O valor do certo. Notas iniciais de uma etnografia urbana da moral e da circulação entre adolescentes periféricos.

June 23, 2017 | Autor: Evandro Cruz | Categoria: Moral, Cidades, Periferias Urbanas, Circulação, Adolescentes Em Conflito Com a Lei
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Título: O valor do certo. Notas iniciais de uma etnografia urbana da moral e da circulação entre adolescentes periféricos. Autor: Evandro Cruz Silva1 Segundo o último levantamento SINASE2 com base em dados do censo de 2012 e publicado em 20143 sobre a situação de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em regime de meio aberto (Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade) cerca de 90 mil pessoas entre 12 e 21 anos cumprem atualmente algum tipo de medida. Esse número, comparado aos 21.265.930 milhões de brasileiros desta faixa etária, representa uma proporção de 0, 41% da população. A proporção numérica que parece ínfima a primeira vista ganha status muito diferente quando analisamos a produção de uma certa opinião pública a cerca desse “meio por cento” dos adolescentes brasileiros, nos últimos meses, jovens envolvidos em algum tipo de ilegalidade se tornaram o centro de um debate público a cerca de propostas sobre a redução da idade de imputabilidade penal de 18 para 16 anos4. Nesta comunicação, descreverei os apontamentos iniciais de minha pesquisa com base nos dados etnográficos sobre dois personagens que de certa forma compõe parte desse 0,41% da juventude brasileira e também as representações produzidas quando se debate publicamente sobre temas como “violência urbana” e a própria “redução da maioridade penal”. Estes dois personagens, Júlio e Luís, residem em uma cidade de porte médio no interior de São Paulo, chamada Pinheiros5 e têm em comum circuitos de circulação de riquezas que atravessam fronteiras entre o legal e o ilegal, é a partir da experiência desses personagens nestes circuitos específicos que tentarei prospectar como as relações de valoração moral e material se agenciam mutuamente nos fluxos de circulação do modo de vida urbano, para daí refletir mais especificamente sobre a efetividade destes processos na produção de fluxos cartográficos da cidade e suas formas sociais de controle e ordenamento das populações urbanas. 1 Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, pesquisador membro do projeto As Margens da Cidade – Centro de Estudos da Metrópole (CEM). 2O SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo é um conjunto de diretrizes elaborados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pela CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes que buscam viabilizar a garantia de diretos presentes no Estatuto da Criança e do Adolescentes. 3O documento pode ser acessado em http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/levantamentosinase-2012 4 “87% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal” pesquisa Datafolha, 24 de Abril de 2015 5 Por questões éticas, os nomes de pessoas e lugares presentes neste texto são fictícios

Tais processos de valoração moral e material de pessoas e objetos são partes fundamentais na produção da obrigação de reciprocidade6, uma vez que estabelece parâmetros mais ou menos socializados para uma troca considerada justa ao mesmo tempo que inscreve os sujeitos em determinados jogos de força. Desta maneira operadores de circuitos de trocas de bens e mercadorias tem seus fluxos de circulação deslocado de formas variadas a partir de uma variedade potencial de valoração material e moral dos objetos e pessoas envolvidas nas trocas, o que provoca a necessidade de aprendizado sobre as formas específicas de controle dos circuitos aos quais estão inscritos. Exemplos destes processos podem ser vistos em diversos modos de comércio em ambientes urbanos, com foco especial aos inscritos na dobra do legal e ilegal 7 em países do chamado “terceiro mundo8. Nesta comunicação abordarei processos valorativos populares e recorrentes no modo de vida das periferias urbanas, especialmente no caso paulista, acerca de adolescentes que derivam9 em circuitos da dobra do legal e ilegal como o comércio de drogas ilícitas, a receptação de objetos não-legalizados e a circulação de armas de fogo. Em ambos os casos etnografados a cerca da história de Júlio e Luis, processos de valoração se relacionam mutuamente com os processos de circulação e com as diferentes formas de controle aos quais os sujeitos envolvidos nas trocas estão em contato. Ao adicionar a questão do controle ressalto o caráter crítico10 da pesquisa uma vez que a etnografia serve aqui como ferramenta para perspectivar casos específicos de um processo mais geral de ordenamento espacial e produtivo das populações urbanas11, na tentativa de demonstrar como outras 6 Mauss (2003 p194-211) 7 Uso aqui o conceito de “dobra do legal e ilegal” como presente na obra de Vera Telles (2010, 2010b, 2009) como a produção de porosidades e diferenciações em atividades que se colocam em algum ponto da fronteira de incriminação. 8 Talvez a metáfora que defina de forma mais abrangente estas dinâmicas é a de “cidade bazar” cunhada por Ruggiero e South (1997 p54-70) 9 Utilizo aqui o conceito de David Matza (2010) de “deriva” para descrever a participação de uma certa juventude em circuitos “desviantes”, Matza descreve esse processo como uma potencialidade contingencial que resultará necessariamente em uma “carreira desviante” nem produz no sujeito do desvio uma alteridade moral em relação as populações “normais” 10 Utilizo aqui o conceito de “crítica” como concebido por Michel Foucault (1990 p35-63) sendo assim, crítica não seria a recusa ao governo, ou a escolha por governo nenhum e sim a disposição de não ser governado de determinado modo. O empreendimento etnográfico, ao se imbuir de demonstrar os efeitos e operações de determinadas formas de governo de populações pode ser concebido como ferramenta elicitação de linhas de fuga de determinadas forças de controle do modo urbano. (ver HIRATA, 2010 p70-131) 11 Utilizo aqui o argumento de Christian Topalov (1991, 1988) sobre a produção da cidade como jogo de forças que buscam normalizar as populações em desordem ao mesmo tempo que libera os fluxos de desenvolvimento de mercado.

maneiras de relação com o poder surgem em interface com outras formas consagradas de controle como as instituições de gestão e os operadores da lei. Desta forma esta comunicação seguirá a seguinte organização: a demonstração dos dados iniciais de uma história de vida e a transcrição parcial de uma entrevista para com base nestes dados concluir com os apontamentos iniciais da linha de organização que pretendo seguir daqui em diante. 1.1 – Júlio, a vida louca e o trabalho que sustenta a família.12 Quando cheguei para mais uma oficina unidade Dom Bosco de medidas socioeducativas, Júlio jovem de 17 anos, pele parda, cerca de 75 kilos e um pouco mais de 1,70 de altura, fumava um cigarro ao lado da portaria da unidade, ele vestia uma camiseta de um time basquete local, shorts azuis e tênis de corrida. Paro para conversar com ele, digo brincando que aquele cigarro iria matá-lo, ele retruca dizendo que é difícil que isso aconteça, depois de tudo que passou na vida. Apesar da camiseta de basquete, Júlio gosta de lutar jiu jitsu e judô, e até os seus 15 anos foi um competidor bem-sucedido em campeonatos mirins e juvenis, chegando a ganhar “uma caixa de sapato cheínha” de medalhas, como ele mesmo gosta de repetir de tempos em tempos. A prática de lutas parece ser um fator determinante em sua vida e Julio se remete a ela como um passado nostálgico, uma vez que ele não compete mais nessas modalidades, perguntado o porquê dele ter parado de competir, o jovem dificilmente alega mais do que um “desânimo” repentino. Parte desse desânimo pode ser atribuído aos problemas que Júlio teve com a sua família formada por sua mãe e uma irmã menor, com cerca de 4 anos - durante uma época de consumo excessivo de cocaína, o que levou nesta época, diz o garoto, sua rotina era a de ficar sempre “loucão com muita droga” e voltar para casa apenas para trocar de roupa e tomar um banho, porém, um início de overdose e o surgimento de ameaças por dívidas de drogas o levou a acatar o conselho de sua família de ir a uma clínica de recuperação. Júlio lembra desta época com uma mistura de tristeza, raiva e arrependimento, uma vez que ambos os 12Os acontecimentos e dados aqui citados fazem parte de anotações de diário de campo todos os nomes citados são fictícios

acontecimentos foram muito marcados por episódios de violência. A rotina nesta clínica é retratada em um texto que Júlio escrevera para uma exposição que o programa de medidas socioeducativas faria com base nas vidas dos adolescentes atendidos, o texto descrevia um cotidiano de privações de sono, afogamentos e a utilização de diversas substâncias para deixá-lo dopado. Além da violência das técnicas empregadas na internação, a ida a clínica também prejudicou a sua relação com os contatos e compra e venda de drogas ilícitas, atividade da qual advinha a sua renda, segundo Júlio, ser internado demonstra incapacidade de lidar com as substâncias de maneira responsável o suficiente para dar prosseguimento aos negócios13. A saída da comunidade terapêutica aparece como outro marco na história de Júlio, pois, segundo ele a estadia no lugar havia o deixado com “muito ódio e vontade de nunca mais passar naquele lugar” Júlio então ingressa no mercado de comércio de drogas, vendendo em bailes e casas de show, o dinheiro era utilizado para “zoar no pião” isto é, gastar em festas, uso de drogas e consumo de roupas e joias, além do maior contato com drogas e o aumento de convites para assaltos e roubos, porém é nesta mesma época que Júlio tem seu filho com uma garota que conhece em um baile da cidade e com quem mantém relação atualmente. Após o nascimento do filho, que está prestes a completar um ano, Júlio disse que se tornou um cara “tranquilão” e agora cumpre com assiduidade sua medida socioeducativa, só fuma maconha e vende as drogas apenas lugares seguros, onde o patrulhamento é menor. A transição também é comentada por Cláudia, sua orientadora de medida, em uma conversa particular sobre Júlio, ela me disse que considera o caso dele como um exemplo da redução de danos, pois “o trabalho que foi feito com ele quando ele saiu da comunidade terapêutica fez com que ele abandonasse o uso drogas ilícitas, além disso ele parou de vender em bailes, ele me disse que agora vende em uma casa, num bairro distante de onde a sua família mora. Isso pra mim é um sucesso, ainda mais vendo a relação dele com a filha e a namorada se estabilizando.”

13 Pude observar dois casos que corroboram tal argumento: em um, a internação de um garoto de 14 anos que fazia vigilância de uma biqueira e após ser internado ganhou o apelido irônico de “capanga”e foi afastado das suas atividades anteriores, no outro caso, uma discussão sobre aceitar ou não a presença de um garoto de 17 anos, que dizia ter saído recentemente da Fundação Casa, como vendedor em uma biqueira foi concluída em negativa após a descoberta de que ele na verdade havia saído de uma clínica de internação

Júlio também está tentando voltar a escola, lugar que ele não frequenta desde o começo do ano após ser expulso na segunda semana de aula, porém, na primeira tentativa de se matricular em uma outra instituição, Júlio vestiu uma camiseta estampada com folhas de maconha e foi com a sua mãe conversar com a diretora sobre a possibilidade de uma vaga. Ao chegar na escola, antes que Júlio pudesse falar alguma coisa, a diretora afirmou que com aquela camiseta seria impossível que ele conseguisse a vaga. Comentando comigo sobre o ocorrido, Júlio me perguntou com um misto de indignação e humor: “Só porque eu fui com uma camisa de maconha ela não vai deixar eu me matricular na escola, você acha isso certo ?” 1.2 “Luis é o certo” família, crime e moral. A cena a seguir é fruto de uma entrevista do tipo “história de vida” 14com Luis, jovem de 18 anos, cabelo raspado, quase 1,70 de altura, magro e com muitas tatuagens pelo corpo que, segundo seus relatos, tem uma série de derivas em mercados legais e ilegais: já foi dono de biqueira, assaltante de carros e casas (ocorrência pelo qual ele fora detido) além de algumas passagens por mercados como lava jatos e customização de automóveis. A entrevista se realizou nas imediações do programa de medidas socioeducativas ao qual ele estava em cumprimento da medida de liberdade assistida. Em certo momento da entrevista, falando sobre a sua convivência com a mãe de seu filho recém-nascido, ele nos disse que o início da relação após o nascimento da criança fora conturbado pois, apesar de ter comprado todo o enxoval da criança e pago todas as necessidades materiais da mãe durante o período de gestação, a mesma começou a regular de maneira cada vez mais rígida as visitas de Luís a seu filho, isso, na visão de meu interlocutor se configurou como uma injustiça imperdoável. Perguntamos então como essa situação se resolveu, ele nos relatou: “Então, teve um dia que eu fui lá e ela não deixou eu ver meu filho, ai como é que foi, eu voltei com uns cinco parceiro, tudo com uns revolver, ela morava na casa da mãe dela né, que fumava pra caralho, devia muito dinheiro de droga, ai pulamo o muro da casa metemo bala no carro da mãe dela, ficou tudo furadinho ó, mais ela [a mãe de seu filho] trouxe meu filho né, 14A entrevista contou também com a presença de meu orientador Gabriel Feltran.

naquele dia eu dormi com ele no colo e ela nem chiou, aquele dia foi foda” Luis nos contou essa história com visível satisfação, rindo durante boa parte do relato, continuamos então no assunto e perguntamos se pelo fato da avó da criança ser envolvida e ser a principal prejudicada em questão (pois foi o seu carro que ficou “todo furadinho”) ele não fora chamado para o debate15 “Lógico, fomo pra debate, ela [a avó] subiu lá e chamou os irmão, mas não teve papo, chegou lá o irmão: porra, 'o Luis pagou tudo pra sua filha ter a vida tranquila, ai moleque nasce e ela não deixa o pai ver, você quer o que? Ainda mais o Luis, o Luis é o certo.” Ai ela ficou de boa, também, porque ela me devia muito dinheiro porque uma vez ela tava devendo pro tráfico e eu peguei dois mil de um roubo que eu tinha feito e dei pros cara pra livrar a dela, ai ela ficou de boa.”

2. Família, comércio, crime e controle. As redes nas quais Luis e Júlio derivam.

As notas inicias de campo nos permite abordar temas discutidos em uma extensa bibliografia que servirá como base desta comunicação e também aponta o tópico específico aqui tratado: os deslocamentos mútuos potenciais entre valoração e circulação e sua efetividade em formas sociais de controle. A própria condição jurídica de meus interlocutores como “adolescentes em conflito com a lei” aparece na discussão sobre periferias como o marco legal que divide as representações sociais sobre a juventude periférica entre uma população carente de assistência e cuidado16 e uma população perigosa que necessita de controle e punição17. O enquadramento jurídico de um sujeito como um adolescente com algum tipo de conflitualidade para com a lei é uma parte fundamental do processo de incriminação dos seus cursos potenciais de ação, fazendo com que as representações externas e internas acerca de sua pessoa tendam a se posicionar na outra metade da divisão exposta acima, produzindo 15O debate, de maneira geral, é uma instância de resolução de assuntos polêmicos com a mediação de irmãos do Primeiro Comando da Capital que sejam considerados capazes de julgar de maneira justa os conflitos. Ver (BIONDI, 2014 p236-264) 16Uma coletânea de textos sobre a história do cuidado com juventude periférica como população específica pode ser vista em DEL PRIORE (1991) 17 Uma genealogia da história de punição a juventude pode ser vista em SOUZA MARTINS(1993)

assim o processo que Michel Misse chama de “sujeição criminal” 18. A experiência destes sujeitos criminais adolescentes é um do tema de intenso debate dentro da bibliografia que trata dos modos periféricos da vida urbana com predominância de estudos que tratam da relação destes sujeitos com as instituições de controle e gestão do conflito. Nesse sentido temos o trabalho de Mallart (2014) sobre as figurações produzidas em unidades de internação no estado de São Paulo e como elas caminham para uma simetrização das dinâmicas de ambientes prisionais adultos, tanto por parte dos adolescentes internos quanto por parte da arquitetura e dinâmica institucional. Estas relações, como demonstra Malvasi (2011a, 2011b), faz com que o sujeito aprenda diversas estratégias situacionais de como percorrer tramas de relações que ora requerem a performance de um sujeito “vida loka” e ora requerem a performance de um sujeito recuperado e arrependido, compreendendo assim as expectativas tanto do “mundo do crime”19 quanto dos operadores da malha instituições de controle. Exemplos de cristalizações da primeira trama podem ser observados em trabalhos que demonstram a centralidade do “ser bandido” em certas relações específicas 20 e exemplos de cristalizações da segunda trama de relações podem ser encontrados em trabalhos que tematizam a centralidade de peças técnicas e jurídicas21, e das estratégias que internos estas instituições se utilizam para sua própria proteção. Porém, além de estarem inscritos em uma malha de relações entre instituições de controle e o “mundo do crime”, Júlio e Luis também são conectores potenciais de circuitos de objetos diversificados que tem numa ponta a sua produção de valor através do comércio de drogas ilicitas e na outra o consumo de objetos variados. Se por um lado ambos são personagens do que Caroline Knowles chama de “microcenas da globalização” (KNOWLES, 2014) ao serem pequenos comerciantes inseridos em um mercado global de produção de drogas e potenciais consumidores de mercadorias produzidas por multinacionais, por outros eles também são personagens trajetórias morais que produzem diversos significados para expressões como 18MISSE (2003) 19 Utilizo o conceito de “mundo do crime” na forma descrita por Feltran (2011) como um conjunto de práticas, valores e ideias específicas de uma sociabilidade entre praticantes de atos incriminados 20Analises sobre a perspectiva dos adolescentes na vida entre o crime, o cuidado e a punição podem ser vistas em Neri (2009) e Mallart (2014) 21Analises sobre o procedimento técnico e burocrático da gestão de adolescentes em conflito com a lei podem ser vistas em Schuch (2005) e Muñoz (2013)

“vida louca” “o certo” “tranquilão” e também para as noções como família, justiça e dívida, sendo que em um discurso público do ordenamento urbano, todas estas noções e expressões são sobre-codificadas por expressões como “traficante” e “bandido”. Estes processos nos permitem examinar como as formas sociais de controle tem suas efetividades deslocadas através do que Arjun Appadurai denomina de “regime de valor” (APPADURAI, 2009) se caracteriza pelas formas de gestão dos processos de circulação a partir diferentes características valorativas atribuídas às pessoas e objetos em questão. A investigação das resultantes das diferentes inscrições e derivas em regimes de valor de adolescentes periféricos em contextos urbanos, como mostra ser os apontamentos iniciais dos casos de Júlio e Luis, permite uma via de reflexão na interface entre a biografia cultural dos objetos circulados22 e a trajetória social dos sujeitos inerentes a sua circulação; abrindo assim a possibilidade de elicitação dos deslocamentos que a deriva por estes fluxos de circulação produz em suas relações íntimas e públicas 23 de valoração moral e material, o que tornará viável o exame dos efeitos destes processos de valoração nas variadas formas sociais de controle, perspectivando através de casos etnográficos como o de Júlio as técnicas de gestão as quais esta população se relacionam cotidianamente.

3. Conclusão. Diferentes perspectivas do governo da cidade através dos processos de valoração.

Ao fazer a recuperação histórica da Escola de Chicago, a fundadora das ciências urbanas na América do Norte, Ulf Hannerz destacou a importância de um confronto entre sindicalistas imigrantes e a polícia na festa do 1º de Maio na cidade Chicago (HANNERZ 1980 p19) como um dos marcos da produção de uma preocupação pública com o planejamento urbano e o ordenamento de populações estrangeiras e suas ideologias estranhas ao “sentimento 22Aqui me utilizo do conceito de “biografia cultural das coisas” de Igor Kopyttof (KOPYTTOF, 2009) que compreende as valorações não econômicas de objetos e as formas como estes processos deslocam seus circuitos de negociação. 23Neste ponto é importante atentar para as reflexões de Viviana Zelizer sobre a efetividade da circulação de mercadorias e valores em relações de âmbito intimo (ZELIZER 2009, 2009b, 2009c) desfazendo assim a dissociação entre público e privado como presença ou ausência de mercado e recolocando a separação como uma diferença de modulação e valoração moral das mercadorias e valores circulados.

americano”, o evento, que ficou conhecido como “Haymarket Affair” aconteceu seis anos antes da inauguração da Universidade de Chicago. Christian Topalov, ao fazer um caminho parecido de recuperação da gênese de uma “escola francesa de sociologia urbana” coloca a volta de Charles de Gaulle ao poder em 1958 e a necessidade estatal de uma tecnocracia que liberasse as capacidades produtivas do ambiente urbano. (TOPALOV 1988, p6). Continuando sua argumentação, Topalov descreve como os eventos pós-Maio de 68 causou na academia francesa uma virada marxistas dos estudos urbanos, colocando retirando a cidade da posição neoclássica de dado natural da agência de humanos e recolocando-a como produto de uma série de relações socializadas de produção capitalista internacionalizada. 24 Ordenamento e fluxos de circulação parecem ser duas preocupações constantes na história das ciências que tem o modo urbano de vida como objeto de pesquisa, estas preocupações podem ser transpostas também para os habitantes citadinos em seus cotidianos: saber percorrer fluxos de circulação e saber responder de forma efetiva as aspirações morais dos ordenamentos inscritos são saberes necessários para a vida de qualquer sujeito na cidade. Representações dos efeitos destes processos podem ser prospectadas ao se analisar a produção do “valor” cotidiano que pessoas e objetos carregam a partir da perspectiva dos sujeitos em suas diferentes sociações. Ao perspectivar os valores atribuídos por Júlio e Luis aos seus fluxos de circulação abrimos uma via de análise sobre os efeitos produtivos destas valorações para as dinâmicas de ordenamento de populações na vida urbana e suas gestões diferencial dos ilegalismos (Foucault, 2010) No caso de Júlio, a representação de uma trajetória de ascensão moral tem no início o “vida louca” que não consegue controlar bem a fronteira entre uso e venda de drogas e que tinha como produto uma “mente fraca” que, por fim, levou à clínica de recuperação para que no fim de sua narrativa tenha no presente a representação de um cara “tranquilão” que provém a família e que opera seu comércio com menores riscos de ser pego e com maior controle sobre o uso de drogas. Continuar acompanhando a trajetória de Júlio nos permitirá prospectar quais os acordos necessários para as duas “fases” do seu comércio, assim como as diferentes valorações que ele atribui aos objetos e pessoas inerentes a esta circulação, as técnicas para lidar com operadores da lei, parceiros de fornecimento e as formas de se relacionar com o seu 24 Textos metodológicos sobre a sociologia urbana marxista podem ser vistos na coletânea “Urban Sociology” organizada por Chris Pickvance e com forte presença de textos de Manuel Castels (PICKVANCE, 1976)

público consumidor. Já ao aprofundar a história de Luis podemos entender de forma mais específica como as relações de dívida e de parentesco deslocam a circulação de dinheiro e quais são os controles resultantes destas relações. Na fala apresentada, o fato de Luis ser sempre posto como “o certo” da situação vem sempre acompanhado da presença de sua capacidade de distribuir dinheiro tanto para o pagamento de dívidas quanto para prover as necessidades de sua filha, essa capacidade também parece ser decisiva durante o debate sendo ela o fundamento do argumento para que sua sogra não tivesse arcabouço moral de revidar contra a agressão sofrida. Em ambos os casos a formação de jogos de força desloca-se de diferentes maneiras, formando representando assim modos diversos de viver a cidade, se nos apontamentos iniciais da história de Júlio vemos que o nascimento da filha o conduz a um circuito que ele considera de menor risco para assim conseguir prover seu sustento – mesmo que a prática para essa providência seja a primeira vista a mesma dos seus tempos de “vida louca” - por outro lado vemos na cena descrita por Luis que a relação intrínseca entre crime e parentesco produz outras formas de encarar a prática de sustento da família, além de outras formas de lidar com instâncias de poder e controle. Luis e Júlio são dois personagens recorrentes do fenômeno de urbanização: adolescentes periféricos, com pouco escolaridade e com suas rendas atreladas a derivas entre tramas do legal e do ilegal, eles produzem e são produzidos pelo jogo que força que compõe a cidade contemporânea. Ao acompanhar etnograficamente suas histórias, pretendo descrever como funcionam este jogo a partir de suas perspectivas para assim ser possível a tentativa de um empreendimento crítico das formas de controle que se produzem nas interfaces entre moral e circulação da vida urbana.

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