O Uso da Justiça Restaurativa em Casos de Violência Doméstica contra a Mulher: potencialidades e riscos

June 6, 2017 | Autor: F. Fonseca Rosenb... | Categoria: Violência Doméstica, Justiça Restaurativa, Lei Maria da Penha
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Descrição do Produto

Organizadores Luciano Oliveira Fernanda Fonseca Rosenblatt Marilia Montenegro Pessoa de Mello

Para além do código de Hamurabi: estudos sociojurídicos

Recife, 2015.

Créditos Editora: Editora Universitária Organização: Luciano Oliveira Fernanda Fonseca Rosenblatt Marilia Montenegro Pessoa de Mello Design da capa: Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz Conselho Editorial: Alexandre Freire Pimentel (UNICAP/ UFPE) Artur Stamford da Silva (UFPE) Ana Cláudia Pinho (UFPA) Érica Babini Lapa do Amaral Machado (UNICAP) Fernanda Fonseca Rosenblatt (UNICAP) Fernanda Frizzo Bragato (UNISINOS) Gustavo Barbosa de Mesquita Batista (UFPB) Gustavo Ferreira (UNICAP/UFPE) Jayme Benvenuto (UNILA) João Paulo Allain Teixeira (UNICAP/UFPE) Luciano Oliveira (UNICAP) Luiz Henrique Cadermatori (UFSC) Marcelo Labanca Correia de Araújo (UNICAP) Marcus Alan Melo Gomes (UFPA) Marilia Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP/ UFPE) Virginia Colares (UNICAP)

P221

Para além do código de Hamurabi : estudos sociojurídicos [e-book] / organizadores Luciano Oliveira, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Fonseca Rosenblatt. -- Recife : ALID, 2015. 267 p. : il. ISBN 978-85-69409-01-4 (E-Book) 1. Sociologia jurídica. 2. Antropologia jurídica. 3.Direito. I. Oliveira, Luciano. II. Mello, Marília Montenegro Pessoa de. III. Rosenblatt, Fernanda Fonseca. IV. Título. CDU 34:301

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Sumário

APRESENTAÇÃO I. A CABEÇA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO: capítulo (ou capitulação) da antropologia criminal brasileira

Hugo Leonardo Rodrigues Santos

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II. A INVIABILIDADE DA REDUÇÃO DA IDADE PENAL: o empoderamento da população a partir da realidade brasileira Érica Babini Machado Marília Montenegro Pessoa de Mello

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III. CULTURA POLICIAL E APREENSÃO DO ADOLESCENTE SUSPEITO: a expectativa do controle e a inviabilidade de proteção integral Iana Lira Pires Érica Babini Machado Maurilo Sobral

IV.

33

A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA PARA SE TORNAR UMA “MULHER DE FAMÍLIA”:

entre o discurso hegemônico de gênero e uma possível emancipação Mariana Chies Santiago Santos Roberta Silveira Pamplona Sofia de Souza Lima Safi

V.

56

SAPATARIA NA FUNDAÇÃO CASA: entre o ser e o estar lésbica

Ana Luiza Villela de V. Bandeira Maria Camila Florêncio-da-Silva Nina Cappello Marcondes

71

VI. DA LGBT À “CRISTOFOBIA”: entre o reconhecimento prometido e o simbolismo prisioneiro Diego Lemos

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VII. O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER: potencialidades e riscos Fernanda Rosenblatt Marília Montenegro Pessoa de Mello

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VIII. DO MOVIMENTO FEMINISTA ÀS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS: a real fundamentação da política criminal de combate à violência contra a mulher Débora de Lima Ferreira

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IX. GÊNERO: um ensaio criminológico crítico Carolina Salazar L’armée Queiroga de Medeiros Helena Rocha Coutinho de Castro

126

X. RETRATOS DO EU: por uma Criminologia Crítica e Antiproibicionista Cristhovão Fonseca Gonçalves

141

XI. TRAFICANTE? CULPADO! Real funcionalidade do sistema penal e culpabilidade na análise da dosimetria da pena de traficantes de drogas Vitória Dinu

153

XII. GARANTIAS PROCESSUAIS E PENAIS NAS AÇÕES INFRACIONAIS – resquícios da prática menorista na cidade do Recife Keunny Ranieri Macedo Érica Babini Lapa do Amaral Machado

171

XIII. AOS PERIGOSOS A PRISÃO: uma análise da periculosidade como fundamento da prisão preventiva no Tribunal de Justiça de Alagoas Manoel Correia de Oliveira Andrade Neto

185

XIV. SAÍDAS RESTAURATIVAS PARA UMA JUSTIÇA EM LINHA DE MONTAGEM Fernanda Fonseca Rosenblatt Manuela Abath Valença

203

XV. TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA: breve análise sobre algumas tensões entre o direito e a teoria política

Ricardo C. de Carvalho Rodrigues

216

XVI. O CONSERVADORISMO NA DECISÃO Nº RE 285012 DO STF Virgínia Colares

226

XVII. “LOS NADIES”: estrangeiros encarcerados no Brasil André Carneiro Leão

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XVIII. A EXPERTISE POLICIAL COMO PROVA NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL Helena Rocha Coutinho de Castro Manuela Abath Valença

258

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Autores e Autoras Ana Luiza V. de Viana Bandeira Advogada, graduada em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas em 2014. André Carneiro Leão Doutorando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela ARIC-Faculdade Damas de Instrução Cristã em convênio com a Escola Superior de Advocacia-ESA/OAB-PE. Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Defensor Público Federal. Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Carolina Salazar L’Armée Queiroga de Medeiros Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015), com período sanduíche na UNISINOS. Advogada. Cristhovão Fonseca Gonçalves Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Membro da Associação Brasileira de Redução de Danos( ABORDA). Débora de Lima Ferreira Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Professora de Direito Penal da Faculdade Marista do Recife-PE. Advogada. Diego Lemos Mestrando em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Advogado. Érica Babini Lapa do Amaral Machado Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade Católica de Pernambuco. Advogada Autárquica do Instituto de Assistência Social e Cidadania do Recife. Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt (Organizadora) Doutora em Criminologia pela University of Oxford, Reino Unido (2014) (diploma revalidado nacionalmente). Mestre em Criminologia pela Universiteit Katholieke Leuven, Bélgica (2005) (diploma revalidado nacionalmente). Professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Comitê Executivo da World Society of Victimology (Sociedade Mundial de Vitimologia) desde julho de 2012. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PE desde fevereiro de 2014. Helena Rocha Coutinho de Castro Mestranda em Ciências Criminais pela PUC/RS. Bolsista FAPERGS.

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Hugo Leonardo Rodrigues Santos Doutorando e Mestre em Direito Penal pela UFPE; Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela ESMAPE; Professor de Direito Penal e Criminologia em cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito em Maceió (AL); Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e Coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Alagoas. E-mail: [email protected] Iana Lira Pires Graduanda do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Luciano Oliveira (Organizador) Mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1984) e doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1991). Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco. Professor da graduação e do programa de pós-graduação em direito da Universidade Católica de Pernambuco. Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Manuela Abath Valença Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (2012). E-mail: manuelaabath@gmail. com Maria Camila Florêncio-da-Silva Doutoranda do Programa de Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas - EAESP - FGV (início em 2014). Mestra em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - DIREITO GV (2014). Integra o Centro de Estudos em Administração Pública e Governo - CEAPG, Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades - GEMA da Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (desde 2010), o Grupo de Pesquisas em Direito e Gênero da FGV DIREITO (desde 2013) e o Núcleo de Pesquisa Democracia e Ação Coletiva - NDAC do CEBRAP (desde 2014). Mariana Chies Santiago Santos Cursou a Pós-graduação lato-sensu - especialização em Ciências Penais pela PUCRS. Mestra em Ciências Criminais na PUCRS. Doutoranda em Sociologia no PPGS da UFRGS. Realizou o doutorado-sanduíche na Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, no Centre de Recherche sur le Droit et les Institutions Pénales/ Ministério da Justiça. Marília Montenegro Pessoa de Mello (Organizadora) Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2002) e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). É professora do curso de mestrado em direito na Universidade Católica de Pernambuco, professora da graduação da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e professora da Escola Superior de Magistratura de Pernambuco (ESMAPE). Maurilo Sobral Mestrando no programa de pós-graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Educador Social do Instituto de Assistência Social e Cidadania.

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Ricardo Carvalho Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola de Magistratura de Pernambuco (2007). Atualmente é professor da Estácio do Recife. Roberta Silveira Pamplona Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como assistente jurídica no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS no grupo Assessoria à Adolescentes Selecionados pelo Sistema Penal Juvenil (G10). Sofia de Souza Lima Safi Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013/2). Trabalha como psicóloga no Serviço de Atendimento à Família (SAF) Núcleo Espírita Fraternidade, serviço conveniado à Fundação de Assistência Social e Cidadania - FASC/ Porto Alegre. Nina Cappello Marcondes Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - FDRP/ USP Virgínia Colares Soares Figueirêdo Alves Metre (1992) e doutora (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vitória Caetano Dreyer Dinu Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, na linha de pesquisa de Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/Uniderp. Advogada.

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VII Capítulo

O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER: potencialidades e riscos Fernanda Rosenblatt Marília Montenegro Pessoa de Mello 1.

INTRODUÇÃO

Nos últimos 10 anos, o País vivenciou experiências restaurativas desenvolvidas em alguns Estados, recebendo, mais recentemente, forte estímulo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outras instituições.1 Com efeito, à guisa de exemplo, hoje já existe uma resolução do CNJ (a Resolução n. 125/2010) prevendo a introdução das práticas da Justiça Restauratva no Sistema de Justiça Brasileiro, bem como uma lei federal (a Lei Federal n. 12.594/2012) que prioriza medidas restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil. Nesse mesmo sentido, recentemente, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e outras 16 instituições assinaram um “Protocolo de Cooperação Interinstitucional para Difusão da Justiça Restaurativa”.2 De todo modo, o tema da justiça restaurativa ainda carece de um maior volume de pesquisas de cunho sociojurídico no Brasil, justificando o investimento nas investigações que visam compreender as suas potencialidades e riscos. Mas problematizar as potencialidades da justiça restaurativa especificamente na área de violência doméstica contra a mulher, além de inovador, é urgente. Com efeito, por um lado, os números visíveis sobre violência doméstica continuam altos no Brasil, mesmo com toda a emancipação da mulher, com a Constituição de 1988 e com a Lei 11.340/2006 (a chamada “Lei Maria da Penha”). Por outro lado, as pesquisas no referido campo apontam para a insatisfação de grande parte das mulheres que procuram o sistema de justiça criminal, inclusive porque os dispositivos da Lei Maria da Penha proíbem qualquer procedimento conciliatório, dialogal e restaurador. Dito doutro modo, a Lei Maria da Penha não conseguiu sustar os alarmantes índices de violência doméstica contra a mulher, nem garante a essas vítimas um tratamento digno no desenrolar do processo de resolução do seu conflito (MELLO, 2009; 2010; 2012).

1 Para um apanhado, inclusive histórico, do movimento restaurativo brasileiro, vide Achutti (2014). 2 Mais informações sobre o referido protocolo podem ser encontradas no sítio eletrônico da SDH/PR (http://www.sdh.gov.br/ noticias/2014/agosto/orgaos-e-entidades-aderem-a-protocolo-de-cooperacao-para-difusao-da-justica-restaurativa-a-vitimas-de-violencia).

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Nesse contexto, primeiramente, conforme argumento a ser desenvolvido mais adiante, cabe aos pesquisadores e agentes sociais a árdua função de desmistificar o Direito Penal (e, com ele, o modelo tradicional de justiça criminal), mostrando suas reais funções e significados e sua incompatibilidade com a emancipação do direito da mulher (e do homem) (CASTRO, 2007). Posteriormente, alternativas ao modelo tradicional de justiça criminal devem ser buscadas – e é nessa caça por um modelo alternativo de resolução de conflitos criminalizados que surge a justiça restaurativa, já tão cortejada dentro e fora da academia, mas ainda pouco conhecida e de reduzida visibilidade, tanto nos discursos acadêmicos quanto nas práticas da política-criminal brasileiros. O presente artigo, portanto, nasce de um projeto3 que é motivado tanto pela necessidade de se encontrar alternativas viáveis à resolução de conflitos de gênero quanto pelo imperativo de se conhecer mais sobre este modelo “inovador” denominado “justiça restaurativa”. 2. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER À LUZ DO MODELO TRADICIONAL DE JUSTIÇA CRIMINAL

O Direito Penal e as práticas da justiça criminal são tradicionalmente voltados à punição “daqueles ilícitos que [...] afetam interesses públicos ao invés de interesses meramente privados”4 (CAVADINO; DIGNAN, 1997, p. 237). Então o crime, qualquer que seja ele, ao invés de representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma infração cometida contra o Estado. Por sua vez, são os profissionais que, representando esta “superparte” (o Estado), tomam as decisões sobre como cada caso concreto deve ser resolvido (BARROS, 2008; MORRIS, 2002). O próximo passo, dentro dessa lógica conservadora, é dar ênfase aos ideais mais desinteressados de punição e retribuição, ao invés de envidar esforços na realização de ideais mais íntimos ou pessoais de reparação e reconciliação. Quer dizer, dentro dessa lógica de despersonalização do conflito – ou de “coisificação”, como prefere Zaffaroni (1996) –, falta espaço à vítima, a qual acaba se tornando figura irrelevante numa relação processual a ser desenvolvida tão-somente entre aquela “superparte” e o réu. Enquanto parte negligenciada no processo penal, a vítima acaba sofrendo novos danos, além daquele decorrente do próprio fato criminoso, agora causados pela própria mecânica da justiça formal. De fato, como destaca Calhou (2004, p. 60):

3 O presente artigo é parte de um projeto no qual o Grupo Asa Branca de Criminologia (http://asabrancacriminologia.blogspot. com.br/) acaba de embarcar, com o apoio financeiro da Fundação Antônio Santos Abranches (FASA), o qual reúne a experiência de duas pesquisadoras do Grupo: a primeira, autora do artigo, que desenvolve pesquisas de Justiça Restaurativa em diálogo com o modelo inglês e a segunda, coautora, que desenvolve pesquisas na área da violência contra a mulher na cidade de Recife desde 2004. 4 Salvo quando indicado de outro modo, todas as traduções para a língua portuguesa de passagens originais em língua inglesa ou espanhola foram feitas por estas pesquisadoras.

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Ao contrário do aspecto racional, que seria o fim do sofrimento ou a amenização da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em consequência da reação formal e informal derivada do fato.

Quer dizer, como se não bastasse o sofrimento decorrente do crime, no modelo tradicional de justiça criminal, a vítima é “revitimizada” ao longo do próprio processo penal, dentre outras razões, porque: tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa (OLIVEIRA, 1999). No caso específico da violência doméstica contra a mulher, além dos problemas acima levantados, chama atenção o Direito continuar tratando esse tipo de conflito, em termos penais, como se fosse um problema entre duas pessoas estranhas que não têm laços afetivos, como se não fossem voltar a morar na mesma casa ou conviver por causa dos filhos. A justiça criminal só é capaz de oferecer, nesses casos, uma condenação ou uma absolvição, sem diálogo nem possibilidade de perdão ou reconciliação, e nenhuma dessas situações (condenação ou absolvição), como regra, minorará as dificuldades enfrentadas pelas partes. Com efeito, a vítima de violência doméstica apresenta uma característica muito especial, que é conhecer a história de vida do agressor. Isso a difere das demais vítimas, como a de um crime patrimonial, por exemplo, em que a vítima só conheceu o agressor naquele momento em que sofreu a violência. Quando se trata de alguém que se quer bem, ou que já se quis bem algum dia, o fato praticado por aquela pessoa, que a lei define como crime, não pode nunca ser visto isoladamente, fora do contexto de uma história de vida, muitas vezes construída conjuntamente durante anos. Ignorando tudo isso, o Direito Penal sempre aparece como “a primeira grande solução”. É preciso penalizar, criar leis, inserir a figura do crime de violência doméstica para acabar com essa impunidade, como se o Direito Penal trouxesse em si uma fórmula mágica e a criação de um tipo penal fosse, ingenuamente, a solução de todos os males sociais. Todavia, a tipificação penal de certas condutas – e a subsequente aplicação do Direito Penal “abstrato” aos casos concretos – aparece como uma forma de remendo para problemas arraigados na sociedade. Quer dizer, o Direito Penal trabalha com uma pequena parte da violência, ignorando esta em suas diversas formas e sob os mais variados ângulos. Como resultado, nos conflitos domésticos, em especial os que não apresentam elevada gravidade, a aplicação do Direito Penal, frequentemente em forma de prisão, é quase sempre desastrosa. Com efeito, é nos casos de violência doméstica que a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional. 101

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Pesquisas nos Estados Unidos demonstram que: [...] os efeitos desintegradores-integradores do aprisionamento podem operar de forma distinta nos diversos domínios da vida de uma mulher, agravando-lhe fortemente a situação econômica ao mesmo tempo em que a protege de um parceiro agressivo (COMFORT, 2007, p. 234).

No caso do Brasil, esta situação é ainda mais grave, pois a mulher, além de ter a sua renda diminuída com a prisão do companheiro, passa a ter um aumento nas suas despesas, pois vai visitá-lo, juntamente com os filhos, e ainda precisa levar toda sorte de mantimentos para que ele possa sobreviver dentro do sistema (MELLO, 2009; 2010; 2012). É comum que a mulher passe a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro ou pai dos seus filhos, e durante o processo criminal, quando a vítima passa a “defender” o agressor, vê-se taxada de mulher que “gosta de apanhar”, que “não sabe o que quer”. Isto é, ao longo do processo que se pretende de resolução do conflito doméstico, a mulher é revitimizada. Como leciona Christie (2004, p. 118-119): A lei penal é um instrumento perfeito para certos propósitos, porém grosseiros para outros. Deixa de lado muitas questões relevantes, e está baseado em dicotomias do tipo tudo ou nada, culpável ou inocente. Em muitas situações somos meio culpáveis. Se esta culpabilidade média é vista à luz de anteriores transgressões da outra parte ou de seus associados, abre-se uma porta para se chegar a um acordo. As soluções civis são mais integrativas, se esforçam para preservar os sistemas sociais como corpos de indivíduos em interação.

Com efeito, não será através da criminalização, nem muito menos da penalização do homem, aqui os maridos, os companheiros, os filhos, os irmãos, que se terá a resolução de um problema tão arraigado no inconsciente coletivo brasileiro quanto o da busca do papel da mulher na sociedade, que deixou de ser “a mulher de senhor de engenho e de fazenda e mesmo a iaiá do sobrado, no Brasil, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de carne do marido” (FREYRE, 2000, p. 126). Para ser o sexo que luta pelos espaços, pela dignidade e pela divisão do poder. No Direito Penal comum, a “mulher agredida” denuncia o “homem agressor” e esse fato é tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor uma pena justa ao violador da lei. Assim: [...] o sistema coloca o acontecimento sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele. Mas para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa – este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum? (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 82).

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Para a vítima, a primeira consequência ao entrar no Sistema de Justiça Criminal tradicional, é que o seu problema deixa de lhe pertencer. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor, configura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, baseando-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida. A mulher quando procura a “ajuda” no sistema penal está em busca das funções prometidas e declaradas (úteis) daquele sistema, quais sejam: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Ocorre que, aportando ao sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada minora seus conflitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por gerar: [...] mais problemas de quantos pretende resolver. Em lugar de compor conflitos, os reprime e, aos poucos, estes mesmos adquirem um caráter mais grave que em seu próprio contexto originário ou também por efeito da intervenção penal, podem surgir conflitos novos no mesmo ou em outros contextos (BARATTA, 2004, p. 302).

Diante dessas limitações e armadilhas do sistema penal tradicional – sintetizadas num processo “de resolução de conflitos” (o processo penal), que, na verdade, é incapaz de administrar conflito algum e, o que é pior, muitas vezes gera novos e agravados conflitos – é necessário buscar formas alternativas mais efetivas de resolução de conflitos. E dentre as possíveis alternativas superadores do modelo retributivo-punitivo tradicional, está a justiça restaurativa. 3. A ALTERNATIVA RESTAURATIVA

Em seu texto seminal “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property), de 1977, Christie critica o modelo tradicional de justiça criminal, argumentando que o Estado – e, em nome dele, os profissionais da justiça (advogados, juízes, promotores, etc.) – se apropria dos conflitos pertencentes às partes diretamente afetadas pelo crime. Segundo ele, esses conflitos deveriam ser devolvidos a quem pertencem – às vítimas, aos infratores e à comunidade afetada. A despeito de Christie, há época, não ter mencionado o termo “justiça restaurativa”, nem mesmo en passant,5 o supramencionado texto se tornou a base de grande parte das construções teóricas sobre a justiça restaurativa. Nesse diapasão, um dos principais atributos da justiça restaurativa é que ela enxerga o crime como uma violação contra pessoas “reais” no lugar de uma violação dos interesses abstratos do Estado ou de normas jurídicas abstratas. Assim, no modelo restaurativo de justiça criminal, “o Estado não 5 De acordo com Denscombe (2010, p. 62), o termo “justiça restaurativa” apareceu pela primeira vez num artigo de 1977, escrito por Albert Eglash e intitulado “Além da Restituição: Restituição Criativa” (Beyond Restitution: Creative Restitution).

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tem mais o monopólio sobre a tomada de decisões” e “os principais tomadores de decisão são as próprias partes” (MORRIS; YOUNG, 2000, p. 14). Isto é, os conflitos são devolvidos a quem pertencem (vítimas, infratores e comunidade), e a lógica da justiça criminal é invertida: no lugar da repressão contra o inimigo (o infrator), a busca é pelas respostas mais significativas de reparação (dos danos advindos do crime) e, se possível, de reconciliação (entre as partes em conflito). Nesse sentido, a justiça restaurativa envolve um processo que permite e viabiliza o efetivo engajamento das partes; um processo no qual todos os participantes ajudam a definir o mal provocado pelo delito e a desenvolver um plano para a reparação desse mal. E quanto mais inclusivo for esse processo, melhor – quer dizer, quanto mais pessoas (atingidas pelo crime) forem incluídas, quanto mais cedo elas forem envolvidas, e quanto mais efetiva for a participação de cada uma delas ao longo do processo, maior será o potencial restaurativo desse processo. É principalmente por essa razão que o modelo ideal ou “purista” (MCCOLD, 2000) de justiça restaurativa é de um processo em que as partes envolvidas se encontram “cara-a-cara”. Isto é, na prática, os programas de justiça restaurativa devem envolver, sempre que possível, um (ou alguns) encontro(s) “ao vivo” entre as partes afetadas pela ocorrência criminosa, para que todos tenham a oportunidade de expressar seus sentimentos e partilhar suas opiniões sobre como enfrentar as consequências do crime (MORRIS; YOUNG, 2000; ZINSSTAG, 2012). O processo restaurativo também é concebido como um instrumento de “empoderamento” (empowerment) de vítimas, infratores e comunidades, a fim de que essas partes possam unir esforços na superação dos danos materiais, psicológicos e relacionais decorrentes do crime (BRAITHWAITE, 2002; JOHNSTONE, 2011; ZEHR, 1990). Com efeito, para romper com a mentalidade de que os profissionais são os mais aptos a decidir como é que as pessoas diretamente afetadas por um crime devem ser ajudadas ou tratadas, as vítimas precisam de empoderamento para “assumir” o seu próprio conflito – quer dizer, elas devem ser empoderadas para opinar sobre o destino do seu próprio caso. Por outro lado, a fim de superar uma longa tradição em que o condenado “recebe”, passivamente, uma punição, os infratores devem ser empoderados para “assumir” o seu comportamento desviante, para realmente enfrentar as consequências de suas ações, reparando os danos provocados a indivíduos e relacionamentos, e aproveitando toda e qualquer oportunidade para demonstrar confiabilidade e buscar a sua reintegração na comunidade. Por fim, os membros da comunidade vitimizada (incluindo os familiares e amigos afetados) devem ser empoderados para resolver os seus próprios conflitos comunitários, e para ajudar a traçar um plano de ação por meio do qual os infratores arrependidos possam ser (re)inseridos naquela comunidade.

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Além desses (e de outros) valores operacionais (ou processuais), impende destacar que a justiça restaurativa é voltada para a reparação dos danos causados pela conduta do infrator (WALGRAVE, 2008). Com efeito, “a menos que reparar o dano esteja na essência da definição de justiça restaurativa, [...] as partes interessadas e os profissionais envolvidos irão continuar escorregando para o modo tradicional e confortável de simplesmente tentar ajudar ou machucar o infrator” (BAZEMORE, 2000, p. 464). Assim, a “intuição restaurativa” é que “porque o crime dói, a justiça deve curar” (BRAITHWAITE, 2005, p. 296). Essa é a ideia central naquele que é provavelmente o primeiro escrito sistemático sobre justiça restaurativa: o livro de Howard Zehr, de 1990, “Trocando as Lentes” (Changing Lenses). Segundo Zehr (1990), o “avô” da justiça restaurativa (VAN NESS; STRONG, 2010, p. 24), se o crime é para ser visto como um ato que causa danos a pessoas e comunidades (em oposição a uma mera violação de normas penais incriminadoras), o principal objetivo da justiça restaurativa deve ser o de reparar esses danos, atendendo às necessidades reais de todas as partes envolvidas nas implicações do delito. Portanto, um dos principais atributos da justiça restaurativa – se não o mais importante dentre todos eles – é que ela visa mudar a orientação normativa do sistema de justiça criminal da velha retribuição para a restauração (HUDSON, 1998). Em suma, o resultado mais representativo de um processo restaurativo é a reparação do dano, a qual, na prática, pode assumir vários formatos: compensação financeira à vítima, compensação à vítima através da realização de algum trabalho (por exemplo, quando o infrator conserta a cerca que destruiu), pedido de perdão (a chamada “reparação simbólica”), prestação de serviços à comunidade, etc. (WALGRAVE, 1999). Nesse contexto, cabe destacar a importância dada ao papel da vítima nos processos restaurativos. Porque o crime é tradicionalmente concebido como uma infração contra o Estado, “não é de se estranhar que as vítimas são tão consistentemente deixadas de fora do processo [penal] e que suas necessidades e desejos são tão pouco atendidos” (ZEHR, 1990, p. 82). De fato, o modelo tradicional de justiça criminal, ao conservar uma mentalidade orientada para o castigo, onde a ênfase é colocada na “justa medida da pena”, acaba por negligenciar “as mais complexas e não retributivas necessidades das vítimas” (DZUR; OLSON, 2004, p. 91). Nesse contexto, as pesquisas vitimológicas têm reiteradamente revelado o que as vítimas de crime mais querem do sistema de justiça criminal: mais informações sobre o “seu” caso, mais “voz” dentro do “seu” processo, mais atenção aos danos emocionais e psicológicos decorrentes da “sua” experiência de vitimização, e assim por diante (STRANG; SHERMAN, 2003). Para os proponentes da justiça restaurativa, há fortes razões para acreditar que o sistema restaurativo de abordagem dos conflitos é mais benéfico para as vítimas do que a míope tradição de punição e retribuição profundamente arraigada no sistema de justiça criminal (HOYLE, 2002). Com efeito, existe crescente evidência empírica de que: diante do real envolvimento da vítima no processo, os programas de justiça restaurativa criam mais oportunidades para que elas fiquem sabendo sobre o andamento do “seu” caso; os processos restaurativos permitem a ativa participação 105

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das vítimas, porque a elas é devolvida a palavra, por meio da qual elas podem expressar o seu sofrimento e compartilhar as suas opiniões sobre como o crime deve ser enxergado; práticas restaurativas oferecem ampla oportunidade de reparação emocional, na medida em que os encontros “cara-a-cara” entre vítimas e infratores aumentam a probabilidade de arrependimento e de um genuíno pedido de desculpas por parte do infrator; e, em última análise, o enfoque que a justiça restaurativa dá aos danos (materiais, psicológicos e relacionais) decorrentes do crime, e em seguida, à necessidade de reparação desses danos, são características do processo restaurativo tidas como de óbvio benefício às vítimas (AERTSEN; VANFRAECHEM, 2014; DIGNAN, 2005; SHAPLAND, ROBINSON; SORSBY, 2011; WACHTEL, 2013). Faz-se mister destacar, por fim, que o movimento restaurativo, apesar de entrelaçado ao movimento de reconhecimento do direito das vítimas de crime (victims’ movement), vai além desse último. De fato, porque a justiça restaurativa também é muito influenciada pelo pensamento criminológico crítico (WALGRAVE, 2008), ela consegue se distanciar do “jogo de soma-zero” – tão típico dos movimentos vitimológicos (GARLAND, 2001) – onde qualquer relevo aos diretos ou interesses do infrator é interpretado como sendo às custas da vítima (HOYLE, 2012; STRANG, 2002). Na verdade, como resume HUDSON (2003, p. 178), a justiça restaurativa deve ser vista “como uma forma construtiva de lidar com ambos, vítimas e infratores, ficando de fora do, ao invés de se prendendo ao, movimento populista que acredita que o que ajuda a vítima deve, necessariamente, machucar [ou prejudicar] o infrator”. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da incapacidade do sistema tradicional de justiça criminal em atender as necessidades das vítimas de violência doméstica, e das promessas do modelo restaurativo acima resumidas, a justiça restaurativa tem sido proposta, mundo afora, como modelo alternativo apto à resolução de conflitos que envolvam violência doméstica contra a mulher. O tema ainda é relativamente pouco debatido no Brasil, mas a literatura estrangeira vem refletindo sobre a viabilidade do modelo restaurativo para casos de violência doméstica desde do final da década de 1990, destacando suas potencialidades (CAMERON, 2006; COKER, 1999; 2002; HUDSON, 2002; MILLER, 2011; PELIKAN, 2010; STRANG; BRAITHWAITE, 2002), bem como alertando contra os potenciais riscos em torno da empreitada restaurativa (por exemplo, BUSCH, 2002; DALY; STUBBS, 2006; HOOPER; BUSCH, 1996; STUBBS, 2002; 2007). Por exemplo, ao lado do entusiasmo em torno da justiça restaurativa, uma preocupação típica quando se pensa na utilização de práticas restaurativas para a resolução de conflitos marcados pelo desequilíbrio de poder entre as partes, diz respeito à possibilidade de manipulação do processo pelo infrator e consequente sobrevitimização da vítima. Quer dizer, um dos riscos apontados pela literatura restaurativista crítica é que a justiça restaurativa, como faz o modelo tradicional de justiça 106

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criminal, pode provocar danos adicionais à vítima. Outrossim, ao buscar a reparação de danos e de relacionamentos, a justiça restaurativa pode acabar forçando uma reconciliação entre as partes. Isto é, enquanto o modelo tradicional de justiça criminal pode acabar forçando o rompimento da relação entre as partes, este “novo” modelo pode acabar tolhendo a vontade que algumas vítimas de violência doméstica têm de romper com o seu parceiro – em ambos os casos, a mulher permanece silenciada no processo de resolução do seu próprio conflito. Segundo Achutti (2013, p. 154-155), “[p]ouco se conhece, no Brasil, sobre o mecanismo de administração de conflitos criminais denominado justiça restaurativa. Raros são os trabalhos a respeito, e a quantidade de pessoas que efetivamente compreende tal sistema é baixa [...]”. Como introduzido acima, essa afirmação é particularmente verdadeira no tocante às discussões sobre a viabilidade e utilidade da justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher. Diante dessa timidez acadêmica no Brasil, e da urgente necessidade de se encontrar alternativas viáveis à resolução de conflitos envolvendo violência doméstica contra a mulher, são necessárias pesquisas para explorar as potencialidades e os riscos da utilização de práticas restaurativas nesses casos. Dessa forma, o presente artigo é um primeiro passo, dos muitos que serão dados pelas autoras, para a compreensão dessa temática e da análise da sua aplicação no contexto brasileiro, diante da demanda criminalizadora reforçada pela Lei Maria da Penha. Diversas são as pesquisas que apontam o silenciamento das mulheres no procedimento criminal, portanto é necessária a investigação sobre a possiblidade da Justiça Restaurativa caminhar para além da lógica punitivista, para produzir um espaço de emancipação das mulheres que procuram o estado para resolver seu conflito. REFERÊNCIAS

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