cultura popular, humor e criaturas míticas. Os personagens foram detalhadamente elaborados em suas características físicas e as cenas aéreas dos vôos dos dragões foram bastante exploradas, aumentando o impacto da estereoscopia e inserindo o espectador no universo do filme. Quatro anos mais tarde, os estúdios DreamWorks lançaram a continuação da narrativa (Como Treinar Seu Dragão 2, 2014), o longa metragem animado demonstrou uma visual mais carregado de cores e cenas que frisaram ainda mais a beleza dos cenários. As cores vibrantes e os personagens carismáticos contribuíram não somente com o universo fílmico, mas com a imersão do espectador nesse universo. Esses dois filmes são exemplos, tanto da evolução tecnológica, quanto da evolução do trabalho conjunto entre narrativa, composição e efeitos visuais. 7

Nas palavras do diretor, ”We didn’t try to shoehorn it into scenes that didn’t require it or benefit from it or would cause optical problems.” 8 Nas palavras de McNally, “[...] Everything works together – light, composition, animation, music – everything is in sync. The stereo is working in sync with the other components of storytelling.”

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A história do longa metragem lançado em 2010 concentra-se no protagonista Soluço, um adolescente franzino de 15 anos, viking, morador de uma vila chamada Berk (onde todos são inimigos dos dragões), filho de Estóico (o chefe da vila) e sua amizade com Banguela, um dragão o qual Soluço capturou e não conseguiu matar. Soluço é um menino inteligente que ao capturar o dragão Banguela, faz com ele perca parte da cauda. Para remediar a situação, o menino constrói uma prótese rudimentar para que ele possa voltar a voar, porém, com ajuda de um humano. O personagem Estóico nutre ódio pelos dragões, e quando finalmente descobre onde fica a montanha que serve de ninho para os animais, ele e outros vikings partem para destruí-la, ignorando o alerta de Soluço sobre um perigoso e imenso dragão que lá habitava. A história se conclui com Banguela e Soluço se unindo contra esse dragão terrível e os vikings descobrindo que é possível conviver em paz com os dragões. Soluço perde parte da perna durante esse ultimo confronto, e assim como banguela, torna-se deficiente físico. O foco da narrativa, além da amizade entre os dois protagonistas, apela para as diferenças físicas superadas pelo afeto emocional. O segundo filme da narrativa (2014) continua mantendo o foco na amizade entre Soluço e Banguela. A narrativa se inicia com os vikings e dragões convivendo pacificamente, vários humanos tem dragões de estimação. Na história, Estóico deseja que Soluço (agora com 20 anos) se torne o chefe da tribo, porém, esse desejo, segue na contra mão do espírito de liberdade do protagonista. Soluço descobre que há um inimigo (Drago) capturando dragões para montar um exército, logo, Soluço almeja encontrar com esse inimigo para convencêlo a conviver pacificamente com os dragões. Nessa jornada a procura de Drago, descobre um santuário de dragões, os quais obedecem às ordens de um grande dragão da espécie Alpha. Drago ataca o santuário com seu exército de dragões junto de outro dragão gigante também da espécie Alpha, na disputa entre os dois Alphas, o dragão de Drago vence, adquirindo controle sobre todos os dragões. Sob o comando do Alpha, Banguela e os outros dragões partem para atacar Berk. A narrativa, então, apresenta o momento que Soluço e seus amigos voltam para enfrentar Drago e devolver a liberdade aos dragões graças a Banguela, que subverte o comando do Alpha de Drago. Banguela assume a postura de líder, desafiando o enorme dragão e ganhando o desafio junto com todos os outros dragões como seus aliados. Por fim, Soluço assume o papel de novo chefe de Berk. Nessa segunda obra é notado o uso da estereoscopia para exaltar o significado das cenas.

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Como Treinar o Seu Dragão foi lançado em 2010 e sua sequência foi lançada em 2014, nesse ínterim de quatro anos foi suficiente para ocorrem grandes avanços tecnológicos na metodologia de produção de animações. A evolução tecnológica nesse período proporcionou novas ferramentas para a animação, como a possibilidade de uma modelagem bastante minuciosa de personagens, cenários e objetos em ambiente digital tridimensional (ambiente virtual que emula um espaço tridimensional, modelos criados a partir desse ambiente, podem ser visualizados em por todos os ângulos), além da inserção de iluminação e texturas muito mais reais. Para aproximar essas fantasias, que tangem o limiar entre a nossa imaginação e o que vivenciamos, e proporcionar uma experiência diferenciada ao espectador, a estereoscopia é inserida, porém, no caso da animação criada em ambiente digital, a captura dos dois pontos de vista não é realizada com o uso de câmeras físicas, pois nos softwares de animação existem câmeras virtuais. As câmeras virtuais são formadas por um sistema de captura de um ou mais pontos de vistas de um ambiente criado digitalmente, sendo que o uso dessas câmeras elimina problemas encontrados quando se utiliza câmeras físicas, tais como a diferença entre objetivas, calibragem precisa ou mesmo condições do ambiente natural que possam interferir no efeito estereoscópico e nas filmagens. O ambiente computacional ainda permite que a cena seja repetida exatamente igual quantas vezes necessário. Todos esses fatores facilitam a exploração do efeito estereoscópico incorporado à animação digital. A animação computadorizada permite ainda filmagens impossíveis com câmeras reais, como a de um vôo de um pássaro ou mesmo de um dragão visto sob o ponto de vista do animal, paisagens fisicamente inexistentes, personagens e acessórios criados de acordo com a vontade e a imaginação dos produtores, onde nem a gravidade e nem as condições climáticas irão interferir. Por tais razões a função da estereoscopia em trazer a fantasia para mais próxima do limiar da realidade é tão perceptível nas animações. Outra contribuição bastante relevante é a modelagem dos personagens e cenários em ambiente digital 3D, a partir do uso de programas que simulam virtualmente um espaço físico em suas três dimensões. A modelagem nesse espaço implica em enxergar uma imagem em todos seus ângulos, e consequentemente, visa à aplicação de volume, não um volume tátil, mas um volume visual. Diferentemente da animação 2D, na animação a partir

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de softwares 3D, como Maya9, 3D Studio Max10, entre outros, o modelo já é concebido com profundidade, ele não é uma ilustração isolada como na animação clássica11, o personagem realmente existe no espaço virtual, possuindo volume definido. Dessa forma o modelo 3D apresenta características de profundidade que podem ser melhor exploradas com a estereoscopia. Neste trabalho escolhemos tais filmes pela vasta exploração das técnicas empregadas. Consideramos ainda a possibilidade de apontar os avanços tecnológicos e como esses avanços e essas novas possibilidades trazidas por eles, influenciaram um segundo filme de narrativa intrincada ao primeiro. A vasta exploração de cenas de vôos, a detalhada modelagem em ambiente digital tridimensional, com inserção de cores, texturas e sombras, também a exímia animação dos personagens e a intrigante narrativa, ancorados a um uso da estereoscopia para exaltar tais aspectos, foram fundamentais para tal escolha. A animação traz vida aos personagens aproxima o espectador de um mundo imaginário e o faz se enxergar enquanto alguém que vivencia a cena.

Análise Os avanços contemporâneos no poder de processamento computacional acompanhados da evolução dos softwares de modelagem e animação têm possibilitado o desenvolvimento de animações 3D mais complexas e com maior detalhamento de cenários e personagens. Aliado este fato as novas tecnologias de visualização esterescópica, vivenciamos um momento no qual a estereoscopia está propondo uma nova forma de pensar a espacialidade nas obras audiovisuais. Nesse contexto, o primeiro e segundo filmes da franquia “Como Treinar seu Dragão” (DreamWorks) apresenta duas obras audiovisuais que utilizam da estereoscopia em dois momentos distantes. Entre os dois filmes, houve um espaço de quatro anos e a influência da evolução tecnológica é bastante perceptível, quando comparamos os dois filmes. Para essa análise foram selecionadas cenas nas quais a composição apresenta variação de cenário e de personagens onde o uso da estereoscopia tem relevância na apresentação da narrativa.

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Software de animação e modelagem 3D da Autodesk. Software de animação e modelagem 3D da Autodesk. 11 Técnica de animação que consiste em desenhos feitos a mão, quadro a quadro. 10

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A animação de personagens como os dragões, exige bastante poder de processamento computacional, devido ao alto grau de detalhamento desses modelos, percebe-se que no primeiro filme, há poucas cenas de vôo com vários dragões, situação bastante diferente no segundo. A Figura 2 pertence a uma cena em que o humano Soluço está montado no dragão Banguela em pleno vôo, sendo que Soluço está testando pela primeira vez o aparato que desenvolveu para a calda de Banguela. Na cena a insegurança de Soluço é clara, e alguns segundos antes do frame capturado, o menino perde o controle e se desprende de Banguela, fazendo com que ambos caiam. Soluço não consegue alcançar o dragão e este não consegue voar sozinho, e após alguns segundos de queda livre, o menino finalmente consegue voltar para o dorso de Banguela e percebe que precisa se “conectar” ao animal para controlar o equipamento e os dois voarem juntos. O frame escolhido é exibido logo após Soluço entender sua conexão com o dragão.

Figura2: Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão (DREAMWORKS 2010).

Por meio da imagem podemos perceber que a cena usa da estereoscopia para trazer ao plano geral a sensação de mais espaço. Com o rápido movimento de Banguela voando próximo à água e, se aproximando de formações rochosas ao fundo, a sensação de velocidade também é aumentada. Devido à disposição das rochas o uso da estereoscopia traz a sensação de que elas se aproximam rapidamente com o voo, proporcionando ao espectador a sensação de velocidade. Outro fator que observamos claramente na imagem é à disposição dos personagens com relação ao cenário. A estereoscopia traz a sensação de que ambos estão, de fato, voando no

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espaço enquanto o cenário é observado ao longe, sua proximidade do espectador é quase um convite para “voar” junto com eles, aumentando a sensação de imersão. Na Figura 3, Soluço leva Astride, seu interesse romântico, para voar com ele e Banguela. Segundo DeBlois (PENNINGTON & GIARDINA, 2013), a sequência de onde esse frame foi retirado é dividida em duas partes, na primeira a menina está aterrorizada, pois a situação contraria sua crença (e crença comum da vila de Berk) de que os dragões são maus e devem ser mortos. As cenas são cheias de movimentos e adrenalina, e exaltam os sentimentos de Astride. Na segunda parte ela aceita que os humanos e dragões podem conviver juntos, então Banguela os leva para um vôo suave por entre as nuvens, nas palavras de DeBlois “Era tudo sobre poesia e beleza e observar aquilo sob o ponto de vista da Astride”12 (tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p. 51). A Figura 3 demonstra um frame dessa segunda parte da sequência, onde se destaca as emoções da menina.

Figura 3: Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão (DREAMWORKS 2010).

A cena estimula a imaginação pela possibilidade de voar por cima das nuvens no dorso de um dragão. As nuvens são apresentadas em várias camadas com paralaxe positiva, que se movem em velocidades diferentes, resultando na percepção de vários níveis de profundidade. Os personagens se situam em uma camada com a paralaxe mais próxima de zero, e em seu vôo flutuam na tela. A forma como as nuvens estão dispostas em relação aos personagens promovem um distanciamento gradual do observador, e esse efeito faz com que o espectador tenha uma melhor noção do espaço e transforma a borda da imagem

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Nas palavras de DeBlois, “That was all about poetry and beauty and seeing it from Astrid’s point of view”.

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em uma espécie de janela, onde o espectador pode olhar através, ampliando o sentimento de imersão do mesmo. A Figura 4 pertence ao segundo filme da franquia, durante a sequência, Banguela vence o poder do Alpha e se torna o novo líder. A cena demonstra o momento em que o Alpha percebe a derrota e vai embora, o frame capturado demonstra a superioridade de Banguela sobre o Alpha.

Figura 4: Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão 2 (DREAMWORKS 2014).

Inicialmente percebemos a posição da câmera, Banguela, mesmo menor em tamanho, é colocado no alto, enquanto o Alpha é colocado numa posição inferior, a cabeça baixa e o olhar do personagem, transmitem a sensação de derrota. A estereoscopia influencia na emoção da sequência distanciando ainda mais os personagens no espaço. Conforme supracitado, o final do filme faz uso da estereoscopia para proporcionar mais emoção às cenas, a espacialidade apresentada traz a ideia de distanciamento e aproximação impregnada em seu cerne. Nesse frame Banguela é colocado bastante próximo do espectador, parte do seu corpo chega a ocupar a paralaxe negativa (saltar da tela) enquanto o Alpha é colocado em um plano distante. Esse uso da estereoscopia é ainda intensificado no decorrer da sequência, Banguela e Soluço estão constantemente próximos à paralaxe zero, muitas vezes assumindo a paralaxe negativa enquanto o Alpha sempre assume uma camada mais distante em paralaxe positiva. Esse tipo de disposição dos personagens induz ao espectador a ideia de identificação ao aproximar os personagens e antipatia ao distanciálos. A Figura 5 demonstra o momento em que Soluço e Banguela entram no santuário de dragões e vêem quantos dragões vivem sob comando de um dragão da espécie Alpha. A 11

cena capta a emoção dos dois ao verem a beleza do ambiente e dos animais que vivem nesse lugar, a evolução tecnológica permitiu representar vários dragões voando ao mesmo tempo, as belezas de um cenário modelado detalhadamente, suas texturas e formas.

Figura 5: Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão 2 (DREAMWORKS 2014).

A estereoscopia, mais uma vez, acrescentou à cena a ideia da espacialidade e amplitude espacial, ressaltando ao espectador os sentimentos dos personagens exibidos pela imagem. Para além da tecnologia disponível, percebe-se um tratamento bastante diferente nas cores utilizadas e em alguns efeitos que compõem as cenas. Enquanto o primeiro filme deu ênfase nos tons de marrom e verde, talvez devido à atmosfera emocional que carrega, deixou as cores mais vivas para os dragões, mais uma vez ressaltando esses personagens. O segundo filme explora uma paleta bem mais colorida e agrega um aspecto mais alegre, esse visual está presente nos dragões e dessa vez também nos humanos, nas roupas e adereços, assim como nas casas e outras construções. A estereoscopia, por sua vez, como toda ferramenta do audiovisual, demanda alguns cuidados, além dos cuidados na produção e pós-produção, o uso exagerado do efeito, seja na paralaxe positiva ou negativa, gera desconforto ao espectador. Esse mundo cinematográfico aproximado do espectador propicia ao mesmo a oportunidade de viver outras experiências, imerso em um mundo imaginário o espectador torna, de certa forma, essa imaginação e mundo de sonhos crível, quase palpável. O modelamento dos personagens e cenários que emulam o volume, juntamente com a estereoscopia, deixam o espectador mais próximo do limiar entre o mundo real e o imaginário. Mendiburu (2009) destaca que devido ao fato de nosso sistema visual enxergar em 3D naturalmente, um filme 12

em três dimensões é interpretado como mais real, pois nós não precisamos refazer o volume das coisas que estamos enxergando na cena, o volume já está lá, “Reduzindo o esforço envolvido para a suspensão da descrença, nós significativamente aumentamos a experiência de imersão” (p.03, tradução nossa)13. Segundo Murray (2003, p. 111) “Por causa do nosso desejo de vivenciar a imersão, concentramos nossa atenção no mundo que nos envolve e usamos nossa inteligência mais para reforçar do que para questionar a veracidade da experiência”. A estereoscopia exige do espectador uma maior atividade cognitiva, conectando ele com a obra intimamente e aprimorando o prazer que a narrativa pode proporcionar. O público enxerga os espaços fictícios de outro ponto de vista, a quarta parede não existe no cinema estereoscópico, o observador está inserido na narrativa, a interação narrativa ocorre em outro nível imaginário. Os grandes planos abertos em Como Treinar o Seu Dragão1 e 2, transmitem a sensação de liberdade, Banguela e Soluço não estão voando sozinhos, o público é convidado a voar junto com a dupla de protagonistas pela imensidão das nuvens que acentuam a ilusão da profundidade. Os planos em ambientes fechados são um convite à exploração do espaço, os olhos do espectador percorrem toda a beleza de detalhes que é proposto pela direção de arte, pois os objetos, no cinema estereoscópico, possuem a propriedade de ficar em foco, tornando a experiência muito mais que imersiva, mas em certo nível lúdica, pelas possibilidades apresentadas ao público, que não precisa mais apenas aceitar o que lhe é mostrado, mas procurar outro lugar para observar.

Considerações Finais Percebeu-se que no primeiro filme da franquia (lançado em 2010) os produtores ainda utilizaram o desfoque em algumas cenas para direcionar o ponto de vista do espectador. Essa herança dos filmes bidimensionais tem seu funcionamento um pouco prejudicado em filmes estereoscópicos, pois muitas vezes o espectador quer apreciar a imagem em profundidade, “passear” o olhar pela tela. O desfoque não só prejudica esse ato como, muitas vezes, traz de volta o espectador ao mundo natural, pois ele não consegue enxergar detalhadamente os elementos dispostos em profundidade. Além disso, as câmeras virtuais não têm problemas com limitação de campo em foco como as câmeras manuais, deixando 13

Nas palavras do autor, “By reducing the effort involved in the suspension of disbelief, we significantly increase the immersion experience”(grifo do autor).

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o desfoque apenas como um detalhe estético. O segundo filme da franquia animada evita esse uso, deixando o espectador livre para percorrer visualmente os campos e paisagens exibidos, proporcionando maior sensação de imersão e presença do mesmo no universo fílmico. Outro apontamento importante é o fato de que, muitas vezes, dependendo do plano utilizado na cena, partes dos personagens são cortadas, isso prejudica o efeito de profundidade. Quando os personagens são apresentados em paralaxe positiva (mais longe do observador que a tela), esse recorte torna-se aceitável, pois intuitivamente o espectador enxerga na tela uma janela, a qual obstrui parte da visão. Porém quando o objeto está em paralaxe negativa, esse recorte pode prejudicar a imersão do espectador. Essa herança dos filmes bidimensionais ainda persiste, quando o objeto ou personagem, em paralaxe negativa, é recortado, pelo plano, na parte superior ou nas laterais o recorte tende a ser mais perceptível, devido à tendência humana de observar da linha dos olhos para cima e não para baixo. Desse modo, recortes que mantém a cabeça ou parte superior inteira de um objeto ou personagem mesmo que corte a parte inferior e estejam em paralaxe negativa, são mais aceitos do que recortes laterais ou superiores (BLOCK & McNALLY, 2013). Ambos os filmes apresentam alguns recortes indesejados, porém esses geralmente tomam poucos segundos, o que os deixa mais aceitáveis à compreensão espacial do espectador. Godoy de Souza (2005) cita que a época em que estamos é propícia para uma nova disseminação da estereoscopia devido aos avanços tecnológicos. Mendiburu (2009) questiona se a estereoscopia, dessa vez, será incorporada ao cinema como foi o som e a cor, o que provavelmente vai transformar, ainda mais, a experiência proporcionada pelo filme. Ambos os autores apontam para uma possível evolução da técnica e sua importância na mídia atual, fatores que reforçam a necessidade de estudos nesse âmbito. Apesar da evolução técnica no uso da estereoscopia, percebe-se que há certa carência de estudos que observam seu emprego na produção de um sentido dramático nos filmes, as pesquisas nessa área voltam-se, principalmente à técnica em si. Essa falta de estudos ancorados à narrativa implica em um uso ainda tímido da estereoscopia, a qual detém grande potencial estético e grande influência na percepção da história. O uso da estereoscopia alcança a função narrativa quando completa o significado que a imagem transmite. A tecnologia em conjunto com a criatividade dos produtores de

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conteúdo está fazendo jus a esse aspecto, em um âmbito com potencial de trazer grandes diferenciais para a indústria do entretenimento e produzir novas formas do espectador se aproximar da fantasia do cinema.

Referências ANDRADE, L. A. (2009, Abril 1). Difusão de filmes estereoscópicos. Revista RUA – A Era Digital e seus Desdobramentos Estéticos. ISSN 1983-3725. Disponível em http://www.rua.ufscar.br/site/?p=657 Acesso em 20 de março de 2015. _____________. (2012). Compressão espacial de vídeos estereoscópicos: Uma abordagem baseada em codificação anaglífica. 2012. (Tese de doutorado em ciências da Computação e Matemática Computacional). Universidade de São Paulo, USP, São Carlos. BLOCK, B., MCNALLY, P. (2013). 3D Storytelling: How stereoscopic 3D works and how to use It. Burlington. MA. Focal Press. CRARY, J. (2012). Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Tradução Verrah Chamma. Organização Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro, RJ. Contraponto. GODOY DE SOUZA, H. A. (2005). A imagem tridimensional e o documentário. Revista Visualidades, 3(2), 110-126. doi: 10.5216/issn. 2317-6784. Disponível em , Acesso em 20 de março de 2015. LIPTON, L. (1982). Foundations of the stereoscopic cinema: A study in depht. Nova Iorque, NY, Van Nostrand Reinhold Company Inc. McKAY, C. H. (1953). Three-dimensional photography: Principles of stereoscopy. Nova Iorque, NY, American Photographic Publishing company. MENDIBURU, B. (2009). 3D Movie making: Stereoscopic digital cinema from script to screen. Nova Iorque, NY, Focal Press / Elsevier. MURRAY, J. H. (2003). Hamlet no holodeck: O futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo, SP, Itaú Cultural: Fundação Editora da Unesp [FEU]. PENNINGTON, A. & GIARDINA, C. (2013). Exploring 3D: The new grammar of stereoscopic filmmaking. Nova Iorque, NY, Focal Press. SANTOS, T. E. (2014). Animação estereoscópia: Relações entre a tecnologia audiovisual e a percepção da profundidade (Dissertação de Mestrado), PPGIS, UFSCar. São Carlos. WILLIAMS, R. (2001). The animator’s survival kit. Nova Iorque, NY, Faber & Faber. ZONE, R. (2007). Stereoscopic cinema and the origins of 3D film: 1838 – 1952. Kentucky, KY, The University Press of Kentuck.

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