O volume da memória e a arte do esquecer

May 23, 2017 | Autor: Bárbara Buril | Categoria: Philosophy, Aesthetics, Aesthetics and Politics
Share Embed


Descrição do Produto

ARTIGO

o volume da memória e a arte de esquecer BÁRBARA BURIL [email protected]

P

ara salvaguardar a liberdade de lembrar, o ser humano constrói fortes espaços metodologicamente organizados, estruturas racionais, compartimentos, galpões com arquivos, encontrados em bibliotecas, coleções, acervos,

museus. Como anuncia o narrador do documentário “Toute la mémoire du monde”, de Alain Resnais, logo no início do curta-metragem de 1956, “porque tem a memória curta, o homem acumula incontáveis auxiliares de memória”. Não sabemos muito bem como, nem porque o ser humano não atribuiu aos mortos o papel de enterrarem os mortos. Dotados da faculdade de lembrar, não conseguimos abandonar o passado ao passado. Fora de nosso controle, o que aconteceu nos assombra, constitui o que somos e, como um bicho parasita, o passado nu-

dante bebe as águas do rio letes (rio do esquecimento), para, purificado, ser recebido por beatriz no paraíso celeste — mural pintado por canato

tre-se da seiva do presente porque não tem vida própria. Porque, simplesmente, já passou. O passado não nos abandona e nós não abandonamos o passado por um motivo impreciso. Sem essa relação que parece ser constitutivamente humana, não haveria história, nem historiadores, arqueólogos ou paleontólogos; não saberíamos sequer da existência dos dinossauros ou dos mamutes ou de nós mesmos, antes de sermos homo sapiens. Não haveria a Biblioteca Nacional da França, que em 1956, como nos mostra Resnais, recebia três milhões de obras ao ano. Uma memória que arquitetonicamente aumentou para cima e para baixo, em reformas contínuas que incluíam a ampliação do subsolo e a verticalização do edifício. Para ter a liberdade de lembrar, diz o narrador de “Toute la mémoire du monde”, o homem constrói fortes. É assim que artefatos como litografias, selos, fotografias, medalhas, periódicos, manuscritos, mapas e livros, para não serem esquecidos, são meticulosamente arquivados na Biblioteca Nacional da França até hoje. São recebidos, autenticados, definidos, transformados em fichas e, finalmente, arquivados no espaço mais adequado para eles, sob uma temperatura e iluminação ideais, controlados por um sistema tecnológico semelhante à cabine do Capitão Nemo na nave Nautilus, espaço fictício criado por Júlio Verne na obra “Vinte mil léguas submarinas”. Através da meticulosidade e inclinação burocrática e calculista de uma racionalidade instrumental, conseguimos guardar o passado e não nos esquecemos mais do que fomos. Congelamos o mundo grego, a arte moderna, as poesias trovadorescas, o cinema mudo, as cartas do tarô – e há um inegável mérito nisso! -, apesar de não termos ideia de como realmente viviam os gregos ou como os trovadores de fato amavam ou a que precisamente veio o tarô na sua missão délfica. Em suma, guardamos o passado sem a saturação das cores de quando era só presente, porque simplesmente não nos foi permitido reviver o que já passou na divisão tríplice e ordinária do tempo em passado, presente e futuro. p­ — 16

TREMA!_esquecimento

p­ — 17

ARTIGO

still do documentário "tout la mémoire du monde", de 1956 dirigido por alain resnais

Nietzsche, ao interpretar o esquecimento como uma força plás-

a personagem Julieta do filme homônimo de Pedro Almodóvar,

tica ativa, dá um golpe nas formas de cultura e educação de seu

lançado neste ano, busca esquecer o que ainda é dela. As dores

presente, que entendiam a evolução do homem em termos de

imensas causadas pela fuga da filha Antía para um retiro espiritual

acumulação de saber histórico, fático e científico. Ler o máximo

acompanha Julieta por anos. Até que ela resolve simplesmente

que a Biblioteca Nacional da França nos oferece não resolve os

bloquear tudo o que pudesse lembrá-la de que teve uma filha:

nossos problemas, nem nos liberta das correntes que arrasta-

muda-se de casa, rasga fotografias e guarda os pedaços em uma

mos hoje. Acumular informações não é uma terapia, em suma. Só

caixa, se livra das roupas e de tudo o mais. Quer se esquecer de

as forças criativas e artísticas nos abririam para a vitalidade do devir, mas, para isso, seria preciso esquecer, fazer uma higiene no espaço psíquico e expelir toda a mobília desnecessária do nosso espaço interior. Jogar fora o que já não é nosso. Como deveria ter feito (mas não fez) a personagem Norma Desmond, no filme

tudo, radicalmente. Há anos sem entrar em contato com a dor da perda de Antía, Julieta encontra uma ex-namorada da filha, que lhe dá algumas notícias sobre a vida levada por Antía à distância há tantos anos. É assim que a tentativa de esquecimento de Julieta se desmorona e ela simplesmente volta ao começo: muda-se para o apar-

“Sunset Boulevard” (1950), de Billy

tamento onde morava antes do su-

Wilder. Uma atriz decadente da cartaz do filme "crepúsculo dos deuses" (sunset boulevard), de 1950 dirigido por billy wilder

PRECISAMOS ESQUECER, TODAVIA

miço da filha, resgata as fotogra-

era do cinema mudo, Norma

fias, monta os pedacinhos das

vive como se ainda fosse uma

imagens rasgadas e se entrega

estrela de Hollywood em uma

novamente à dor do início. Rapi-

época em que o cinema sonoro já ti-

damente, a mobília interna e externa

Não necessariamente de como achamos que viviam os gregos ou

como um processo acumulativo de saberes. Em outras palavras,

nha se desenvolvido largamente em Los

das obras-primas do cinema mudo, mas dos registros pessoais

entender e curar uma dor não são processos que podem ser resol-

Angeles. Apegada ao passado, vive rodeada

que nos fazem arrastar correntes pelo presente. Friedrich Nietzs-

vido em contínuas idas à Biblioteca Nacional da França. Ao con-

por fotografias de uma juventude de fama que

che, na obra “Genealogia da moral” (1887) 1 , interpreta o esqueci-

trário do que diz o narrador de “Toute la mémoire du monde”, que

já tinha se esvaído e não consegue esquecer os diá-

mento não como uma força inercial (vis inertiae), um desgaste de

afirma que a felicidade só será alcançada quando todos os seres

logos que protagonizou nos seus anos de ouro. Literal-

impressões passadas ou uma “moeda que perdeu sua efígie”, mas

humanos forem capazes de articular diversos saberes coerente-

mente, a mobília interna da casa de Desmond já não se ade-

como uma força plástica e ativa, capaz de nos libertar de impres-

mente, desvendando todos os segredos do mundo (em uma es-

quava mais ao seu status atual de completa anônima e, por não

sões repetitivas e doentias, produzidas quando tivemos que lidar

pécie de reinterpretação humana de toda a memória já acumulada

abrir espaço para o que poderia se manifestar (quem sabe, uma

carcomida por um processo interno de autodigestão. Da mobília

com ultrajes, decepções e descontentamentos.

ao longo de milênios), para Nietzsche o ser memorioso, aprisiona-

vida de diretora de cinema ou escritora capaz de lhe dar um novo

interna que ainda não foi mastigada (mas que infelizmente ainda

do no passado, não vive uma “forma de saúde forte”. Não reco-

signo de fama, ou até uma existência mais calma, lenta e profun-

nos faz sofrer) parece não ser possível nos livrar, como nos indi-

nhece a força engendradora de vida que eclode quando o sujeito

da, proporcionada finalmente pelo anonimato), Norma Desmond

cam as histórias de Julieta e de Norma. Desses móveis novos ou

se abre para o novo. Para se abrir ao devir, entretanto, é preciso

caminha como se carregasse, dentro de si, todo o peso do mundo.

velhos, mas feios, que atravancam os nossos caminhos, só nos é

A terapia para as dores não se constitui, na visão nitzscheana,

1 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 1ª Ed. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2009.

p­ — 18

aprender a arte do esquecer.

Enquanto Desmond não quer esquecer o que já não é dela, TREMA!_esquecimento

de Julieta se reestrutura, como se nunca tivesse deixado de existir – e realmente, nunca deixou. Provavelmente, o esquecimento que definitivamente nos redireciona para o futuro pensado por Nietzsche é aquele esquecimento de tudo o que já não é nosso. De toda a mobília interna que, de algum modo, já foi

possível lembrar, todavia. E mastigar. p­ — 19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.