O uso de conceitos na construção de uma tese: a desmontagem e suas operações The use of concepts in the construction of a thesis: dismantling and its operations El uso de los conceptos en la construcción de una tesis: el desmontaje y sus operaciones
Carolina Seibel Chassot Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Camila Backes dos Santos Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Luciana Rodriguez Barone Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Oriana Holsbach Hadler Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
Resumo Neste artigo apresentamos uma discussão sobre a utilização de conceitos na construção de uma tese. Argumentamos a respeito da necessidade de entrar em contato com aquilo que não se faz tão evidente no processo do pensamento e, para tanto, afirmamos a necessidade de problematizar os conceitos numa operação que chamamos de desmontagem. Elencamos então algumas operações envolvidas nesse processo, inspiradas por Deleuze e Guattari, tomando como ponto de partida os conceitos como contingentes e construídos, situando-os no plano de imanência, historicizando-os e articulando-os com o campo problemático em que se constroem. Afirmamos, assim, o caráter criativo da construção de uma tese, na qual desmontar torna-se também remontar conceitos, dando consistência ao processo de produção de conhecimento. Palavras-chave: Conceito. Pesquisa. Problema. Produção de Conhecimento.
Abstract This article presents a discussion on the use of concepts in the construction of a thesis. It is argued about the need to get in contact with what is not so evident in the process of thought, and for that it is affirmed the need to discuss the concepts, in what we call an operation of dismantling. Some of the operations involved in this process are presented, inspired by
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ Deleuze and Guattari, taking the concepts as contingent and constructed, placing them on the plane of immanence, historicizing them and linking them to the problematic field in which they are built. In this sense, the creative character of the construction of a thesis is affirmed, in which the dismantling process also becomes a procedure of reassembling concepts, giving consistency to the process of thought. Keywords: Concept; Research; Problem; Production of knowledge.
Resumen En este artículo, presentamos un debate sobre el uso de los conceptos en la construcción de una tesis. Se argumenta sobre la necesidad de estar en contacto con lo que no es tan evidente en el proceso de pensamiento y, por lo tanto, afirmamos la necesidad de problematizar los conceptos en una operación que llamamos desmontaje. De este modo, enumeramos algunas operaciones de ese proceso, inspiradas por Deleuze y Guattari, tomando como punto de partida los conceptos como contingentes y construidos, colocándolos en el plano de inmanencia, historiándolos y vinculándolos con el campo problemático en que se construyen. Por lo tanto, afirmamos el carácter creativo de la construcción de una tesis, donde el desmontaje también se convierte en una reconstrucción de los conceptos, dando consistencia al proceso de producción de conocimiento. Palabras clave: Concepto; Investigación; Problema; Producción de conocimiento.
Introdução
escolher determinadas definições concei-
Neste artigo apresentamos uma dis-
tuais, explicitar pressupostos ou filiar-se a
cussão sobre a utilização de conceitos na
determinados autores ou linhas teóricas, o
construção de uma tese. Partimos de algu-
trabalho conceitual da tese envolve entrar
mas problematizações, realizadas junta-
em contato com os conceitos em toda sua
mente com os colegas e professores do
extensão, inclusive com aquilo que não se
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
encontra evidente, buscando também se
Social e Institucional da UFRGS, sobre a
constituir como processo de criação e
relação entre pesquisador, problema e
reconstrução a partir desse percorrido. Para
conceito, para argumentar que o trabalho
isso, devemos suspeitar da unidade dos
conceitual a ser desenvolvido em uma tese
conceitos evitando sua transposição direta
não se aparenta ao “dissertar” sobre um
e a dita “aplicação”, sem tomá-los como
tema. Mais que mapear a bibliografia, Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ verdades, realizando uma operação de
conceito, conforme proposto por um autor,
“desmontagem”.
e escolhemos utilizá-lo em nossos traba-
Como alguém que desenrola um
lhos acadêmicos, estamos fazendo uma
novelo e descobre que ele é muito mais
operação legitimada cientificamente. Colo-
longo do que aparentava, os conceitos que
camo-nos “sobre os ombros de gigantes”,
utilizamos carregam em si uma série de
para usar a célebre frase de Newton.
componentes, relações, sentidos e efeitos
Acreditamos nos encontrar no ponto exato
que, muitas vezes, não se exibem à
onde o conhecimento acaba, na fronteira
primeira vista. Acreditamos que é somente
entre o que já foi pesquisado e aceito por
com esse fio desenrolado, com o conceito
nossos pares como verdade, e as questões
aberto, estendido e desmontado é que
que ainda restam ser respondidas ou,
poderemos tecer uma consistência teórica
talvez, aquelas ainda não formuladas. Dito
para nossas teses e, assim, dar contornos
em outras palavras, tomamos o con-ceito
para nossos campos problemáticos.
enquanto evidência de uma verdade sobre
Nas próximas páginas tentaremos
o objeto, e usamos essa verdade como uma
nos aproximar desta questão em três tem-
ferramenta para continuarmos descobrindo
pos. Primeiramente, sentimos a necessi-
outras verdades.
dade de justificar o nosso ponto de partida:
Há, no entanto, outras formas de
Para que, afinal, problematizar o uso de
compreender o conceito que gostaríamos
conceitos? Em seguida, tentaremos elencar
de abordar aqui. Deleuze e Guattari (2000),
algumas das operações que estão envol-
em O que é a filosofia?, nos propõem
vidas naquilo que propomos como uma
pensar o conceito não apenas como aquilo
“desmontagem” do conceito e verificar que
que explica o objeto, mas também como
efeitos de visibilidade essas operações
algo que precisa ser explicado, pensado,
podem produzir. A partir disso, propomos
conhecido. Ao dizerem isso, estão afir-
algumas ferramentas de desmontagem que
mando que os conceitos carregam em si
podem ser interessantes na construção da
uma série de relações internas e externas
tese e na articulação entre conceitos e
que não refletem apenas a natureza do seu
problema.
objeto, mas também dizem da forma como foram
construídos
por
seus
autores,
Desmontar o conceito: Por que é
relançando-nos ao universo da produção
preciso?
do próprio pensamento. A maneira como o homem pensa,
Quando tomamos um determinado Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142
afirma Foucault (2006a), está tão ligada | 131
Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ com a sociedade, a política, a economia e a
Quando a operação de criação de
história quanto com categorias gerais,
conceitos é invisibilizada – assim como os
olhares universais, estruturas formais. As
tensionamentos e forças que operam em
relações sociais, inevitavelmente, afetam a
sua formação passada e presente –, os
forma como somos capazes de pensar1, os
conceitos transformam-se em verdades
problemas que somos capazes de colocar,
estéreis, pois perdemos a perspectiva de
as formas como procuramos responder a
sua historicidade. Deixamos de ver quais
esses problemas e as respostas que
os problemas que levaram à criação
aceitamos como verdades.
daquele conceito, como esses problemas se
Nosso ponto de partida, portanto, é
inseriram dentro do jogo das relações
compreender que os conceitos são sempre
sociais de sua época, assim como quais
contingentes e construídos. Certamente
arranjos singulares o compuseram e ainda
eles se apresentam mais ou menos estabi-
se agenciam. O processo de criação dos
lizados no ambiente acadêmico, a partir de
conceitos, portanto, é inseparável das
uma série de discussões e consensos que
relações de poder e resistência que ele
vão sendo estabelecidos, assim como
estabelece com seus objetos, sejam estes
movimentos de desterritorialização e reter-
homens ou coisas. A naturalização é
ritorialização que os sobrepõem, alternam
perigosa, porque, ao esconder a operação
e recriam. Não há nada de errado com a
de criação dos conceitos, dá sustentação a
estabilização em si – não podemos viver
processos históricos sem deixá-los evi-
sem
O
dentes. Dessa forma, reproduzimos junta-
problema é quando a estabilização chega a
mente com o conceito determinados efei-
tal ponto que o conceito se apresenta como
tos, lugares atribuídos a sujeitos, modos de
incriado, enquanto dado natural, evidência,
pensar, sem que sejamos capazes de ver o
impossibilita a movimentação do pensa-
que estamos reproduzindo.
esses
objetos
estabilizados.
mento. Se tomamos os conceitos nessa
Foucault (2006a, p. 295) acreditava
forma naturalizada e nos propormos a
que seu papel enquanto intelectual con-
simplesmente “aplicá-los” em nossas teses,
sistia em “mostrar às pessoas que elas são
estamos aceitando – e provavelmente
muito mais livres do que pensam; que elas
reproduzindo – tudo aquilo que vem
tomam por verdade, por evidência alguns
agarrado ao conceito, sem nos darmos ao
temas que foram fabricados em um
trabalho de examinar de que se trata essa
momento particular da história; e que essa
bagagem.
pretensa evidência pode ser criticada e destruída”. Não temos necessariamente
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ essa pretensão em nossas teses, mas po-
tentar compreender como eles se articulam.
demos exercitar nossa liberdade enquanto
Isto implica uma atenção a como essas
pesquisadoras,
compreendemos
amarrações são construídas pelo autor, que
quais elementos se articulam aos conceitos
assim faz com que os componentes do
e a serviço de que estão operando. Assim,
conceito se afastem, se aproximem, se
torna-se
oponham
quando
possível
rearranjar
esses
elementos de modo que não apenas nos
ou
coexistam
em
um
determinado plano.
ajudem a recolocar um problema, mas
Nesse sentido, o conceito é sempre
afirmem determinada concepção ética e
uma criação, e a seleção e articulação de
política
seus componentes é uma das operações
que
queremos
sustentar
na
construção do conhecimento.
que fazem parte deste processo, através de relações
A desmontagem e suas operações
de
vizinhança,
superposição,
subtrações, dando-lhe sua consistência. Simultaneamente a esse processo de recorte e
Como, nesses termos, compreen-
criação de uma rede de sentidos, a criação
demos o movimento de desmontar o
de um conceito erige um plano de
conceito? O conceito, segundo Deleuze e
imanência, ou uma espécie de solo de onde
Guattari (2000), não é uma totalidade, mas
se extraem os elementos que compõem o
um todo fragmentário. É constituído por
conceito. Deleuze e Guattari nos dizem
uma série de componentes que corres-
que os planos são como desertos povoados
pondem a um certo recorte do caos, de
por conceitos, e os conceitos como tribos
forma a bordear o conceito, configurando
que por ele se deslocam, sem partilhar,
seu contorno irregular (e por isso se diz
entretanto, um território. O plano é assim
fragmentário). É próprio do conceito tornar
pré-filosófico, movimento infinito, que
seus componentes inseparáveis – embora
recorta o caos2 e se constitui como o único
sejam distintos e heterogêneos, sua inse-
suporte dos conceitos (o campo dos
parabilidade é que define sua consistência,
conceitos seria propriamente filosófico).
tecendo uma rede de relações, signi-
Tal recorte no caos não busca criar
ficações ou modos de pensar o pensamento
referências, ao contrário da produção
(e por isso se diz que é um todo). Para
científica que abre mão do infinito, pois se
utilizarmos um conceito no sentido que
coloca como fora absoluto, como não
estamos propondo, faz parte da operação
pensado do pensamento. Com isso, apesar
de desmontagem conhecer e percorrer
da impossibilidade de pensar o plano,
esses diferentes componentes do conceito e
devemos mostrar que ele está lá e perceber
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ que ele faz, simultaneamente à
sua
Isso não significa que, para utilizar
emergência, apelo à criação de conceitos.
um conceito, seja necessário compartilhar
Nesse plano de imanência habitado por
o plano de imanência presente na sua
conceitos, cada conceito remete a outros,
“origem”. Podemos, muitas vezes, seques-
não apenas em sua história, mas nas
trar conceitos, deformá-los ao inseri-los em
conexões presentes. Vão, assim, ao infi-
outro plano e torná-los articuláveis ao
nito, em suas conexões no plano. Cada
nosso problema. Mas, para roubá-los,
plano define e seleciona o que cabe ao
precisamos primeiro conhecer sua morada
pensamento, ou do que o pensamento vai
e sua vizinhança, atentando para o campo
se ocupar.
onde o conceito se relaciona com outros
Os planos de diferentes filosofias
conceitos. Assim, evitamos a simples
podem ser radicalmente distintos. Silva
reprodução de uma certa forma de fazer e
(2004), por exemplo, nos alerta sobre a
nos propomos a nos confrontar com o
diferença entre o plano de imanência
modo como opera um autor, questionar
cartesiano e o plano de imanência deleu-
como tal movimento pode vir a acontecer
ziano. O plano de imanência cartesiano é
em nosso plano, e em relação à nossa
erigido de tal forma que pressupõe a
própria forma de colocar um problema.
capacidade natural do ato de pensar e tem
Situar o conceito em relação aos
como efeito transformar o pensamento em
seus componentes e à sua emergência no
um ato privado, individual. Já o plano
plano, portanto, é uma das operações que
deleuziano
do
fazem parte do processo de desmontagem
diferente,
do conceito, necessárias em nossa aposta
compreendendo o pensamento como algo
para sua utilização na construção de uma
que provém de um encontro, raro e
tese. Desta forma, propomos tal desmon-
violento, com um campo intensivo que é
tagem, inicialmente, a partir desses dois
exterior ao indivíduo – que é impessoal.
elementos que Deleuze e Guattari consi-
Somos forçados a pensar. Neste sentido,
deram essenciais na produção do pensa-
para
mento: traçar um plano e criar conceitos.
produz
pensamento
utilizar
uma
imagem
radicalmente
um
conceito,
torna-se
absolutamente necessário percorrer esse
Um
aspecto
essencial
desse
plano de imanência, conhecer os conceitos
processo de criação está na colocação do
que o povoam e compreender qual imagem
problema. Identificar o problema que move
do pensamento é produzida a partir desse
a obra do autor é tarefa essencial para
plano.
utilizar o conceito, pois este nada mais é que uma forma urgente e necessária de
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ traçar um plano sobre o caos, de forma a
indica por onde o conceito deveria se
tornar possível a colocação de determinado
mover no plano de imanência, ao mesmo
problema. É ao problema que o conceito
tempo em que possibilita que este plano
deve sua existência.
seja traçado. É nesta con-comitância de
O problema, assim como o con-
ações (traçar o plano, criar conceitos e
ceito, também é uma cuidadosa constru-
colocar o problema) que o problema é bem
ção, pois a maneira como é colocado
colocado
define se ele será um verdadeiro ou um
pensamento,
falso problema. No sentido proposto por
complexidade que o articula. Na tarefa de
Bergson (1934/2006), um falso problema é
desmontar o conceito, o problema pode
um problema que asfixia o pensamento,
funcionar como uma espécie de crivo,
levando-o a becos sem saída. Pode fazer o
guiando nossa leitura e atenção de forma a
pesquisador cair em uma armadilha, pois
compreendermos conceitos e obra sempre
este tem a ilusão de estar se aproximando
em relação às questões que os tornaram
de sua pergunta, quando, na verdade, está
necessários.
e
torna-se carregando
pro-dutor a
de
própria
se afastando desta. Ocorre, em um exem-
Deleuze (2006) afirmou que só
plo dado por Bergson, quando pensamos
pensamos raramente, e sempre a partir do
hierarquicamente, em termos de mais ou
encontro com algo que nos força a pensar.
menos – quando procuramos diferenças de
Isso leva-nos a mais uma operação desta
grau e há apenas diferenças de natureza.
tarefa de desmontagem, que envolve
Junto com Bergson, Deleuze e Guattari
compreender este encontro, reconstruindo
(2000) nos dizem que um problema bem
(e assim recriando) o contexto que tornou
colocado é um problema resolvido, no
possível a criação do conceito daquela
sentido que o problema não se mede pelas
determinada forma.
soluções que se apresentam, mas pela sua capacidade de fazer pensar.
A investigação das condições de possibilidade da criação de um conceito
Ao tomar o problema conforme
dizem respeito a uma diversidade de
proposto por Bergson, ele passa a ser o
contextos que se sobrepõem, e que tomam
elemento central em nossa tarefa de
maior ou menor relevância em cada caso
desmanchar
do
particular. Envolve desde o ambiente
conceito e compreender sua contingência.
intelectual e acadêmico, suas disputas, ten-
O campo problemático é o que movimenta
dências, consensos, que levam à emer-
a criação do conceito, que tece as
gência de determinados campos proble-
articulações entre seus componentes e
máticos
a
aparente
unidade
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até
as
condições
políticas, | 135
Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ econômicas, sociais, que constantemente
conceito e suas articulações; entender a
confrontam e interrogam a produção
qual problema ele remete, questionando a
acadêmica, exigindo novas explicações e
urgência histórica na qual uma pro-
teorizações,
do
blemática passa a ser pensada; desmembrar
pensamento. Traçar essas condições de
sua operacionalização, buscando com-
possibilidade ajuda-nos a compreender a
preender como ele opera e o que ele vem
partir de quais visibilidades e dizibilidades
operar. A partir dessa série de operações, o
determinado problema pôde ser formulado,
conceito é desnaturalizado e recolocado
tal plano ser erigido, tais componentes
em sua historicidade. Deste modo, não
serem selecionados e tecidos em forma de
aceitamos sua pretensão de atemporalidade
conceito.
e reconhecemos sua contingência. Isto
novos
movimentos
Mais ainda, viabiliza que possamos
significa dizer que traçar as condições para
vislumbrar que efeitos de verdade são
que o problema seja pensado, elaborado, é
produzidos a partir dessas criações, como
encontrar aquilo que força a sua colocação
esses efeitos se atualizam em nosso
de determinada forma – é reconstituir o
presente e a que finalidades servem,
encontro do pensamento com algo que o
enquanto novas verdades estabelecidas e
movimenta em determinada direção. Supõe
estabilizadas. Sim, pois a criação de
um trabalho de cuidadosa elaboração:
conceitos tem
e
através da escolha de componentes, de sua
reproduzir determinados conceitos signifi-
articulação, da construção de um plano de
ca amplificar seus efeitos, fazê-los rever-
imanência, o conceito vai ganhando sua
berar mais um pouco, mantê-los vivos. Se
consistência e dando novos contornos ao
utilizamos conceitos, seja para sequestrá-
problema.
efeitos
no
mundo,
los e deformá-los ou para reproduzi-los,
Todas essas operações estão como
devemos fazê-lo com a noção de sua carga
que condensadas em um conceito. Se elas
invisível,
aqui aparecem distintas e em série, é
aquela
que
se
transmite
tacitamente pela história.
apenas
como
recurso
para
torná-las
Desmontar um conceito, portanto,
visíveis, mas elas não deixam de ser
envolve provocar o pensamento como uma
simultâneas e indissociáveis. A desmon-
máquina de guerra (Deleuze & Guattari,
tagem que propomos consiste em dar visi-
1997), ou seja, confrontar-se com as
bilidade a esse trabalho de criação que,
operações realizadas
de
argumentamos, é tarefa essencial para
criação do conceito: situá-lo no plano de
podermos então utilizar os conceitos em
imanência, pensando os elementos do
nossas teses.
no processo
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ Possibilidades para a operação
filosofia grega é o Amigo: aquele que não
conceitual: O exercício da desmontagem
pretende possuir a sabedoria (como o sábio), mas que tem intimidade com ela,
Falamos até o momento sobre por
uma intimidade competente,
como o
que se torna necessário desmontar os
marceneiro é amigo da madeira. Ao
conceitos que utilizamos em nossas teses, e
identificarem e nomearem esses perso-
quais operações estão envolvidas neste
nagens, Deleuze e Guattari estão dando
processo. Existem várias formas de realizar
visibilidade aos componentes do conceito,
a desmontagem – diferentes orientações
àquilo que eles inauguram em relação aos
teóricas poderão levar ao uso de diferentes
conceitos
ferramentas na realização de uma mesma
imanência que estão erigindo. Os autores
operação. Gostaríamos aqui, pela brevi-
estão
dade e por preferência teórica, de atentar
pensamento de Descartes e dos filósofos
para duas formas de fazer tal exercício.
gregos, como esses personagens concei-
anteriores,
demonstrando
ao
como
plano
de
opera
o
A primeira delas retomamos de
tuais específicos tornam-se necessários
Deleuze e Guattari (2000), quando eles
para que seus respectivos problemas sejam
propõem o personagem conceitual como
colocados.
operador do conceito. O personagem
A invenção do personagem con-
conceitual, para os autores, coloca-se como
ceitual se dá ao mesmo tempo em que o
condição de possibilidade do próprio
conceito é criado e o plano é traçado,
pensamento. Para que plano de imanência
sendo o personagem aquele que articula
e conceito se articulem, surge um terceiro
esses três elementos na colocação de um
elemento, o personagem conceitual, que dá
problema. O personagem é expressão,
vida e expressão ao pensamento. Os
pensamento vivo, pois encarna os con-
autores, ao colocarem em análise o cogito
ceitos, e é agente de enunciação que
cartesiano e a filosofia grega, vão mos-
manifesta os territórios, desterritoriali-
trando como esses personagens operam no
zações e reterritorializações. Em seu pro-
pensamento,
ao
cesso de operar os movimentos no plano
mesmo tempo em que surgem. Os autores
de imanência, atua como imagem do
identificam o personagem conceitual do
pensamento.
dando-lhe
existência
cogito como o Idiota: o pensador privado,
O exercício de problematização
aquele que diz Eu, aquele que duvida de
desses personagens pode ser uma forma
tudo, mas que tem certeza de que pensa e,
sensível de percorrermos os caminhos do
portanto, existe. Já o personagem da
pensamento
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do
autor,
abrindo
seus | 137
Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ conceitos. Nesse sentido, a filosofia torna
que o exercício genealógico não se
possível que nós, não filósofas, possamos
constitui
também operar com esses personagens
desmontagem em si, mas uma ferramenta
conceituais no processo de produção do
que possibilita historicizar o conceito,
pensamento, percorrendo com eles os
abrindo-o em suas condições de pos-
caminhos que fazem na construção dos
sibilidade, retirando seu status natura-
conceitos que nos interessam. Assim,
lizado. Foucault (2005, 2011), ao pensar
consideramos a problematização desses
genealogicamente, convida nossas análises
personagens conceituais como ferramenta
a repousarem mais sobre uma atitude que
útil
e
sobre a construção de uma hipótese
desnaturalizar o pensamento, resgatando
ideológica, provocando um deslocamento
sua expressividade e sensibilidade.
quanto à forma como criamos perguntas ao
para
desmontar
o
conceito
Acompanhar esse percurso expres-
enquanto
um
método
de
nosso objeto. Assim, as relações e jogos
sivo e movimentador do pensamento
nos quais o problema está inserido são
presente no personagem conceitual implica
questionados
resgatar
na
“descobrir” o que o sujeito diz daquilo que
construção da tese. Deleuze e Guattari
é tomado por natural ou verdade, mas por
(2000) trazem de Bergson o método da
perguntar-se sobre o que a verdade diz do
intuição, no qual o pesquisador se lança no
sujeito3. Dito de outra forma, trata-se de
plano de imanência: tateia, sente e se vê
colocar um movimento de não aceita-
impelido a pensar e criar novas possi-
bilidade no início do trabalho, sob a forma
bilidades de expressão para as articulações
de questionamento acerca dos modos pelos
e conexões existentes no pensamento do
quais certas condições de verdade são
autor, efetuando um novo recorte. Na
aceitas e produzidas, e como sustentam
medida em que afirmamos a não neutra-
determinadas relações como imediatas,
lidade do pensamento e a não naturalização
universais e evidentes. Dessa maneira, o
do conceito, emerge também a condição de
conceito é inserido em sua singularidade
autoria que marca a construção de uma
histórica e em sua contingência, com suas
tese, potencializada pelo encontro com
fragilidades.
certa
experimentação
esses personagens que fazem viver os conceitos.
não
Ao partir
pelo
interesse
em
de uma recusa
de
posturas essencialistas ou ideológicas, a
Outra forma possível de provocar o
perspectiva genealógica provoca o pensa-
processo de desmontagem é a abordagem
mento a desmontar a si próprio, ten-
genealógica. Importante iniciar apontando
sionando as práticas que são determinantes
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ para sua existência. Somos convocados a
incorretas de construir o conhecimento,
olhar para os efeitos que determinadas
mas sim como um convite a analisar
compreensões sobre um objeto passam a
domínios de saberes vizinhos. Nesse con-
ter nas experiências do sujeito e em suas
vite, o caminho do pensamento percorre o
relações. Nesse sentido, a genealogia pode
princípio
ser vista como um retorno a uma forma de
(Foucault, 2006b), pois, ao introduzir no
ciência mais atenta ou exata, pois retoma
conceito sua contingência histórica, ao
tanto o caráter local da crítica quanto a
pensar quais estratégias e instrumentos
insurreição de saberes sujeitados. Isto
foram movimentados em sua constituição,
significa dizer que ela busca a superfície
ao questionar quais efeitos e proce-
dos
dimentos racionais passam a operar com o
acontecimentos,
provocando
uma
de
produção que não reproduz um regime
conceito,
comum, mas convoca a rebelião de
violentada. Racionalidade-inovação, desta
conteúdos históricos, uma vez enterrados
forma, coloca em questão a própria relação
em representações da realidade. Ao se
entre o conceito e seu problema, sendo que
aproximar desta atitude crítica, o ato de
o ponto central da desmontagem não é um
pesquisar
a
ou outro, mas as condições de possibi-
memórias locais, tornando-o um saber
lidade que passam a amarrá-los intrin-
histórico:
secamente. Por este princípio, o autor-
acopla
o
conhecimento
nossa
“racionalidade-inovação”
forma
de
pensar
é
pesquisador não é alguém externo à Trata-se,
na
verdade,
de fazer que
escrita, um observador da pesquisa que
intervenham saberes locais, descontínuos,
“produz uma tese”, mas é aquele que
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia
interroga a constituição do seu próprio
filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em
pensar, forçando o caminho do pensamento
nome de um conhecimento verdadeiro, em
a entrar em combate consigo mesmo.
nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns. [...] É exatamente
Considerações finais
contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar combate (Foucault, 2005, pp. 13-14).
Propusemos, neste texto, que o trabalho de construção de uma tese envolve uma certa forma de operar com
Importante colocar que, apesar da
conceitos que não é, de maneira alguma,
alusão ao combate, esta proposta não surge
evidente. O uso e a apropriação de
como uma guerra entre formas corretas e
conceitos envolve um procedimento que
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ chamamos aqui de “desmontagem”, para
reconhecimento
ressaltar que o conceito não é uma unidade
conceitual torna possível operar com os
lógica, mas um todo fragmentário, cujos
conceitos em função dos pro-blemas que
componentes não apenas se articulam entre
nos movem, em um processo de autoria
si, mas remetem a uma série de elementos
que se supõe necessário em uma tese de
exteriores a ele, como o plano de
doutorado. Desmontar os conceitos pode,
imanência e o problema que força sua
ainda, ajudar-nos a olhar de outra forma
criação. Não apenas isso, mas o conceito
para
tem sempre uma historicidade que precisa
evidenciando o que torna possível que nos
ser compreendida. Problemas se inserem
façamos certas perguntas, o que movi-
em jogos de verdade, em relações sociais
menta nossa curiosidade. Ao deixar de
específicas, e produzem efeitos dentro
tomar esses precursores ingenuamente,
destes jogos – rupturas, alianças, desvios.
compreendendo como operam e o que
Compreendemos essas operações de
desmontagem
do
conceito
o
nosso
deste
próprio
ma-quinário
pensamento,
produzem, poderemos reconfigurar nosso
como
próprio campo problemático e quem sabe,
transversais a diversas formas de fazer
produzir pesquisas com maior consis-
pesquisa, embora tenhamos descrito alguns
tência.
movimentos específicos sob os quais
Assim, desmontar conceitos abre a
entendemos ser possível o exercício de
possibilidade de se instaurar um campo de
desmontar conceitos – a problematização
criação do próprio pesquisador, pois exige
dos personagens conceituais e a aborda-
também um processo de remontagem.
gem genealógica. Sendo assim, este artigo
Desenrolar este novelo, buscando eviden-
incide menos como uma descrição de
ciar a historicidade do conceito e abrindo
procedimentos que como uma afirmação
aquilo que este operacionaliza, é também
de um modo de se colocar em relação à
um ato de criação, que consideramos
teoria, convocando o pesquisador a não
central na produção de uma tese.
estar completamente à vontade com aquilo que lhe parece evidente.
Notas
Se os conceitos nem sempre evidenciam seus processos de criação, estes
1
precisam ser visibilizados, compreendidos
importante na forma como pensamos e
e percorridos, para podermos utilizar os
conhecemos o mundo não significa afirmar
conceitos de forma que ressoem, façam
que o social determina o pensamento. Isso
sentido
e
ganhem
consistência.
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O
Reconhecer que o social tem influência
seria ir tão longe quanto sustentar que o
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ pensamento reflete diretamente o mundo, ou
Foucault, M. (2003). A verdade e as
que acessa esse mundo através da ciência e
formas jurídicas. Rio de Janeiro:
seus conceitos.
Nau.
2
Segundo Deleuze e Guattari (2000), o
__________.
(2005).
Em
defesa
da
caos não se caracteriza tanto pela ausência
sociedade: curso no Collège de
de determinações, mas pela velocidade
France (1975-1976). São Paulo:
infinita com a qual essas determinações se
Martins Fontes.
esboçam e se apagam. Não é inerte, é mistura ao acaso. 3
mesmo. In: M. Foucault, Ditos e
Aqui a noção de verdade surge enquanto
a busca por algo seguro e sólido em que se apoiam respaldos científicos e estratégias metodológicas,
__________. (2006a). Verdade, poder e si
produzindo
escritos (Vol. V, pp. 294-300). Rio de Janeiro: Forense Universitária. __________. (2006b). A poeira e a nuvem.
certezas,
In: M. Foucault, Ditos e escritos
construindo saberes (Foucault, 2003). Ao
(Vol. IV, pp. 323-334). Rio de
colocar em análise os elementos que
Janeiro: Forense Universitária.
constituem uma verdade, torna-se possível
__________. (2011). Do governo dos
abrir as tensões entre forças existentes no
vivos: curso no Collège de France
campo da pesquisa e da escrita. Assim,
(1979-1980).
aproximamos este exercício analítico do
Achiamé.
movimento para abrir o conceito.
Rio
de
Janeiro:
Silva, R. N. (2004). A dobra deleuziana: políticas de subjetivação. Rev. Dep.
Referências
Psico UFF, 16(1), 55-75.
Bergson, H. (2006). O pensamento e o movente.
São
Paulo:
Martins
Fontes. (Originalmente publicado em 1934). Deleuze, G. (2006) Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal. Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). São Paulo: Editora 34. ____________. (2000). O que é filosofia?
Carolina Seibel Chassot: É psicóloga (UFRGS), Família
especialista e
em
Comunidade
Saúde
da
(Residência
Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição) e mestre em Políticas de Saúde e Bem-Estar Social (Universidade de Évora/École des Hautes Études en Sciences Sociales). Atualmente faz doutorado no PPGPSI/UFRGS
pesqui-sando
a
São Paulo: Editora 34.
Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142
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Chassot, C.; Santos, C.; Barone, L.; Hadler, O. ___________________________________________________________________________ organização coletiva de usuários de saúde mental.
Enviado em: 11/09/2014 – Aceito em: 24/10/2014
E-mail:
[email protected]
Camila Backes dos Santos: É psicóloga (UFRGS) e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Atualmente é doutoranda pelo mesmo programa e membro do grupo de Pesquisa em Psicanálise, Clínica e Cultura. E-mail:
[email protected]
Luciana Rodriguez Barone: É psicóloga (UFRGS), trabalhadora do Grupo Hospitalar Conceição. Especialista e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atualmente é doutoranda do mesmo programa, integrando o grupo de pesquisa Intervires em uma pesquisa em saúde mental na atenção básica do SUS. E-mail:
[email protected]
Oriana Holsbach Hadler: É psicóloga (UCPel), mestre em Psicologia Social (PUCRS), pós-graduada em Language and Contemporary Culture (Goldsmiths College – University of London). Atualmente é doutoranda do PPGPSI/UFRGS, integrando o Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação –, desenvolve pesquisas no campo das Políticas de Segurança e Juventude em Situação de Prisão. E-mail:
[email protected] Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 129-142
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