Óbito Fetal e Anomalias Fetais

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Óbito Fetal e Anomalias Fetais: Repercussões Emocionais Maternas

Dr ª. Julieta Quayle

We are never so defenseless against suffering as when we love, never so helplessly unhappy as when we have lost our loved object or its love.1 Sigmund Freud, Civilization and Its Discontents

O ser humano lida mal com perdas. Talvez, íntima e subjetivamente, elas o lembrem da última e irreversível perda a de si mesmo, que a morte traz, precedida muitas vezes de outros tantos simulacros e arremedos, a assustar e atormentar nosso imaginário. Nós, humanos, lidamos mal com as perdas. Quaisquer perdas. Fica-nos a sensação de vazio, de tristeza, de irreversibilidade. A lacuna se presentifica, associa-se ao anseio do “poderia ter sido”, “seria bom se”... Frustram-se nossas fantasias de onipotência, nossos sonhos de eternidade, nosso desejo. 1

Nunca estamos tão desprotegidos face ao sofrimento como quando amamos; nunca tão infelizes como quando perdemos nosso objeto de amor, ou seu amor.

Na ordem natural das coisas, nenhum pai, nenhuma mãe espera perder seu filho. Talvez atrelado ao instinto de sobrevivência da espécie, os adultos gostariam de acreditar que crianças e bebês não morrem, não ficam doentes, não sofrem. Apesar de sua evidente fragilidade, que inspira cuidados ininterruptos, eles representam o futuro, o “por vir”: possibilidades que se transformam em probabilidades, em certezas, convicções, realidade. Existem várias maneiras de se perder um filho, e a morte é somente uma delas. Pensaremos, aqui, a perda decorrente do óbito fetal ou nascimento de um natimorto - perda real, e aquela que se associa ao diagnóstico de malformação fetal - a perda do filho idealizado.

O Óbito Fetal e o Natimorto.

A morte de uma criança rompe a ordem natural, frustra expectativas; compromete, no imaginário, o futuro. Fala-se do “anjinho” que partiu, daquele que “foi desta para melhor”, de onde cuidará dos seus. Todavia, esta ausência não é sempre compreendida ou aceita com naturalidade, especialmente por aqueles que se vêem privados de sua companhia. Buscam-se explicações para a quebra da ordem 2 e meios de aceitar o inevitável. A morte deveria ser vista com naturalidade. É, afinal, a única certeza humana. Todavia, as reações a este “fato da vida”, como paradoxalmente denominamos a morte, são ditadas pela cultura e pela sociedade, pela história 2

Intimamente o homem lida com a morte como se ela, além de ser o grande nivelador social, fosse algo parecido a um juiz itinerante a distribuir justiça. Assim, o tipo de morte, sua ocasião, etc., estariam associados a certo “merecimento”. Não é infreqüente rezar-se por “uma boa morte”. Embora se saiba que a realidade é outra, é nesse contexto que se inscrevem os sentimentos de surpresa e de revolta em relação à morte de bebês e seu sofrimento, considerando-se que eles nada fizeram para merecer tal castigo.

de vida de cada indivíduo, e estão longe de ser “naturais”: expressam formas de lidar com (ou exorcizar?) medos profundos, dando sentido e aparente controle sobre o que é, de fato, incontrolável e, por vezes, assustador. Na instituição hospitalar freqüentemente vivemos a realidade da morte. Em Obstetrícia, ela se mostra com diferentes faces, referindo-se ora à gestante, ora ao feto, contrariando as expectativas e o ideário popular, e fantasias de controle do processo reprodutivo. A atual ênfase nos programas de planejamento familiar e o desenvolvimento de técnicas contraceptivas, vem reforçando a crença de que o casal pode, de fato, escolher entre ter e não ter filhos, e quando tê-los. O diagnóstico pré-natal sugere que se pode apor um “selo de qualidade” ao processo gestacional, garantindo o nascimento de bebês normais e saudáveis. Nada mais enganoso. Na realidade, como nos lembra Rheinfarz (1989), a única opção humana verdadeiramente existente no que concerne ao exercício da maternidade e da paternidade responsável é, eventualmente, a de não se ter filhos. A negação do processo reprodutivo pode ser tentada, com diferentes graus de sucesso. Todavia, sua instalação e desenvolvimento, embora passíveis de manipulação, permanecem essencialmente incertos. O universo da escolha humana se restringe, portanto, ao espaço existente entre o não e o risco, da tentativa de negação da fertilidade à incerteza em seu exercício (Quayle, 1992). Não se tem, jamais, garantias do percurso ou do resultado do processo gestacional, o que pode desencorajar os menos afoitos. Apesar disto, a poucos ocorreria considerar a gestação como um óbito fetal ou um abortamento em potencial - provavelmente isto seria considerado macabro e de mau gosto. A confirmação do diagnóstico de gravidez associa-se à idéia de

uma nova vida, já moldando destinos no imaginário. O risco do processo tende a ser negado, existindo, até, a minimização contra-fóbica dos medos, receios e cuidados das grávidas, quando estas chegam a manifestá-los. Considerados “peripaques” a assinalar exagerado nível de ansiedade, tais conteúdos e reações são pouco valorizados (ou francamente ridicularizados) e postos de lado, como infundados. A realidade se prova diferente. Bebês morrem, mesmo quando tudo “corre bem” na gravidez e no parto. Caroline Davies (1997) assim nos descreve sua experiência: Cedo na manhã de primeiro de julho de 1994, após 39 semanas de uma gestação sem complicações, o bebê dentro de mim parou de se mexer. Nenhum estímulo produzia nem mesmo uma ondulação. Mais tarde, naquela manhã, um ultra-som confirmou que meu bebê estava morto. Eu teria que me submeter à indução de parto para dar à luz - a um bebê que jamais choraria ou riria, mas que estaria comigo para sempre. A dor desta perda geralmente rompe o equilíbrio familiar e institucional, não havendo espaço na maternidade para estes “pais sem filhos”. Os profissionais, talvez por sentirem que falharam em seu trabalho, tendem a afastar-se desses casais, despreparados para lidar com a dor psíquica que, embora reconhecida, é desvalorizada. Na morte do recém-nascido e no óbito fetal, tenta-se acreditar que a pouca (ou nenhuma) convivência dos pais com seu bebê facilitará a aceitação de sua morte, diminuindo as repercussões de sua perda. A esta crença correspondem “certezas” e falas, como: “Antes agora, que era pequenininho, do que depois de grande....” Em se tratando de malformados, aplica-se o rótulo “melhor assim”: “Melhor assim do que sofrer com um débil

mental para criar!”. Ou: “Melhor assim do que ver seu filho sofrer depois; pense na qualidade de vida que ele teria!”. Ou: “Pense no que seus outros filhos sofreriam ao ver o irmão deste jeito...” Do ponto de vista da racionalidade social, todas estas afirmações são potencialmente verdadeiras. Ignoram, todavia, o óbvio: para quem sofre, sua dor tende a ser única, abrangente, sem paliativos ou comparações que a amorteçam, até que se esgote. No emocional, o registro assemelha-se ao que disse uma puérpera: “Pouco me importa se isto evita que eu sofra mais amanhã! Só sei que está doendo agora...” A valorização das respostas de luto de casais após a morte de recém-nascidos ou a ocorrência de natimortos foi favorecida pelos estudos de Kennel (1970). Gradativamente, tais casais passaram a ser considerados pais que haviam perdido um filho. E, apesar da inabilidade social em lidar com os temas morte / defeito / falha, houve o reconhecimento desta perda tão significativa e a preocupação de criar abordagens terapêuticas que viabilizassem o trabalho do profissional de saúde junto a essas pessoas. A constatação da ocorrência do óbito fetal, mesmo se já previsto, traz em si importantes implicações emocionais. A resolução do luto esbarra em aspectos objetivos (qual a técnica a ser utilizada?) e subjetivos. No ventre da mulher (grávida?) há agora “algo” morto, onde um dia houve um bebê, um filho, uma história, uma promessa. Hoje, algo que não vingou, não deu certo, que não virá a ser. Algo que se deteriora, que pode estragá-la, consumí-la, contaminá-la. Puní-la? Afinal, ela não foi capaz de criar/ conter/ gestar/ proteger... O pânico e a agitação que se instalam, por vezes, somente são comparáveis à imobilidade depressiva por velar o morto que, por ainda estar

dentro de si, é muito de si-mesma. O luto pelo “bebê morto” é também, freqüentemente, o luto pela “mãe” morta... A reorganização da identidade que ocorre na gestação contribui para a intensificação das repercussões do óbito fetal. A construção da “identidade materna” que vinha se desenvolvendo gradativamente, é subitamente interrompida. Não mais a que gera, a que gesta, a que alberga, a que protege. O risco transforma-se em realidade, em pesadelo. Tentando criar vida e vendo-se incapaz de mantê-la, a mulher tende a estender esta incapacidade , interpretando sua feminilidade como “estragada”, imprópria e inadequada. É diferente das outras mulheres. A esterilidade secundária que estas perdas eventualmente acarretam, mobiliza intensos sentimentos de fracasso frente ao que - imagina - a sociedade dela espera. Como a bíblica Sara, condena-se como árvore sem frutos, sem utilidade, ou sentido de existir. Vazia, pensando no que poderia ter sido, prenhe da ausência daquele que nunca se fez efetiva e concretamente presente. E poderá descobrir que “o luto por esta fantasia pode ser tão doloroso, se não mais difícil, do que chorar por um ser amado de quem se tem muitas lembranças”( Herz, apud Cole, 1987). Como alerta Bortoletti (1996, p. 162), “todo relacionamento humano termina deixando lembranças boas ou más. A sensação de vazio caracteriza a perda real do objeto amado.(...) Ter o filho morto nos braços, o desejo de falar da criança e a incapacidade de sentir indiferença à morte são comportamentos que não só inibem o descarrilhamento da vida psíquica, como ainda facilitam a manifestação da maternidade sadia.” Freqüentemente, o luto sobrepuja e domina a personalidade consciente, e seus efeitos perduram até que a perda possa ser elaborada e assimilada

psiquicamente. O sofrimento é pela perda do ente (já) querido e pela própria fragilidade, inegável e presentificada. No processo de luto freqüentemente observa-se a necessidade de lembrar-se do que se perdeu, como mecanismo facilitador da elaboração. De maneira fantasiosa preserva-se, assim, a continuidade do relacionamento. Por outro lado, há de se convir que é extremamente difícil “guardar atributos de um feto ou recém-nascido; é tarefa quase impossível”(Bortoletti, 1996) para os pais manterem consigo alguma parte daquele ser indefeso. Por isto, “a lamentação da morte de uma criança é melhor entendida quando comparada à perda de um membro. A imagem que a mãe tem de si é como se tivesse sido amputada pela morte da criança”(Lewis, apud Bortoletti, 1996).Levando a analogia mais adiante, não é de surpreender a intensidade e permanência da dor psíquica associada à perda do filho, assemelhando-se à dor causada pelo fenômeno do “membro fantasma”. Sua intensidade é de tal magnitude que o poeta, ao querer dizer da dor da separação de um casal, a usa como protótipo da dor psíquica:

Oh, pedaço de mim Oh metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés do parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu.....3

E, se dela não se pode guardar muitas lembranças de relacionamento e convivência, memorizam-se circunstâncias.

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“Pedaço de Mim”, Chico Buarque de Hollanda

Os dados disponíveis (Quayle, 1991; 1992; Reinharz, 1988; Savage, 1991) demonstram que usualmente a mulher (e o casal) lembra de maneira vívida, distinta e detalhada as circunstâncias que se relacionam à perda. Os fatos que antecedem ou que se seguem à situação são freqüentemente mencionados, as palavras então ouvidas são repetidas quase literalmente. Não é esquecida a informação (não) recebida, a disponibilidade (não) encontrada. É como se houvera uma promessa de não esquecer. Relembrar a morte do filho de maneira intensa, enquanto os outros esquecem, diz respeito à fidelidade e a formas peculiares de lidar com o vazio projetado no futuro. Preservando a realidade do relacionamento intrapsíquico mãe-pai-criança, restaura a economia psíquica enquanto a perda é elaborada. Estudos recentes apontam que esta dinâmica é freqüente, podendo durar muitos anos. Rousseau e Fierens (1994) constataram que muitas mulheres se lembram com nitidez do ocorrido mesmo após nove anos, e que aproximadamente 25% delas apresentam sinais de luto patológico 4 ; 34% haviam estabelecido padrões patológicos de relacionamento com seus outros filhos. Havia mágoa e rancor dos profissionais que as haviam atendido, sendo que 45% das pacientes mostravam algum grau de insatisfação com a assistência recebida. Este aspecto merece cuidados especiais. Não é difícil compreender que a perda do recém-nascido ou o óbito fetal provoquem sentimentos de raiva, especialmente numa fase aguda. Freqüentemente, esta raiva é redirecionada para os “de fora” 5 , o que a torna mais suportável. Como conseqüência, observa-se hostilidade generalizada contra pessoas ou situações que 4

O conceito de luto patológico refere-se, aqui, ora à exacerbação das reações naturais do luto, ora à sua manutenção por um período de tempo excessivo, denunciando falhas no processo de elaboração da perda. 5 A internalização desta raiva leva à exacerbação de sentimentos de culpa, de difícil elaboração.

antecederam a perda, responsabilizando-os pelo ocorrido. Tal dinâmica pode dificultar o diálogo da família com os profissionais, especialmente se os últimos “vestirem a carapuça ”e passarem a agir defensivamente, afastando-se ou criticando a atitude dos familiares. Tal atitude, além de imatura, é altamente iatrogênica, e dificulta o processo de luto. Há ocasiões em que a dor psíquica de tão intensa, parece insuportável. A ausência do objeto de amor parece tão irreparável que pode levar ao desejo de morrer, como maneira de reunir-se ao filho perdido. Tal dinâmica merece cuidados especiais, podendo levar a comportamentos impulsivos de auto-destruição, especialmente se associada à depressão, que merecem avaliação cuidadosa. Existem várias maneiras de se perder um filho, e perda que se concretiza no óbito fetal pode ser complicada se este se refere a um bebê malformado.

O Recém-Nascido Malformado ou Portador de Patologias

Os sentimentos de perda decorrentes do diagnóstico e do nascimento de um bebê malformado ou portador de patologias funcionais apresentam dinâmica diferente, mas não menos dolorosa. A modernização das técnicas de diagnóstico pré-natal (DPN) possibilita que hoje se faca, intra útero, o diagnóstico fidedigno de inúmeras patologias e malformações fetais. A introdução destas técnicas no contexto do ciclo gravídico-puerperal altera a vivência da gravidez e propõe importantes questões. A mais importante, neste momento, refere-se à descoberta de que o feto é portador de algum tipo de anomalia que pode comprometer seu

desenvolvimento, sua qualidade de vida, ou mesmo sua sobrevivência fora do útero materno .6 Cumpre ressaltar que ao se examinar o feto e sua condições, também se estará avaliando a progenitura - a parentalidade. O feto será medida indireta da capacidade geradora e criativa de seus pais. “Boas árvores dão bons frutos”. Ao nível simbólico, o que dizer da árvore que dá frutos doentes, imperfeitos? É por esta razão que o casal sente-se avaliado na realização do DPN. A constatação de problemas com o feto constitui-se, assim, em ferida narcísica, potencial ataque à integridade psíquica do indivíduo e do casal enquanto parelha. É folclórico o temor da gestante frente à possibilidade de defeitos e anormalidades em seu bebê. Costumava-se dizer que a primeira pergunta de uma parturiente quando do nascimento de seu filho referia-se à sua normalidade. Hoje, tal pergunta se antecipa: ocorre na realização da primeira ultra-sonografia. O mesmo medo, em diferentes épocas, com diferentes recursos. A constatação de normalidade entrega o bebê e sua família às vicissitudes do cotidiano. O diagnóstico de problemas ou malformações acarreta a perda do filho idealizado, uma espécie particular de “luto pelo que está vivo”- e diferente do que se esperava. O filho real, com seus problemas, difere do filho idealizado e não mais preenche o papel que lhe era destinado no cenário familiar. Não será mais o filho perfeito, “sonhado passaporte dos pais para a plenitude pessoal, a gratificação e a felicidade”(Quayle, 1997). Não que qualquer filho, de fato, o seja. Mas este pode afastar-se demais do modelo, dificultar a aceitação social de seus pais, a vida de sua família. 6

O leitor particularmente interessado na questão do diagnóstico pré-natal e suas repercussões emocionais, inclusive no que concerne à interrupção da gestaçao, pode reportar-se ao texto “Parentalidade e Medicina Fetal: Repercussões Psicológicas”, Quayle, 1997.(ref.bibl)

Tal bebê começa a adquirir rosto, contorno, identidade; antecipa angústias e força adaptações. Ao decidir prosseguir a gestação desta criança, ou vendo-se forçado a isto em virtude da legislação de nosso país, o casal precisa desenvolver mecanismos para lidar com a nova realidade que lhe foi imposta. De acordo com Drotar e cols ( 1975) esta adaptação se dá por fases: choque, negação, tristeza, cólera, equilíbrio e reorganização. Tais fases não se sucedam linearmente, havendo certa sobreposição entre elas. É comum que se projete no meio ambiente receios e angústias, e que, paulatinamente, se consiga nova forma de organização pessoal e familiar. De qualquer maneira, o advento do malformado desencadeia crise familiar de grande importância. Na opinião de Noronha e Montgomery (1993, p. 64-5), “é sumamente importante o como comunicar esta situação para o casal porque, quase sempre, o primeiro impacto da notícia de uma malformação é mais perturbador do que a própria presença física e real do malformado, com sua aparente lesão ou não. E prosseguem, tocando, agora, na ferida da equipe: (...) É natural que sentimentos profundos aflorem em toda a equipe, Sempre é mais agradável ser portador de notícias boas. Quando tal não acontece, também nossos sentimentos afloram, surgem muita raiva e tristeza, que são projetadas nos pais ou na criança causadora de sofrimento. Quantas vezes nos surpreendemos desejando a morte daquele recém-nascido? Ficaríamos livres de preocupações e não teríamos necessidade de questionarmos nossa sabedorias 7 , nossas afetividades, nossa onipotência. Precisamos ter em mente nossas limitações e que a mais 7

No plural, no texto original.

correta atitude é a de ouvir muito, ponderar com moderação, procurando assim atenuar gradualmente a ansiedade e as intensas reações emocionais do casal. Procurar elevar a confiança do casal para que eles possam reformular suas vidas de maneira mais equilibrada, ajudando-os com muito amor, uma nova estruturação de suas vidas.

Aqui, deve-se fazer a diferença entre paternalismo e o cuidado verdaeiro. Antes de mais nada, não causar dano. Mas não é incomum que se busque “poupar” o casal demasiadamente, adiando a apresentação do bebê a seus pais. Problema ainda mais sério consiste em evitar mostrar aos pais seu bebê com malformação que vai a óbito, sem consultá-los de fato, ou induzindo-os a esta decisão. Quem está sendo, de fato, protegido? (Maldonado, 1989) Deve-se permitir que o casal faça o luto pelo seu filho idealizado perdido, enquanto aprende a conhecer o filho real. Se este também morre, é necessário que possa ser pranteado e adquira seu real lugar na cadeia familiar. As atitudes dos profissionais de saúde são essenciais para que o casal supere a crise que se instalou com maior ou menor nível de sofrimento, desgaste ou estresse . Faz-se mister saber discernir entre os próprios sentimentos e os do outro, projetados, a provocar reações impulsivas e contraditórias na equipe que perde de vista, assim, seu papel terapêutico.

A Atuação Profissional

Qual a contribuição do profissional de psicologia nessa dinâmica? Qual seu papel? Ele ajuda ou atrapalha? A atuação do psicólogo nas instituições médicas e hospitalares

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caracteriza-se por lidar com aspectos escamoteados e pouco evidentes da realidade. Os outros profissionais de saúde, em sua maioria, tem seus papéis mais claramente definidos, no mínimo em função de seu trabalho concreto, do que ele “produz”. Há aquele que faz exames, o que aplica injeções, o que prescreve...O que “sobra” para o psicólogo, que quase só conversa e escuta? Por outro lado, numa ordem tão concreta e organizada, que “brecha” existe? Onde pode este profissional encontrar condições para uma atuação voltada também para a ordem simbólica, especialmente se considerarmos que a demanda da própria população que busca a instituição é, prioritariamente, demanda médica? As palavras “sobra” e “brecha” remetem a outros significados. Sua escolha não foi aleatória. Sobra fala daquilo que não se quer, não se precisa, não se valoriza. Resto, lixo. O que restou, depois do uso; desnecessário, talvez descartável ou mesmo ruim. Todavia, sobra é também aquilo que não coube por falta de espaço. O que não pode ser contido, comportado, o que extravasou. O que não pode ser lidado, elaborado, mas, ainda assim, existe. Brecha aponta a falha na estrutura por onde se pode, até insidiosamente, penetrar. Todavia, a própria existência da brecha numa dada estrutura denuncia a falta, a lacuna, a ausência. O que, então, se mantém ausente no

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Parte do texto que se segue aparece inicialmente em “A Atuação do Psicólogo”(Quayle, 1996) e foi apresentado no XXIII Congresso Interamericano de Psicologia de 1997, encontra-se publicado em Quayle, 1997.

trabalho cotidiano em saúde, especialmente em Obstetrícia? Que resgate se faz necessário? Como operacionalizá-lo? A assistência em saúde faz-se em contexto de risco, real ou imaginado, e este é o recorte que delimita a atuação do profissional. A Obstetrícia não é exceção. Isto se contrapõe à imagem social da maternidade como local de nascimento e de vida, e desnuda o “outro lado” desta representação. As áreas da Obstetrícia que mais de perto lidam com este “lado escuro” e escondido da representação tendem a ser vistas como desumanas, impessoais.9 Ao psicólogo que trabalha em Obstetrícia cabe o resgate desta representação, ao nível simbólico e individual, em abordagem que permita aos profissionais, ao casal e à família, vivência mais integrada da maternidade e das intercorrências do ciclo gravídico-puerperal. Isto se obtém através de escuta diferenciada, onde se atente para o sentido daquilo que é dito, tanto quanto para o conteúdo expresso, numa postura de continência e respeito. Os profissionais que aí trabalham necessariamente se confrontam com a possibilidade de morte / fracasso/ doença/ defeito. Óbito Fetal. Malformação. Nesse contexto, é fundamental que estejam preparados para facilitar a expressão do luto, dando-lhe suporte e continência. Para que isto se viabilize, é necessário que primeiramente este profissional reconheça suas próprias frustração, para que esta, travestida em raiva ou impaciência, não o impeça de perceber o sofrimento e as necessidades dos pais e famílias que atende. É imperioso não perder a capacidade de “ver” o outro, respeitar seu momento, avaliar o que cada um quer ver/ saber / fazer. Verificar que informações consegue assimilar, que encaminhamento dar à situação. 9

É comum que se faça o trocadilho de Medicina Fetal para Medicina Fatal, auto-explanatório, que revela a dificuldade de integrar à representação da maternidade seus aspectos menos prazeirosos, colocando o profissional como bode expiatório, não mais dos pecados da tribo, mas da impotência de todos nós.

Inicialmente, é necessário que se forneça ao casal, sempre, informações precisas e acessíveis. Uma forma simples de verificar a capacidade de assimilação no momento, é incentivá-lo a verbalizar suas próprias idéias, dúvidas, receios e “prognósticos”. Ao responder à demanda assim proposta, é vital lembrar-se que o uso exagerado de termos técnicos protege somente o profissional e pouco instrumentaliza o casal a lidar mais efetivamente com sua dor. De fato, o “jargão” pode ser sentido mesmo como grosseiro, afastando a possibilidade de conferir significado à informação recebida. Não é demais lembrar que, para o casal, esta perda é vista e sentida como a morte de um bebê, por mais que para o profissional este bebê seja somente um feto. De modo similar, é importante dar-se ao casal oportunidade de escolher que tipo de contato deseja ter com este bebê, o que deseja fazer. Autores como Greenfeld e Walther (1991) afirmam ser terapêutico incentivar o contato com o bebê, dar-lhe um nome, providenciar seu enterro, etc.. Estas medidas parecem facilitar a expressão da dor e do luto num contexto de maior aceitação e continência social, sendo dado ao casal um objeto para ser velado - e lembrado. Não é infreqüente que o receio de ver o bebê morto, associado à fantasia de que, enquanto ele ainda estiver dentro de si, a mãe pode protegê-lo, afastando magicamente a morte, produzam complicações na indução do parto. Caroline Davies (1997)10 refere que, após a explicação dada pela obstetriz de que se bebê poderia estar macerado, desenvolveu intenso medo que prejudicou o trabalho de parto. A obstetriz nos disse que o bebê poderia estar severamente macerado. Foi coreto dizer-nos que ele poderia estar descascando, que poderiam haver bolhas, 10

Tal relato é particularmente significativo, pois Caroline Davies é enfermeira em Londres. Ilustra que, apesar de todo conhecimento profissional a vivência da situação pode ser comprometida pelo emprego de palavras técnicas de conotação ruim..

mas macerado é uma palavra tão sinistra que eu imaginei um monstro - vermelho cru, sem pele. Meu medo foi tão intenso que fêz-se necessária uma grande quantidade de ocitocina para manter minhas contrações regulares até o final do primeiro estágio do parto. Eu queria manter meu bebê dentro de mim, onde estava a salvo, e onde eu não precisava me confrontar com ele. Após o trabalho de parto, Caroline viu sua menina:

À 1.39 da manhã Marta nasceu; Uma menininha perfeita, com cabelo escuro ondulado e bochechas grandes. Ela era exatamente como eu sonhara e senti amor de uma maneira muito diferente da que já experimentara até então. Eu estava desesperadamente triste, mas também orgulhosa. Eu era uma mãe, e ninguém podia tirar isto de mim.

Tal relato fala por si só. Quantas vezes ao se acreditar que busca-se minorar a dor do próximo, ela está sendo aumentada...Muitas vezes, as rotinas servem somente para o conforto do profissional e da instituição. França e Figueira Jr. 1997, p. 217) ressaltam: Quando a morte ocorre numa maternidade, o processo de negação é agravado, pois mesmo havendo o alto risco, estamos em um lugar que “dá a vida e não a morte”. Observamos, pelo próprio organograma, que a morte não é admitida: setores encarregados de administrar a morte nem sempre têm funcionários específicos e espaço físico adequado, gerando estresse tanto para os poucos funcionários designados para esta função quanto para os familiares da criança morta. Esta organização do trabalho atuará, então como causadora de sofrimento psíquico, nem sempre identificado pela equipe de saúde, apesar de interferir diretamente em seu trabalho cotidiano.(...) Na tentativa de modificar e transformar, em seu trabalho, aquilo que faz sofrer - a

possibilidade da morte do paciente, virtual ou concreta -, os profissionais acabam por lançar mão de estratégias defensivas de negação e exclusão, para minimizar a percepção desta realidade.

Algumas instituições vem introduzindo pequenas mudanças nas rotinas hospitalares, tais como a internação destas pacientes separadamente das puérperas, oferecimento de um certificado de ocorrência e a possibilidade de se fotografar o bebê, como integrantes de processo de humanização do atendimento e de lidar com a morte de maneira mais realista. Vem sendo freqüente a facilitação do contato com o psicólogo e o treinamento da equipe para lidar com os aspectos emocionais da situação, a introdução de trabalhos em grupo, etc.. Para viabilizar tantas mudanças e favorecer o atendimento integrado dessas pacientes e casais, é útil a formação de grupos de profissionais para reflexão e discussão de casos. De maneira mais ativa do que permite a interconsulta psicológica, tais grupos podem auxiliar a elaboração de estratégias mais amplas e coerentes de atendimento por parte da equipe, além de criar espaço privilegiado onde dificuldades de cunho pessoal, relacionadas ao desempenho profissional, podem ser trabalhadas. Favorecem, também, triagem de situações que demandam intervenção direta do psicólogo. O desenvolvimento da capacidade de continência da angústia do outro é essencial ao profissional de saúde para que sua atuação seja, de fato, terapêutica, humanizada, e não somente “tecnicamente correta”. Isto inclui informar os casais dos recursos disponíveis na comunidade, facultar-lhes a busca de atendimento psicológico (alternativa que muitos desconhecem), colocar-se à disposição. Mas, acima de tudo, facilitar a expressão de

sentimentos, tantas vezes ambivalentes, sem pré-conceitos, julgamentos e valores. Perder é parte de nossa existência. Todavia, lidamos mal com as perdas. Que o papel do profissional de saúde não seja, jamais, o daquele que complica e dificulta a elaboração de sentimentos de perda, pesar e luto...

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