O VERSO E O PROTESTO: AS PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE ESCRITORAS CONTEMPORÂNEAS COMO REINVIDICAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS

O VERSO E O PROTESTO: AS PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE ESCRITORAS CONTEMPORÂNEAS COMO REINVIDICAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA.

Graduanda: Juliana Cristina Costa Orientadora: Prof.ª Drª. Maria Carmen Aires Gomes

Artigo científico apresentado ao Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras - Português/Literatura.

VIÇOSA MINAS GERAIS – BRASIL JULHO/2015

AGRADECIMENTOS À Maria Creusa Zacarias À minha irmã Júlia Cristina Costa. À minha família e a minha mãe Renilda dos Santos A minha orientadora de TCC, Maria Carmen Aires Gomes. À Bruno Dias, meu amigo debochado. Aos amigos: Tim Lucas, Carlos Saci, Antônio Toninho, e outros que foram receptivos no início de minha graduação. À Edson Carlos e Rosi Ferreira, força para nós. Aos queridos Márcio Delfino, Eliana Ramiro e Johnnatas Rodrigues, pela convivência e sorrisos. À professora Cristiane Cataldi, pela ética e leitura do ser ensinados no início da graduação. Ao colegiado do Departamento de Letras, pelos momentos de convivência e aprendizagem. Ao professor Adélcio de Sousa Cruz pela lapidação feita dos meus pensamentos. À Francy Silva, Miriam Alves, Sarah Ohmer, pelo exemplo e pelo axé. Ao NEAB Viçosa, Cursinho Popular de Paula Cândido, Gestão Bakhtinando pela formação profissional. Ao Conselho Comunitário da UFV (Edélcio, Cleves, Elita, Helen, Renato, Ludmila, Marcelo) pelos momentos de aprendizagem em conjunto. À Silvia Franceschini e a Viviani Lírio, pelo carinho, pela força que passam sem dizer uma palavra. Às queridas amizades Patrícia Duarte, Adriana Silva, Adriana Gonçalves, Joseli Ramos, Grazi Fernandes, Josiane Caroline e Daiane Basílio.

Enfim, à todas as pessoas, sem distinção, que tive o prazer de conversar e conviver durante esta graduação. Muito obrigada!

O VERSO E O PROTESTO: AS PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE ESCRITORAS CONTEMPORÂNEAS COMO REINVIDICAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA. Juliana Cristina Costa – UFV

RESUMO: O objetivo desse artigo é analisar poemas de quatro escritoras brasileiras contemporâneas: Alice Ruiz, Cristiane Sobral, Miriam Alves e Zulmira Ribeiro Tavares, para observar como ocorre a representação linguístico-discursiva do “protesto”, aqui compreendido como um ato de denúncia e reinvindicação, ideologicamente orientado. Nesse sentido, busca-se identificar as marcas linguísticas que possibilitam a identificação do ato de protesto nos textos das autoras em estudo. Para tanto, foram usadas discussões e reflexões de pesquisas desenvolvidas nos âmbitos da Literatura e dos estudos discursivos, no intuito de enriquecer o debate sobre os textos literários, a fim de reconhecer as suas funções na vida social para além do entretenimento e fruição.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso Constituinte, Poesia contemporânea, Literatura Negra; Literatura Brasileira,.

ABSTRACT: This article aims to analyze four contemporary Brazilian authors’ poems: Alice Ruiz, Cristiane Sobral, Miriam Alves and Zulmira Ribeiro Tavares, in order to observe how the discursive-linguistic of “protest” happens, in here understood as an act of denunciation and claim, ideologically guided. In this way, I seek to identify the linguistic marks that make possible the identification of acts of protest in the authors’ texts studied. For that, I will use theoretical supports focused in the literary field and also in the study of Discourse Analysis, with the objective of enriching the approach related to literary texts, in order to recognize its functions in social life beyond the entertainment and fruition.

KEYWORDS: Discurso Constituinte; contemporary poetry, Black Literature, Brazilian Literature.

1- Contextualização Mesmo que voltem as costas Às minhas palavras de fogo Não pararei de gritar Não pararei Não pararei de gritar Senhores Eu fui enviado ao mundo Para protestar Mentiras ouropéis nada Nada me fará calar Carlos de Assumpção (1982)

A poesia é vista comumente como a parte da literatura que lida apenas com a questão ontológica do ser humano e visa apenas a linguagem por si mesma, dissociando-se de um viés sóciopolítico da realidade. No âmbito literário brasileiro, a poesia se realiza em diferentes usos discursivos, de um estado de “sentimentalismo e existencialismo” a um estado de se pensar a sociedade e seus valores, de maneira mais crítica e reflexiva. Desse modo, pela historiografia literária, pode-se observar que, em certos momentos estéticos, vários poetas ousaram questionar o status quo, e produziram textos literários com um tom de protesto, permitindo uma reflexão sobre a sociedade, como, por exemplo, Gregório de Matos, Castro Alves, Solano Trindade, Auta de Souza, Pagu, Luiz Gama, Cruz e Souza, entre tantos outros. O poema “Protesto”, que é utilizado como epígrafe dessa seção, de Carlos Assumpção, poeta paulista de grande importância no âmbito da poesia negra brasileira, é exemplo de texto literário que carrega em si um tom de denúncia e indignação. Nesse poema, o ato de “protesto” apresenta uma força literária e discursiva enorme, contextualizando o leitor acerca das problemáticas dos indivíduos, principalmente aqueles que são (e se sentem) excluídos, como por exemplo, os negros, na sociedade brasileira, além de representar a sua disposição em resistir a todas as dificuldades e opressões. Nesse sentido, podemos afirmar que, embora a poesia seja um gênero literário utilizado, na maioria das vezes, para a fruição, em muitos casos, tal qual no poema “Protesto”, ela se mostra a serviço de reivindicações sociopolíticas, levando-nos a fazer uma reflexão crítica da sociedade.

Nessa esteira de se pensar a prática literária como uma forma de agir e interagir discursivamente na vida social, esse estudo objetiva a partir da análise de poemas produzidos pelas escritoras brasileiras contemporâneas Zulmira Ribeiro Tavares, Miriam Alves, Cristiane Sobral e Alice Ruiz compreender como se constrói a representação literária e discursiva do protesto, considerando a escrita realizada tanto por mulheres brancas quanto por mulheres negras como o ponto de partida da prática da resistência, não só em relação às hegemonias de gênero, mas principalmente à questão étnico-racial. O corpus da análise é constituído de seis poemas, sendo destes quatro da autoria de Alice Ruiz, e um de cada uma das outras escritoras acima referidas. Tais produções literárias se encaixam em um período conhecido pela crítica literária como pós-modernismo; fenômeno, segundo Linda Hutcheon (1991), de teor contraditório. Dessa forma, estamos partindo do princípio de que a poesia de protesto é caracterizadora também do pós-moderno, ou seja, das teorias pós-críticas, pois apresenta questões que envolvem as relações de saber-poder, identidade e diferença, gênero, sexualidade, raça e etnia. Para a maioria dos críticos literários, a literatura é definida como o uso especial da linguagem, atravessada por ideologias, consistindo assim em um campo simbólico de difusão de ideias. Embora, alguns ainda insistam na neutralidade ideológica e social da literatura (os estudiosos de vertente formalista), com os estudos discursivos se descobriu que, através das condições de produção, da construção da subjetividade e das escolhas linguístico-textuais e discursivas, investimentos ideológicos se manifestam em graus variados nas mais variadas práticas sociais. Em dada época da história literária, a literatura, campo textual e simbólico, foi palco exclusivamente dos investimentos ideológicos de um grupo hegemônico, que, a partir de várias obras, foi construindo o imaginário brasileiro. Neste contexto iremos considerar, no presente trabalho, a literatura como uma prática sociodiscursiva interligada às relações de tempo-espaço, como já considerava Bakhtin ao propor o conceito de cronotopo para refletir sobre a construção polifônica e enunciativa do romance. Resende e Ramalho (2006, p.26), resgatando os estudos dialógicos bakhtinianos, afirmam que o discurso é “um elemento da vida social interconectado dialeticamente a outros elementos”. É neste sentido que estamos compreendendo a constituição das práticas literárias. Para Maingueneau (2006), a literatura é um campo discursivo. Para o teórico francês, o discurso literário é um tipo de discurso constituinte, pois são “discursos que conferem sentido aos atos da coletividade”. Nesse

sentido, a poesia contemporânea apresenta-se discursivamente multifacetada, já que é um espaço em que indivíduos ou grupos, anteriormente invisibilizados, buscam romper com o caráter homogeneizante da manifestação poética: representação da vida social de maneira estigmatizada. No entanto, embora saiba-se quão fortes são as tradições e as construções discursivas hegemônicas, no âmbito literário, há, assim como em outros campos sociais, movimentos de resistências, aos quais denominam de contraliteraturas. Segundo Mouralis (1982, p.43), caracterizam-se como “qualquer texto que não seja entendido e transmitido – num determinado momento da história como pertencente à literatura”. Nesse contexto, as contraliteraturas exercem o papel de questionar e de trazer para o âmbito literário outras perspectivas. No Brasil, a partir de 1900, e com maior ênfase na semana de 22, marco do modernismo brasileiro, inicia-se na literatura brasileira um grande momento de rompimento com a tradição literária, subvertendo o território literário de forma a tentar tornar a arte representativamente brasileira. Esse movimento, inicialmente, foi considerado uma “contraliteratura”, no entanto, a proposta dos modernistas de 22 pode ser considerada antes uma reivindicação estética do espaço literário, do que uma reivindicação social. Como exemplo de manifestação literária brasileira que subverte o território literário não apenas no sentido estético, mas, sobretudo, nas temáticas apresentadas, podemos destacar o movimento que chamamos de “literatura negra”, que tem como precursora a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917). Em 1859, Maria Firmina dos Reis publicou o romance Úrsula, uma narrativa transgressora para o período em que a autora dá voz a mulheres e escravos, indivíduos historicamente marginalizados. Úrsula é considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil, a primeira narrativa ficcional publicada por uma mulher em território brasileiro e a primeira obra da literatura negra brasileira. Ao lado de Maria Firmina dos Reis, como um dos precursores da literatura negra, temos o escritor baiano Luiz Gama (1830-1882), um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil, jornalista e escritor que se destacou por publicar textos jornalísticos e poéticos em que protestava de maneira veemente contra o sistema escravocrata, o racismo e a exclusão sofrida pelos negros na sociedade brasileira. A partir da década de 1970, com o surgimento da antologia literária Cadernos Negros (CNs), produzida pelo grupo Quilombhoje, a literatura negra começa a ganhar mais destaque e divulgação. Dessa forma, ao sentirem dificuldade de encontrarem editoras que

se interessassem em publicar suas obras, vários (a) escritores (as) negros (as) se uniram e publicaram os seus textos de maneira independente, originando assim a primeira publicação dos Cadernos Negros, em 1978. O grupo de escritores e escritoras interessados em participar da publicação foi crescendo, e os Cadernos Negros começaram a ser uma referência para estudiosos da literatura afro-brasileira. Desde 1978, é lançada uma edição anual dessa coletânea, alternando entre publicações de poemas e contos. No ano de 2014, foi lançado os Cadernos Negros, de número 37. Desse modo, como parte da literatura brasileira, a literatura negra promove a inserção, no campo simbólico literário, da perspectiva do indivíduo negro, que ora busca denunciar as opressões sociais às quais é submetido, ora busca legitimar os aspectos culturais afro-brasileiros. Cuti, poeta negro e um dos fundadores do CNs, no Cadernos Negros 37, expõe o seu conceito do que seja esse tipo de poesia: “A poesia, mar de harmonia, viaja-me em ondas de sonho para melhorar o mundo” (2014,p.55). Nessa conceituação, podemos observar o olhar sobre a poesia como um gênero que pode promover mudanças sociais emancipatórias. Ainda nos Cadernos Negros 37, a poeta Esmeralda Ribeiro elabora pela perspectiva feminina seu conceito: “A musicalidade da minha poesia dedilha os acordes da melodia da feminilidade negra. ” A autora busca expressar a forma pela qual a poesia se relaciona com a temática da mulher negra. Zilá Bernd (1987, p.22) informa-nos que “o discurso afrodescendente busca a "ruptura com os contratos de fala e escrita ditados pelo mundo branco", objetivando a configuração de "uma nova ordem simbólica" que expresse a “reversão de valores”. É à luz da perspectiva do indivíduo que se vai constituindo a literatura negra brasileira ou afro-brasileira. É neste sentido que acreditamos que a poesia negra possa ter como principal característica o ato de protesto, já que à luz do indivíduo busca trazer resultados à coletividade de forma a influenciar outros discursos que circulam na sociedade, como o político e o educacional. O dicionário Houaiss da língua portuguesa (2007, p.2318) traz a seguinte definição para o termo protesto: “grito, brado de repulsa ou não concordância com relação a algo” e também como uma “declaração do desacordo”. Assim, neste trabalho, tenta-se

compreender, a partir da amostra discursiva já

comentada, a construção genérica e discursiva do que denomino de poesia de protesto, ou seja, aquela forma de agir e interagir discursivamente em que os sujeitos tem como principal propósito comunicativo resistir, por meio do grito de dor, do brado, às relações

assimétricas de poder, às tradições excludentes e aos discursos hegemônicos que oprimem, submetem e excluem. Na primeira seção será apresentada, a partir de arcabouços teóricos específicos, a relação entre sociedade e literatura, enfatizando a relação da prática discursiva literária, poesia e sociedade. Na seção 1.1, será exposto o que consiste a escrita produzida por mulheres e as diferenças entre expressões literárias de mulheres negras. Na seção 2 será iniciada a análise

de um poema de cada autora, sendo que, na seção 2.1, serão

apresentadas as análises dos poemas de Cristiane Sobral e de Miriam Alves, demonstrando como se desenvolvem nas escritas das respectivas escritoras as construções de protesto. Já na seção 2.2, serão analisados não só um poema de Zulmira Ribeiro Tavares mas também como se constituem os poemas minimalistas, de Alice Ruiz. Enfim, na seção 3 apresentarei as considerações acerca das relações do protesto e a escrita realizada por mulheres, evidenciando quais são as características, os gritos e as dores que movem as quatro escritoras em questão.

1.1. As faces da poesia: Sociedade e Literatura O poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido Carolina Maria de Jesus (1983, p. 38)

A poesia pode ser vista como uma prática discursiva (processo de produção e consumo de texto), que se constitui como parte da prática social.

Enquanto gênero

literário, podemos observá-la como modalidade do discurso literário, conceituado por Maingueneau (2006, p. 61) como um discurso constituinte, caracterizado como aquele que é capaz de conferir “sentido aos atos da coletividade. Para Fairclough (2001), a literatura seria considerada um tipo de Ordem do Discurso, pois tem convenções, formações discursivas e ideológicas próprias que a permitem construir o conhecimento (saber) sobre a vida social, cultural e política, por meio de práticas sociodiscursivas próprias. Então, nesta orientação epistemológica discursiva-crítica, a poesia é um tipo de prática literária, que se realiza por meio de gêneros discursivos situados, como, por exemplo, a poesia de protesto, que são formas de agir e interagir por meio de propósitos comunicativos específicos: lutar, resistir, gritar e que também

tem características estilísticas, textuais e linguísticas bem

singulares, o que a faz diferir de outros tipos de poesia, como, por exemplo, a poesia lírica e a poesia épica. O termo poesia designa geralmente o conteúdo lírico de uma estrutura denominada poema, estrutura textual, que, através de características específicas, configura o gênero. Normalmente, há uma confusão em relação ao emprego dos termos poesia e poema, sendo que o primeiro é utilizado para se referir ao segundo. Partimos da premissa de que a poesia é o discurso presente na estrutura poema. Nuno Júdice (2009, p.155)

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informa que: A poesia é uma forma construída a partir da deslocação – passagem de um objecto a outro, de uma imagem a outra, de uma ideia a outra. É por isso no poema que a linguagem encontra a sua realização mais completa no jogo de pensamento que é o exercício analógico. O que é característico deste raciocínio é a leitura “prospectiva”, em que o significado é diferido para além da palavra literal – saber que a imagem dita no poema é a que está para além do que é expresso; e isso conduz a essa leitura diferida que é simultânea com a leitura actual, ou seja, o poema contém em si o mesmo e o outro da imagem.

Como apresenta o teórico português, a poesia consiste em um plano das ideias que perpassa ou consolida a estrutura linguística poema, é o plano ideológico. Edward Lopes (1999) considera a literatura como uma produção ideológica, assim como outros teóricos anteriores a ele como, por exemplo, Bakhtin, para quem

o uso da linguagem é sócio

historicamente construída. No entanto, a poesia é considerada, na perspectiva formalista, como um espaço de neutralidade ideológica, ou seja, não é capaz de reproduzir valores e/ou ideologias provenientes dos indivíduos ou grupos. Diferentemente da perspectiva sociológica e de outras vertentes de estudos que dela se utilizam e direcionam um olhar para as condições extraverbais de produção do texto literário, como é caso dos Estudos Culturais. Regina Dalcastagnè, em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012, p.18), esboça como as “barreiras simbólicas determinam o lugar de cada um” , o que permite refletir sobre as questões políticas e sociais que circundam o fazer literário. O território literário na contemporaneidade é repleto de vozes que buscam a oportunidade de trazer para o espaço literário e social perspectivas e reflexões que tratam do seu cotidiano e das relações sociais que os inferiorizam enquanto sujeitos e de inscrevê-las no domínio dos

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ABRIL- Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, Novembro de 2009.

sistemas simbólicos, definido por Bourdieu (2001)2 como “instrumentos de conhecimento e comunicação” (p.90), constituindo assim um ato de protesto e resistência. Esses instrumentos por muito tempo na história humana foram (e ainda continuam sendo) relegados a um grupo dominante. Observemos a fala de Dalcastagnè sobre isso: Quando entendemos a literatura como uma forma de representação, espaço onde os interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam, não podemos deixar indagar quem é, afinal, esse outro, que posição lhe é reservada na sociedade, e o que seu silêncio esconde. Por isso, cada vez os estudos literários (e o próprio fazer literário) se preocupam com o problema do acesso à voz e à representação dos múltiplos grupos sociais (DALCASTAGNÈ, 2012, p.17)

A pesquisadora chama a atenção para o lugar de fala do autor, que é também um lugar social, em que a fala poética emerge e faz transparecer interesses e perspectivas sociais, que podem estar relacionadas com a questão sociopolítica como, por exemplo, a permanência de uma ordem hegemônica e seus valores culturais. Nesse sentido, ao pensar a literatura como uma ferramenta sociopolítica, o grande teórico Antônio Cândido, no ensaio “Literatura e sociedade”, a partir de arcabouços teóricos da sociologia moderna, debate a questão da arte, ressaltando a sua função social. Segundo Cândido: O poeta e escritor transformam tudo que passa por eles, combinando a realidade que absorvem com a própria percepção, devolvendo assim ao mundo uma interpretação própria e subjetiva, longe de ser um mero espelho refletor. Assim, deve-se pensar a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte, assim como a influência que a própria obra exerce sobre o meio. A arte pode então, ser uma expressão da sociedade, não deixando de se considerar o teor de seu aspecto social, ou seja, o quanto ela está interessada nos problemas sociais. A partir do século XVIII, a literatura passa a ser também um produto social, já que expressa condições de cada civilização em que se forma. (CÂNDIDO, 2006, p.30).

De acordo com o fragmento em destaque, ainda que alguns escritores reneguem essa ligação, se torna impossível separar arte da sociedade. Em alguma medida, as produções artísticas são influenciadas pelo meio no qual são produzidas, assim como estas influenciam o meio. Desse modo, mesmo que, de maneira inconsciente, ao entrarem em contato com uma obra de arte, os indivíduos, em maior ou menor grau, poderão sofrer um efeito prático de mudança de conduta e concepção de mundo. No entanto, mesmo afirmando uma relação da arte com o seu contexto de produção e também com o indivíduo, 2

BOURDIEU, Pierre. Poder, Derecho y Classes Sociales.2.ed. trad. Mª José Bernuz Bencitez e cia. Desclée de Brower, Bilbao: 2001

Cândido considera que a natureza da obra artística é social, uma representação estética da sociedade sem a possibilidade, no entanto, de o discurso promover mudanças sociais. Tal qual Antônio Cândido, Alfredo Bosi, outro importante crítico literário brasileiro, destaca essa relação entre arte e sociedade, sobretudo a relação entre literatura e sociedade. Para Bosi, “o poeta é o doador de sentido” (1977, p.141), isto é, ele pode ser difusor de ideologias através do ato de escrita. Ainda, de acordo com Bosi,

Diante da pseudototalidade forjada pela ideologia, a poesia deverá "ser feita por todos, não por um". [...] . Este "ser feita por todos" não pôde realizar-se materialmente, na forma da criação grupal, já que as relações sociais não são comunitárias; mas acabou fazendo-se, de algum modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. [...] Uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes (BOSI, 1977, p.144).

No excerto acima, podemos observar que Bosi considera o fazer literário como um meio de alcançar de fato uma totalidade de representações e de vozes. Nesse sentido, a literatura funcionaria também como uma arma alegórica que “atira” contra os discursos hegemônicos e excludentes. Nessa luta contra o status quo, torna-se necessária a participação de autores e leitores, um complementando e refletindo sobre o trabalho do outro. Dessa forma, para que o “tiro” seja realmente certeiro, é necessário que ambos estejam juntos no campo de batalha. Além disso, a reflexão permite que os indivíduos participem da construção do campo simbólico da literatura. Em consonância com as ideias de Dalcastagnè, Cândido e Bosi, podemos afirmar que a literatura é considerada como um espaço social em que ecoam várias vozes. A partir do momento em que essas diferentes vozes buscam o seu espaço de fala, os distintos valores entram em choque. Nesse sentido, as vozes, que foram historicamente silenciadas, ao conseguirem um espaço de fala, denunciam a ordem hegemônica que busca, na interiorização de suas ideologias, legitimar-se como única possibilidade. A maioria de nossos escritores reconhecidos se enquadra em um perfil social que faz com tenhamos em nossa mente um ethos 3 de como seria um escritor ou escritora, como, por exemplo, os que apresentam as seguintes características: classe média ou a elite, com curso superior, domínio da norma linguística padrão, entre outros.

3

O Ethos discursivo é a imagem construída por meio do discurso, é a representação ou percepção acerca do outro. Maingueneau (2006, p.70) considera que “o investimento de um ethos dá ao discurso uma voz que ativa o imaginário estereotípico de um corpo de enunciante socialmente avaliado. ”

Sobre a natureza da relação estrutura social e ação, Giddens (1990 apud IÑIGUEZ (2004)) nos afirma que: O discurso afeta as estruturas sociais, e ao mesmo tempo está determinado por elas. Por conseguinte, o discurso contribui tanto para a manutenção como para mudança social. (p.150)

Podemos compreender então que as práticas literárias de protesto, por exemplo, podem afetar e tentar transformar os discursos hegemônicos das estruturas sociais, mas também as práticas literárias mais conservadoras e tradicionais podem manter as hegemonias como estão, como se colocam para a vida social. Maingueneau (2006), em perspectiva teórica diferente da nossa, alinha-se a tais ideias ao afirmar que a literatura é um discurso constituinte, um espaço que delimita um território “correlato de uma identidade discursiva, aquele no qual se instalam os diversos posicionamentos concorrentes” (2006, p.68). Ou seja, em um mesmo espaço tem-se posicionamentos discursivos distintos que se conflitam. Podemos até dizer que dentro de uma mesma hegemonia temos vozes dissonantes.

1.2. Escrita Feminina: Mais que um teto todo seu, uma escrita toda delas Como já falamos nas seções anteriores, buscamos, com esse trabalho, analisar poemas das escritoras Miriam Alves, Cristiane Sobral, ambas negras, e das escritoras Zulmira Ribeiro Tavares e Alice Ruiz, brancas. Essas escritoras, provenientes de diferentes contextos sociais, apresentam uma produção literária de boa qualidade, no entanto, suas trajetórias no espaço literário são bem distintas, assim como o reconhecimento concedido a cada uma delas. As temáticas apresentadas por essas escritoras em suas produções também apresentam diferenças, como, por exemplo, a tematização da dor. Sendo um tema muitas vezes ignorado por escritoras não-negras, a representação da dor aparece com recorrência em textos ficcionais ou poéticos das escritoras afrodescendentes. Constância Lima Duarte (2009), uma das maiores estudiosas das produções literárias de mulheres no Brasil, em um dos seus estudos, argumenta sobre essa questão. Para a estudiosa, ao falarem sobre esse

assunto em seus textos, essas escritoras trazem o testemunho de suas vivências para o campo da criação estética verbal. Todavia, cabe ressaltar que cada escritora, independente da etnia a que pertence, consolida em sua escrita estilos próprios do gênero literário ou específicos de seu modo de escrever. A teórica feminista francesa, Beauvoir (1970) afirma que:

O homem define a mulher em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem. Ela não é senão o que homem decide que seja; daí dizer ‘sexo’ para dizer que ela se apresenta diante do macho como ser sexuado: para ele fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não em relação a ela, a fêmea é o essencial perante o essencial. (BEAUVOIR, 1970, p.10)

Neste excerto, Beauvoir fornece sua análise acerca das relações de gênero nas sociedades patriarcais, chamando a nossa atenção para o fato de que a existência da mulher está (e é) associada a do homem, porém, confirma Beauvoir, o inverso não ocorre. As escritoras são, no âmbito literário, menos reconhecidas que os escritores e isso pode ser facilmente identificado pelo número de produções de mulheres que encontramos nas livrarias, números muito inferiores às obras produzidas por homens, e também pela quantidade de obras literárias escritas por mulheres estudadas que são nas escolas e universidades. Sabemos que às mulheres, em uma atmosfera social de ideologia andocêntrica e patriarcal, foram incumbidas algumas funções sociais. Das funções que lhes foram encarregadas, excluiu-se, por muito tempo, a possibilidade de sua formação e desenvolvimento no âmbito literário. bell hooks, respeitada pesquisadora afro-americana que escolheu grafar o seu nome em letras minúsculas, pois acredita que mais importante que o seu nome são as suas ideias, aponta que “dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir a sua vida da mente” (HOOKS, 1995, p.468). Como afirmou bell hooks (1995), para que as mulheres consigam chegar a obter reconhecimento de sua produção intelectual em um espaço dominado por homens, como o espaço da literatura, o processo é longo e desgastante. Todavia, mesmo que todas as mulheres tenham dificuldades de ascenderem nesses espaços de poder, para as mulheres

negras, esse percurso é ainda mais difícil, pois enquanto as mulheres brancas sofrem opressão de gênero, por exemplo, as negras, em sua maioria, sofrem opressão tripla, sendo discriminadas por serem mulheres, negras e pertencentes, geralmente, às classes sociais menos favorecidas. De acordo com Silva (2014, p.35) É fato de que muitas mulheres negras lutaram com as mulheres brancas pelos direitos em comum aos dois grupos. Todavia o feminismo praticado por umas, na maioria das vezes, não contemplou as necessidades das demais. Quando estas feministas brancas e de classe média exigiam o direito de trabalhar, muito antes disso, as mulheres brancas e pobres e, principalmente as mulheres negras, já trabalhavam para sustentar a família, que, em sua maioria esmagadora pertenciam às classes inferiores.

Quando em um sujeito convergem mais de uma “seccionalidade social”, sabemos que muitas serão as lutas pela legitimação de sua identidade. Em nossa sociedade, a questão racial sobrepõe-se às outras questões, classe e sexo. Esse fato se confirma a partir de estudos censitários do IPEA e IBGE, que, anualmente, estabelecem o mapeamento da desigualdade na esfera social brasileira através de levantamentos acerca da presença de mulheres, negros ou outras seccionalidades nos espaços sociais, como, por exemplo, o acesso ao curso superior e à igualdade de remuneração trabalhista. No que tange à desigualdade de gênero, o que ocorre no meio social tem consequências, também, no âmbito literário. As escritoras existem e são reconhecidas de maneira desigual em relação aos homens. Observemos o excerto do livro Um teto todo seu (1929), de Virgínia Woolf, que mesmo depois de tantos anos, ainda se mostra bastante atual: A mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção. (WOOLF, 1929, p.8).

Em consonância com o trecho em destaque, é mister a necessidade de se criar condições no âmbito sóciopolítico para a escrita produzida por mulheres no campo do trabalho estético. É imprescindível a elas a igualdade de

condições para que possam

dedicar-se à produção literária. Sabemos, porém, para serem inseridas nesse espaço e ganhar visibilidade, há que se enfrentar um mercado editorial concorrido e problemático. Nesse território, mesmo nos dias de hoje, as mulheres ainda são minorias, sobretudo, as mulheres negras.

É notório que cada mulher que exerce a produção literária trará em sua escrita marcas de reinvindicações específicas. Na amostra discursiva deste trabalho, irei considerar as especificidades de cada escritora enquanto indivíduos sociais que tem perspectivas sociais díspares sobre as relações socioculturais; e também a forma pela qual juntas constroem um universo da manifestação feminina na literatura brasileira contemporânea.

2- Análise literária 2.1. Miriam Alves e Cristiane Sobral: o arché da escrita feminina negra Miriam Alves é poeta, dramaturga e prosadora paulista. O marco inicial de sua trajetória é a publicação de alguns de seus poemas e contos na série Cadernos Negros, de 1982, no volume cinco, até 2011, no volume 34. O seu

primeiro livro surge em 1983,

intitulado Momento de Busca feito de maneira artesanal com parceria da irmã Vera Alves e pelos escritores Márcio Barbosa e Oswaldo de Camargo. Em seguida publica o livro Estrelas nos Dedos, poemas, em 1985; Terramara, peça teatral, em 1988, em coautoria com Arnaldo Xavier, e Cuti (Luiz Silva); Brasilafro autorrevelado, ensaios, em 2010; Mulher Mat (r) iz, em 2011, contos. O poema escolhido para a análise nesse estudo é “Pés atados corpo alado” que integra o livro Momentos de Busca (1983). O referido poema chama atenção pela força poética, composto por seis estrofes, apresenta reflexões acerca do ser humano e das sensações e angústia que a vida social provoca nele. Na primeira e segunda estrofes, nos deparamos com a repetição da modalidade de negação “Não”, sugerindo a veemência da negação do sujeito lírico em relação ao que lhe prende, um prender simbólico que vai repercutindo-se fisicamente:

Não... Não... Não Mãos atadas Pés acorrentados Sinto todas as vontades Todas Humanas Desumanas Morais Iguais Desiguais Adversas ou não. (ALVES, 1983, p.17)

Nesta primeira estrofe, o sujeito lírico demonstra a contradição de suas vontades, que é própria do ser humano, porém encontra-se preso, “mãos e pés”, “atadas e acorrentados”, estas condições são metáforas da impossibilidade do agir e de poder seguir outros caminhos. Talvez seja uma representação literária dos efeitos da violência simbólica a que o indivíduo sofre no viver em sociedade. Embora Bourdieu (1999) afirme que o agente desta violência é um “ poder não nomeado”, concordo com o que diz Constância Duarte (2009) em Gênero e violência na literatura afro-brasileira: é possível nomear este poder em suas diversas formas de manifestação, como

racismo, machismo, ou qualquer

outra opressão. É o poder que age socialmente, mas que é omitido pelos seus agentes como forma de impedir o questionamento acerca do que ele é e de como foi consolidado. Um poder tão bem estruturado em suas ações que consegue fazer com que a vítima seja vista como aquela que se permite ser vitimada, uma lógica naturalizada, que esconde as forças do controle social hegemônico. Na segunda estrofe do referido poema, podemos observar o uso da primeira pessoa, que possibilita ao texto um teor mais humanístico e intimista, pois nos permite compreender que o sujeito lírico manifesta-se como indivíduo, a partir das sensações que lhe são provocadas pela sociedade:

Não, Não Não posso agir Pés atados Correr? Não, Não Não é permitido (ALVES, 1983, p.17)

A impossibilidade da ação, a metonímia dos “pés atados”, e a indagação do sujeito acerca do que se pode realizar, faz com que pensemos sobre as barreiras que são apresentadas ao indivíduo na vida cotidiana. Negação das liberdades (credo, expressão, locomoção, etc.). A ideia de movimento e deslocamento própria do ato de agir é recorrentemente negada. Observe ainda que a estrutura do poema é dialogada, como se o sujeito estivesse refletindo e conversando com ele mesmo, mas uma reflexão com tom de protesto, de indignação pela impossibilidade de agir, de ser agente de sua própria vida.

A metáfora da negação da liberdade, do impedimento de ser e agir na vida social, é recorrente, como se observa na estrofe abaixo: Mãos algemadas Gesticular Acariciar Fazer gestos obscenos? Não posso Não podem Estão presas Estou preso [...] (ALVES,1983, p.17)

As informações “pés atados” e “mãos algemadas” parecem construir no poema uma naturalização causal dos pés e mãos por meio das construções adjetivas: atados e algemados. Digo naturalização causal, pois os pés não ESTÃO atados, ou as mãos ESTÃO algemadas, gerando um tipo de atribuição circunstancial, mas as construções atributivas transformam uma condição local num estado permanente, numa propriedade, reforçada ainda pelo uso das reticências em: “estou preso (...)”. O campo semântico da prisão é reforçado pelos itens lexicais: atados, algemados, presas, não permitido. Percebe-se que às mãos são negadas desde o ato mais humano (gesticular) e afetuoso que é a carícia até a obscenidade. Além disso, não são atribuídas as responsabilidades aquele ou àquela que prendeu, algemou ou que proibiu, ou não permitiu; essa omissão do agente parece construir uma evidência em si mesmo, de que é a sociedade quem está algemando e prendendo, ou seja, as ações hegemônicas cristalizadas e naturalizadas. No entanto, tanto na primeira estrofe quanto na segunda, a negação é representada pelas condições físicas, diferentemente da estrofe abaixo: Posso pensar? Posso pensar! Deixaram livre Minha cabeça Minha mente

Estou solto Estou livre (ALVES,1983, p.18)

O questionamento “posso pensar? ” sugere-nos uma reação espantosa já que um On4 imputava a ele um estado inerente de prisão, de negação e impedimento físico de agir. Essa reação é seguida de uma construção exclamativa de certeza/convicção de que pode, sim, pensar, agir mentalmente embora ainda esteja fisicamente impedido. A oração “Deixaram livre/ minha cabeça/ minha mente” demonstra que o sujeito responsável pela opressão do sujeito lírico é indeterminado. Talvez a escolha estilística da autora pela indeterminação tenha uma motivação político-ideológica: opta-se por não nomear quem oprime socialmente, pelo fato de ser complexa a questão social do opressor e de sua relação com o oprimido e o ato de oprimir alguém. No decorrer do poema percebe-se o fluxo da liberdade, isto é, a tomada de consciência do sujeito e de sua posição social e a possibilidade de pensar e refletir sem as amarras da vida social. Percebe-se, através das constantes negações do sujeito lírico, o questionamento da própria situação, e sabemos que, para cada negação, há uma possibilidade contrária, um discurso contrário. É, na quarta estrofe, que o fluxo de liberdade é mais claramente expressado, como um “sair do próprio corpo”, um rompimento com as questões físicas que aprisionam os movimentos, por meio das construções metafóricas “estou alado/pássaro alado/humano alado”, “poderosas asas”. O sujeito aprisionado, inerte, torna-se agente de suas próprias experiências com metas e objetivos bem reativos e positivos: saem do meu corpo; batem vigorosas; alçam voo, rompem barreiras. Estou alado Poderosas asas Saem do meu corpo. Batem vigorosas Alçam voo Rompem barreiras “É um enunciador genérico, representante da sabedoria popular, da opinião pública. Trata-se de “enunciações-eco” de um número ilimitado de enunciações anteriores, avalizadas por esse enunciador genérico [...]” KOCH, I.V; BENTES, A.C; CAVALCANTE, M.M. Intertextualidade. Diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. p.33. 4

Saio vagando Voando Pássaro alado Humano alado Poderosas asas Flutuando no prazer Solto livre Moral, amoral Igual desigual Humano desumano Sem inquérito Fichas e muros Sem registro de nascimento Estatísticas Números, castrando a vida (ALVES, 1983, p.18)

A partir do uso de vocábulos de ideias contrárias como moral/amoral e igual/desigual, podemos considerar expressa no poema a questão do paradoxo existente na sociedade. A liberdade do sujeito o possibilita romper com a realidade social. Os termos “Inquérito”, “Fichas”, “muros”, “estatísticas” compõem o ambiente prisional, sugerindo que talvez a liberdade tão almejada e a possibilidade de existir como um ser “humano” não passa de uma ilusão, pois na vida social não passa de uma estatística, números que castram a vida pulsional.

A expressão “sem registro de nascimento” pode expressar o

deslocamento do sujeito diante do viver em sociedade, que desconsidera a sua existência e necessidades. Na penúltima estrofe, encontramos: E a mente livre Continua Voando Conhecendo

Espaços novos Até soltar-se Realmente Verdadeiramente Dos parâmetros Das normas Das regras Das normalidades dos seres normais Sem vida Sem nome (ALVES, 1983, p.19)

Nos versos acima pode-se observar que a liberdade da mente permite uma tomada de consciência dos instrumentos que visam estabelecer um controle social sobre os indivíduos. Ao se libertar mentalmente, o sujeito consegue romper com alguns paradigmas sociais que resultam na alienação. No final desta estrofe, há o questionamento dos valores relativos à normalidade, “das normalidades dos seres anormais”, que pode ser vista como algo que não é próprio do ser humano e sim estipulado socialmente, homogeneizando os sujeitos sociais, fazendo-os ser “Sem vida/ Sem nome”, sem considerá-los a partir de sua diversidade cultural e de sua individualidade. Pelo viés do protesto, o poema apresenta uma crítica aos valores sociais e às prisões impostas por certos paradigmas morais, questiona ainda a ideologia da normalidade e a coloca como instrumento de poder para o controle mental dos sujeitos sociais. Embora diante disso, o sujeito lírico manifesta sua resistência para se tornar um ser pensante, livre. Isso pode ser percebido nas últimas estrofes do poema. Voando rompe barreiras Livrando-se dos muros Das amarras Caindo solta No mundo Na vida

Nesta última estrofe do poema, podemos ver que o sujeito lírico considera que a liberdade do pensamento, diante do conhecer e refletir sobre o mundo e a vida, permite-lhe alcançar a “verdadeira” liberdade. Outra escritora afro-brasileira que traz a temática do protesto em sua poética é Cristiane Sobral. Assim como Miriam Alves, a poeta de Brasília denomina a sua escrita como literatura negra, sem o eufemismo da palavra “afro-brasileira”. Além de poeta, Sobral é atriz e professora; começou a sua carreira com a obra teatral Uma boneca no lixo (1999). Sobral considera o protesto como “uma das manifestações expressivas do tecido literário da escrita negra. ”5 Começaremos a análise do texto de Sobral através do poema “Não vou mais lavar os pratos”, do livro lançado em 2011 e que leva o mesmo nome, observemos:

Não vou mais lavar os pratos Nem vou limpar a poeira dos móveis Sinto muito. Comecei a ler (SOBRAL,2011, p.23)

O sujeito lírico neste poema é feminino. Pelas pistas textuais, podemos observar que há um ato subversivo nestes versos, já que uma mulher decidiu não realizar o que socialmente fora-lhe imposto como uma de suas funções. Como em Miriam Alves, percebemos aqui a liberdade construída por meio da aquisição de conhecimento e de consciência: “comecei a ler”. A leitura surge como uma prática social de empoderamento. Ela se torna agente transformativa de uma ação que parecia ser permanente, uma propriedade: “não vou mais lavar; nem vou limpar”; tais implicações são sugeridas pelo uso da modalidade de negação somada à pressuposição de que sempre fazia aquilo (não vou mais; nem vou). Nos versos abaixo, o ator social (ela) torna-se agente de uma ação transformativa (abri outro dia um livro) que a faz experiencialmente agir cognitiva e reflexivamente tomando decisões. A construção macrosemântica ‘antes e depois’ nos leva a compreender

5

Entrevista concedida por e-mail no dia 25 de maio de 2015.

que a prática de leitura (ou o letramento) a permitiu perceber outros fenômenos: estética dos pratos, a estética dos traços e a ética:

Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi Não levo mais o lixo na lixeira Nem arrumou a bagunça das folhas que caem no quintal Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos, A estética dos traços, a ética (...) (grifo meu) (SOBRAL,2011, p.23)

Pelo víeis da reinvindicação social e da denúncia, no poema são expressos a questão da subalternidade e do acesso aos bens do conhecimento, como livro e possibilidade de leitura do mesmo. Ainda é permitido lembrar uma máxima da teoria gramsciana de que “todos nós somos intelectuais”. Observemos o que Edward Said, em Representações do intelectual, diz acerca do status do intelectual na sociedade citando o filosofo italiano: Gramsci acreditava que os intelectuais orgânicos estão ativamente envolvidos nas sociedades, isto é, eles lutam constantemente para mudar mentalidades e expandir mercados. (SAID, 2005, p.20)

Percebe-se ainda a utilização de termos lexicais de campo científico: Estética, Estática; além da questão do trabalho braçal e intelectual, e a escolha deste último tipo de trabalho para o desenvolvimento humano do sujeito lírico. Depois da aquisição da leitura, uma leitura profunda das coisas, do mundo, reforça a crítica à questão do analfabetismo funcional: “Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler”, e reforça a necessidade de se pensar no letramento social e nas práticas de empoderamento cultural e político por meio de práticas de leitura. Observe que o poema apresenta uma estrutura dialogada, uma conversa “sincera e transparente” entre a atora social (e seus novos anseios e práticas sociais) e o perfil de um interlocutor masculino (talvez, seu companheiro/marido, considerando a relação afetiva

entre homem e mulher) sobre a nova postura dela diante do novo ethos criado: letrada, resolvida, reflexiva e ativa/agente. Ela se constrói em uma relação agora não mais de submissão ou de sujeição, mas de agência, de empoderada. O que irá marcar este novo ethos é novamente a pressuposição “não vou mais” e as orações mentais desiderativas: resolvi ficar; resolvi ler; além das construções modais negativas: “você nem me espere. Você nem me chame. Não vou”. Ah, Esqueci de dizer. Não vou mais Resolvi ficar um tempo comigo Resolvi ler sobre o que se passa conosco Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi Você foi o que passou Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto (SOBRAL,2011, p.24)

O sujeito lírico feminino questiona, assim, sua relação com o companheiro e faz uma análise deste relacionamento: “De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi/ Você foi o que passou/ Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto”. Reforça o ethos da independência, da emancipação, por meio do tom firme e forte e reflexivo, por meio da modalidade “jamais”, sobre as possíveis ações patriarcais e machistas do companheiro: passou do limite, da medida e do alfabeto. As poesias de Miriam Alves e de Cristiane Sobral tem em comum a negação da situação imposta e a busca pelo direito à consciência social, a reflexão interior que o sujeito faz do próprio lugar social e da sua capacidade de ser e estar na sociedade em igualdade de direitos e oportunidades. Arché é o termo grego que se refere a princípio, fonte ou poder, que assemelha-se em termos sonoros e fonéticos ao termo ioruba asè (lerse axé), dois conceitos que permitem-nos compreender na escrita feminina negra a presença de um princípio ou força que visa o direito e/ou revalorização identitárias do sujeito negro. Maingueneau (2006) chama a atenção para a existência de um archeion, um arquivo coletivo, lugar de memória, vinculado a um conjunto de locutores consagrados. O

cânone literário seja um tipo de archeion, conjunto limitado de vozes e de caráter elitizado, onde apenas os indivíduos autorizados podem pertencer. A literatura negra enquanto movimento estético e político se apropria de archeion ancestral, de uma cultura mais oral do que letrada para constituir-se enquanto enunciação. Será que existe este archeion universal, onde todos os indivíduos fornecem a sua contribuição para memória coletiva? Talvez exista, mas seria um archeion fragmentado, já que não estariam nele as memórias dos locutores não-consagrados. O archeion nunca é fechado; ele se consolida a partir de cada manifestação literária que surge na sociedade, talvez pudesse ser um espaço rico em diversidade de perspectivas que harmoniosamente constrói o material simbólico social.

2.2. Zulmira Ribeiro Tavares e Alice Ruiz: a palavra em “estado interessante” Zulmira Ribeiro Tavares é uma escritora paulista, pesquisadora e professora da área de comunicação e artes. Sua obra é predominante construída de prosa; os poemas que irei analisar correspondem a seus únicos textos publicados em material impresso. Estes poemas integram a antologia “26 poetas Hoje” organizado por Heloisa Buarque de Holanda, em 1976. No prefácio da referida antologia, a pesquisadora e organizadora da antologia, Heloisa Buarque de Hollanda (2007), explana que, na literatura contemporânea, há uma “desierarquização” do espaço literário, com a inserção nela de autores de diferentes regiões, cultura ou classe social. No entanto, a antologia apresenta poetas que tem suas residências no Rio de Janeiro ou São Paulo, situação secular de valoração de escritores provenientes destas regiões. São designados como poetas marginais, classificados assim, em função da maneira como escrevem, dissonantes do paradigma clássico literário (uso da norma padrão da língua) e pelo fato de suas poesias terem cunho político, fazendo com que “a poesia se confunda com a vida”, caracterizando-se como um tipo de “poetização do relato” de contestação política. A primeira edição da antologia foi lançada no período histórico correspondente à ditatura militar, em que restrições políticas eram impostas aos intelectuais, poetas e

ativistas. Passemos à análise do poema “UM ESTADO MUITO INTERESSANTE”6 que integra a referida antologia. Conheço o meu país No escuro- pelo tato E se amarram minhas mãos Conheço pelo cheiro E se me tapam o nariz Ainda assim conheço o meu país Pelo que dele sobra a minha volta (TAVARES,2007, p.93)

Nesta estrofe, o sujeito lírico diz ter conhecimento sobre o país em que vive, observa-se também o uso de orações com o sujeito indeterminado, referência, talvez, à própria ordem governamental da ditatura militar. Os verbos sugerem ações violentas por parte desse sujeito que oprime: “amarram” e “tapam”. Nesses versos, o sujeito lírico reforça o conhecimento que tem de seu país, ainda que surjam situações que o impeçam: amarram as mãos, tampam o nariz. O sujeito lírico revela que conhece o país, enfaticamente, não apenas pela “boca, ouvidos e olhos”, metaforicamente usados, talvez, para se referir aquele que diz sem saber exatamente o que acontece; que apenas ouve e não o vivencia e que apenas observa e não vive ou sofre. Observe ainda que usou criticamente nossos três mais importantes sentidos para enfatizar que ele conhece o país porque ele vivencia as dores e angústias cotidianas. Recapitulando a definição dicionarizada do protesto como “grito, brado de repulsa ou não concordância com relação a algo”, podemos compreender o poema em questão como um ato de protesto, apesar de não ser tão marcado linguisticamente, porém perceptivo em seu campo semântico. A ironia é presente no poema e corresponde à estratégia discursiva, que, a partir da ambiguidade dos termos na estrutura linguística do texto, protege o escritor da censura e da coação do governo e da conjuntura histórica,

Utilizamos os títulos dos poemas conforme a maneira que se encontram na antologia 6

porém em seu campo de sentido provoca reflexões ao leitor ciente do contexto social da época ditatorial brasileira. Observemos a estrofe a seguir:

Não conheço o meu país pela boca Não conheço o meu país pelos ouvidos Não conheço o meu país pelos olhos (TAVARES,2007, p.93)

O fragmento em destaque revela que além de demonstrar o conhecimento acerca do país, o sujeito lírico o compara com uma mulher em “estado interessante”: “Um país interessante é como uma mulher em um estado interessante? /Uma mulher em estado interessante sempre acaba em trabalho de parto? ” Essas indagações

estão presentes em

13 estrofes, em um total de 27. O poema é extremamente longo, porém podemos dizer que ele representa os estados brasileiros. O termo “estado” é usado então em suas potencialidades semânticas

podendo ser o estado emocional do sujeito lírico diante das

questões que o envolvem, a realidade que vive ou no sentido de espaço territorial: “Os estados? Almas? Pessoas? O que fica? Sobra? Federação? Filhos? As perguntas citadas e outras tantas presentes no poema são estratégias discursivas usadas para levar o leitor/ interlocutor a pensar sobre o que se pergunta. No verso “um país interessante é como uma mulher em estado interessante? ” Faz com que nos perguntemos que “estado interessante” seria o da mulher. No decorrer do poema percebese a ironia crítica ao papel social da mulher, sugerindo mulher interessante seria aquela capaz de gerar filhos, típico de ideologias conservadoras sobre o feminino. Como nos poemas das escritoras afro-brasileiras analisadas na seção anterior, o sujeito lírico, por mais que não se situe como mulher, manifesta a questão da leitura sobre o que ocorre na sociedade, apresentando mais um significado do termo sentimental vou indo/olhos de leitura sem legenda/ e bocas sem

“estado”: “tão

sentenças”, isto é,

expressa o seu estado emocional em relação a tudo que observa; ainda sugere pelo termo “sem legenda” que a compreensão acerca do que observa é percebida sem nenhuma interferência de outros em sua percepção. Podemos assim lembrar que na época da

Ditadura Brasileira os meios midiáticos difundiam apenas os interesses do governo, aqueles que não aderiam a ele tornavam-se perseguidos políticos. A construção poética de Zulmira Ribeiro Tavares visa à representação de questões coletivas e também à discussão da função do poeta referente ao seu posicionamento em relação a elas. Ainda encontramos nas estrofes finais do poema:

O que faço se não controlo as respostas pela boca, assobio? (TAVARES,2007, p.95)

Aqui, percebemos que o sujeito lírico expõe sobre a impossibilidade de dizer as respostas das próprias perguntas que faz, e com a estratégia discursiva da indagação propõe a ideia da impossibilidade do dizer claramente e a opção pelo assobio, o suspirar como expressão contida daquilo que pensa. As duas estrofes finais do poema esboçam melhor este protesto abafado presente no poema “UM ESTADO MUITO INTERESSANTE”:

No escuro meu país é simples Dois sentidos bastam. E sobram Sem nenhum sentido Meu país teria a mais perfeita ordem (TAVARES,2007, p.96)

Nos versos acima percebemos a presença da ambiguidade no termo “sentido”, primeiro o termo pode significar sentidos humanos (Visão, Tato, paladar, Audição e Olfato) ou pode significar o comando utilizado pelo exército, caracterizado pela subordinação ao poder militar. Este poema é um exemplo de como a questão social pode

interferir no espaço literário. O sujeito lírico manifesta-se acerca da situação de seu país e por fim protesta de maneira sutil sobre o controle social exercido pelo exército naquele momento histórico. Alice Ruiz é poeta e tradutora paranaense. A sua primeira publicação data de 1980, com o livro “Navalhanaliga”. Os poemas que irei analisar encontram-se no livro pelos pêlos (1984), são estruturados a partir do modelo minimalista, da geração do mimeógrafo, conhecida como marginal, não pela posição social de seus escritores, mas pelo meio de divulgação das obras. As características da poesia marginal dos mimeógrafos são: a espontaneidade, os traços de oralidade, palavrões, ironia e também a estrutura pequena e minimalista. De pelos pêlos (1984), escolho quatro poemas para análise, devido à característica minimalista dos poemas de Ruiz. Observemos o poema abaixo:

Quero fazer um verso Com todos os elementos Meus encantos Meus lamentos Que atravesse Ares e mãos E te alcance E te arranque de todos os pensamentos (RUIZ,1984, p.28)

Assim como o poema em destaque, a maioria dos poemas de Alice Ruiz não tem título; neste, percebe-se a reflexão do sujeito lírico acerca da sua escrita, considerada por ela como aquela que permite tirar dos pensamentos o indivíduo que neles habita. A característica metalinguística está presente em todo o livro, o sujeito lírico assume que quer construir o seu poema sem restrições, isto pode ser visto pela perspectiva do protesto como uma reivindicação estética, porém, rompendo com o espaço verbal. Podemos considerar como um apelo do sujeito lírico feminino à liberdade de escrita das mulheres. Compreender a escrita de Ruiz pelo viés do protesto exige uma análise do campo semântico usado no poema. O nome do livro já busca romper com a tradição dos títulos pomposos de livros de poemas, principalmente os produzidos por mulheres, em que era

predominante o uso de termos ligados à sensibilidade e à delicadeza, o que contribuiu para a consolidação do ethos discursivo da mulher: emocional, sensível, maternal, cuidadora. Desse modo, indo de encontro a essa representação da mulher passiva e submissa, há no livro um poema em que o sujeito lírico feminino

se constrói como agente da

conquista sexual e do prazer: Já estou daquele jeito Que não tem mais conserto Ou levo você para cama Ou desperto (RUIZ,1984, p.13)

Podemos perceber que o

poema expressa também a iniciativa feminina em

querer o ato sexual com a pessoa amada, por mais que pareça ser fruto de um sonho. Não querendo condicionar a escrita ao tempo histórico, mas aos valores predominantes deste contexto, podemos considerar a escrita de Ruiz como transgressora, no sentido de que há uma liberdade de escrita, tanto na utilização dos vocábulos (daquele jeito) quanto na temática (levar o homem para cama). A manifestação de protesto pode ser uma reação do sujeito em relação às ideologias conservadoras e patriarcais e em relação ao corpo feminino e seus desejos. Em primeira análise se estranha a não presença de questões que envolve o momento histórico, que como o de Zulmira Ribeiro Tavares é o da Ditadura Militar. Em pelos pêlos (1984) a temática pode ser resumida da mulher em relação a própria escrita e ao homem amado. Para que compreendamos melhor , utilizaremos para complementar a análise dois poemas do livro

Navalhaliga (1980), primeiro livro da

escritora. Neste primeiro livro podemos ver a utilização de um léxico ligado ao campo semântico de prisão e perseguição: Dias e Dias Espio palavras Persigo letras (RUIZ,1980, p.53)

Os termos “espio” e “persigo” podem corresponder à uma utilização estilística da escritora, que consegue poetizar termos que provocam uma inferência negativa ao leitor da época. Trazendo uma reflexão metalinguística acerca do seu dia a dia em meio a ditadura e à sua produção literária. A estrofe acima demonstra a busca da expressão pelo sujeito lírico. Continuemos o poema: Com sorte Saco mais rápido Pego todas distraídas (RUIZ,1980, p.53)

Aqui, podemos ver novamente a utilização de itens lexicais que remetem às situações de violência, neste caso uma emboscada, a poetização da vida social e a procura da expressão. Ainda no poema é apresentado: Tiro as que riem as que conversam as outras vadiam (RUIZ,1980, p.53)

Nesta parte final do poema, percebe-se a busca do sujeito lírico por palavras que remetem à felicidade e ao diálogo entre as pessoas. Como em Zulmira Ribeiro Tavares, podemos visualizar o uso metafórico de termos associados à violência: Ainda no mesmo livro, temos o seguinte poema: Sou uma moça polida Levando Uma vida lascada Cada instante Pinta um grilo Por cima

Da minha sacada (RUIZ,1980, p.54)

Neste poema, percebemos o uso de gírias como “grilo” e “sacada” e também de outros termos coloquiais como “lascada ”; os dois primeiros termos configuram-se de maneira ambígua no texto remetendo a um inseto ou a um problema; o termo “sacada” pode ser compreendido como uma parte da casa ou como uma “compreensão de algo ou observação”. O sujeito lírico se define enquanto uma “moça polida” porém usa palavras e expressões que não correspondem a tal polidez feminina. O poema é irônico, e aqui configura-se o protesto, de modo sutil, sugerindo ao leitor a existência de uma mulher que foge dos padrões estabelecidos socialmente, pela matriz heteronormativa. Zulmira Ribeiro Tavares e Alice Ruiz exercem a escrita de modo diferente, porém na primeira podemos perceber uma preocupação pelas questões coletivas da sociedade, no que tange à construção social. Já a segunda compreender a manifestação da mulher enquanto responsável pelas suas escolhas e que assume os seus desejos sem eufemismos São diversas as questões que servem como motivo de protesto: racismo, machismo, corrupção, fome, etc. Mas cada sujeito realiza de forma diferente estes atos de protesto. As escritoras, diferentemente dos escritores, utilizam o espaço literário para legitimar sua condição de mulher na sociedade e para demonstrar quais são as potencialidades de sua escrita. A palavra em Alice Ruiz e Zulmira Tavares, utilizando uma expressão desta última, encontra-se em um “estado interessante”, em que a palavra é um instrumento de reinvindicações tão díspares; a preocupação com a nação e com a alienação de sua população à manifestação individual de busca de liberdade em ser mulher, do modo que se quer ser.

3- Considerações finais

O protesto não é um ato uniforme, nem explicito, no campo semântico das pressuposições encontradas no discurso literário podemos encontrar a negação de outros discursos e reafirmação de outros. A modalidade de negação presente nos poemas de Sobral e Alves permite ao leitor visualizar a existência daquilo que se nega, o “não vou

mais lavar os pratos”, o “não posso” podem ser compreendidos como funções estereotipadas do feminino, como também a ideia da incapacidade que lhe é atribuída. O interlocutor é diferente nos poemas analisados. Em Miriam Alves e Zulmira Ribeiro Tavares há a construção de um sujeito indeterminado que exerce uma força coercitiva sobre o sujeito lírico, por isso a reivindicação pela liberdade, pelo pensar. Nos poemas analisados de Cristiane Sobral, o interlocutor ora poder ser homem, como pode ser as mulheres da elite que visam subalternizar os indivíduos oriundos de outros

espaço e

classe social. A consciência de si é manifestada no decorrer do poema. Alice Ruiz manifesta a questão do feminino de uma maneira transgressora. A mulher não é vista como submissa às vontades e aos desejos dos homens, mas como aquela que sabe lidar com os seus próprios desejos e conduzir para a efetivação. Em Ruiz se vê por trás da autolegitimação a negação de certos discursos sociais Todas estas mulheres, através da escrita, podem construir um archeion feminino contemporâneo que busca ressignificá-las enquanto mulheres, negras ou não, empoderadas, transgressoras, críticas e independentes. Ao invés de serem mulheres apenas porque uma ordem social assim as definiu, elas assumem a frase de Beauvoir se construindo discursivamente: uma mulher não nasce mulher, ela se torna mulher. Podemos assumir junto aos estudos de gêneros e do Feminismo que as mulheres podem se construir todos os dias historicamente, politicamente como femininas, protetoras, maternais sem que deixem de lado a capacidade crítica, empreendedora, questionadora, e letrada. Analisar as produções contemporâneas exige que se tenha noção de continuidade para prosseguir nos estudos das manifestações literárias que constituem este momento literário. Esse trabalho visa colaborar com a discussão das faces da escrita feminina brasileira e das questões sociopolíticas que elas incitam à reflexão.

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