O USO VARIÁVEL DA PARTÍCULA REFLEXIVA: UMA ANÁLISE VARIACIONISTA

June 1, 2017 | Autor: Graziela Bohn | Categoria: Sociolinguistics
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1800

O USO VARIÁVEL DA PARTÍCULA REFLEXIVA: UMA ANÁLISE VARIACIONISTA

Graziela Pigatto Bohn Universidade de São Paulo

Introdução Esse estudo apresenta uma análise variacionista do uso dos pronomes reflexivos por falantes escolarizados na cidade de São Paulo. A hipótese que guia a pesquisa é a de que o uso desta partícula clítica encontra-se em pleno processo de mudança, ora sendo oralizada, ora sendo omitida. Com isso em mente, e baseando-se em trabalhos recentes (D’Albuquerque, 1984; Nunes, 1995; Rodrigues & Pereira, 2006; Pereira, 2007), procurou-se determinar quais condições linguísticas e sociais favorecem a omissão dos pronomes reflexivos. Para tanto, fez-se uso de 48 entrevistas de informantes residentes na cidade de São Paulo e coletou-se 1846 dados que foram submetidos a uma análise variacionista nos moldes da Sociolinguística Variacionista Laboviana. As análises estatísticas desses dados deram-se através do programa estatístico GoldVarb Lion, desenvolvido por Sankoff, Tagliamonte & Smith (2012). O artigo está dividido da seguinte forma: na primeira seção apresenta-se uma breve revisão teórica acerca da pesquisa em sociolinguística; na segunda seção, expõe-se alguns estudos sobre o uso dos pronomes reflexivos no Português Brasileiro, doravante PB, bem como as variáveis linguísticas e sociais que fazem parte da presente análise; na terceira seção descreve-se a metodologia empregada; e, na quarta seção apresenta-se os resultados e análises que são seguidas pelas conclusões obtidas.

1. Pressupostos Teóricos 1.1 Sociolinguística Variacionista Laboviana

1801 Com o objetivo de refletir sobre o comportamento dos pronomes reflexivos na fala de paulistanos, será utilizada neste trabalho a metodologia variacionista de Labov (1966; 1994). Para Labov, a língua é um instrumento de comunicação utilizado por uma comunidade de fala, e constitui em um sistema comumente aceito de associações entre formas arbitrárias e seus significados (1994:09). Labov observa, ainda,

que os diferentes sistemas devem

apresentar, por natureza, certa homogeneidade, pois devem servir à comunicação entre indivíduos. Entretanto, Labov também chama a atenção para o fato de existir também nesses sistemas certa heterogeneidade, ou seja, variações na forma que oferecem ao falante um conjunto de alternativas cuja escolha pode estar condicionada a restrições linguísticas e sociais. O autor defende, porém, que esta heterogeneidade linguística também é sistematizável assim como é sistematizável um fato linguístico homogêneo. A diferença é que nesse somente fatores linguísticos desempenham um papel, enquanto naquele, fatores extralinguísticos também atuam. Com isso, pode-se observar que indivíduos pertencentes à mesma comunidade, frequentando os mesmos locais tais como escolar e instituição de trabalho, e expostos à mesma mídia podem acabar optando por formas linguísticas distintas. Observa-se, portanto, no trabalho de Labov, que é possível estabelecer não só princípios como também métodos de análise a fim de se captar a sistematicidade de fenômenos de variação linguística. Seus primeiros estudos ocorrem no início na década de 60 com a criação do programa Economic Opportunity Act a partir de uma preocupação do governo Americano com as minorias pobres dos guetos. Acreditava-se nessa época que, entre os fatores que estariam contribuindo para o surgimento dessa classe social mais pobre, encontrava-se o comportamento linguístico dessas pessoas. Com isso, o governo americano optou por incluir em seu programa uma série de medidas relativas ao ensino do Inglês Padrão. Para os investigadores envolvidos no programa, as crianças pobres encontravam-se em um grande déficit linguístico por receberem estímulos verbais muito fracos, tais como construções linguísticas mal formadas. E, por não estarem adequadas ao uso do Inglês Padrão da classe média, essas crianças dos guetos sofriam a crença de que seu uso da língua não era estruturado, e, por conseguinte, não possuíam habilidade de exprimir relações lógicas e criar conceitos. Como resposta a essa visão do governo Americano, Labov (1966) elaborou uma crítica defendendo que a língua dessas minorias não era ilógica ou privada de uma gramática, mas que essa visão era resultante da falta de estudos que se predispusessem a analisá-la e sistematizá-la. Com isso, Labov lançou-se a um vasto projeto sobre a variação fonética existente em Nova Iorque – The social stratification of English in New York City (1966). Este

1802 seu estudo marcou a criação da sociolinguística, e vem, desde então, incitando a proliferação de um grande número de trabalhos que levam em consideração a língua como um instrumento de comunicação efetivamente usado em uma comunidade de fala. Para ele, os linguistas, ao produzirem dados e teoria ao mesmo tempo, acabam por se envolver cada vez mais com questões teóricas, distanciando-se da realidade da língua como é de fato usada no dia-a-dia. Desse modo, os trabalhos de Labov e de seus seguidores tratam do estudo das estruturas linguísticas inseridas em contextos sociais, analisando fatores até então desconsiderados pela linguística. É desse modo que surge, ao final da década de 60, com Labov, a Teoria da Variação Linguística, fundamentada na ideia de que todo sistema linguístico é heterogêneo. Trata-se, entretanto, de uma heterogeneidade sistêmica, isto é, suscetível de descrição.

1.1.1 Métodos de estudo de regras variáveis Para o estudo das flutuações de um sistema, entendidas como parte de uma gramática, Labov elaborou uma metodologia conhecida como análise de regra variável. O termo regra variável foi introduzido por Labov no seu estudo sobre contração e apagamento da cópula com a finalidade de descrever a variação interna e socialmente condicionada de dados e situações concretas de fala (Labov, 1966). Segundo Guy, trata-se de uma regra de reescrita, tal como x  (x torna-se variavelmente y); ou seja, quando a regra é aplicada, tem-se ‘y’, mas quando a regra não é aplicada tem-se ‘x’(s/d, p. 2). Os elementos que podem afetar a aplicação ou não da regra em um contexto são organizados em grupos de fatores que podem ser sociais ou linguísticos, permitindo demonstrar quais fatores linguísticos e sociais mais afetam o uso de determinada variante. A investigação desse tipo de regra envolve a quantificação de dados e a análise estatística do índice de variabilidade na regra e dos fatores sociais e linguísticos envolvidos. Para tanto, os estudos sociolinguísticos fazem uso de um modelo logístico de aplicação e não-aplicação de uma regra variável (Rousseau & Sankoff, 1978), procurando averiguar se é a presença ou ausência de um traço que determina a aplicação ou não-aplicação da regra. Tal modelo também possui a vantagem de ser suscetível a knockouts uma vez que, em se tratando de dados de variação linguística, pode haver fatores que estão presentes somente quando a regra é aplicada, bem como pode haver fatores cuja presença inibe categoricamente sua aplicação. Quando não há knockouts, os valores dos pesos dos fatores em um grupo são distribuídos acima e abaixo de 0.5. Esses valores representam o efeito relativo de um fator, i.é, se ele está associado a uma aplicação acima da media, é considerado favorecedor, e se está localizado

1803 abaixo da media, é considerado não-favorecedor à aplicação. Já a totalidade dos dados é definida como input, representando a medida global de aplicação da regra (Guy & Zilles, s/d).

2. O pronome reflexivo no PB A subseção que segue apresenta algumas descrições e análises sincrônicas dos pronomes reflexivos no PB, salientando a tendência de mudança condicionada a variáveis linguísticas e sociais (D’Albuquerque, 1984; Nunes, 1995; Rodrigues & Pereira, 2006; Pereira, 2007) .

2.1 Os usos do pronome reflexivo Para Bechara (2001:222-3), são quatro os usos do pronome reflexivo: a) o que indica que a ação não passa a outro ser, revertendo-se ao próprio agente (sentido reflexivo propriamente dito); b) o que indica que a ação ocorre reciprocamente entre mais de um agente (reflexivo recíproco); c) o uso da passividade com se; e d) o que indica impessoalidade. O primeiro, reflexivo propriamente dito, possui a característica de a) ser argumento interno (objeto direto ou indireto), conforme os exemplos em (1a); b) ser co-referencial ao sujeito, conforme os exemplos em (1a); c) poder se alternar com outros SNs não coreferenciais ao sujeito sem alteração da significação verbal, conforme (1b) abaixo; e d) poder ser ampliado por formas enfáticas como ‘si mesmo’, conforme (1c) (Pereira, 2007:174):

(1)

a. Ele se feriu. Ele deu-se o prazer de um sorvete. b. Ele me feriu. c. Ele feriu a si mesmo.

Uma observação importante provinda de Camacho (2003 apud Pereira, op cit) é a de que o reflexivo assinala identidade referencial entre participantes que normalmente constituem entidades distintas. Para o autor, o uso da partícula reflexiva com verbos que normalmente expressam uma ação voltada para o outro é, portanto, tido como marcado na língua: ‘Maria viu-se no espelho’ é mais marcado do que ‘Maria viu o menino no espelho’. Outro uso co-referencial do clítico reflexivo é o de reciprocidade no qual o pronome também exerce a função sintática de objeto e denota ação mútua: ‘Maria e João se beijaram’

1804 o que implica que ‘Maria beijou João’ e ‘João beijou Maria’. Essas construções permitem a paráfrase com o SN ‘um a outro’. O reflexivo pode ainda ser uma partícula apassivadora e indeterminadora. Para diferenciar essas duas categorias, observa-se a concordância com o SN no plural, que se realiza na estrutura passiva, mas não na indeterminada (Pereira, op. cit: 175). Sendo assim, na estrutura sem concordância, o SN tem a função de objeto, ao passo que a presença da concordância verbal faz do argumento sujeito da oração. Por esse motivo é que não se leva em conta nas análises acerca do reflexivo ocorrências do clítico apassivador ou inderminador no singular. Além desses casos, há ainda aqueles em que o pronome reflexivo não possui a função de objeto e, por isso, não pode ser substituído por paráfrases do tipo ‘si mesmo’ ou ‘um ao outro’. Nesses casos, a partícula reflexiva aparece junto a um verbo denominado pronominal pela gramática normativa. Nunes (1995) denomina esse tipo de reflexivo de ‘se inerente’, pois é tido como parte integrante do verbo, sem função sintática específica:

(2) Eu acho que ele se arrependeu do preço que ele cobrou. (Nunes, 1995:205)

Conforme apontado por Aguiar (1942, apud Pereira, op. cit:178), a função inicial e própria desta partícula clítica é a de reflexivo pois ele faz refletir sobre o sujeito a ação que ele mesmo praticou. Num segundo estágio, o reflexivo passa a designar apenas passividade (vendem-se casas) e, por último, a de indeterminador de verbos transitivos (estuda-se), intransitivos (acorda-se) e de ligação (quando se é bom).

2.2 O pronome reflexivo e mudança linguística no PB Vários estudos já atestaram a variação entre a produção e omissão da partícula reflexiva no português brasileiro, entre eles os realizados por D’Albuquerque, 1984; Nunes, 1995; Camacho, 2003, Rodrigues & Pereira, 2006; Pereira, 2007; e Carvalho, 2011. Dentre esses trabalhos, Rodrigues & Pereira (2006) verificam que o recurso mais frequente nas estruturas reflexivas e passivas reflexas na cidade de São Paulo é a omissão do pronome, atingindo 75% das ocorrências analisadas pelas autoras. Esse trabalho corrobora as conclusões alcançadas por Nunes (1995) de que a variação entre realização e omissão do reflexivo é um fenômeno que já vem ocorrendo no PB desde o século XVI. Os dados de língua escrita e falada analisados pelo autor indicam uma crescente tendência à omissão da

1805 partícula, começando com 15% no século XVI e atingindo 52% dos dados no século XX, conforme mostra o Quadro 1 abaixo:

Corpus de língua escrita (cartas, diários e documentos)

Entrevistas

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Séc. XX

15%

32%

14%

19%

30%

52%

Quadro 1: índice de supressão de clíticos reflexivos (Nunes, 1995:211)

A subseção que segue apresenta as variáveis linguísticas e sociais que guiarão a presente análise com base nos estudos já realizados acerca da variação na produção do pronome reflexivo no PB.

2.3 Variáveis linguísticas e sociais do presente estudo A fim de se analisar quais condicionadores linguísticos e sociais possivelmente favorecem o uso desse fenômeno variável, estipulou-se nesse trabalho oito grupos de fatores, sendo três sociais e cinco linguísticos, cuja escolha deu-se com base em estudos já realizados acerca dos reflexivos no PB: Variáveis Linguísticas Natureza semântica do reflexivo; Função sintática do reflexivo; Natureza semântica do verbo; Polaridade; Pessoa do discurso;

Variáveis Sociais Sexo Faixa etária Escolaridade

Quadro 2: variáveis linguísticas e sociais

2.3.1 Natureza semântica do pronome reflexivo Com base no trabalho de Carvalho (2011), estipulou-se na presente análise três categorias para essa variável linguística: reflexivo verdadeiro, reflexivo recíproco e pseudoreflexivo.

1806 A primeira é constituída de construções que podem ser substituídas por ‘si mesmo’, englobando verbos tais como cocar-se, esquentar-se, ferir-se, machucar-se, molhar-se, queimar-se, e estranhar-se.

(3)

a. Estou até me estranhando. b. Estou estranhando a mim mesmo.

A segunda categoria diz respeito a construções que podem ser substituídas por ‘um ao outro’, incluindo verbos como olhar, conhecer, encontrar, beijar, e abraçar.

(4)

a. As pessoas não se olham mais. b. As pessoas não olham umas às outras mais.

E por último tem-se a categoria dos pseudo-reflexivos que engloba os verbos denominados pronominais pela gramática normativa, ou se inerente, de acordo com Nunes (op. cit), conforme o exemplo em (5a), os reflexivos indeterminadores, conforme (5b) e as passivas reflexas em (5c):

(5)

a. Eu me lembro. b. Espanhol é ridículo de se aprender. c. Cultivam-se jardins de tulipas.

Acredita-se que os contextos mais favoráveis à omissão do pronome reflexivo sejam aqueles em que o verbo é acidentalmente pronominal (pseudo-reflexivos), ou seja, a partícula clítica não é inerente ao verbo, nos termos de Nunes (1995). Para D’Albuquerque (1984), a maior frequência de produção de se inerente é explicável pelo fato de o falante aprender o pronome e sua ligação ao verbo por memorização lexical. Em Rodrigues & Pereira (2006), é verificado que a omissão do pronome não atinge todas categorias uniformemente. Em contextos de verbos pronominais (pseudo-reflexivos) o índice de produção da partícula se é relativamente baixo (11%, peso relativo 0.37), enquanto que nas estruturas de reflexivo verdadeiro, nas quais ocorre a identidade referencial entre participantes que normalmente constituem entidades distintas, a frequência de realização do pronome se mostra bastante elevada (85%, peso relativo 0.91). Para as autoras, o reflexivo recíproco também mostra-se mais favorável à produção do pronome (48%, peso relativo 0.66).

1807 Acredita-se, portanto, que as ocorrências de pseudo-reflexivos apresentarão um comportamento mais favorável para o apagamento da partícula reflexiva no presente estudo.

2.3.2 Função sintática do pronome reflexivo Para essa variável linguística estipulou-se três categorias: reflexivo direto, reflexivo indireto e afixo. Os dois primeiros correspondem aos contextos de reflexivos verdadeiros e recíprocos. O reflexivo direto comporta-se como um objeto direto, ou seja, ocorre em orações que expressam uma ação de dois participantes: (6)

a. Eu posso me programar. b. A gente se vê de vez em quando.

Já o reflexivo indireto, por sua vez, assemelha-se ao objeto indireto e provém de uma oração cujo evento é constituído de três participantes: (7)

a. Eu me comprei um chapéu. b. Eu fiquei me perguntando.

A categoria afixo é constituída por ocorrências nas quais o reflexivo não se comporta como objeto, abrangendo, dessa forma, as estruturas pseudo-reflexivas. (8)

a. Eu não estou me lembrando. b. Ele se chama Esperidião Rosa.

No que diz respeito a essa variável, Rodrigues & Pereira (op. cit) verificam que a realização do pronome é favorecida nos contextos em que ele tem status de complemento do verbo (peso relativo de 0.62) ou de forma pronominal obrigatória (peso relativo 0.73). Esperase, portanto, que as construções em que o reflexivo não exerce o papel de objeto do verbo venham a apresentar mais omissões da partícula.

2.3.3 Natureza semântica do verbo Na presente análise levou-se em conta também a relação entre a omissão do pronome reflexivo e a natureza semântica do verbo que o acompanha. De acordo com Nunes (1995), verbos de ação tendem a favorecer a omissão do pronome enquanto que verbos de processo e estado favorecem seu uso explícito. No presente estudo, essa variável é composta das seguintes classificações: verbos epistêmicos (esquecer, lembrar, recordar, conhecer,…); verbos psicológicos (apavorar, assustar, divertir,

1808 preocupar, …); verbos físicos (deitar, levantar, ferir,…); verbos de comunicação (falar, dizer, comunicar, …); verbo casar; e outros (aposentar, dar-se bem, virar-se, …). O verbo ‘casar’ tem uma classificação especial devido ao fato de sozinho possuir um alto índice de supressão do reflexivo (76,5%). De acordo com Nunes (op. cit), este verbo é um item lexical que condiciona decisivamente a omissão do pronome. 2.3.4 Polaridade No estudo de Pereira (2007) é averiguado que, apesar de ocorrerem com menor frequência, as estruturas na forma negativa tendem a impedir que o pronome reflexivo seja suprimido, enquanto que as formas afirmativas favorecem a sua omissão. Entretanto, ao examinar as estruturas negativas, a autora percebe que elas abrangem muitos itens lexicais que favorecem decisivamente a realização do pronome, independentemente da polaridade, citando os casos de dar-se, sentir-se, preocupar-se, conhecer-se, interessar-se, enganar-se, divertir-se e unir-se (p. 321).

(9)

a. Ela gostava mais ele não se deu bem. b. Você não se preocupa. c. A gente não se conhece. d. Criança é uma coisa que não se interessa muito, né? (Pereira, 2007, p. 222)

A autora verifica ainda que nos itens lexicais em que a omissão do pronome reflexivo é favorecida, a estrutura negativa parece não ser um fator influente (lembrar-se, esquecer-se, casar-se): (10)

a. Eu não (me) lembro. b. Ela não (se) casou.

No presente estudo, levou-se em consideração a polaridade a fim de averiguar se é ela ou o item lexical, ou ainda os dois combinados, que favorecem de forma mais relevante a omissão do pronome.

2.3.5 Pessoa do discurso O objetivo dessa variável é o de se examinar se a regra em análise faz restrições quanto ao tipo de sujeito. Para tanto, subcategorizou-se essa variável em quatro fatores:

1809 primeira pessoa (eu, nós, a gente); segunda pessoa (tu, você, vocês); terceira pessoa (ela, ele, eles, elas, todo mundo, alguém, …); e indeterminada, que engloba construções do reflexivo indeterminador:

(11)

a. Aí eu me casei e morei um ano meio nos Estados Unidos. b. Você ter que, tipo, se jogar na calçada. c. Os policiais se sentem mais à vontade, né? d. Não sei como se chama esse corte de cabelo.

2.3.6 Variáveis Sociais A fim de se realizar uma pesquisa sociolinguística nos moldes labovianos, faz-se necessário que sejam levadas em conta, além das variáveis linguísticas, variáveis de cunho social. Para este estudo, estipulou-se três variáveis sociais. São elas: gênero do informante (masculino, feminino); faixa etária (20-34 anos; 35-59 anos; 60 anos ou mais); e escolaridade (ensino médio, ensino superior). Todos informantes são residentes na cidade de São Paulo.

3. Metodologia Para analisar quais condicionadores linguísticos e sociais mais favorecem a supressão do pronome reflexivo no falar paulistano, utilizou-se entrevistas de 48 informantes assim distribuídos:

Cada subgrupo de faixa etária foi ainda distribuído uniformemente de acordo com a escolaridade do informante. Assim, cada célula de 8 informantes inclui 4 informantes de ensino médio e 4 informantes de ensino superior.

1810 O corpus coletado é constituído de todas ocorrências em que o falante produziu ou omitiu o pronome reflexivo, resultando em 1.846 dados que foram agrupados na seguinte forma: verbos cuja produção do reflexivo é categórica, ou seja, nunca há omissão, e verbos cuja produção do reflexivo é variável, sendo ora omitido e ora produzido. Todas ocorrências foram então classificadas de acordo com as variáveis linguísticas e sociais estipuladas para essa pesquisa. Após classificação dos dados, as amostras foram submetidas a análises estatísticas realizadas pelo programa estatístico GoldVarb Lion526. Duas análises foram realizadas: a primeira com todos os dados coletados e a segunda somente com os verbos que apresentam variação no uso do pronome reflexivo. Os resultados dessas análises serão apresentados na seção que segue.

4. Resultados e análises Conforme descrito na seção anterior, duas análises foram realizadas nesta pesquisa. A primeira contém todos os dados coletados, enquanto que a segunda é composta de somente os verbos que apresentam variação no uso do pronome reflexivo.

4.1 Análise com todos os verbos Foi computado nessa análise o total de 1.846 ocorrências, sendo 629 delas com omissão do pronome reflexivo; ou seja, nessa amostra, em 34% dos casos o falante optou por não produzir o pronome reflexivo. O pacote estatístico GoldVarb Lion selecionou como estatisticamente relevantes para a omissão do pronome reflexivo as seguintes variáveis: escolaridade, natureza semântica do verbo, natureza semântica do pronome reflexivo, e pessoa do discurso. Abaixo, seguem os resultados:

Tabela 1 Escolaridade Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Ensino Médio

312/797

39%

0.55

526 Versão de 2012 do programa GoldVarb para Mac. O programa específico utilizado na seleção de fatores foi o ‘Binomial Up & Down’. Os fatores não selecionados pelo Step Up foram também descartados pelo Step Down, o que indica uma análise coerente.

1811 Ensino Superior

317/1049

30%

0.46 Input: 0.26 / Significância: 0.003

Observa-se com os resultados apresentados na Tabela acima que o contato mais prolongado com a

educação formal tende a desfavorecer o apagamento do pronome

reflexivo.

Tabela 2 Natureza Semântica do Verbo Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Físico

175/599

29%

0.54

Epistêmico

277/538

51,5%

0.64

Psicológico, percepção e

27/438

6%

0.14

Comunicação

59/152

39%

0.68

Casar

91/119

76,5%

0.89

outros

Input: 0.26 / Significância: 0.003

Devido ao baixo índice de omissão do pronome com verbos psicológicos, de percepção e outros, optou-se por amalgamá-los em um único grupo de fatores. O que os resultados acima mostram é que, com exceção dos verbos que foram amalgamados, todos os outros são favorecedores ao apagamento, em especial o verbo ‘casar’ que favorece quase que categoricamente a omissão do reflexivo. Em segundo lugar, vê-se o favorecimento ao apagamento os verbos de comunicação (peso relativo de 0.68). Observa-se, no entanto, uma leve inversão de porcentagem e peso relativo para os verbos de comunicação e epistêmicos. Isso possivelmente se deve ao fato de não se ter excluído da amostra expressões do tipo ‘como se diz’ e ‘como se fala’, o que pode estar alçando o peso relativo de verbos de comunicação. Verbos físicos, apesar de não possuírem uma alta porcentagem de apagamento, parecem também favorecer de forma moderada a omissão.

Tabela 3 Natureza Semântica do Pronome Reflexivo Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Reflexivo Verdadeiro

6/183

3%

0.11

1812 Reflexivo Recíproco

19/170

11%

0.18

Pseudo-reflexivo

604/1496

40,5%

0.60 Input: 0.25 / Significância: 0.002

A Tabela 3 acima mostra que, enquanto os reflexivos verdadeiros e recíprocos favorecem a produção do pronome reflexivo, as construções com a partícula pseudo-reflexiva são inversamente favorecedoras ao seu apagamento. Por conta do comportamento linguístico e estatístico semelhante entre os dois primeiros, resolveu-se realizar uma análise amalgamando-os. Os resultados obtidos foram os seguintes:

Tabela 4 Natureza Semântica do Pronome Reflexivo com amalgamações Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Pseudo-reflexivo

604/1496

40,5%

0.59

Reflexivo Recíproco e Verdadeiro

25/353

7,1%

0.15 Input: 0.26 / Significância: 0.003

Os resultados apresentados na Tabela 4 acima corroboram os de Rodrigues & Pereira (2006) explicitados na seção 1.2.3.1 e confirmam as hipóteses de que as construções pseudoreflexivas, por serem menos marcadas na língua, poderiam ser mais suscetíveis ao apagamento da partícula.

Tabela 5 Pessoa do Discurso Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Primeira Pessoa

411/963

43%

0.57

Segunda Pessoa

38/129

29,5%

0.60

Terceira Pessoa

111/486

23%

0.386

Indeterminada

69/268

26%

0.380 Input: 0.25 / Significância: 0.002

Apesar de não se ter uma hipótese com relação à pessoa do discurso, observa-se que a regra parece fazer, sim, restrições a alguns fatores dessa variável, sendo a primeira e a segunda pessoas as mais favorecedoras ao apagamento de se. Deve-se atentar, no entanto,

1813 para a disparidade do número de ocorrências entre a primeira pessoa e as demais. Por esse motivo, realizou-se outra análise amalgamando-se as segunda e terceira pessoas, conforme apresentado na Tabela 6 abaixo:

Tabela 6 Pessoa do discurso com amalgamações Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Primeira Pessoa

411/963

43%

0.57

Segunda e terceira pessoas

149/615

24%

0.43

Indeterminada

69/268

26%

0.38 Input: 0.26 / Significância: 0.003

Após a amalgamação, nota-se uma queda de favorecimento para a segunda pessoa, enquanto que a primeira continua sendo moderadamente favorecedora ao apagamento. Observa-se, entretanto, que há ainda uma diferença considerável no número de ocorrências para cada grupo de fatores mesmo após o amalgamento, e acredita-se que uma análise mais minuciosa desse grupo de fatores deverá ser realizada em estudos futuros a fim de se ter o real papel dessa variável na regra em estudo.

4.2 Análise com verbos variáveis Nessa amostra foram retirados todos os verbos categoricamente produzidos com o pronome reflexivo. O intuito foi o de descobrir, dentre os verbos variáveis, quais fatores mais propulsionam o apagamento. Restaram, portanto, um total de 876 ocorrências dentre as quais 525 apresentam apagamento do reflexivo, ou seja, 60%. Esse resultado corrobora os obtidos por Nunes (1995), com 52% de apagamento, Rodrigues e Pereira (2006) com 75%, e Pereira (2007) com 58%.527 Nessa análise mais restrita, quatro variáveis foram selecionadas como relevantes pelo programa GoldVarb: faixa etária, natureza semântica do verbo, natureza semântica do pronome reflexivo e pessoa do discurso. Abaixo, os resultados:

527

Dentre os verbos que fazem parte dessa amostra, destacam-se os que ocorreram com mais frequência: casar, lembrar, esquecer, sentir, assustar, chamar, separar, mudar, encontrar, aposentar, deitar, levantar, acostumar, recordar, e estressar,

1814 Tabela 7 Faixa Etária Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

20 – 34 anos

161/235

68,5%

0.59

35 – 59 anos

213/367

58%

0.44

+ de 60 anos

242/391

62%

0.49 Input: 0.6 / Significância: 0.034

Os resultados apresentados na Tabela 7 mostram que o apagamento do pronome reflexivo pode ser interpretado como uma regra em processo de mudança linguística, uma vez que os mais jovens a utilizam mais. Já a faixa etária intermediária tende a não favorecê-la tanto quanto os mais jovens e os mais velhos, possivelmente por ser composta de informantes que estão em plena ascensão profissional e, consequentemente, têm mais contato com a língua escrita e se policiam mais no falar. Tabela 8 Natureza Semântica do Verbo Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Casar

91/117

78%

0,72

Físico

169/252

67%

0.58

Epistêmico

274/428

64%

0.51

Comunicação

59/83

71%

0.50

Psicológico

18/68

26,5%

0.15

Outros verbos

5/45

11%

0.07 Input: 0.6 / Significância: 0.034

Como esperado, o verbo casar obteve um alto índice de apagamento e é, portanto, um grande favorecedor do fenômeno. Em segundo e terceiro lugar, tem-se os verbos físicos e epistêmicos, respectivamente. A categoria dos verbos físicos é composta de itens lexicais do tipo levantar-se, sentar-se, deitar-se, mudar-se (de local), separar-se e deslocar-se. Esses verbos são muito frequentemente usados com co-referência entre sujeito e objeto, de modo que os enunciados em (12) são mais comuns do que se o sujeito e o objeto fossem não coreferenciais .

(12)

a. Eu (me) levanto muito cedo. b. Eu prefiro não (me) sentar do lado dele.

1815 c. A gente não consegue (se) deitar cedo. d. Eu (me) separei faz dois anos. e. A gente (se) mudou quando eu era pequeno ainda.

E é devido ao fato de esses verbos serem quase que categoricamente co-referenciais na língua é que se acredita que eles sejam mais favorecedores ao apagamento do reflexivo. Da mesma forma que os verbos de natureza semântica física, os verbos epistêmicos também tendem a ser co-referenciais : esquecer, lembrar, recordar e conhecer. Daí o fato de eles também serem favorecedores ao apagamento. Os verbos de comunicação, por sua vez, encontram-se no limiar do favorecimento, e, por esse motivo, torna-se difícil indicar com precisão o real comportamento desses verbos na regra com base nos dados dessa análise. Já os verbos de natureza psicológica (sentir, estressar, assustar, acostumar, desanimar) e outros verbos (composto principalmente pelo verbo aposentar) possuem um número bastante reduzido de ocorrências na amostra e mostram-se menos favorecedores ao apagamento. Por fim, salienta-se que não houve ocorrências com verbos de percepção nesse corpus. Devido ao grande número de ocorrências para o verbo ‘casar’ e a semelhança de pesos relativos para os fatores verbos epistêmicos e verbos de comunicação, realizou-se uma nova análise excluindo-se o primeiro - a fim de se verificar se seu resultado estaria afetando os dos outros verbos - e amalgamando-se os dois últimos. Os resultados estão dispostos na tabela que segue:

Tabela 9 Natureza Semântica do Verbo sem o verbo ‘casar’ e com amalgamações Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Físico

169/252

67%

0.64

Epistêmico e comunicação

333/511

65%

0.53

Psicológico

18/68

26,5%

0.16

Outros verbos

5/45

11%

0.09 Input: 0.59 / Significância: 0.006

Observa-se agora que essas modificações salientaram ainda mais o papel favorecedor dos verbos semanticamente físicos. Quanto aos epistêmicos e de comunicação, acredita-se que ambos são favorecedores, mas não apresentam um papel forte na regra de apagamento de se. Os verbos psicológicos e outros verbos continuam favorecendo minimamente a omissão do pronome.

1816 Tabela 10 Natureza Semântica do Pronome Reflexivo Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Pseudo-reflexivo

594/942

63%

0.51

Reflexivo Recíproco

18/34

53%

0.33

Reflexivo Verdadeiro

4/17

23%

0,24 Input: 0.6 / Significância: 0.034

A partir dos resultados expostos na Tabela 10 acima, observa-se que a grande maioria dos verbos suscetíveis à omissão do pronome reflexivo são aqueles acompanhados de pronomes pseudo-reflexivos. Tabela 11 Pessoa do discurso Fatores

Apl/Total

%

Peso Relativo

Primeira pessoa

358/591

60%

0.48

Segunda pessoa

35/50

70%

0.72

Terceira pessoa

69/148

46%

0,38

Indeterminado

63/87

72%

0.63 Input: 0.6 / Significância: 0.034

Conforme verificado na primeira análise, Tabela 5, aqui também se observa que a segunda pessoa mostra-se mais condicionadora ao apagamento do que as outras. Deve-se atentar, no entanto, para a grande disparidade de número de ocorrências existentes para a primeira pessoa. Observa-se também que o sujeito indeterminado favoreceu muito o apagamento ao contrário do que ocorreu na amostra completa.

Em uma análise mais

minuciosa dos dados, nota-se que as construções com sujeito indeterminado são na grande maioria construções no modo infinitivo. Para Pereira (2007), as construções no infinitivo não explicitam claramente se existe um pronome reflexivo subjacente. Para a autora, nos casos em que não se realiza o pronome (63/87), pode, de fato, não haver um se subjacente. O falante estaria, portanto, fazendo uso de outra estratégia para expressar o sentido de indeterminação (p. 191). Com isso, é possível que os valores apresentados pelo fator tipo de pessoa indeterminado não sejam relevantes para a regra. Um estudo mais minucioso a respeito desse problema deve, portanto, ser conduzido.

1817 Considerações finais O presente estudo partiu da hipótese de que há uma mudança linguística em direção ao apagamento dos pronomes reflexivos no português brasileiro. Viu-se através da análise dos dados coletados que existe, sim, uma tendência à queda desses pronomes na língua falada na cidade de São Paulo. Além disso, conseguiu-se averiguar que esse processo de mudança está sendo condicionado por variáveis linguísticas do tipo natureza semântica do verbo e do pronome reflexivo e tipo de pessoa do discurso. A variável social faixa etária também mostrou-se relevante no uso da regra, sendo os mais jovens os que a aplicam mais. Gênero e escolaridade não foram selecionadas como relevantes na análise mais restrita e, por isso, acredita-se que não se trata de um processo estigmatizado na língua. Os resultados alcançados estão de acordo com as hipóteses aventadas e com os resultados obtidos por estudos já realizados acerca desse assunto.

Referências bibliográficas: BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37a edição. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2001 CARVALHO, G. C. Análise dos verbos experienciais: redução do contexto do pronome se e a frequência de construções analíticas. In: Anais do VII Congresso Internacional da Abralin. Curitiba: UFPR, 2011. D’ALBUQUERQUE, A.C.R.C. A perda dos clíticos num dialeto mineiro. Tempo Brasileiro 78 79, p. 97-121, 1984. DITTMAR, N. Sociolinguistics: a critical survey of theory and application. London: Edward Arnold, 1976 GUY, G. Advanced Varbrul Analysis. ms., s/d LABOV, W. The social stratification of English in the New York City. Arlington: Center of Applied Linguistics, 1966 ______________. Principals of Linguistic Change. Internal Factors. Cambridge: Blackwell, 1994. NUNES, J. Ainda o famigerado se. D.E.L.T.A, vol II, no. 2, p. 201-240, 1995.

1818 RODRIGUES, A.C.S & PEREIRA, D.C. Pronomes reflexivos no português popular brasileiro. In: VALENCIA, A. (ed) XIV Congresso Internacional de La ALFAL. Monterrey (México). Arquivo digital, 2006 ROSSEAU P. & SANKOFF, D. Advances in variable rule methodology. In: ______ (orgs). Linguistic variation: models and methods. New York, Academic Press, p. 57-59, 1978. PEREIRA, D.C. Variação e mudança no uso dos pronomes reflexivos no português popular da capital paulista: uma abordagem funcionalista e cognitivista. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 351p, 2007.

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