O uso de conceitos na construção de uma tese: a desmontagem e suas operações. P o l i s e P s i q u e. , v. 4, p.129 - 142, 2014.

August 14, 2017 | Autor: Oriana Hadler | Categoria: Gilles Deleuze, Concepts, Politics of knowledge production
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O uso de conceitos na construção de uma tese: a desmontagem e suas operações The use of concepts in the construction of a thesis: dismantling and its operations El uso de los conceptos en la construcción de una tesis: el desmontaje y sus operaciones

Carolina Seibel Chassot Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Camila Backes dos Santos Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Luciana Rodriguez Barone Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Oriana Holsbach Hadler Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

Resumo Neste artigo apresentamos uma discussão sobre a utilização de conceitos na construção de uma tese. Argumentamos a respeito da necessidade de entrar em contato com aquilo que não se faz tão evidente no processo do pensamento e, para tanto, afirmamos a necessidade de problematizar os conceitos numa operação que chamamos de desmontagem. Elencamos então algumas operações envolvidas nesse processo, inspiradas por Deleuze e Guattari, tomando como ponto de partida os conceitos como contingentes e construídos, situando-os no plano de imanência, historicizando-os e articulando-os com o campo problemático em que se constroem. Afirmamos, assim, o caráter criativo da construção de uma tese, na qual desmontar torna-se também remontar conceitos, dando consistência ao processo de produção de conhecimento. Palavras-chave: Conceito. Pesquisa. Problema. Produção de Conhecimento.

Abstract This article presents a discussion on the use of concepts in the construction of a thesis. It is argued about the need to get in contact with what is not so evident in the process of thought, and for that it is affirmed the need to discuss the concepts, in what we call an operation of dismantling. Some of the operations involved in this process are presented, inspired by

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ Deleuze and Guattari, taking the concepts as contingent and constructed, placing them on the plane of immanence, historicizing them and linking them to the problematic field in which they are built. In this sense, the creative character of the construction of a thesis is affirmed, in which the dismantling process also becomes a procedure of reassembling concepts, giving consistency to the process of thought. Keywords: Concept; Research; Problem; Production of knowledge.

Resumen En este artículo, presentamos un debate sobre el uso de los conceptos en la construcción de una tesis. Se argumenta sobre la necesidad de estar en contacto con lo que no es tan evidente en el proceso de pensamiento y, por lo tanto, afirmamos la necesidad de problematizar los conceptos en una operación que llamamos desmontaje. De este modo, enumeramos algunas operaciones de ese proceso, inspiradas por Deleuze y Guattari, tomando como punto de partida los conceptos como contingentes y construidos, colocándolos en el plano de inmanencia, historiándolos y vinculándolos con el campo problemático en que se construyen. Por lo tanto, afirmamos el carácter creativo de la construcción de una tesis, donde el desmontaje también se convierte en una reconstrucción de los conceptos, dando consistencia al proceso de producción de conocimiento. Palabras clave: Concepto; Investigación; Problema; Producción de conocimiento.

Introdução

escolher determinadas definições concei-

Neste artigo apresentamos uma dis-

tuais, explicitar pressupostos ou filiar-se a

cussão sobre a utilização de conceitos na

determinados autores ou linhas teóricas, o

construção de uma tese. Partimos de algu-

trabalho conceitual da tese envolve entrar

mas problematizações, realizadas junta-

em contato com os conceitos em toda sua

mente com os colegas e professores do

extensão, inclusive com aquilo que não se

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

encontra evidente, buscando também se

Social e Institucional da UFRGS, sobre a

constituir como processo de criação e

relação entre pesquisador, problema e

reconstrução a partir desse percorrido. Para

conceito, para argumentar que o trabalho

isso, devemos suspeitar da unidade dos

conceitual a ser desenvolvido em uma tese

conceitos evitando sua transposição direta

não se aparenta ao “dissertar” sobre um

e a dita “aplicação”, sem tomá-los como

tema. Mais que mapear a bibliografia, Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ verdades, realizando uma operação de

conceito, conforme proposto por um autor,

“desmontagem”.

e escolhemos utilizá-lo em nossos traba-

Como alguém que desenrola um

lhos acadêmicos, estamos fazendo uma

novelo e descobre que ele é muito mais

operação legitimada cientificamente. Colo-

longo do que aparentava, os conceitos que

camo-nos “sobre os ombros de gigantes”,

utilizamos carregam em si uma série de

para usar a célebre frase de Newton.

componentes, relações, sentidos e efeitos

Acreditamos nos encontrar no ponto exato

que, muitas vezes, não se exibem à

onde o conhecimento acaba, na fronteira

primeira vista. Acreditamos que é somente

entre o que já foi pesquisado e aceito por

com esse fio desenrolado, com o conceito

nossos pares como verdade, e as questões

aberto, estendido e desmontado é que

que ainda restam ser respondidas ou,

poderemos tecer uma consistência teórica

talvez, aquelas ainda não formuladas. Dito

para nossas teses e, assim, dar contornos

em outras palavras, tomamos o con-ceito

para nossos campos problemáticos.

enquanto evidência de uma verdade sobre

Nas próximas páginas tentaremos

o objeto, e usamos essa verdade como uma

nos aproximar desta questão em três tem-

ferramenta para continuarmos descobrindo

pos. Primeiramente, sentimos a necessi-

outras verdades.

dade de justificar o nosso ponto de partida:

Há, no entanto, outras formas de

Para que, afinal, problematizar o uso de

compreender o conceito que gostaríamos

conceitos? Em seguida, tentaremos elencar

de abordar aqui. Deleuze e Guattari (2000),

algumas das operações que estão envol-

em O que é a filosofia?, nos propõem

vidas naquilo que propomos como uma

pensar o conceito não apenas como aquilo

“desmontagem” do conceito e verificar que

que explica o objeto, mas também como

efeitos de visibilidade essas operações

algo que precisa ser explicado, pensado,

podem produzir. A partir disso, propomos

conhecido. Ao dizerem isso, estão afir-

algumas ferramentas de desmontagem que

mando que os conceitos carregam em si

podem ser interessantes na construção da

uma série de relações internas e externas

tese e na articulação entre conceitos e

que não refletem apenas a natureza do seu

problema.

objeto, mas também dizem da forma como foram

construídos

por

seus

autores,

Desmontar o conceito: Por que é

relançando-nos ao universo da produção

preciso?

do próprio pensamento. A maneira como o homem pensa,

Quando tomamos um determinado Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142

afirma Foucault (2006a), está tão ligada | 131

Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ com a sociedade, a política, a economia e a

Quando a operação de criação de

história quanto com categorias gerais,

conceitos é invisibilizada – assim como os

olhares universais, estruturas formais. As

tensionamentos e forças que operam em

relações sociais, inevitavelmente, afetam a

sua formação passada e presente –, os

forma como somos capazes de pensar1, os

conceitos transformam-se em verdades

problemas que somos capazes de colocar,

estéreis, pois perdemos a perspectiva de

as formas como procuramos responder a

sua historicidade. Deixamos de ver quais

esses problemas e as respostas que

os problemas que levaram à criação

aceitamos como verdades.

daquele conceito, como esses problemas se

Nosso ponto de partida, portanto, é

inseriram dentro do jogo das relações

compreender que os conceitos são sempre

sociais de sua época, assim como quais

contingentes e construídos. Certamente

arranjos singulares o compuseram e ainda

eles se apresentam mais ou menos estabi-

se agenciam. O processo de criação dos

lizados no ambiente acadêmico, a partir de

conceitos, portanto, é inseparável das

uma série de discussões e consensos que

relações de poder e resistência que ele

vão sendo estabelecidos, assim como

estabelece com seus objetos, sejam estes

movimentos de desterritorialização e reter-

homens ou coisas. A naturalização é

ritorialização que os sobrepõem, alternam

perigosa, porque, ao esconder a operação

e recriam. Não há nada de errado com a

de criação dos conceitos, dá sustentação a

estabilização em si – não podemos viver

processos históricos sem deixá-los evi-

sem

O

dentes. Dessa forma, reproduzimos junta-

problema é quando a estabilização chega a

mente com o conceito determinados efei-

tal ponto que o conceito se apresenta como

tos, lugares atribuídos a sujeitos, modos de

incriado, enquanto dado natural, evidência,

pensar, sem que sejamos capazes de ver o

impossibilita a movimentação do pensa-

que estamos reproduzindo.

esses

objetos

estabilizados.

mento. Se tomamos os conceitos nessa

Foucault (2006a, p. 295) acreditava

forma naturalizada e nos propormos a

que seu papel enquanto intelectual con-

simplesmente “aplicá-los” em nossas teses,

sistia em “mostrar às pessoas que elas são

estamos aceitando – e provavelmente

muito mais livres do que pensam; que elas

reproduzindo – tudo aquilo que vem

tomam por verdade, por evidência alguns

agarrado ao conceito, sem nos darmos ao

temas que foram fabricados em um

trabalho de examinar de que se trata essa

momento particular da história; e que essa

bagagem.

pretensa evidência pode ser criticada e destruída”. Não temos necessariamente

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ essa pretensão em nossas teses, mas po-

tentar compreender como eles se articulam.

demos exercitar nossa liberdade enquanto

Isto implica uma atenção a como essas

pesquisadoras,

compreendemos

amarrações são construídas pelo autor, que

quais elementos se articulam aos conceitos

assim faz com que os componentes do

e a serviço de que estão operando. Assim,

conceito se afastem, se aproximem, se

torna-se

oponham

quando

possível

rearranjar

esses

elementos de modo que não apenas nos

ou

coexistam

em

um

determinado plano.

ajudem a recolocar um problema, mas

Nesse sentido, o conceito é sempre

afirmem determinada concepção ética e

uma criação, e a seleção e articulação de

política

seus componentes é uma das operações

que

queremos

sustentar

na

construção do conhecimento.

que fazem parte deste processo, através de relações

A desmontagem e suas operações

de

vizinhança,

superposição,

subtrações, dando-lhe sua consistência. Simultaneamente a esse processo de recorte e

Como, nesses termos, compreen-

criação de uma rede de sentidos, a criação

demos o movimento de desmontar o

de um conceito erige um plano de

conceito? O conceito, segundo Deleuze e

imanência, ou uma espécie de solo de onde

Guattari (2000), não é uma totalidade, mas

se extraem os elementos que compõem o

um todo fragmentário. É constituído por

conceito. Deleuze e Guattari nos dizem

uma série de componentes que corres-

que os planos são como desertos povoados

pondem a um certo recorte do caos, de

por conceitos, e os conceitos como tribos

forma a bordear o conceito, configurando

que por ele se deslocam, sem partilhar,

seu contorno irregular (e por isso se diz

entretanto, um território. O plano é assim

fragmentário). É próprio do conceito tornar

pré-filosófico, movimento infinito, que

seus componentes inseparáveis – embora

recorta o caos2 e se constitui como o único

sejam distintos e heterogêneos, sua inse-

suporte dos conceitos (o campo dos

parabilidade é que define sua consistência,

conceitos seria propriamente filosófico).

tecendo uma rede de relações, signi-

Tal recorte no caos não busca criar

ficações ou modos de pensar o pensamento

referências, ao contrário da produção

(e por isso se diz que é um todo). Para

científica que abre mão do infinito, pois se

utilizarmos um conceito no sentido que

coloca como fora absoluto, como não

estamos propondo, faz parte da operação

pensado do pensamento. Com isso, apesar

de desmontagem conhecer e percorrer

da impossibilidade de pensar o plano,

esses diferentes componentes do conceito e

devemos mostrar que ele está lá e perceber

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ que ele faz, simultaneamente à

sua

Isso não significa que, para utilizar

emergência, apelo à criação de conceitos.

um conceito, seja necessário compartilhar

Nesse plano de imanência habitado por

o plano de imanência presente na sua

conceitos, cada conceito remete a outros,

“origem”. Podemos, muitas vezes, seques-

não apenas em sua história, mas nas

trar conceitos, deformá-los ao inseri-los em

conexões presentes. Vão, assim, ao infi-

outro plano e torná-los articuláveis ao

nito, em suas conexões no plano. Cada

nosso problema. Mas, para roubá-los,

plano define e seleciona o que cabe ao

precisamos primeiro conhecer sua morada

pensamento, ou do que o pensamento vai

e sua vizinhança, atentando para o campo

se ocupar.

onde o conceito se relaciona com outros

Os planos de diferentes filosofias

conceitos. Assim, evitamos a simples

podem ser radicalmente distintos. Silva

reprodução de uma certa forma de fazer e

(2004), por exemplo, nos alerta sobre a

nos propomos a nos confrontar com o

diferença entre o plano de imanência

modo como opera um autor, questionar

cartesiano e o plano de imanência deleu-

como tal movimento pode vir a acontecer

ziano. O plano de imanência cartesiano é

em nosso plano, e em relação à nossa

erigido de tal forma que pressupõe a

própria forma de colocar um problema.

capacidade natural do ato de pensar e tem

Situar o conceito em relação aos

como efeito transformar o pensamento em

seus componentes e à sua emergência no

um ato privado, individual. Já o plano

plano, portanto, é uma das operações que

deleuziano

do

fazem parte do processo de desmontagem

diferente,

do conceito, necessárias em nossa aposta

compreendendo o pensamento como algo

para sua utilização na construção de uma

que provém de um encontro, raro e

tese. Desta forma, propomos tal desmon-

violento, com um campo intensivo que é

tagem, inicialmente, a partir desses dois

exterior ao indivíduo – que é impessoal.

elementos que Deleuze e Guattari consi-

Somos forçados a pensar. Neste sentido,

deram essenciais na produção do pensa-

para

mento: traçar um plano e criar conceitos.

produz

pensamento

utilizar

uma

imagem

radicalmente

um

conceito,

torna-se

absolutamente necessário percorrer esse

Um

aspecto

essencial

desse

plano de imanência, conhecer os conceitos

processo de criação está na colocação do

que o povoam e compreender qual imagem

problema. Identificar o problema que move

do pensamento é produzida a partir desse

a obra do autor é tarefa essencial para

plano.

utilizar o conceito, pois este nada mais é que uma forma urgente e necessária de

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ traçar um plano sobre o caos, de forma a

indica por onde o conceito deveria se

tornar possível a colocação de determinado

mover no plano de imanência, ao mesmo

problema. É ao problema que o conceito

tempo em que possibilita que este plano

deve sua existência.

seja traçado. É nesta con-comitância de

O problema, assim como o con-

ações (traçar o plano, criar conceitos e

ceito, também é uma cuidadosa constru-

colocar o problema) que o problema é bem

ção, pois a maneira como é colocado

colocado

define se ele será um verdadeiro ou um

pensamento,

falso problema. No sentido proposto por

complexidade que o articula. Na tarefa de

Bergson (1934/2006), um falso problema é

desmontar o conceito, o problema pode

um problema que asfixia o pensamento,

funcionar como uma espécie de crivo,

levando-o a becos sem saída. Pode fazer o

guiando nossa leitura e atenção de forma a

pesquisador cair em uma armadilha, pois

compreendermos conceitos e obra sempre

este tem a ilusão de estar se aproximando

em relação às questões que os tornaram

de sua pergunta, quando, na verdade, está

necessários.

e

torna-se carregando

pro-dutor a

de

própria

se afastando desta. Ocorre, em um exem-

Deleuze (2006) afirmou que só

plo dado por Bergson, quando pensamos

pensamos raramente, e sempre a partir do

hierarquicamente, em termos de mais ou

encontro com algo que nos força a pensar.

menos – quando procuramos diferenças de

Isso leva-nos a mais uma operação desta

grau e há apenas diferenças de natureza.

tarefa de desmontagem, que envolve

Junto com Bergson, Deleuze e Guattari

compreender este encontro, reconstruindo

(2000) nos dizem que um problema bem

(e assim recriando) o contexto que tornou

colocado é um problema resolvido, no

possível a criação do conceito daquela

sentido que o problema não se mede pelas

determinada forma.

soluções que se apresentam, mas pela sua capacidade de fazer pensar.

A investigação das condições de possibilidade da criação de um conceito

Ao tomar o problema conforme

dizem respeito a uma diversidade de

proposto por Bergson, ele passa a ser o

contextos que se sobrepõem, e que tomam

elemento central em nossa tarefa de

maior ou menor relevância em cada caso

desmanchar

do

particular. Envolve desde o ambiente

conceito e compreender sua contingência.

intelectual e acadêmico, suas disputas, ten-

O campo problemático é o que movimenta

dências, consensos, que levam à emer-

a criação do conceito, que tece as

gência de determinados campos proble-

articulações entre seus componentes e

máticos

a

aparente

unidade

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até

as

condições

políticas, | 135

Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ econômicas, sociais, que constantemente

conceito e suas articulações; entender a

confrontam e interrogam a produção

qual problema ele remete, questionando a

acadêmica, exigindo novas explicações e

urgência histórica na qual uma pro-

teorizações,

do

blemática passa a ser pensada; desmembrar

pensamento. Traçar essas condições de

sua operacionalização, buscando com-

possibilidade ajuda-nos a compreender a

preender como ele opera e o que ele vem

partir de quais visibilidades e dizibilidades

operar. A partir dessa série de operações, o

determinado problema pôde ser formulado,

conceito é desnaturalizado e recolocado

tal plano ser erigido, tais componentes

em sua historicidade. Deste modo, não

serem selecionados e tecidos em forma de

aceitamos sua pretensão de atemporalidade

conceito.

e reconhecemos sua contingência. Isto

novos

movimentos

Mais ainda, viabiliza que possamos

significa dizer que traçar as condições para

vislumbrar que efeitos de verdade são

que o problema seja pensado, elaborado, é

produzidos a partir dessas criações, como

encontrar aquilo que força a sua colocação

esses efeitos se atualizam em nosso

de determinada forma – é reconstituir o

presente e a que finalidades servem,

encontro do pensamento com algo que o

enquanto novas verdades estabelecidas e

movimenta em determinada direção. Supõe

estabilizadas. Sim, pois a criação de

um trabalho de cuidadosa elaboração:

conceitos tem

e

através da escolha de componentes, de sua

reproduzir determinados conceitos signifi-

articulação, da construção de um plano de

ca amplificar seus efeitos, fazê-los rever-

imanência, o conceito vai ganhando sua

berar mais um pouco, mantê-los vivos. Se

consistência e dando novos contornos ao

utilizamos conceitos, seja para sequestrá-

problema.

efeitos

no

mundo,

los e deformá-los ou para reproduzi-los,

Todas essas operações estão como

devemos fazê-lo com a noção de sua carga

que condensadas em um conceito. Se elas

invisível,

aqui aparecem distintas e em série, é

aquela

que

se

transmite

tacitamente pela história.

apenas

como

recurso

para

torná-las

Desmontar um conceito, portanto,

visíveis, mas elas não deixam de ser

envolve provocar o pensamento como uma

simultâneas e indissociáveis. A desmon-

máquina de guerra (Deleuze & Guattari,

tagem que propomos consiste em dar visi-

1997), ou seja, confrontar-se com as

bilidade a esse trabalho de criação que,

operações realizadas

de

argumentamos, é tarefa essencial para

criação do conceito: situá-lo no plano de

podermos então utilizar os conceitos em

imanência, pensando os elementos do

nossas teses.

no processo

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ Possibilidades para a operação

filosofia grega é o Amigo: aquele que não

conceitual: O exercício da desmontagem

pretende possuir a sabedoria (como o sábio), mas que tem intimidade com ela,

Falamos até o momento sobre por

uma intimidade competente,

como o

que se torna necessário desmontar os

marceneiro é amigo da madeira. Ao

conceitos que utilizamos em nossas teses, e

identificarem e nomearem esses perso-

quais operações estão envolvidas neste

nagens, Deleuze e Guattari estão dando

processo. Existem várias formas de realizar

visibilidade aos componentes do conceito,

a desmontagem – diferentes orientações

àquilo que eles inauguram em relação aos

teóricas poderão levar ao uso de diferentes

conceitos

ferramentas na realização de uma mesma

imanência que estão erigindo. Os autores

operação. Gostaríamos aqui, pela brevi-

estão

dade e por preferência teórica, de atentar

pensamento de Descartes e dos filósofos

para duas formas de fazer tal exercício.

gregos, como esses personagens concei-

anteriores,

demonstrando

ao

como

plano

de

opera

o

A primeira delas retomamos de

tuais específicos tornam-se necessários

Deleuze e Guattari (2000), quando eles

para que seus respectivos problemas sejam

propõem o personagem conceitual como

colocados.

operador do conceito. O personagem

A invenção do personagem con-

conceitual, para os autores, coloca-se como

ceitual se dá ao mesmo tempo em que o

condição de possibilidade do próprio

conceito é criado e o plano é traçado,

pensamento. Para que plano de imanência

sendo o personagem aquele que articula

e conceito se articulem, surge um terceiro

esses três elementos na colocação de um

elemento, o personagem conceitual, que dá

problema. O personagem é expressão,

vida e expressão ao pensamento. Os

pensamento vivo, pois encarna os con-

autores, ao colocarem em análise o cogito

ceitos, e é agente de enunciação que

cartesiano e a filosofia grega, vão mos-

manifesta os territórios, desterritoriali-

trando como esses personagens operam no

zações e reterritorializações. Em seu pro-

pensamento,

ao

cesso de operar os movimentos no plano

mesmo tempo em que surgem. Os autores

de imanência, atua como imagem do

identificam o personagem conceitual do

pensamento.

dando-lhe

existência

cogito como o Idiota: o pensador privado,

O exercício de problematização

aquele que diz Eu, aquele que duvida de

desses personagens pode ser uma forma

tudo, mas que tem certeza de que pensa e,

sensível de percorrermos os caminhos do

portanto, existe. Já o personagem da

pensamento

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do

autor,

abrindo

seus | 137

Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ conceitos. Nesse sentido, a filosofia torna

que o exercício genealógico não se

possível que nós, não filósofas, possamos

constitui

também operar com esses personagens

desmontagem em si, mas uma ferramenta

conceituais no processo de produção do

que possibilita historicizar o conceito,

pensamento, percorrendo com eles os

abrindo-o em suas condições de pos-

caminhos que fazem na construção dos

sibilidade, retirando seu status natura-

conceitos que nos interessam. Assim,

lizado. Foucault (2005, 2011), ao pensar

consideramos a problematização desses

genealogicamente, convida nossas análises

personagens conceituais como ferramenta

a repousarem mais sobre uma atitude que

útil

e

sobre a construção de uma hipótese

desnaturalizar o pensamento, resgatando

ideológica, provocando um deslocamento

sua expressividade e sensibilidade.

quanto à forma como criamos perguntas ao

para

desmontar

o

conceito

Acompanhar esse percurso expres-

enquanto

um

método

de

nosso objeto. Assim, as relações e jogos

sivo e movimentador do pensamento

nos quais o problema está inserido são

presente no personagem conceitual implica

questionados

resgatar

na

“descobrir” o que o sujeito diz daquilo que

construção da tese. Deleuze e Guattari

é tomado por natural ou verdade, mas por

(2000) trazem de Bergson o método da

perguntar-se sobre o que a verdade diz do

intuição, no qual o pesquisador se lança no

sujeito3. Dito de outra forma, trata-se de

plano de imanência: tateia, sente e se vê

colocar um movimento de não aceita-

impelido a pensar e criar novas possi-

bilidade no início do trabalho, sob a forma

bilidades de expressão para as articulações

de questionamento acerca dos modos pelos

e conexões existentes no pensamento do

quais certas condições de verdade são

autor, efetuando um novo recorte. Na

aceitas e produzidas, e como sustentam

medida em que afirmamos a não neutra-

determinadas relações como imediatas,

lidade do pensamento e a não naturalização

universais e evidentes. Dessa maneira, o

do conceito, emerge também a condição de

conceito é inserido em sua singularidade

autoria que marca a construção de uma

histórica e em sua contingência, com suas

tese, potencializada pelo encontro com

fragilidades.

certa

experimentação

esses personagens que fazem viver os conceitos.

não

Ao partir

pelo

interesse

em

de uma recusa

de

posturas essencialistas ou ideológicas, a

Outra forma possível de provocar o

perspectiva genealógica provoca o pensa-

processo de desmontagem é a abordagem

mento a desmontar a si próprio, ten-

genealógica. Importante iniciar apontando

sionando as práticas que são determinantes

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ para sua existência. Somos convocados a

incorretas de construir o conhecimento,

olhar para os efeitos que determinadas

mas sim como um convite a analisar

compreensões sobre um objeto passam a

domínios de saberes vizinhos. Nesse con-

ter nas experiências do sujeito e em suas

vite, o caminho do pensamento percorre o

relações. Nesse sentido, a genealogia pode

princípio

ser vista como um retorno a uma forma de

(Foucault, 2006b), pois, ao introduzir no

ciência mais atenta ou exata, pois retoma

conceito sua contingência histórica, ao

tanto o caráter local da crítica quanto a

pensar quais estratégias e instrumentos

insurreição de saberes sujeitados. Isto

foram movimentados em sua constituição,

significa dizer que ela busca a superfície

ao questionar quais efeitos e proce-

dos

dimentos racionais passam a operar com o

acontecimentos,

provocando

uma

de

produção que não reproduz um regime

conceito,

comum, mas convoca a rebelião de

violentada. Racionalidade-inovação, desta

conteúdos históricos, uma vez enterrados

forma, coloca em questão a própria relação

em representações da realidade. Ao se

entre o conceito e seu problema, sendo que

aproximar desta atitude crítica, o ato de

o ponto central da desmontagem não é um

pesquisar

a

ou outro, mas as condições de possibi-

memórias locais, tornando-o um saber

lidade que passam a amarrá-los intrin-

histórico:

secamente. Por este princípio, o autor-

acopla

o

conhecimento

nossa

“racionalidade-inovação”

forma

de

pensar

é

pesquisador não é alguém externo à Trata-se,

na

verdade,

de fazer que

escrita, um observador da pesquisa que

intervenham saberes locais, descontínuos,

“produz uma tese”, mas é aquele que

desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia

interroga a constituição do seu próprio

filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em

pensar, forçando o caminho do pensamento

nome de um conhecimento verdadeiro, em

a entrar em combate consigo mesmo.

nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns. [...] É exatamente

Considerações finais

contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar combate (Foucault, 2005, pp. 13-14).

Propusemos, neste texto, que o trabalho de construção de uma tese envolve uma certa forma de operar com

Importante colocar que, apesar da

conceitos que não é, de maneira alguma,

alusão ao combate, esta proposta não surge

evidente. O uso e a apropriação de

como uma guerra entre formas corretas e

conceitos envolve um procedimento que

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ chamamos aqui de “desmontagem”, para

reconhecimento

ressaltar que o conceito não é uma unidade

conceitual torna possível operar com os

lógica, mas um todo fragmentário, cujos

conceitos em função dos pro-blemas que

componentes não apenas se articulam entre

nos movem, em um processo de autoria

si, mas remetem a uma série de elementos

que se supõe necessário em uma tese de

exteriores a ele, como o plano de

doutorado. Desmontar os conceitos pode,

imanência e o problema que força sua

ainda, ajudar-nos a olhar de outra forma

criação. Não apenas isso, mas o conceito

para

tem sempre uma historicidade que precisa

evidenciando o que torna possível que nos

ser compreendida. Problemas se inserem

façamos certas perguntas, o que movi-

em jogos de verdade, em relações sociais

menta nossa curiosidade. Ao deixar de

específicas, e produzem efeitos dentro

tomar esses precursores ingenuamente,

destes jogos – rupturas, alianças, desvios.

compreendendo como operam e o que

Compreendemos essas operações de

desmontagem

do

conceito

o

nosso

deste

próprio

ma-quinário

pensamento,

produzem, poderemos reconfigurar nosso

como

próprio campo problemático e quem sabe,

transversais a diversas formas de fazer

produzir pesquisas com maior consis-

pesquisa, embora tenhamos descrito alguns

tência.

movimentos específicos sob os quais

Assim, desmontar conceitos abre a

entendemos ser possível o exercício de

possibilidade de se instaurar um campo de

desmontar conceitos – a problematização

criação do próprio pesquisador, pois exige

dos personagens conceituais e a aborda-

também um processo de remontagem.

gem genealógica. Sendo assim, este artigo

Desenrolar este novelo, buscando eviden-

incide menos como uma descrição de

ciar a historicidade do conceito e abrindo

procedimentos que como uma afirmação

aquilo que este operacionaliza, é também

de um modo de se colocar em relação à

um ato de criação, que consideramos

teoria, convocando o pesquisador a não

central na produção de uma tese.

estar completamente à vontade com aquilo que lhe parece evidente.

Notas

Se os conceitos nem sempre evidenciam seus processos de criação, estes

1

precisam ser visibilizados, compreendidos

importante na forma como pensamos e

e percorridos, para podermos utilizar os

conhecemos o mundo não significa afirmar

conceitos de forma que ressoem, façam

que o social determina o pensamento. Isso

sentido

e

ganhem

consistência.

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O

Reconhecer que o social tem influência

seria ir tão longe quanto sustentar que o

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ pensamento reflete diretamente o mundo, ou

Foucault, M. (2003). A verdade e as

que acessa esse mundo através da ciência e

formas jurídicas. Rio de Janeiro:

seus conceitos.

Nau.

2

Segundo Deleuze e Guattari (2000), o

__________.

(2005).

Em

defesa

da

caos não se caracteriza tanto pela ausência

sociedade: curso no Collège de

de determinações, mas pela velocidade

France (1975-1976). São Paulo:

infinita com a qual essas determinações se

Martins Fontes.

esboçam e se apagam. Não é inerte, é mistura ao acaso. 3

mesmo. In: M. Foucault, Ditos e

Aqui a noção de verdade surge enquanto

a busca por algo seguro e sólido em que se apoiam respaldos científicos e estratégias metodológicas,

__________. (2006a). Verdade, poder e si

produzindo

escritos (Vol. V, pp. 294-300). Rio de Janeiro: Forense Universitária. __________. (2006b). A poeira e a nuvem.

certezas,

In: M. Foucault, Ditos e escritos

construindo saberes (Foucault, 2003). Ao

(Vol. IV, pp. 323-334). Rio de

colocar em análise os elementos que

Janeiro: Forense Universitária.

constituem uma verdade, torna-se possível

__________. (2011). Do governo dos

abrir as tensões entre forças existentes no

vivos: curso no Collège de France

campo da pesquisa e da escrita. Assim,

(1979-1980).

aproximamos este exercício analítico do

Achiamé.

movimento para abrir o conceito.

Rio

de

Janeiro:

Silva, R. N. (2004). A dobra deleuziana: políticas de subjetivação. Rev. Dep.

Referências

Psico UFF, 16(1), 55-75.

Bergson, H. (2006). O pensamento e o movente.

São

Paulo:

Martins

Fontes. (Originalmente publicado em 1934). Deleuze, G. (2006) Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal. Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). São Paulo: Editora 34. ____________. (2000). O que é filosofia?

Carolina Seibel Chassot: É psicóloga (UFRGS), Família

especialista e

em

Comunidade

Saúde

da

(Residência

Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição) e mestre em Políticas de Saúde e Bem-Estar Social (Universidade de Évora/École des Hautes Études en Sciences Sociales). Atualmente faz doutorado no PPGPSI/UFRGS

pesqui-sando

a

São Paulo: Editora 34.

Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142

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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ organização coletiva de usuários de saúde mental.

Enviado em: 11/09/2014 – Aceito em: 24/10/2014

E-mail: [email protected]

Camila Backes dos Santos: É psicóloga (UFRGS) e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Atualmente é doutoranda pelo mesmo programa e membro do grupo de Pesquisa em Psicanálise, Clínica e Cultura. E-mail: [email protected]

Luciana Rodriguez Barone: É psicóloga (UFRGS), trabalhadora do Grupo Hospitalar Conceição. Especialista e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atualmente é doutoranda do mesmo programa, integrando o grupo de pesquisa Intervires em uma pesquisa em saúde mental na atenção básica do SUS. E-mail: [email protected]

Oriana Holsbach Hadler: É psicóloga (UCPel), mestre em Psicologia Social (PUCRS), pós-graduada em Language and Contemporary Culture (Goldsmiths College – University of London). Atualmente é doutoranda do PPGPSI/UFRGS, integrando o Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação –, desenvolve pesquisas no campo das Políticas de Segurança e Juventude em Situação de Prisão. E-mail: [email protected] Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142

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