\"OBJECTOS IMEDIATOS\"

July 28, 2017 | Autor: Miguel Sousa Ribeiro | Categoria: Curating, Art Criticism, Exhibitions
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Descrição do Produto

José Pedro Croft

OBJECTOS IMEDIATOS Movimento(s) Assimétrico(s)

A exposição Objectos Imediatos, de José Pedro Croft está divida em dois espaços (a Fundação Carmona e Costa – até 06.12.2014 – que apresenta um conjunto de desenhos e de gravura, ou desenhos sobre gravura, de pequeno formato; e o Torreão Nascente da Cordoaria – até 11.01.2015 – onde é apresentado trabalho de desenho, num formato escultórico, e esculturas.

A diferença de espaços – contentores – é evidente e assumida, o que demonstra que ambos foram pensados, de acordo com o processo do artista, como uma exposição única. Desta forma subentende-se que há uma forte relação, ou unidade, entre o mostrado num e noutro espaço, e que nos remete para noção de continuidade, mas também para uma forte relação entre o espaço arquitectónico e as obras seleccionadas. Se na FCC os trabalhos se relacionam entre si, exigindo da arquitectura a função de mero contentor neutral – cubo branco –; na Cordoaria, os espaços expositivos, piso 0 e piso 1, foram trabalhados e as obras pensadas em função deles. Mais do que se relacionar entre si, as obras, ligam-se à arquitectura. Esta é muito mais do que um suporte, ou contentor. É potenciada e potenciadora de relações espaciais, funcionando de uma maneira mais unida, também na relação do espectador, mais implicada, movimentada, corporalizada e continua – acções que todas as suas obras exigem, umas mais que outras, certamente. Estas implicações ao espectador advêm da forma como também Croft age sobre obras. Agir, aqui, será a forma de fazer – assente no uso do seu corpo, na sua força e persistência – mas também na forma como a procura, e a diferença, estão inerentes a todo o seu processo. Procura, ou reciclagem, de questões ou problemas que tenta (des)contruir na experimentação, na medida em que faz da sua capacidade em retomar uma acção tida ou esquecida – temporariamente – tantas vezes quantas as necessárias até que a ideia matriz se revele. Até lá, e num processo contínuo – anda; abranda; pára aqui; recomeça ali – ou põe; retira; sobrepõe; apaga; destrói; cola; recoloca. Tudo isto revela um processo de procura ou experiência mas também de movimento e actos repetitivos, contínuos e diários. José Pedro Croft trabalha muito com móveis usados – sejam portas; mesas ou cadeiras – que contém uma história, uma memória, de uma presença ausente, (re)criando relações antropomórficas, pois quaisquer destes objectos têm relação humana, embora estejam recolocados noutro contexto, desenquadrados e que, paradoxalmente, perdem a sua banalidade funcional ganhando outras energias e potencialidade, estéticas; relacionais e libertárias, ou simplesmente a atenção. Pode ser dado como exemplo a obra S/ título, 2013, cadeira, portas de madeira e vidro [Piso 1, nº17], Fig.1 – onde as portas assumem uma humanização e liberdade que jamais encontrariam no seu lugar-comum de divisória

Fig.1- (Pormenor) do Piso 1 da Galeria da Cordoaria Nacional.

entre dois espaços, de abertura ou fechamento. Ali, colocadas sobre a cadeira, no caso, uma cadeira Eames sabe-se, mas sem que se perceba a sua relevância em relação a outros objectos. Percebe-se sim uma sobreposição de camadas historicistas. E que estão desenquadrados, reconfigurados mas seguramente livres de poderem activar o espectador a pensar novamente o objecto, agora re-contextualizado. Afinal um dos grandes interesses do escultor – que nos remete para o gesto duchampiano.

Na obra de Croft é usual a inserção de elementos que emergem cortados ou fragmentados da unidade do objecto, sem nunca perderem a sua orgânica, embora permaneçam como desestabilizadores, que alteram desde logo a forma, mas também o significado estático e aparentemente harmónico. Aproveitando a imagem anterior, para dar como exemplo o que foi referido, é possível ver ao fundo na parede uma escultura – S/título, 2014, espelho e madeira, (Piso 1), Fig.1 – que na sua essência viveria no solo, pois sendo parte de uma mesa seria aí o seu local normal – e já foi exposta dessa forma anteriormente –, mas o que se quer realçar é o facto de uma mesma escultura, ser fragmentada; cortada; reduzida, em si mesma e de forma radical, sendo recolocada de uma outra forma num outro espaço, apesar de, na origem, saber-se que esta peça é uma mesa de um antigo laboratório de química, nitidamente ligada ao trabalho, ao ensaio, à pesquisa, tal qual o trabalho de Croft. E aqui parece um bom momento para citar o artista: “Eu não sou um artista conceptual no sentido de desenhar uma peça e depois mandar executá-la, eu tenho que ir fazendo com o meu corpo, tenho que ir construindo e muitas vezes não sei em que direcção vai. Há uma altura em que eu sei que está acabada, mas não lhe sei dizer porquê.” E aqui percebemos também o seu método; a sua forma de pensar e conceber a obra – ou seja, sem projecto ou esboço. Projecta sim in loco e espacialmente. Se as peças de madeira, as caixas ou portas, nos remetem para a memória, para uma presença ausente, para uma história, ou para relações entre interior exterior e abertura e clausura, afinal de contas as passagens, ou a suspensão das mesmas, a introdução na sua obra da difusão e reflexão de luz – com o vidro e o espelho –, potenciam uma expansão espacial e estética modificando drasticamente a relação da escultura com o espaço e com o espectador, e deste com o espaço. O espelho torna-se um desmultiplicador do espaço e um caleidoscópio, pois a cada momento nos são dadas novas combinações e visualizações. E,

ao invés de que criar um obstáculo na passagem, potencia-a a outros caminhos – metaforizando com a liberdade dada à porta quando deixou de ser porta. O espelho, como o vidro vêem alterar a forma como o espectador confronta e é confrontado pela peça, pois também ele passa a estar integrado de forma fragmentada; inclinada; destorcida ou incompleta, tornando-o ainda mais presente na obra. Criando, mais, movimentos assimétricos, sejam eles corporais – na forte implicação com o espectador – objectuais ou espaciais; uma vez que o espaço, visto através do espelho, se torna múltiplo (tal como nos seus desenhos-gravuras que falaremos mais tarde) imposto pela colocação, sempre insólita, obliqua e desequilibrada, criando inquietação e contradição no espectador, sendo estas contaminações geridas de forma precisa no espaço, e de acordo com este. Como se pode ver na peça da Fig.1, ou na Fig.2, S/título, 2007, ferro e espelho, (Piso 0).

Fig.2 – Transição entre o Piso 0 para o Piso 1, na Galeria da Cordoaria Nacional.

Na maior escultura da exposição, Fig.3, situada no Piso O da Cordoaria, S/título, 2011, ferro, vidro e espelho, é possível ver a integração em conjunto do vidro e espelho, juntamente com a cor, onde se percebe todo um lado espiritual, até pela possibilidade de podermos ‘entrar’ na obra, e onde somos projectados e nos é dada uma outra percepção do espaço e da peça, seja pelo mudança de direcção e duplicidade do espelho, ou pela permeabilidade e repouso visual do vidro, deixando passar a imagem mas não a mesma, e que nos obriga a movimentar na peça; a baixar, a subir, a espreitar ou somente a olhar de um outro ângulo ou plano.

Fig.3 –Piso 0 na Galeria Cordoaria Nacional.

O entrar na obra que foi falado, faz-nos avançar até à última ‘casa’ deste núcleo expositivo. Ou à primeira? Ou à central como charneira processual? Se nos permitirmos pensar numa ligação com a, também, última (ou primeira) sala na FCC? (ver Fig.5). Reflectindo, assim, os dois ‘fins’ ou ‘inícios’ relacionados precisamente no meio da exposição vista como um todo. Residindo aí a génese de continuidade no processo do artista. Mas, por agora, continuemos por aqui. E aqui, ver Fig.4; encontrámos 16 longas lâminas de mármore dispostas pelo chão, entre sobreposições e colagens, como acumulações que nos remetem para o jazigo e para questões da morte, ou da vida, ou ainda da sua suspensão. Podemos movimentar-nos entre ou sobre eles (como na obra de Carl Andre) embora o sobre possa ser uma acção, presa, eventualmente, por questões éticas ou morais, especialmente se conotarmos a peça à morte, ou à dificuldade ainda patente em interagir com uma peça no museu por parte do público. Neste espaço, o maior da Galeria, estão também apresentadas 12 gravuras que nos sugerem um processo tão contínuo, repetitivo e sistemático quanto destrutivo.

Fig.5 - S/Título, 2011, 12 gravuras, água-tinta, água-forte, ponta seca e maneira negra. FCC

Fig.4 – S/título, 2014, 16 Placas de mármore. S/Título, 2011, 12 gravuras, água-tinta, água-forte, ponta seca e maneira negra. Cordoaria.

“Estou a destruir com o mesmo gesto que as construí”, diz Croft. É pois, um processo de adição e subtracção, de rasura e sobreposição ou ocultação. De desgaste que é perceptível na sucessão de gravuras, do vazio ao cheio, do branco ao negro; da abertura ao fechamento. Para que haja possibilidade, de novo, de abertura; de espaço para se reiniciar – o processo; a vida ou a possibilidade de criação. Este entendimento leva-nos à multiplicação já falada, e à ligação com as obras expostas na FCC (ver exemplo na fig.5). Como se lá estivesse o início do seu processo, onde o formato ainda é pequeno, ainda procura ganhar corpo, ainda está limitado, apesar de alguns trabalhos já excederem os limites do papel; onde a cor ou as grelhas geométricas são aplicadas de acordo com o seu método, repetidas até quase à exaustão, e de tal forma acumulativas que quase passam a objectos tridimensionais, como os dois exemplos da Fig.6 e Fig.7.

Fig.5 - Sem título, 2012-14, Tinta-da-china, guache e verniz sobre gravura. SALA 3, na FCC.

Fig.6 - Sem título, 2012-14, Tinta-da-china, guache e verniz sobre gravura. SALA 3, na FCC.

Percebe-se que a utilização da cor tem também um tratamento exaustivo, que é levado ao limite dando a sensação que se tornam metálicos – material escultórico e da arquitectura. Contém também uma enorme sobreposição assimétrica criando níveis, ou planos, distintos que obrigam a uma aproximação e afastamento, confrontando, também aqui, o corpo do espectador a movimentar-se assimetricamente. Percebe-se assim, que todo e qualquer formato ou material trabalhado pelo artista exige do nosso corpo uma disponibilidade e implicação total, tal como o dele, e assim que todos os corpos são precisos para concluir a obra. É que sem o gesto; a acção ou o movimento – não há percurso; sentido ou vida. Miguel Sousa Ribeiro, Novembro de 2014

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