O uso do método etnográfico no trabalho de \"avaliador interno independente\" num projecto EQUAL (2006)

June 6, 2017 | Autor: Telmo H. Caria | Categoria: Ethnography, Professional Knowledge, Etnografia, Sociologia do Conhecimento
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Comunicação apresentada no “Encontro Futuros da Profissão Sociólogo”, Associação Portuguesa de Sociologia. Vendas Novas, 2006

O uso do método etnográfico no trabalho de “avaliador interno independente” (AII): um caso de recontextualização profissional do conhecimento sociológico em projectos EQUAL

Telmo H. Caria

Resumo O conhecimento profissional em diplomados de cursos superiores não é equivalente à aplicação da ciência e do conhecimento abstracto aos contextos de trabalho intelectual extra-universitários. O conceito de recontextualização e a articulação entre os conceitos de profissionalismo e de ofício dão conta das mediações de passagem (não hierárquica) do uso do conhecimento entre o campo universitário e outros campos da prática profissional. A descrição da experiência de trabalho de avaliação interna independente em projectos de desenvolvimento local concretiza e ilustra um processo de recontextualização profissional e uma forma de profissionalização em que é determinante a dimensão relacional e de reflexão interactiva, típica à construção de qualquer ofício.

1. Situar o problema do uso profissional das CS Para quem, como eu, sempre teve que ensinar Sociologia e Antropologia Social a públicos que nada tinham a ver com estas disciplinas e que começou por usar a Sociologia com finalidades profissionais na educação especial e na formação de professores do ensino básico, pensar e formalizar por escrito o uso que se faz das Ciências Sociais (CS) fora da Universidade sempre se constitui como uma preocupação central na minha carreira. Numa Sociedade do Conhecimento, como se designa os nossos tempos de desenvolvimento capitalista à escala mundial, em que o conhecimento e a ciência se transformaram num forma produtiva de inovação tecnológica e organizacional e em que o trabalho intelectual se tornou uma mais valia cada vez mais decisiva para o desenvolvimento económico, convirá saber como é que as Ciências Sociais se integram nesta lógica de desenvolvimento social, isto é, o que se faz com as CS fora das Universidades? O que é que estes licenciados fazem com a sua educação superior formal e como articulam esse saber com as procuras sociais existentes? Estas interrogações contribuirão para saber da validade de conceber a sociedade portuguesa como uma sociedade de conhecimento no momento histórico actual. No entanto, em Portugal há toda uma tradição académica e intelectual que desvaloriza o uso social e profissional do conhecimento das Ciências Sociais (CS), facto que perturba e inibe a resposta a estas interrogações. Paradoxalmente, as razões para esta desvalorização vêm de sectores e figuras sociais muito heterogéneos, senão mesmo contraditórios: (1) vêm do prático, praticista, que se irrita com o intelectual palavroso e retórico, e que acaba por reafirmar que o saber só ter como fonte a experiência de quem faz e sente; (2) vem do intelectual estrangeirado que não sabe aliar reflexão à prática, porque faz uma aplicação acrítica de modelos de pensamento e acção importados do centro do sistema capitalista, mas que entretanto muito lamenta a mentalidade e falta de cultura dos portugueses; (3) vem do intelectual alternativo anti-mercado que vê as solicitações da procura social de conhecimento quase sempre como uma perversão mercantil, incapaz de entender os usos que não estejam enquadrados por motivações e conteúdos explícitos anti-mercado. Como é óbvio, as políticas públicas sobre este assunto existem em função das pressões e dos paradoxos da opinião pública mais ou menos informada, e para melhor se fundamentarem, quanto à sua validade e actualidade, as políticas públicas precisam de investigação e pensamento empírico sobre o uso do conhecimento e da ciência. Simplificando, há duas grandes escolas de investigação sobre o assunto em Portugal, de que aliás os governos desde 1995 têm sido eco em diferentes configurações: (1) a visão de que o uso social da ciência se circunscreve quase apenas à inovação tecnológica; (2) a visão de que o uso da ciência deve ser visto para o grande público, apenas como a difusão e divulgação de uma cultura científica. Dentro deste duplo espartilho fica por saber para que servem as Ciências Sociais, porque não geram tecnologia, no sentido tradicional do termo, e porque, sendo parte da cultura científica, não se apresentam com um produto exterior à vida social, como se se tratassem de algo de exótico e absolutamente desconhecido, como fazem com as ciências biológicas, físicas ou cognitivas.

Para enfrentar estes dilemas e paradoxos sobre o uso social das Ciências Sociais pareceme que a solução é relativamente simples, embora tarde a ser compreendida, dado o etnocentrismo universitário dos intelectuais destas ciências. Trata-se de dirigir a investigação e as preocupações do ensino para o modo como o conhecimento legítimo e científico é transformado pelos profissionais licenciados, em conhecimentos profissionais relevantes nos vários campos institucionais de uso da ciência. Convirá clarificar que digo “transformado” e não “aplicado”, porque contesto que ele esteja subordinado a uma visão hierárquica entre quem produz conhecimento na investigação universitária e quem o usa fora dela. É este processo, desigual e heterogéneo, que tenho descrito e problematizado como recontextualização profissional do conhecimento abstracto. Não irei aqui desenvolver o quadro teórico-metodológico que me tem permitido desenvolver este problema. O que me interessa hoje aqui é apenas apresentar a descrição de um caso que considero típico deste processo e que tem a característica de provir de uma parceria de colaboração entre a Universidade e organizações do terceiro sector. O facto de haver inúmeras parcerias deste tipo levaria a supor que elas permitiriam uma conhecimento aprofundado sobre os processos de recontextualização profissional das Ciências Sociais. Mas não é esse o caso, porque o modelo das parcerias ou é hierárquico e de aplicação instrumental ou desvaloriza o conhecimento abstracto, fazendo apelo a um localismo experiencial que não gera efeitos multiplicadores independentes das pessoas que neles estiveram envolvidos. Tipifiquemos por isso o que entendo por parcerias com a Universidade que não sejam hierárquicas, instrumentais e localistas, a partir da experiência adquirida e do projecto mais recente em que participo, onde descreverei os processos que dão sentido ao título desta comunicação. 2. Saber o que se quer não chega para se saber agir… A recontextualização profissional do método etnográfico das CS para processos de Avaliação Interna Independente (AII) não foi inicialmente procurada e perspectiva. O projecto em que participo desenvolve-se no âmbito do programa EQUAL e a parceria que se desenvolveu ganhou, o seu sentido inicial, através do encontro de uma procura e uma oferta que se centrava nas problemáticas das ”comunidades de práticas”, aplicada aos projectos de desenvolvimento local e ao uso das TIC, na óptica do utilizador, para permitir o desenvolvido destas comunidades por meios virtuais. Foi no encontro destas preocupações que se concretizou a formalização da parceria e que foi colocado o problema adicional, pela entidade financiadora, do modo como se desenvolviam os processos de avaliação das parcerias de desenvolvimento. Na lógica do programa EQUAL os processos tradicionais de avaliação externa das parcerias têm sido pouco formativos, porque centrados quase exclusivamente nos produtos, e nos seus usos por diversos interesses sociais, e pouco nos processos internos e aprendizagens colectivas que explicam os resultados obtidos nas parcerias. Foi em torno deste tipo de diagnóstico que se colocou a necessidade de eu, como avaliador do projecto, fazer uma reflexão sobre como se poderia passar de uma Avaliação Externa para uma Avaliação Interna Independente.

Ser interna e independente é desenvolver uma acção avaliativa ambígua, e mesmo contraditória, se à partida não haver uma clara consciência da distinção entre os dois tipos de avaliação. Ser interno supõe ser participante no processo desde a primeira hora e ter acesso directo à actividade, tal qual ela ocorre, estando implicado nela para ajudar a pensar e a agir. No entanto, esta ajuda reflexiva não se pode desenvolver de acordo com a perspectiva dos outros, os utentes, os financiadores ou outros parceiros que actuam num dado quadro institucional, incluindo o pensar privado do avaliador. Tem que se desenvolver de acordo com a perspectiva daqueles que conceberam a parceria e no quadro dos problemas que os participantes são capazes de reconhecer em cada momento. A acção formativa e reflexiva do avaliador, que participa e observa o processo interno, não é externa porque tem que partir da cultura de parceria dos participantes, enquanto associação entre condutas e significações sociais e entre mente e prática social. Relação que nos leva a salientar o conceito vygotkyano de “zona de desenvolvimento próximo” (ZDP) para nos referirmos ao facto de toda a aprendizagem, para ser significativa e adequada à situação, ter que se organizar a partir do quadro de acção e de problemas que os participantes reconhecem como seus. De facto, a tensão entre participação e observação e o entendimento da realidade de acordo com a perspectiva dos autóctones são duas características centrais da etnografia social e mais especificamente da etnografia reflexiva, factos que a tornam relevante e pertinente para pensar e saber agir numa AII. Ora esta tensão e entendimento só podem ser tomados como uma boa descrição do que poderá ser uma AII, porque existe uma reflexão sobre o método etnográfico em CS. Assim, não foi apenas o simples acumular de experiências de avaliação externa e a sua crítica que nos pôde dar soluções para os novos caminhos a percorrer. Uma abordagem crítica da avaliação externa tradicional permitiu ao programa EQUAL dizer o que não queria e permitia dizer o que seria desejável, mas por si só isso seria insuficiente para encontrar uma possível solução de acção, se este diagnóstico crítico não fosse articulado com dois tipos de saberes: (1) um conhecimento abstracto sobre a especificidade do método etnográfico que o torna um recurso geral recontextualizável, não dependente das pessoas que já o usaram; (2) uma competência no uso do método etnográfico, dependente de uma prática e de uma reflexão formalizável, por mim desenvolvida, capaz de transferir procedimentos e quadros de acção para um outro contexto, no caso exterior à actividade de investigação etnográfico-académica. São estes dois tipos de saberes que organizam os processos de uso profissional do conhecimento. 3. Princípios de acção da AII Vejamos assim, do ponto vista cronológico e metodológico, quais os princípios de acção que aplicámos e desenvolvemos nesta AII. 1. escutar e observar demoradamente a interacção social, antes de intervir, detectando desigualdades de participação, lideranças formais e informais, dissonâncias de sentido na definição das situações e dos problemas e frustrações/insatisfações de expectativas (o que ocorre e não era esperado); 2. não intervir verbalmente fora do contexto da linguagem e da definição dos problemas e situações anteriormente descritos, elaborando perguntas/comentários que complementem e explicitem o sentido menos

explícito já referenciado na interacção e que possam ser usadas como recurso endógeno do grupo; 3. nunca fazer confrontos entre a documentação escrita e as orientações e opções desenhadas no processo de interacção quotidiana, usando por isso apenas o escrito e o formal que é referido e manipulado pelo grupo no contexto de interacção social. Estes três primeiros princípios são os mais tradicionais na etnografia social e deles depende a aceitação da acção do avaliador pelo grupo de modo a que a sua presença não seja sentida como intrusiva, apesar de ser obrigatória no plano institucional. No final deste período, depois de 5 meses de acção, podemos dizer que a nossa presença se banalizou. Entretanto, começámos complementares:

a

desenvolver

alguns

outros

princípios

de

acção

4. explicitar o sentido de ideias dispersas, exprimidas na interacção pelos indivíduos, dando-lhe um formato mais organizado, de modo a permitir ao grupo clarificar consensos, divergências e “zonas de problemas”; 5. inquirir (de preferência informalmente) das “boas razões” que se tem em não participar (ou em participar menos) ou em mostrar algum tipo de insatisfação, desenvolvendo afinidades e cumplicidades desiguais com os membros do grupo que são menos participativos; 6. dar “feed-back” regular da minha acção quotidiana de avaliação, a fim de adequar as expectativas dos parceiros ao sentido do que serão os “out-puts” informativos da avaliação; 7. explicitar as contribuições que o grupo deu para eu desenvolver aprendizagens próprias do ponto de vista metodológico ou teórico. Estes princípios são complementares porque permitem associar à observação participante etnográfica a componente reflexiva, permitindo ao grupo ver a presença do avaliador como uma vantagem para a sua dinâmica interna e perceber que o processo de aprendizagem é mútuo. No momento, estamos nesta fase, não sendo ainda garantido que sejamos vistos por todos os membros do grupo como um recurso reflexivo, não hierárquico. Fomos adoptados como mais uma pessoa presente, mas o papel social que desempenhamos é desigual. Entretanto já começámos, ainda que com alguma precipitação, a desenvolver outros princípios de acção, que julgamos essenciais ao papel de qualquer avaliador: 8. mostrar o interesse de conceitos e teorias para interpretar factos ocorridos ou descritos, sempre que a reflexão teórica faça parte dos interesses do grupo no momento; 9. fazer confrontos com as lideranças formais e informais, quanto às prioridades da acção, quanto à coerência dos seus valores e quanto às referências identitárias do grupo.

Estes dois últimos princípios são quase inteiramente exteriores à etnografia social de terreno. E só serão plenamente desenvolvidos se os princípios anteriores forem bem conseguidos. 4. Nota final Há, portanto, uma relação de dependência entre a acção típica da etnografia social, presente nos princípios 1, 2 e 3, e a acção típica de avaliador, presente nos princípios 8 e 9. A sua plena articulação depende dos princípios 4, 5, 6 e 7, que descrevemos como complementares e que, como dissemos, supõem o uso do avaliador como recurso reflexivo interno, isto é, a plena aceitação do avaliador (e não só da minha pessoa) como parte integrante do grupo e dos processos auto-avaliativos que se queiram desenvolver.

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