O uso de reiterações no primeiro movimento Quarteto em sol menor de Claude Debussy

July 31, 2017 | Autor: Juliano Abramovay | Categoria: Claude Debussy, String Quartet in G minor
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IV  Simpósio  Internacional  de  Musicologia  -­‐  EMAC/UFG,  Pirenópolis  -­‐2014  

O uso de reiterações no primeiro movimento Quarteto em sol menor de Claude Debussy Resumo: Este trabalho apresenta dois exemplos do uso de elementos reiterados no primeiro movimento do Quarteto de cordas em sol menor de Claude Debussy. Ambos encontram-se ao final de unidades formais, e através deles pretendemos elucidar de que forma a reiteração de diferentes elementos musicais pode contribuir para o processo composicional de Debussy. Palavras-chave: Claude Debussy, Quarteto de cordas em Sol menor opus 10, análise musical. Repetition in Debussy’s String quartet in G minor first movement Abstract: This paper presents two examples of the use of repetition in the first movement of Debussy’s String quartet in g minor. Both are located at the end of formal unities and with these examples one can understand in which way the repetition of different musical elements can contribute to the composers compositional process. Keywords: Claude Debussy, String quartet in G minor opus 10, musical analysis.

As inovações presentes na música de Claude Debussy são com frequência associadas a alguns procedimentos composicionais específicos, como blocos de acordes paralelos, a presença de acordes com nonas não resolvidas e a utilização de escalas de tons inteiros (apenas para nomear alguns dos procedimentos mais reconhecidos). Tais elementos acabaram por se tornar marcas registradas deste compositor, e são com frequência os primeiros a serem empregados quando se busca uma sonoridade “debussysta”. Porém, existem alguns procedimentos composicionais que nem sempre levados em conta ao se buscar compreender estruturalmente uma obra deste autor. Um elemento de grande importância no processo composicional de Debussy que nem sempre possui o destaque necessário é a forma como este faz uso de repetições dentro da música. Um importante trabalho, neste sentido, é o livro Le Style de Claude Debussy: duplication, répetition et dualité dans les stratégies de composition de Sylveline Bourion. Neste, a autora explica os diferentes tipos de repetição presentes na música de Debussy e de que maneira estas interagem com outros processos composicionais do autor. É importante, porém, esclarecer alguns conceito relativos à repetição, inclusive para que haja coerência na nomenclatura adotada na pesquisa. Neste sentido, é interessante destacarmos trecho do livro Música e Repetição, de Silvio Ferraz, que elucida algumas questões sobre este aspectos. De acordo com Ferraz,

 

 

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A constatação da repetição se dá a partir da identificação de elementos semelhantes e da criação de diversos graus de analogia entre o objeto que acaba de ser recebido e aquele que sobrevive enquanto memória e lembrança. Desse jogo de equiparações, o grau mais complexo parece ser o da analogia, é pela analogia que relacionamos elementos nem sempre facilmente relacionáveis por suas características gerais. São análogos desde objetos-sonoros que produzam num ouvinte uma mesma sensação, objetos-sonoros de aspectos físico-acústico similares, até objetos-musicais que se remetem a um objeto original transmutado por retrogradação, ampliação, inversão, permutação – analogias mais e mais complexas que não estão mais restritas à escuta. Nesse plano de analogia é que se distinguem então níveis de repetição e de variação com relação a um objeto dado.

Tanto a repetição que identifica pelas semelhanças superficiais quanto aquela que envolve um certo grau de diferenciação podem ser vistas como repetição e garantem para grande parte dos compositores – e, por consequência, dos ouvinte – que uma música se mantenha a mesma do começo ao fim (1998, p.34).

Ferraz também distingue dois tipos de repetição: as imediatas, chamadas de reiterações, e as repetições a distância, chamadas de reapresentações (Ibidem, 1998, p.33). No Quarteto de Debussy, ambas possuem papel de destaque; as repetições a distância, pelo fato de se tratar de uma obra cíclica, onde um mesmo material temático é reapresentado diversas vezes não apenas em um único movimento, mas ao longo de todos os movimentos que compõe a obra. O destaque às reiterações se dá pelo fato de existir uma mudança no paradigma do uso de reiterações e reapresentações nas obras de Debussy como um todo, mudança esta diretamente ligada ao Quarteto. Trata-se de uma “inversão de papeis entre o microscópico (o local) e o macroscópico (o estrutural)” (BOURION, 2011, p.257). Bourion afirma que, No início [de sua carreira, até o ano de 1882], havia de forma bastante forte nas obras de Debussy a ideia de retorno de alguma coisa conhecida, já ouvida, como forma de marcar a estrutura de sua peça e, sem dúvida, de torná-la perceptível para o ouvinte. (...) Isto começou pelo todo estrutural, ou seja, uma repetição de toda a primeira seção para formar as seções subsequentes. (...) Mas a ideia de uma repetição curta, ou seja, que esta seja da ordem do motivo (de frase, a rigor, mas certamente não de seção), fez o seu caminho na metodologia produtiva do compositor, com o abandono progressivo dos retornos de seções [completas] (2011, p.257).

A inversão de papéis existente entre o macro e o microscópico se dá, segundo Bourion, da seguinte forma: em obras da juventude de Debussy, observamos diversos esquemas formais herdados do classicismo que favorecem uma “ordem microscópica linear, não recorrente, e uma ordem macroscópica ligada à recursividade e à recorrência”. Ou seja, as frases são constituídas de elementos que não se repetem, e o nível de repetição, necessário para a coesão da obra, é encontrado no retorno ou na

 

 

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reprise de uma grande seção. Na sequencia dos acontecimentos, estes dois papéis, de variedade e de retorno, serão invertidos entre o macro e o microscópico: em melodias posteriores, é o microscópico que assegura a presença da recursividade na obra (através de repetições), enquanto a forma global tende a não se repetir (BOURION, 2011, p. 258). O Quarteto possui um papel particular sob este aspecto pois, mesmo sendo ele formado por esquemas formais herdados do classicismo (no caso, a Forma Sonata, o que o aproximaria da primeira categoria descrita por Bourion, de obras do início de sua carreira, onde a repetição se encontra prioritariamente no plano macro), seu padrão no uso de reiterações1 se encontra mais próximo ao de obras maduras, onde a repetição se encontra de forma intensa no plano microscópico, como observaremos adiante. Isso reforça a ideia de que se trata de uma peça mais próxima das obras de maturidade, apesar de manter resquícios de obras de juventude2 (cabe um destaque ao fato da peça ser composta apenas um ano antes do Prelúdio para o entardecer de um fauno). • O uso de repetições no Quarteto de cordas em sol menor Em seu livro, Bourion apresenta alguns exemplos do uso da repetição no Quarteto de cordas em sol menor de Claude Debussy, nos permitindo compreender de que maneira estas contribuem para um plano formal em média escala (figura 1).

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É preciso elucidar uma questão referente à nomenclatura utilizada nesta pesquisa. Utiliza-se, o termo “reiteração”, como algo análogo ao que Bourion se refere como “duplicação”. Optou-se por fazer tal alteração por duas razões: a primeira é que existe em português um trabalho que trata extensivamente do assunto e possui nomenclatura própria (FERRAZ, 1998), o que faz com que uma adaptação do francês não seja necessária. A segunda é que o termo “duplicação” já carrega significados em outras áreas musicais, principalmente no âmbito da orquestração, o que faz com que sua utilização possa trazer mais ambiguidades. Dessa forma, em trechos onde a autora se referir à “duplicação”, iremos realizar a alteração para o termo “reiteração”.

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Benedetti separa as obras de Debussy em três períodos: obras de juventude (1880-1887), obras de maturidade (1887-1913) e obras de síntese (1914-1917) (BENEDETTI, 1995, p.876-877).

 

 

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Figura 1: cc.17-23 do primeiro movimento do Quarteto (Apud BOURION, 2011, p.281)

Entre os cc.17-23, podemos observar que os quatro primeiros compassos são formados por unidades de dois compassos reiteradas. A partir do quinto compasso, as reiterações passam a possuir dois tempos, ou seja, um quarto de seu tamanho original. No sexto compasso, o tamanho das unidades reiteradas diminui ainda mais, durando apenas um tempo. Porém, como aponta Bourion, possivelmente com o objetivo de assegurar uma regularidade ao tamanho das diminuições, podemos encontrar também um gesto com tamanho de um compasso, aparente não em uma reiteração mas sim em uma transposição de gesto na voz do violoncelo (cc.20-21 e 21-22). Tal fato garante que o tamanho dos gesto diminua de forma regular, sempre pela sua metade, que é a forma habitual de encontrarmos tal procedimento, segundo a autora. Desta forma, as reiterações deste trecho são responsáveis por um decrescendo estrutural que transforma unidades de dois compassos em unidades de um tempo. Ao observarmos não apenas o trecho em questão mas os cc. 13-25, chegamos em algumas conclusões adicionais. A primeira é que o decrescendo estrutural apresentado por Bourion possui um tamanho ainda maior do que o da figura acima, e mantém sua notável regularidade na diminuição de suas estruturas. Tal fato se torna claro a partir da figura abaixo, onde o tamanho das unidades reiteradas ou transpostas ao longo do trecho é visto proporcionalmente.

 

 

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Figura 2: representação proporcional do tamanho das unidades reiteradas entre os cc.13-25

O decrescendo estrutural das reiterações também traz implicações interessantes em relação ao material harmônico do trecho. Na figura 1 é possível observar entre os cc.17-21 encontramos uma repetição literal de quatro vozes diferentes, uma melodia e três vozes de acompanhamento; na metade do c.22, uma figura cromática é introduzida na linha melódica do violino. Ao longo dos cc.23-24, as figuras cromáticas vão rapidamente ganhando força até o c.25, onde o total cromático é contido dentro de cada um dos tempo do compasso (figura 3). Desta forma, o decrescendo estrutural é acompanhado de um aumento na utilização de cromatismo, mas também de uma diminuição no tamanho das unidades reiteradas, aparente não apenas pela redução de tamanho destas unidades, mas também pelo fato de que, no c.25, as quatro vozes realizam inversões, transposições ou reiterações de um mesmo gesto, um movimento cromático de quatro semitons consecutivos, que se alterna em ziguezague entre violino I e II (a, b), viola e violoncelo (c, d). Ou seja, ao longo do trecho em questão, o material a ser reiterado se torna progressivamente menor também pela semelhança entre o material presente nas quatro vozes em cada tempo do c.25 (figura abaixo).

  Figura 3: reiterações nos cc.23-25

Este tipo de procedimento, onde encontramos uma grande diminuição na quantidade de informações novas (como no c.25, onde encontramos apenas um gesto cromático que ocupa todas as vozes de um compasso inteiro), se mostra recorrente ao final de unidades formais do Quarteto.

 

 

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Outro exemplo interessante pode ser observado entre os cc.113-117. Este trecho marca o final da seção que abrange os cc.88-117, onde também observamos uma diminuição no tamanho de reiterações, passando de unidades de 2 compassos (cc.8889+92-92, 97-98+99-100, 103-104+107-108), para unidades de 1 compasso (cc.109+110, 111+112) e, finalmente, unidades de dois tempos (cc. 113-116) e dois terços de tempo (cc.117). Mais uma vez, podemos observar que o uso da reiteração se apresenta de modo ainda mais intenso do que aparenta em uma primeira audição.

Figura 4: reiterações presentes nos cc.113-117

A figura acima apresenta as repetições mais evidentes do trecho: a segunda metade dos c.113-114 é idêntica à primeira metade destes, e os cc.115-116 são reiterações dos dois anteriores, porém transpostos em uma oitava para o grave. Desta forma, os elementos “originais” do trecho são apenas a primeira metade do c.113 e c.114 (I, II), sendo o restante reiterações destes. Porém, mesmo dentro destes dois trechos, podemos observar importantes semelhanças; em suas vozes extremas tratam-se dos mesmo gestos, porém com suas ordens invertidas, como mostra a figura abaixo:

Figura 5: vozes extremas dos cc.113-114

Por fim, também podemos notar que, ainda que o trecho aparente possuir um denso conteúdo harmônico, a repetição de alturas encontra-se em um nível ainda mais

 

 

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profundo; entre todas as classes de alturas apresentadas do trecho, existe uma constante alternância entre grupos com as alturas fa-láb e grupos com as alturas mi-sol.

Figura 6: redução harmônica dos cc.113-116

Mais uma vez fica claro que ainda que, sob o plano textural, o trecho seja fortemente direcional, partindo de uma região aguda para chegar em uma grave, existem elementos ligados à repetição em diferentes níveis, atuando de forma intensa sob o trecho. • Conclusão Os exemplos acima buscaram demonstrar, em dois pequenos trecho do primeiro movimento do Quarteto de cordas em sol menor de Debussy, que a reiteração é utilizada em diferentes níveis como estratégia composicional de Debussy ao fim de unidades formais. Pode-se observar que, mesmo ela sendo mais evidente em reiterações literais de trechos já apresentados (como uma espécie de colagem), também existem importantes relações harmônica sendo reiteradas, relações estas que podem ser observadas após análises mais aprofundadas. Ao assimilarmos diferentes métodos de se utilizar elementos reiterados na música de Debussy, é possível compreender com mais clareza “de que forma esta linguagem, a reiteração endêmica em Debussy, tão repetitiva e estruturada pela adição de estruturas elementares pode desembocar em um discurso tão íntegro, fluido e hábil” como afirma Bourion (2011, p.254). • Referências BENEDETTI, Danieli. Produção Pianista de Claude Debussy Durante a Primeira Guerra Mundial. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 15º Congresso, Rio de Janeiro, 2005. Anais do XV congresso da ANPPOM, p.876-882. Disponível em: http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2005/sessao15/danieli_bene detti.pdf, acesso em 1 de abril de 2014. FERRAZ, Silvio. Musica e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: Educ, 1998.

 

 

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BOURION, Sylveline. Le Style de Claude Debussy – duplication, répetition et dualité dans les stratégies de composition. Paris: Vrin, 2011.

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