Objeto da Cognição no Mandado de Segurança Individual

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Departamento de Direito Processual

FERNANDO LATORRACA

OBJETO DA COGNIÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL

TESE DE LÁUREA

SÃO PAULO 2013

FERNANDO LATORRACA Nº USP: 6853354

OBJETO DA COGNIÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL

Tese de Láurea apresentada ao Curso de Direito da Universidade de São Paulo, como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador:

Marcelo

Magalhães Bonício

São Paulo 2013

José

FERNANDO LATORRACA

OBJETO DA COGNIÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL

Tese de Láurea apresentada ao Curso de Direito da Universidade de São Paulo, como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito.

APROVADO: ___ de _______________ de 2013.

________________________________________ Prof.: (USP) __________________________________ Prof.: (USP) __________________________ Prof.: Marcelo José Magalhães Bonício (Orientador) (USP)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO E PREMISSAS – p. 04

CAPÍTULO 1 - MANDADO DE SEGURANÇA E TUTELA DIFERENCIADA - p. 07

1.1 - CARACTERÍSTICAS DA TUTELA DIFERENCIADA – p. 10 1.1.1 – TIPICIDADE – p. 10 1.1.2 - LIMITAÇÃO DA COGNIÇÃO – p. 12 1.1.3 - OUTRAS CARACTERÍSTICAS – p. 13 CAPÍTULO 2 - OS REQUISITOS DO MANDADO DE SEGURANÇA – p. 16 2.1. ASPECTOS DE TEORIA DA AÇÃO – p. 19 2.2 - DIREITO LÍQUIDO E CERTO – p. 26 2.2.1. SIGNIFICADO – p. 26 2.2.2. NATUREZA – p. 31 2.3 - ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER – p. 36 2.3.1. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – p. 36 2.3.2. LEGALIDADE E MÉRITO DO MS – p. 39 CAPÍTULO 3 - COISA JULGADA NO MANDADO DE SEGURANÇA – p. 45 3.1. COGNIÇÃO E COISA JULGADA – p. 45 3.2. DECISÃO E COISA JULGADA – p. 47 CONCLUSÕES – p. 49

AGRADECIMENTOS

A Claudia, por todos os momentos da mais bela e intensa fraternidade A Thaís, que eu adoro cada vez mais A Vera Lúcia, Claudio e Maria Helena, por terem feito o possível e o impossível

Aos amigos: Carlos, Daniel, Henrique, Luis Fernando, Lucas, Gustavo, Sayuri, Milly, Bruna, Carolina, Stefanie, Juliano, Tatiane, Rubens,Yuichi, Nilson, Kiyoshi, Vinicius, Guilherme, André e João, pelo exemplo de vida e amizade

Aos professores e professoras, pelo ato de amor que é ensinar

A Deus, pelas coincidências!

APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO E PREMISSAS

O mandado de segurança é importante garantia constitucional destinada à proteção de direitos fundamentais contra abusos ou ilegalidades do Poder Público (CF, art. 5o, LXIX). Assim, sob a perspectiva constitucional, trata-se de uma ação vocacionada à tutela de liberdades.1 Enquanto meio de tutela das liberdades, o instituto tem natureza residual com relação ao habeas corpus e o habeas data. Não se deve olvidar também que, principalmente em sua modalidade coletiva (CF, art. 5o, LXX), estamos diante de um instrumento de cidadania. Nesse aspecto, posiciona-se o mandado de segurança ao lado de institutos como a ação popular, o mandado de injunção e a ação civil pública. Assim, é inevitável que o presente estudo toque o tema da jurisdição constitucional, ainda que o faça circunstancialmente. Nesse sentido, convém que a nossa reflexão tenha ponto de partida nas relações entre constituição e processo. É o que esclarece Ricardo de Barros Leonel:

Dada sua extração constitucional, e a finalidade de proteção em última análise contra o abuso praticado por agentes do Estado em face de direitos inequívocos, é viável enquadrar referido mecanismo processual no contexto do direito processual constitucional, e, mais especificamente, na chamada jurisdição constitucional das liberdades.2

O texto constitucional contém normas de alta densidade política e principiológica.

1

“Trata-se, dentro da função constitucional a que se acha destinado a cumprir, não de singelo procedimento de jurisdição especial contenciosa. Mais do que isto, por força do art. 5o, LXIX, da Carta Política, é ele verdadeira garantia fundamental, de modo que a prerrogativa de manejá-lo equipara-se aos mais importantes direitos do homem reconhecidos pelo Estado Democrático de Direito, a exemplo da vida, liberdade, igualdade, intimidade e liberdade de expressão”. THEODORO JÚNIOR, Humberto, O Mandado de Segurança Segundo a Lei n. 12.016 de 7 de agosto de 2009. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 02. 2

LEONEL, Ricardo de Barros. Tutela Jurisdicional Diferenciada. São Paulo: RT, 2010, p. 145.

É uma decorrência natural do próprio conceito de constituição, cuja gênese histórica representou o compromisso com a organização do poder e a garantia das liberdades. Na contemporaneidade, com os direitos de segunda e terceira dimensão, aprofundou-se a normatividade constitucional através da dogmática dos princípios. Estes princípios enformam e informam toda a ordem jurídica, na qual o direito processual está imerso, desempenhando sua vocação instrumental. As normas da constituição são o substrato necessário para que o processo exista e se desenvolva. Por outro lado, é possível enxergar um (se não concreto, ao menos desejável) vínculo entre o processo e a efetividade das normas constitucionais. Vê-se, portanto, que as relações entre constituição e processo não tem um sentido único. Em verdade, tais relações ostentam um aspecto de reciprocidade, um aspecto vetorial. É, sem dúvida, nesse contexto que o mandado de segurança adquire relevo, enquanto instrumento de proteção do cidadão diante de ilegalidades e abusos cometidos pelo poder público. Plenamente inserido na lógica instrumental, estamos diante de um instituto apropriável pelo processo em sua missão de promover a efetividade dos direitos, de tal sorte que a ação mandamental é elemento da chamada tutela diferenciada dos direitos. E, como veremos, é através da sumarização de seu rito, por meio de fatores como a supressão da fase probatória, que se mostra adequada aos conflitos que exigem desfecho judicial célere. Desde logo, para a coerência do estudo, torna-se indispensável a adoção de certas premissas teóricas fundamentais. São apenas duas as nossas premissas. A primeira delas já está bem sinalizada: o processo é instrumental. Tal premissa nos será essencial no primeiro capítulo, denominado “Mandado de Segurança e Tutela Jurisdicional Diferenciada”. A segunda premissa, da qual extrairemos discussões acerca da admissibilidade da segurança é a seguinte: o direito de ação é abstrato e difere do direito à tutela jurisdicional. Antes de algum esclarecimento sobre o significado e as implicações de cada uma, diga-se desde logo que a adoção de tais premissas é um corte metodológico.

Qualquer estudo de direito processual precisa definir inicialmente qual a visão de processo e qual a visão de ação que seleciona. Sem que essa seleção seja feita, é impossível falar a mesma língua em processo civil. Não seria adequado empreender neste trabalho discussões profundas acerca dessas premissas. Não obstante, podemos apontar alguns aspectos que consideramos essenciais e determinantes em cada uma. É exatamente a instrumentalidade do processo que possibilita o surgimento da tutela jurisdicional diferenciada. A diversificação dos mecanismos processuais somente se justifica se adotarmos uma perspectiva instrumental. É exatamente porque o sistema processual se posiciona como instrumento a serviço da efetividade dos direitos, a serviço da solução às diversas formas de crise jurídica que ocorrem no plano material, que surgem mecanismos de tutela diferenciada. Como veremos, é neste contexto que surge o mandado de segurança, mecanismo de tutela jurisdicional diferenciada. Por outro lado, a identificação de pressupostos de admissibilidade, que se diferenciam do mérito, somente se torna compreensível a partir de uma perspectiva teórica de ação como instituto abstrato, autônomo e diferente do direito à tutela jurisdicional. Este pensamento será de especial utilidade nos raciocínios que procuraremos desenvolver a respeito do mandado de segurança. Adotar um pensamento imanentista significa renunciar à consistência teórica dos pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito. A visão imanentista não é satisfatória para uma boa compreensão de institutos como o mandado de segurança, cujos pressupostos guardam peculiaridades bastante significativas. Como veremos, o mandado de segurança, tal como delineado no texto constitucional e disciplinado na Lei n 12.016/2009, apresenta requisitos razoavelmente complexos. A natureza material ou processual desses requisitos torna particularmente difícil o manejo adequado do instituto.

CAPÍTULO 1. MANDADO DE SEGURANÇA E TUTELA JURISDICIONAL DIFERENCIADA

Cândido

Rangel

Dinamarco,

no

prefácio

à

primeira

edição

de

A

Instrumentalidade do Processo, expôs claramente sua proposta. Em suma, é uma proposta de ruptura das propensões do direito processual ao formalismo e ao isolamento. Ele constata que, na contemporaneidade, o sistema processual tem por missão a efetividade dos direitos. O processo não deve ser visto como um fim em si mesmo. Trata-se de um instrumento a ser utilizado para proporcionar a rápida e justa solução dos conflitos. Nesse contexto, o papel científico do processualista muda radicalmente. Já não é mais possível ao processualista enclausurar-se em uma estrutura lógica, coerente e bem engendrada de conceitos requintados. Isso porque tal estrutura se posiciona de maneira isolada e insensível à realidade do mundo em que deve estar inserida e, desse modo, resta inútil à sociedade. Esse aspecto acaba abalando a confiança no Judiciário. Com os resultados insatisfatórios que o processo entrega aos membros da população, há o agravamento da descrença na Justiça. Demanda permanente da sociedade, o aperfeiçoamento do processo passa, necessariamente, por uma abertura do sistema à desmitificação de suas regras e formas. Imprescindível, pois, empreender um exame do processo pelo ângulo externo, para otimizá-lo. Os parâmetros de tal exame são os compromissos permanentemente assumidos pelo sistema. Isto é, trata-se dos objetivos a perseguir e dos resultados alcançados.

Com efeito, os institutos processuais devem ser avaliados e adaptados segundo uma perspectiva de sua real utilidade, a fim de que o processo sirva para a efetiva realização dos direitos. Todo processo deve servir de instrumento, dando razão a quem tem razão, e garantindo a concretização prática da tutela3.

As novas tarefas do processualista consistem, assim, em definir funções e medir a operatividade do sistema processual. Ensina Cândido Rangel Dinamarco: [...] o processo e as suas teorias e a sua técnica tem a sua dignidade e seu valor dimensionados pela capacidade, que tenham, de proporcionar a pacificação social, educar para o serviço e respeito aos direitos, garantir as liberdades e servir de canal para a participação democrática.4

As principais diretrizes do processo civil moderno são, portanto, a efetividade e instrumentalidade. As noções de efetividade e instrumentalidade do processo ensejam discussões acerca da tutela diferenciada e da tutela adequada. São discussões que, de maneira didática e metódica, nos impulsionarão à melhor compreensão do tema aqui estudado. Para que os direitos possam ser efetivados no processo, se faz necessário um amplo arsenal de formas processuais apto para tanto. Por outro lado, para que o processo seja verdadeiramente instrumental, é preciso que tais formas estejam afinadas com propósito de realizar os direitos, afinadas com o escopo jurídico do processo. Além disso, a instrumentalidade exige que o processo esteja vocacionado à produção de resultados práticos. No atual momento da ciência processual civil, qualquer estudo do processo deve ser feito em função dos resultados a serem por ele alcançados, de modo a proporcionar aos cidadãos a efetiva tutela de seus direitos(...)Assim, toda análise dos institutos processuais deve ser feita dentro de uma perspectiva teleológica, a fim de que o processo, como instrumento de realização de justiça, possa alcançar seus objetivos de pacificação social, de atuação do direito objetivo e de afirmação da autoridade estatal .5

3

PISTILLI, Ana de Lourdes Coutinho Silva. Mandado de Segurança e Coisa Julgada. São Paulo: Atlas, 2006, p. 03 4 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p.12. 5

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p.139.

Neste passo, devemos constatar que o procedimento comum (ordinário e sumário), isto é, o procedimento padrão, se revelou insuficiente. Tal procedimento não foi suficiente para que o Judiciário lidasse com as diversas espécies de crises jurídicas com que se deparou (e ainda se depara) cotidianamente. A percepção de que o procedimento padrão é insuficiente para fazer frente a todos os tipos de crise a que o direito material está sujeito levou o sistema processual à necessidade de adaptação às peculiaridades inerentes às diversas espécies de causa. Isso sob a perspectiva do direito objetivo, ou seja, do sistema processual, da ordem jurídica processual. Aqui a palavra-chave é “adaptação”. Crises jurídicas distintas exigem soluções jurídicas distintas, exigem produção de resultados distintos. Exigem, portanto, distintas formas de tutela jurisdicional. É com esse escopo de adaptação que se fala em tutela diferenciada. Ricardo de Barros Leonel conceitua a tutela diferenciada como:

[...] a proteção jurídica e prática outorgada pelo Estado-juiz resultante da utilização de procedimentos especiais previstos no ordenamento processual, em que a celeridade e efetividade da prestação jurisdicional decorram da limitação da cognição.6

Observe-se que a expressão “tutela diferenciada” inclui tanto os provimentos de urgência (antecipatórios e cautelares) quanto os procedimentos especiais cuja cognição seja, de alguma forma, restrita. Estes últimos, nos quais se inclui o mandado de segurança, por óbvio nos interessam mais de perto. Como podemos constatar, o melhor critério de diferenciação das tutelas está relacionado à extensão e profundidade da cognição operada pelo magistrado. A cognição é elemento central do conceito de tutela diferenciada.

6

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 79.

1.1. Características da Tutela Diferenciada

Este conceito reúne algumas características que justificariam tratamento metodológico e científico próprio. Segundo Ricardo de Barros Leonel, essas características são: tipicidade, limitação da cognição, especificidade do procedimento, inversão do contraditório, hibridismo procedimental, celeridade.7 Adiante, abordaremos cada uma dessas características em análise aplicada ao mandado de segurança, nosso objeto de estudo. Antes disso, note-se que tais características não são desconexas, pelo contrário, apresentam-se coerentemente relacionadas umas com as outras, de tal sorte que a coesão do sistema de tutela diferenciada resta evidente.

1.1.1. Tipicidade

A lei prevê, de maneira objetiva, requisitos específicos para os procedimentos especiais. Requisitos esses desenhados como justificativa de exceção à regra de observância do procedimento comum. Nisso consiste a tipicidade. Dizer que as hipóteses de tutela jurisdicional diferenciada são típicas equivale a dizer que tais hipóteses se justificam diante de requisitos pré-determinados pelo legislador. A lei contém um modelo de procedimento especial forjado a partir de certos pressupostos. Assim, podemos falar em tipos legais de tutela diferenciada. Por outro lado, sob a perspectiva subjetiva, sob a perspectiva do jurisdicionado, o fenômeno pode ser descrito de outra maneira.

7

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 81.

Se os procedimentos de cognição restrita somente são aplicáveis mediante a verificação de condições expressamente previstas na lei, o jurisdicionado deve submeter a demanda a essa verificação. Para utilizar validamente os meios de tutela diferenciada, o jurisdicionado deve demonstrar a presença dos pressupostos previstos no tipo legal. Dito de outra forma, o preenchimento dos requisitos especificamente previstos em lei é indispensável para que o jurisdicionado faça jus ao procedimento especial, para que ele faça jus à via de tutela diferenciada. O raciocínio aqui é, claramente, alusivo à adequação da via eleita. Com a mudança de perspectiva, a palavra-chave deixa de ser adaptação e passa a ser “adequação”. Passamos então a vislumbrar que a tutela, além de diferenciada (adaptada às diversas espécies de crise submetidas ao Judiciário), deve ser adequada (restrita às hipóteses descritas na lei). Avulta em importância o interesse processual, como condição da ação. Evidentemente, nos referimos ao interesse na modalidade adequação. É este o significado de uma tutela adequada.

Se qualquer pessoa toma a iniciativa de propor uma demanda valendo-se de uma das vias de tutela diferenciada, sem preencher as condições abstratamente previstas em lei, fatalmente incidirá na falta de interesse processual, por inadequação da via eleita, provocando o indeferimento da inicial ou a extinção do feito assim instaurado (arts. 267, VI, e 295, III, ambos do CPC). É o que ocorre, por exemplo: com quem ajuíza mandado de segurança sem dispor de prova preconstituída do direito alegado. 8

Nesse contexto, a tipicidade do mandado de segurança resta evidente. O art. 5o, LXIX da CF e o art. 1o da LMS conformam essa tipicidade ao estabelecer requisitos para a concessão da segurança. Mais adiante, neste trabalho, estudaremos a natureza desses requisitos, analisando se estamos diante de pressupostos de admissibilidade ou de parâmetros para aferição do direito material pertinente. Por ora, anote-se a tipicidade do instituto.

Nem sempre a sentença que põe termo à ação de segurança enfrenta o mérito da causa. Como se trata de remédio processual especial, seu 8

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 84.

acolhimento pressupõe a satisfação de requisitos que não são apenas os pressupostos e condições reclamados para as ações em geral.9

1.1.2. Limitação da Cognição

É essa a característica determinante da tutela diferenciada, sem a qual não é possível falar em especialidade do procedimento, sem a qual não se justifica um tratamento processual (no plano legislativo e no plano dogmático) próprio para os instrumentos de tutela tais como o mandado de segurança. Se quisermos conceituar a cognição de maneira singela, podemos dizer que se trata da análise feita pelo juiz dos pontos e questões de fato e de direito para que profira sua decisão.

A cognição é prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium, do julgamento do objeto litigioso do processo.10

Assim, o objeto da cognição corresponde às condições da ação, aos pressupostos processuais e, também, ao mérito da causa. Essa análise é feita em extensão e profundidade, de sorte que a limitação pode se dar em ambos os sentidos.

Poderão existir restrições apenas quanto às matérias que poderão ser examinadas (limitação horizontal) ou apenas quanto à profundidade do exame (restrição vertical), ou ambas conjuntamente. Em todos esses casos, estaremos diante da hipótese, dentro do conceito que adotamos, de tutela jurisdicional diferenciada. Trata-se de opção do legislador na perspectiva do emprego da técnica processual, voltada à obtenção mais célere de provimento de mérito.11.

A extensão, que diz respeito às matérias examinadas diz respeito ao plano horizontal da cognição.

9

THEODORO JÚNIOR, H. Obra Citada, p. 34. WATANABE, Kazuo. Cognição no Processo Civil. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67.

10

11

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 85.

No plano horizontal, a cognição tem por limite os elementos objetivos do processo. Isto é, questões processuais, condições da ação e mérito. Nesse plano, a cognição pode ser plena ou parcial, segundo a extensão permitida. Já a profundidade da cognição, diz respeito ao plano vertical, dando ensejo a outra classificação. No plano vertical, a cognição pode ser classificada, segundo o grau de sua profundidade, em exauriente (completa) e sumária (incompleta). No que tange ao mandado de segurança, a doutrina não está de pleno acordo quanto à existência de limitação cognitiva. A maior parte dos autores12 considera que a cognição no mandado de segurança é plena e exauriente, com o detalhe de que se dá secundum eventum probationis.

No mandado de segurança, a decisão final de mérito, é proferida com esteio em cognição exauriente e, por isso, é capaz de transitar em julgado. O procedimento sumário (ou sumaríssimo) do mandado de segurança, destarte, não afeta a qualidade e a profundidade da cognição a ser desenvolvida pelo órgão julgador, que será exauriente e, portanto, apta a transitar materialmente em julgado.13

A cognição não estaria propriamente limitada, segundo esses autores, estaria apenas condicionada. Ricardo de Barros Leonel apresenta entendimento diverso, no sentido de que existe sim limitação cognitiva no mandado de segurança. Esclarece que essa limitação é constatável em dois aspectos do mandado de segurança. O primeiro aspecto se refere ao meio de prova admitido.

[...] a limitação se dá aqui de forma diversa do que normalmente ocorre nos outros casos de tutela diferenciada, e por força da restrição quanto aos meios (apenas prova documental) dos quais se pode valer o juiz para examinar o mérito.14

O segundo aspecto trazido pelo autor deduz-se das limitações quanto ao pedido. 12

Dentre outros, Kazuo Watanabe e Ana de Lourdes Pistilli.

13

BUENO, Cassio Scarpinella. A Nova Lei do Mandado de Segurança. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 56. 14

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 152.

[...] se é possível extrair do sistema normativo do mandado de segurança uma vedação com relação à formulação, pelo impetrante, de determinada espécie de pretensão - especificamente quanto ao pedido de pagamento de valores em tese devidos, mas não pagos em período anterior à propositura da ação -, a conclusão a que se chega é no sentido de que, também aqui, há limitação à cognição.

Voltaremos a falar sobre cognição no terceiro capítulo deste trabalho, dedicado ao tema da coisa julgada no mandado de segurança.

1.1.3. Outras Características

Inversão do contraditório: Na verdade, trata-se da questão sobre o tempo do processo, sobre quem deve suportar a espera necessária para que obtenha os efeitos práticos pleiteados. No procedimento comum, cabe ao autor esse ônus. É ele quem deve esperar para obter o provimento jurisdicional. Isso ocorre porque, no procedimento comum, parte-se de uma situação de incerteza jurídica, que somente será definida ao final do processo, com a decisão judicial. Até que seja proferida essa decisão, o demandante fica privado do gozo do bem da vida pretendido. Já nos casos de tutela jurisdicional diferenciada, nos procedimentos especiais, essa lógica é invertida. Parte-se de uma situação próxima da certeza jurídica. Não é por outro motivo que, no mandado de segurança, fala-se em direito líquido e certo (tema que será aprofundado mais adiante). Quando estamos diante de um procedimento especial, como o mandado de segurança, “proposta a demanda, e preenchidos os requisitos específicos previstos na lei, há grande probabilidade de que o demandante tenha mesmo razão”.15 Nesse contexto, o ônus do tempo decorrente da duração do processo pode ser redistribuído e recair sobre o demandado.

Hibridismo procedimental:

15

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 87.

Essa característica nada mais é do que a mescla de aspectos de conhecimento, de cautelaridade e de execução em um mesmo procedimento especial.

Celeridade: Trata-se de um objetivo permanente do sistema instrumental, vocacionado para a efetividade. Tal objetivo se afigura especialmente marcante na tutela diferenciada. A ideia é básica: quando se fala em procedimentos especiais, o escopo da lei é, claramente, criar um percurso rápido, um rito que seja, ao menos, mais célere do que o procedimento modelo, padrão. Ensina Ricardo de Barros Leonel:

Isso é feito para se oferecer aos interessados um caminho mais simples para obtenção da decisão de mérito [...]. Essas soluções legislativas direta ou indiretamente guardam relação com a necessidade de maior agilidade para a concessão da tutela jurisdicional.16

O julgado abaixo destaca a celeridade e faz alusão aos elementos de tipicidade, como características essenciais do mandado de segurança.

PROCESSO CIVIL: AGRAVO LEGAL. ARTIGO 557 DO CPC. DECISÃO TERMINATIVA. SERVIDOR PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE PROVA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. EXTINÇÃO DO PROCESSO. I - O agravo em exame não reúne condições de acolhimento, visto desafiar decisão que, após exauriente análise dos elementos constantes dos autos, alcançou conclusão no sentido do não acolhimento da insurgência aviada através do recurso interposto contra a r. decisão de primeiro grau. II - A recorrente não trouxe nenhum elemento capaz de ensejar a reforma da decisão guerreada, limitando-se a mera reiteração do quanto afirmado na petição inicial. Na verdade, a agravante busca reabrir discussão sobre a questão de mérito, não atacando os fundamentos da decisão, lastreada em jurisprudência dominante. III - A essência do mandado de segurança reside na celeridade que deve acompanhar a ação mandamental, fato este diretamente relacionado com a exigência de apresentação do impetrante de prova pré-constituída. Aquele que não prova de plano e de modo insofismável com documentos o que sustenta na petição inicial não pode se valer do rito especial do mandado de segurança. IV - O impetrante não trouxe qualquer prova de ilegalidade ou abuso de poder eventualmente praticado pela d. autoridade apontada como coatora. V - Ao extinguir o processo sem julgamento do mérito, o Juízo de primeiro grau considerou que, para que o mandado de segurança preventivo possa ser deferido, faz-se mister a comprovação de uma iminente ameaça ao direito da parte autora, não tendo o impetrante logrado tal comprovação, já que não mencionou a data da posse, mas apenas quedou-se a dizer "nos próximos dias", apresentando, portanto, apenas o receio de sofrer algum dano, sem demonstrar concretamente a iminência do perigo. VI - É cediço que para lograr êxito no writ deve o impetrante demonstrar de plano direito 16

LEONEL, R. B. Obra Citada, p. 88.

líquido e certo, bem como a ilegalidade ou abusividade do ato impugnado. O mero receio de que não terá prorrogada a data de sua posse inviabiliza o cabimento da impetração do remédio constitucional. VII - Ante à ausência de comprovação da data da posse ou da negativa da Administração sobre o pedido formulado, conflitante está com a finalidade da ação mandamental. VIII Agravo improvido.(AMS 00164762020064036100, DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA MELLO, TRF3 - SEGUNDA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:19/04/2012 ) g.n.

A transcrição desta ementa neste ponto também se revela oportuna porque alude aos principais requisitos do mandado de segurança, quais sejam, o direito líquido e certo e a ilegalidade ou abusividade. É justamente esse o tema do próximo capítulo deste estudo.

CAPÍTULO 2. OS REQUISITOS DO MANDADO DE SEGURANÇA

Dada a matriz teórica que cerca o mandado de segurança, intimamente relacionada aos direitos fundamentais, é evidente que poderíamos fazer um estudo circunscrito ao arquétipo constitucional do instituto. Mas não é esse o propósito deste trabalho. Nosso enfoque é predominantemente processual. Nesse sentido, o chamado “modelo constitucional” do mandado de segurança nos interessa na exata medida em que dele se retiram os requisitos da ação de segurança. Mais ainda, nos interessa a maneira pela qual tais requisitos se inserem na técnica do processo civil Analisemos, então, o dispositivo constitucional pertinente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Um primeiro dado que podemos extrair da leitura do dispositivo constitucional é o caráter residual do mandado de segurança. Como se sabe, o mandado de segurança é um dos institutos identificados pela doutrina como remédios constitucionais. Trata-se,

na

verdade,

de

garantias

fundamentais

previstas

no

texto

constitucional: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, ação popular, mandado de injunção. Cada uma dessas garantias tem sua hipótese bem delineada na Constituição Federal. O habeas corpus, por exemplo, é vocacionado à tutela da liberdade de locomoção. Já o habeas data, se direciona à obtenção ou retificação de informações sobre a pessoa do impetrante em bancos de dados de caráter público. De certa forma, as hipóteses acima descritas poderiam ser identificadas como direitos líquidos e certos (utilizamos essa expressão aqui em seu sentido mais simplificado: situação demonstrável de plano, por meio de prova documental). Entretanto, o próprio texto da Constituição exclui essas hipóteses do âmbito de tutela do mandado de segurança. Nesse sentido, podemos dizer que o mandado de segurança, enquanto remédio constitucional, é residual ou subsidiário com relação ao habeas data e ao habeas corpus. Isto é, um juízo a respeito do eventual cabimento de outros remédios constitucionais deve anteceder o manejo do mandado de segurança. Além desse caráter residual, a Constituição deixa claro que o mandado de segurança se presta à tutela de direito líquido e certo. Temos aqui o núcleo conceitual do mandado de segurança. Este requisito ostenta importância singular para o nosso trabalho. Por isso, será estudado com a devida profundidade logo adiante. Analisaremos então o significado e a natureza do direito líquido e certo, como aspectos essenciais para a compreensão do mandado de segurança. A Constituição também fala em ilegalidade ou abuso de poder. E aqui temos um outro requisito que também merecerá destaque e análise aprofundada neste capítulo. Por fim, temos o requisito referente à autoridade coatora: autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Trata-se da autoridade que figurará no polo passivo da demanda, constituindo a legitimidade passiva em cada caso concreto. Não nos interessa de perto esse requisito, porque não afeta de maneira decisiva o nosso objeto de estudo. Ademais, a própria Lei 12.016/2009, e também a jurisprudência, esclarecem bem o sentido dessa expressão (autoridade coatora), de modo que se torna desnecessária uma análise mais profunda a esse respeito. Temos, portanto, como requisitos constitucionais de particular importância e complexidade: direito líquido e certo e a ilegalidade ou abuso de poder.

A concessão de mandado de segurança depende, pois, de: a) ilegalidade ou abuso de poder (cometida por autoridade); b) existência de direito líquido e certo (não protegido por habeas corpus).17

Analisemos então o artigo 1º, caput, da Lei 12.016/2009, que disciplina o mandado de segurança: Art. 1º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. (grifo nosso).

Como se pode notar, a LMS praticamente repete o dispositivo constitucional previsto no art. 5º, LXIX. Nesse sentido, os requisitos trabalhados neste capítulo restam intactos e podem ser considerados requisitos, além de constitucionais, legais, uma vez que foram acolhidos pela legislação. Nem poderia ser diferente. Não é dada ao legislador a possibilidade de minorar garantias constitucionais, ou de diminuir-lhes o alcance. Parece-nos que agiu com prudência o legislador ao repisar a redação do art. 5o, LXIX, da CF em seus aspectos essenciais. Desse modo, evitou incorrer em inconstitucionalidade material, o que fatalmente ocorreria caso previsse requisitos diversos para o manejo ou a concessão de mandado de segurança.

17

VIDIGAL, Luiz Eulálio de Bueno. Da imutabilidade dos julgados que concedem mandado de segurança. Tese de Titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 1953, p. 144.

2.1. Aspectos de Teoria da Ação

A resposta adequada aos questionamentos colocados neste trabalho depende de uma das categorias fundamentais da Teoria Geral do Processo: a ação. Nesse momento, nos interessa de perto a teoria da ação. E então precisamos retomar e desenvolver uma das premissas deste trabalho, exposta no capítulo introdutório: o direito de ação é diferente do direito à tutela jurisdicional. Em certa etapa da evolução do direito processual, a ação conquistou sua autonomia com relação ao direito material. Mais especificamente quanto ao Processo Civil, pode-se dizer que o direito de ação se desvinculou do Direito Civil material. Para que existisse a ação, para que um sujeito tivesse ação, não mais seria necessário um lastro direto e imediato com determinado direito subjetivo previsto na lei material. Era uma quebra de paradigma. Sem dúvida, essa etapa foi importante para que se desenvolvesse a doutrina processualista de maneira consistente.

Em outras palavras, a autonomia do direito de ação serviu para atribuir consistência teórica à ciência processual. Uma vez libertado das amarras do direito material, o processualista estava livre para formular seus próprios conceitos, para estudar a relação processual como objeto jurídico independente. Entretanto, a evolução da doutrina processualista não parou nessa etapa. Outros estudos foram realizados e, em certos momentos, novos paradigmas se impuseram. Como nós já vimos, o paradigma central do Direito Processual contemporâneo é a instrumentalidade. E a instrumentalidade lança novas luzes sobre a Teoria da Ação. Por vários motivos, torna-se indispensável reavaliar o direito de ação. Um dos motivos que impõem essa nova perspectiva é a disciplina constitucional do tema. A Constituição de 1988 garante o acesso à Justiça no art. 5º, inciso XXXV.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Trata-se da garantia constitucional da ação. É, na verdade, um aspecto fundamental da cidadania, elemento axiológico privilegiado pela Constituição de 1988. Pode-se dizer que o referido dispositivo constitucional cria um direito de demandar, titularizado por todos. Direito esse que, na perspectiva constitucional, é ilimitado. Ou seja, todos têm o direito de deduzir suas pretensões em juízo. Essas pretensões, veiculadas no processo serão, obrigatoriamente analisadas por um juiz ou órgão jurisdicional. Esse é o conteúdo da garantia constitucional da ação. É o conteúdo do direito de demandar. A primeira dimensão teórica da ação é, assim, a dimensão constitucional. Uma segunda dimensão é aquela imposta pela Teoria Geral do Processo, plasmada na legislação infraconstitucional. E aqui o direito de ação não é ilimitado.

Embora abstrato e ainda que até certo ponto genérico, o direito de ação pode ser submetido a condições por parte do legislador ordinário. São as denominadas condições da ação (possibilidade jurídica, interesse de agir, legitimação ad causam), ou seja, condições para que legitimamente se possa exigir, na espécie, o provimento jurisdicional.18

O julgamento do pedido, isto é, a afirmação de que o autor (ou, no caso do mandado de segurança, o impetrante) tem ou não razão está condicionada à superação das questões de admissibilidade da demanda. Referimo-nos à dicotomia, bastante cara ao direito processual, que segrega a admissibilidade do mérito. A Teoria Geral do Processo desenvolveu requisitos de admissibilidade do julgamento de mérito. Notadamente, as condições da ação representam limites claros ao exercício efetivo do direito de ação. O direito amplo de demandar está, assim, condicionado pela legitimidade das partes, pelo interesse processual e pela possibilidade jurídica do pedido. São, na verdade, condições para o exercício do direito de ação, isto é, condições para que se possa exigir o provimento jurisdicional de mérito. Tais condições estão fundadas no princípio da economia processual e consistem em desdobramentos da ideia de utilidade do provimento jurisdicional pedido. Por outro lado, para que a relação processual se desenvolva de maneira válida, resultando em um provimento jurisdicional válido, é necessário verificaros chamados pressupostos processuais. A doutrina mais autorizada sintetiza esses requisitos nesta fórmula: “uma correta propositura da ação, feita perante uma autoridade jurisdicional, por uma entidade capaz de ser parte em juízo”.19 (g.n.) Podemos afirmar, então, que o direito a um provimento jurisdicional de mérito, favorável ou não ao autor, é outorgado a quem, além de amparado pelas três condições da ação, satisfizer os pressupostos processuais. Trata-se do conteúdo do direito a um provimento jurisdicional de mérito, segunda dimensão teórica da ação. 18

CINTRA, Anttônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 288. 19 CINTRA, A. C. A., et al. Obra Citada, p. 321.

Os pressupostos processuais inserem-se entre os requisitos de admissibilidade do provimento jurisdicional. Uma sentença de mérito só poderá ser proferida (não importando ainda se favorável ou desfavorável) se estiverem presentes esses requisitos gerais. Diferentemente da alemã, a doutrina brasileira distingue com nitidez as condições da ação e os pressupostos processuais, incluindo essas duas ordens de exigências na categoria mais ampla dos pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito.20(g.n.)

Já a terceira dimensão teórica do direito de ação, constitui o direito à tutela jurisdicional, conferido apenas àquele que perante o direito material tiver o direito que alega. Em palavras singelas, a tutela jurisdicional é garantida àquele que tiver razão. Note-se bem a escalada de situações jurídicas. Partimos do direito de demandar, constitucionalmente assegurado. Passamos pelos requisitos de admissibilidade da demanda, que configuram o direito a um provimento de mérito. E, por fim, chegamos ao direito à tutela jurisdicional, resultado último, que confere sentido ao processo. A Lei 12.016/2009 reflete em seu texto essa dicotomia “admissibilidade/mérito”. A LMS adota as condições da ação e os pressupostos processuais. Leonardo Greco, em sua monografia sobre a natureza jurídica do mandado de segurança, tratou do tema das condições da ação. Como se sabe, são três as condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse processual e legitimidade para agir. Quanto à possibilidade jurídica do pedido, o mandado de segurança não apresenta qualquer peculiaridade. O autor não pode formular pedido que esteja em frontal contradição com o ordenamento jurídico em vigor ou que seja expressamente inadmitido pela lei. Em outras palavras, o Poder Judiciário não pode apreciar determinado pedido quando este já foi excluído a priori pelo ordenamento jurídico. Passemos à análise do interesse de agir.

Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o estado interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem na sociedade), não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada.21(g.n.) 20 21

CINTRA, A. C. A., et al. Obra Citada, p. 322. CINTRA, A. C. A., et al. Obra Citada, p.289.

O interesse processual, na modalidade necessidade, encontra-se especificamente delineado no art. 5º da LMS.

Art. 5º Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução; II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo; III - de decisão judicial transitada em julgado. (grifo nosso)

Não cabe neste estudo aprofundar a análise de cada uma dessas hipóteses.22 Note-se, porém, que elas refletem o interesse-necessidade, uma das condições da ação. O interesse processual na modalidade adequação, como já afirmamos no capítulo precedente e vamos aprofundar logo adiante, apresenta como aspecto central a exigência de direito líquido e certo. Como vimos, essa exigência é reflexo da tipicidade do instituto, que lhe confere a natureza de instrumento de tutela jurisdicional diferenciada. Por outro lado, a exigência de que o direito não seja amparável por habeas corpus ou habeas data também constitui aspecto do interesse-adequação no mandado de segurança. Por fim, quanto à legitimidade, que Leonardo Greco a designa como “qualidade para agir”, pode ser conceituada como a pertinência subjetiva da ação. Em outras palavras, trata-se da titularidade do interesse substancial em conflito no processo. Essa condição também não apresenta, no mandado de segurança, peculiaridade que justifique análise pormenorizada nesse trabalho. Os pressupostos processuais, tal como a regularidade formal da petição inicial, se encontram expressos na LMS, especificamente no art. 6º.

Art. 6º A petição inicial, que deverá preencher os requisitos estabelecidos pela lei processual, será apresentada em 2 (duas) vias com os documentos que instruírem a primeira reproduzidos na segunda e indicará, além da autoridade coatora, a pessoa jurídica que esta integra, à qual se acha vinculada ou da qual exerce atribuições.

22

A hipótese de MS contra ato judicial isoladamente, já renderia tema suficiente para mais de uma monografia.

[...] § 5º Denega-se o mandado de segurança nos casos previstos pelo art. 267 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. (g.n.)

Também a não ocorrência do prazo decadencial para impetração constitui pressuposto de desenvolvimento válido da relação processual do mandado de segurança. Trata-se do prazo previsto no art. 23, da LMS.

Art. 23. O direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos 120 (cento e vinte) dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado.

Um outro dado importante é que a aferição dos requisitos de admissibilidade deve se dar preferencialmente logo no início da tramitação do writ.

É dever do juiz a verificação da presença das condições da ação o mais cedo possível no procedimento, e de ofício, para evitar que o processo caminhe inutilmente, com dispêndio de tempo e recursos, quando já se pode antever a inadmissibilidade do julgamento de mérito. 23

Em outras palavras, caso o magistrado se depare com a falta de um pressuposto do julgamento de mérito da segurança, deve indeferir a petição inicial. É o que a LMS disciplina em seu art. 10.

Art. 10. A inicial será desde logo indeferida, por decisão motivada, quando não for o caso de mandado de segurança ou lhe faltar algum dos requisitos legais ou quando decorrido o prazo legal para a impetração.

Esse dado é importante porque compõe um dos aspectos mais complexos da cognição no mandado de segurança. O que verdadeiramente nos intriga a respeito do mandado de segurança é que, aparentemente, em nenhum outro instituto do sistema processual, a linha que separa o juízo de admissibilidade do juízo de mérito é tão tênue. E essa distinção adquire relevância, como veremos, no estudo da coisa julgada no mandado de segurança e também na possibilidade de renovação do pedido. Os artigos 6º, §6º e 19, da Lei 12.016/2009 refletem assim dispõem:

Art. 6º[..] 23

CINTRA, A. C. A., et al. Obra Citada, p. 291.

§ 6º O pedido de mandado de segurança poderá ser renovado dentro do prazo decadencial, se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito. Art. 19. A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais.

Ocorre que a delimitação do que seja o mérito da segurança não é simples. Mais adiante neste trabalho, quando tratarmos da legalidade ou abusividade como requisito para concessão do mandado de segurança,apresentaremos uma proposta para essa delimitação. A própria confusão terminológica reflete essa dificuldade. Confunde-se o cabimento e a concessão do MS. Em outras palavras, é particularmente complexo distinguir direito de ação, direito a um provimento jurisdicional de mérito e direito à tutela jurisdicional, quando se trata da ação de segurança.

A distinção entre o que realmente seja requisito de cognoscibilidade da ação de mandado de segurança e o que seja mérito não envolve uma discussão meramente formal: a confusão entre juízo de admissibilidade e juízo de mérito pode acarretar prejuízo à realização do direito de que o impetrante se diz titular e impedir a realização da tutela prometida pelo direito material. Prejudicando, consequentemente, a almejada efetividade do processo.24

É o que veremos por meio do estudo dos requisitos do mandado de segurança e das decisões que aferem a presença ou ausência desses requisitos.

24

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 144.

2.2. Direito Líquido e Certo

Dentre tais requisitos, avulta em importância um ponto fundamental: o “direito líquido e certo”. Esse é o conceito-chave, a pedra de toque para a compreensão do mandado de segurança. A nosso ver, qualquer tentativa de sistematização do mandado de segurança tem de partir, obrigatoriamente, da definição do que seja direito líquido e certo. Estando essa expressão inscrita na constituição federal, a ela estarão sujeitos o legislador ordinário e o doutrinador, sob pena de fazerem trabalho irreal, afastado do direito brasileiro, onde surgiu aquela expressão no direito público.25

25

BARBI, Celso Agrícola. Do Mandado de Segurança. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 50.

Isto é, as disposições legais que regulam o mandado de segurança não devem estar afastadas do sentido do preceito constitucional pertinente. O legislador ordinário deve empreender um esforço no sentido de que a lei esteja conceitualmente afinada com os preceitos constitucionais. Se o constituinte adota um conceito de direito líquido e certo e o legislador adota conceito diverso, haverá distorções no sistema procedimental. Da mesma forma, os intérpretes das normas, se adotarem conceitos diversos de direito líquido e certo, chegarão às mais díspares conclusões.

2.2.1. Significado

Direito líquido e certo foi a expressão consagrada pela constituição de 1988. Historicamente, porém, o mandado de segurança surgiu na ordem jurídica nacional com a Constituição de 1934, que o direcionou à defesa de “direito certo e incontestável”. Note-se a divergência entre as expressões adotadas. A antiga expressão, “direito certo e incontestável”, ao submeter-se à análise doutrinária e jurisprudencial, gerou certas discussões. A questão que dava ensejo à inquietude era se a expressão se referia ao direito objetivo ou ao direito subjetivo. Dito de outra forma, a questão era se a certeza e incontestabilidade estavam nos fatos ou na razão jurídica. Podemos traduzir o debate em linguagem processual nos seguintes termos: o magistrado deveria aferir o alcance do direito certo e incontestável na causa de pedir próxima ou na causa de pedir remota? Vale frisar a consequência prática da polêmica: o entendimento de que a expressão tem referencial no direito objetivo reduz o âmbito de incidência do mandado de segurança às situações de baixa complexidade jurídica. Inicialmente, foi esse o entendimento acolhido pela doutrina e jurisprudência. Via-se o direito certo e incontestável como aquele contra o qual não são oponíveis quaisquer argumentos razoáveis. Ao direito certo e incontestável apenas seria possível opor meras alegações, manifestamente improcedentes, “é o direito translúcido, evidente, acima de toda dúvida razoável e apurável de plano, sem detido exame nem laboriosas cogitações.”26 26

Parecer de Carlos Maximiliano, mencionado por José de Castro Nunes, in Do Mandado de Segurança. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 57

O referencial basilar para aferição do direito certo e incontestável seria, assim, o direito objetivo. Essa foi a posição sustentada pela maioria dos doutrinadores e magistrados (evidentemente, cada qual com suas peculiaridades teóricas), dentre os quais podemos citar Castro Nunes, Temístocles Brandão Cavalcanti, Miguel Seabra Fagundes, Alexandre Delfino de Amorim Lima e Luiz Antonio de Andrade. 27 Pontes de Miranda, por sua vez, sustentou posição diversa:

Desde que não há questão de fato a respeito do direito, ele é certo (objetivamente) e incontestável (objetivamente) e incontestável (subjetivamente); pois as questões de direito, por mais renhidas que sejam, não tornam incertos e incontestáveis os direitos.28

Assim, seriam as questões de fato as determinantes para qualificação do direito como certo e incontestável. O Ministro Costa Manso, em voto proferido no MS 333, de 9 de dezembro de 1936, construiu um raciocínio sólido a respeito da questão, sinalizando a resolução do problema nos seguintes termos: Quem requer o mandado defende o ‘seu direito’, isto é, o direito subjetivo reconhecido ou protegido pela lei. O direito subjetivo, o direito da parte, é constituído por uma relação entre a lei e o fato. A lei, porém, é sempre certa e incontestável [...]. O fato é que o peticionário deve tornar certo e incontestável, para obter mandado de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência para esclarecer os textos obscuros ou harmonizar os contraditórios.29

A nova locução, direito líquido e certo, originou-se na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e possibilitou que a polêmica fosse gradualmente se extinguindo.

Como anota Maria de Lourdes Pistilli:

27

A posição de cada qual desses autores é detalhada por Luiz Eulálio de Bueno in Da imutabilidade dos julgados que concedem mandado de segurança. Tese de Titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 1953, p. 136 – 140. 28 VIDIGAL, Luiz Eulálio de Bueno. Da imutabilidade dos julgados que concedem mandado de segurança. Tese de Titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 1953, p. 140. 29 BARBI, C. A. Obra Citada, p. 53.

A expressão ‘direito líquido e certo’ não guarda relação com a possível complexidade das questões a serem submetidas à apreciação do julgador, como já se entendeu em épocas passadas, mas sim com a comprovação dos fatos, por meio de prova documental pré-constituída juntada à inicial.30

De fato, foi esse o entendimento que prevaleceu na jurisprudência e mereceu acolhida no Superior Tribunal de Justiça.

Está superado o entendimento de que eventual complexidade das questões (fáticas ou jurídicas) redunda no descabimento do mandado de segurança. O que é fundamental para o cabimento do mandado de segurança é a possibilidade de apresentação de prova documental do que alegado pelo impetrante e a desnecessidade de produção de outras provas ao longo do procedimento. Nisso - e só nisso - reside a noção de ‘direito líquido e certo’.31

A súmula 625, do Supremo Tribunal Federal compartilha o entendimento, nos seguintes termos: “Controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança”.32

Humberto Theodoro Júnior, em seus comentários à Lei 12.016, de 2009, bem sintetizou essas ideias, enfatizando a irrelevância da eventual complexidade da tese jurídica para aferição do direito líquido e certo.

O que importa não é a maior ou menor complexidade da tese jurídica, mas a prova pré-constituída (documental) do seu suporte fático [...] a controvérsia acaso existente apenas sobre a matéria de direito, por complexa que seja, não impedirá a concessão do mandado de segurança. Interpretar, definir e aplicar o direito é função técnica e dever institucional do órgão judicial, de que não pode eximir-se a pretexto de dificuldades exegéticas.33

30

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 76.

31

STJ, 2ª Turma, RMS 22.863 - MG, Rel. Min. Humberto Martins, j.un. 14.4.2009; STJ, 5ª Turma, AgRg no RMS 27.626 - RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, j.un. 2.12.2008; STJ, 6ª Turma, RMS 13.893 - MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. un. 26.02.2008. 32 “A súmula 625, por seu turno, também tem valia para afastar, de vez, antiga orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a complexidade das questões jurídicas trazidas para discussão com o mandado de segurança seria óbice para o cabimento (conhecimento) do mandado de segurança. O que releva, para a superação de seu juízo de admissibilidade, é que os fatos sejam adequadamente provados de plano, sendo despicienda qualquer dilação probatória, ao que é arredio o procedimento do mandado de segurança” BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Volume II, Tomo III, 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 45. 33

THEODORO JÚNIOR, H. Obra Citada, p. 20.

Portanto, doutrina e a jurisprudência harmonizaram-se no sentido de que direito líquido e certo significa fato suficientemente provado de plano, por meio de documentos apresentados com a inicial. Celso Agrícola Barbi acentua a natureza processual do conceito de direito líquido e certo, da seguinte maneira:

Como se vê, o conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois esta é adequada a uma demonstração imediata e segura dos fatos.34

Ou seja, o impetrante tem o ônus de produzir a prova pré-constituída dos fatos alegados, de apresentar essa prova no momento em que propõe a demanda. Desde que o fato esteja suficientemente comprovado, o juiz resolverá as questões jurídicas pertinentes, por mais complexas e intrincadas que sejam35. A controvérsia sobre os fundamentos jurídicos da impetração não afasta o cabimento da segurança. Para exemplificar, trazemos o seguinte julgado: PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO RETIDO. REITERAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. INTERESSE PROCESSUAL. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PIS. COFINS. CSSL. COOPERATIVA DE TRABALHO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A TERCEIROS. ATO NÃO COOPERATIVO. INCIDÊNCIA. ART. 6º, I, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 70/91. REVOGAÇÃO. MEDIDA PROVISÓRIA. VALIDADE. LEI N.º 10.833/03. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 135/2003. ANTERIORIDADE NONAGESIMAL. LEGITIMIDADE DA RETENÇÃO. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VÍCIOS DE ILEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. 1. Agravo retido não conhecido, uma vez que a parte deixou de reiterá-lo expressamente nas razões ou na resposta de apelação, conforme o disposto no art.523, § 1º, do Código de Processo Civil. 2. Sendo certo o fato, mesmo que o direito seja altamente controvertido, é cabível o mandado de segurança, via que se mostra necessária e útil (adequada) para proteção de pretenso direito. (...) (AMS 00022411920044036100, DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA, TRF3 - SEXTA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:12/01/2011 PÁGINA: 167) (g.n.)

34

35

BARBI, C. A. Obra Citada, p. 57.

“O direito, quando existente, é sempre líquido e certo; os fatos é que podem ser imprecisos e incertos, exigindo comprovação e esclarecimentos para propiciar a aplicação do Direito invocado pelo postulante”. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 38, nota 22.

Coerentemente o STJ não avalia a presença ou ausência de direito líquido e certo por ocasião do recurso especial em mandado de segurança. Isso porque o direito líquido e certo se refere aos fatos, de modo que tal aferição implicaria revolver o acervo probatório, isto é, as provas documentais. É o entendimento adotado no seguinte julgado:

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA.ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. SÚMULA 7/STJ. ENTES DA FEDERAÇÃO SOLIDARIAMENTE RESPONSÁVEIS. PRECEDENTES. 1. Aferir a existência do direito líquido e certo para concessão do mandado de segurança demandaria, não apenas analisar se o direito foi aplicado corretamente, mas também adentrar no contexto-fático probatório, o que, nesses casos, é vedado no âmbito do apelo nobre por esbarrar na Súmula nº 7/STJ. 2. Os entes que compõem a federação são solidariamente responsáveis nas demandas que objetivam o fornecimento de medicamentos àqueles que necessitam de tratamento médico. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido. ...(AGRESP 201201341938, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:28/06/2013) (g.n.)

Como se sabe, na via especial, o exame fica restrito às questões de Direito. Não pode haver valoração dos fatos, não se pode revolver o acervo probatório. Desse modo, em recurso especial não se pode aferir a liquidez e certeza que ensejou a impetração de mandado de segurança. “Assim, liquidez e certeza referem-se à demonstração por prova documental pré-constituída dos fatos que fundamentam a impetração”.36

Em conclusão, o direito líquido e certo tem seu significado determinado pelas circunstâncias de fato que constituem a causa de pedir remota.

2.2.2. Natureza

A questão que inevitavelmente se coloca, nesse ponto, é a da natureza do direito líquido e certo. Isto é, a maneira pela qual o requisito em tela pode ser identificado como condição da ação, pressuposto processual ou mérito.

36

PISTILLI, A. L. Obra Citada, p.141.

Em que pese a ampla diversidade de posições a respeito do tema, a doutrina majoritária identifica o direito líquido e certo com aspecto da admissibilidade da ação, isto é, que não se confunde com o mérito. É como expõe Marcus Claudius Saboia Rattacaso:

De qualquer forma, consoante expõe a doutrina majoritária, a decisão que declara a inexistência de direito líquido e certo do requerente não passa de sentença terminativa, afirmando, apenas, que o mandado de segurança não se presta para tutelar o pedido do autor, tal como apresentado na peça vestibular e nos documentos que acompanham a inicial.37

Celso Agrícola Barbi, designa a liquidez e certeza do direito como primeira condição da ação de segurança.

Enquanto, para as ações em geral, a primeira condição para sentença favorável é a existência da vontade da lei cuja atuação se reclama, no mandado de segurança, isto é insuficiente; é preciso não apenas que haja o direito alegado, mas também que ele seja líquido e certo. Se ele existir, mas sem essas características, ensejará o exercício da ação por outros ritos, mas não pelo específico do mandado de segurança.38

Ana de Lourdes Pistilli, empreendendo criterioso trabalho sobre o tema que estamos estudando, sustenta que se trata de condição da ação específica do mandado de segurança. É o que se depreende do seguinte trecho, que, por oportuno, trazemos à colação:

[...] a falta de direito líquido e certo torna o impetrante carecedor da ação, por falta de interesse de agir, na modalidade inadequação da via processual. Constitui, portanto, condição específica do mandado de segurança a exigência de prova documental. Examinar se o direito invocado é líquido e certo envolve o juízo de admissibilidade dessa ação constitucional e está ligado a uma condição especial do mandado de segurança.39

O raciocínio gira em torno de um fator único: a presença ou ausência de prova pré-constituída. Para esclarecer e exemplificar, trazemos os seguintes julgados:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL - MANDADO DE SEGURANÇA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO - ADEQUAÇÃO 37

MAIA FILHO, N. N., et al. Obra Citada, p. 259.

38

BARBI, C. A. Obra Citada, p. 50. PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 75.

39

DA VIA ELEITA - INTERRUPÇÃO DO TRATAMENTO - IRRELEVÂNCIA - DIREITO À SAÚDE - DEVER DO ESTADO - OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS (SUS). 1. A liquidez e certeza do direito referem-se à possibilidade de sua comprovação de plano, mediante prova pré-constituída. In casu, a impetrante apresentou prova documental suficiente e bastante ao reconhecimento, ao menos em tese, do direito líquido e certo postulado, sendo desnecessária a dilação probatória. 2. A despeito do caráter eminentemente satisfativo da medida, compete a este Tribunal pronunciar-se sobre o mérito da questão posta em exame, ante sua relevância e para que o interesse do impetrante seja efetivamente assegurado. O direito almejado foi reconhecido pelo Juízo singular pelo tempo em que a impetrante necessitou fazer uso do fármaco, razão pela qual a presente ação trouxe pleno resultado útil. Sendo assim, não se há falar de ausência de interesse de agir. 3. O direito à saúde, constitucionalmente assegurado, revela-se como uma das pilastras sobre a qual se sustenta a Federação, o que levou o legislador constituinte a estabelecer um sistema único e integrado por todos os entes federados, cada um dentro de sua esfera de atribuição, para administrá-lo e executá-lo, seja de forma direta ou por intermédio de terceiros (...). 7. Remessa oficial e apelações improvidas.(AMS 00270760320064036100, DESEMBARGADOR FEDERAL MAIRAN MAIA, TRF3 - SEXTA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:22/11/2012.) (g.n.) TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. PRELIMINARES. ILEGITIMIDADE PASSIVA. INADEQUAÇÃO DA VIA MANDAMENTAL. REJEITADAS. ANTERIOR AÇÃO MANDAMENTAL SOBRE PARTE DOS DÉBITOS. COISA JULGADA. OCORRÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL GARANTIDA POR FIANÇA BANCÁRIA. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CADIN. SUPENSÃO. 1. Corretamente indicado como autoridade coatora o Procurador-Chefe da Fazenda Nacional em São Paulo, por ter a empresa sede social na Capital. Preliminar de ilegitimidade passiva rejeitada. Inteligências das normas do Regimento Interno da PGFN (art. 36, III, "j") e da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 3/2007 (art. 1º, II). 2. Adequação da via eleita. A liquidez e certeza do direito referem-se à possibilidade de sua comprovação de plano, mediante prova préconstituída. No caso, a apreciação do pleito deduzido na exordial prescinde de dilação probatória e a impetrante apresenta prova documental préconstituída suficiente e bastante ao reconhecimento, ao menos em tese, do direito líquido e certo postulado, revelando-se adequada, portanto, a via eleita. (...) 7. Apelação e remessa oficial improvidas, reconhecendo-se de ofício a ocorrência de coisa julgada quanto a algumas inscrições. (AMS 00019475920074036100, DESEMBARGADOR FEDERAL MAIRAN MAIA, TRF3 - SEXTA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:23/08/2012 ..FONTE_REPUBLICACAO:.) (gn.)

Se o impetrante não apresentar de plano a referida prova, será o caso de carência de ação, por falta de interesse-adequação para agir. Outra sorte não terá o impetrante se a prova apresentada for insuficiente ou incompleta, contestável por meio de mecanismos processuais tais como perícias ou oitivas de testemunhas. Essa mesma posição, qual seja, de que se trata de condição da ação específica do mandado de segurança, é compartilhada por Napoleão Nunes Maia Filho.

O direito de agir mediante mandado de segurança pressupõe condições específicas dotadas de alta definição, sintetizadas na prévia demonstração documental ou material da existência de direito líquido e certo, vulnerado ou ameaçado de vulneração por ato de autoridade.40

Diversamente, Germana Maria Leal de Oliveira, em artigo publicado da Revista Dialética de Direito Processual, conclui que o direito líquido e certo é um pressuposto processual, sem o qual a relação jurídica não pode ser apreciada.41 Humberto Theodoro Júnior, comentando os dispositivos da Lei 12.016, de 2009, classifica o direito líquido e certo como pressuposto especial do mandado de segurança.42 Cassio Scarpinella Bueno, por sua vez fala em exigência constitucional assimilável ao interesse de agir.

Importa evidenciar, por fim, que a Lei n. 12.016-2009 não traz nenhum elemento que infirme o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de que a ausência de direito líquido e certo conduz à extinção do processo sem julgamento de mérito, nos moldes do ar. 267, VI, do Código de Processo Civil, por ser aquela exigência constitucional assimilável ao interesse de agir.43

Exemplificando a hipótese acima descrita, trazemos o seguinte julgado:

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. ARTIGO 267, VI DO CPC. INADEQUAÇÃO DA VIA. APELAÇÃO DO IMPETRANTE DESPROVIDA. I. O remédio constitucional do Mandado de Segurança tem por finalidade assegurar a proteção a direito líquido e certo de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, nos termos do inciso LXIX, do artigo 5º, da Constituição da República. II. Cumpre, primeiramente, analisar a adequação da via eleita, verificando, se presente o interesse processual que se traduz no binômio necessidade-adequação. O objeto do presente "mandamus" é a impugnação do ato administrativo que indeferiu o pleito de aposentadoria por tempo de serviço. III. Com relação à questão de comprovação do tempo de serviço, de natureza especial ou comum e, ainda, da concessão da aposentadoria, com o pagamento de parcelas em atraso, não são cabíveis na estreita via do mandado de segurança, cujo exame dependeria de dilação probatória para o que é inadequada esta ação 40

MAIA FILHO, N. N., et al. Obra Citada, p. 99.

41

OLIVEIRA, Germana Maria Leal de. O Direito Líquido e Certo no Procedimento do Mandado de Segurança: Cognição Exauriente Secundum Eventum Probationis e Reflexos na Súmula 304 do STF. Revista Dialética De Direito Processual n18, p. 30. 42

THEODORO JÚNIOR, H. Obra Citada, p. 19.

43

BUENO, C. S. Obra Citada, p. 54.

especial. IV. A análise do pedido de aposentadoria, por idade, especial ou por tempo de serviço do segurado, fica sujeita à verificação da autoridade administrativa, nada obstando, no entanto, que a parte impetrante busque a comprovação de seu direito, utilizando as vias judiciais ordinárias. V. Embora o impetrante aduza em suas razões recursais que a impetração concerne à legislação aplicável ao caso em tela, sustentando que a lei não poderia retroagir para prejudicar direito adquirido, e que a matéria previdenciária é regulada pela legislação vigente à época da prestação de trabalho, não é o que se deduz da exordial, da qual se extrai o pedido de concessão de aposentadoria, sendo nesse sentido, inclusive o pedido de liminar. VI. Ante a inadequação da via eleita, há de ser reconhecida a falta de interesse processual do impetrante, extinguindo-se o feito sem resolução do mérito, nos termos do artigo 267, VI do Código de Processo Civil. VII. Apelação do impetrante a que se nega provimento. (AMS 00035608020044036113, JUIZ CONVOCADO NILSON LOPES, TRF3 OITAVA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:14/05/2013) (g.n)

Diferentemente, Tiago Asfor Rocha Lima, em seus comentários ao art. 1o da lei de regência do mandado de segurança, esclarece que a análise do direito líquido e certo não é exclusivamente probatória. O autor insinua distinções que nos são muito caras e que abordaremos com mais detalhamento adiante nesse trabalho.

Distintamente, pode ocorrer quando a análise deixa de ser da prova dos fatos alegados pela parte e passa a ser do próprio direito líquido e certo que ensejou a impetração. Em tal hipótese, tanto pode ocorrer a extinção do processo sem resolução do mérito, quando da inexistência do direito líquido e certo é aferível liminarmente pelo magistrado, não sendo suficiente sequer para se dar processamento ao writ; como também é possível que, mesmo diante de um robusto arcabouço probatório dos fatos alegados, não se configure existente, no ordenamento jurídico, a proteção pretendida pelo impetrante.44

Sobre essa hipótese discorreremos no próximo item do trabalho, no qual procuraremos desenvolver a ideia de que a legalidade ou ilegalidade e a abusividade ou não do ato impugnado consistem, em verdadeiras questões de mérito do mandado de segurança. Como veremos, tais questões nada tem a ver com a liquidez e certeza do direito defendido pelo impetrante. Tais questões independem completamente da presença ou ausência de direito líquido e certo. Parece-nos que a questão está mal colocada. Na verdade, a natureza processual do direito líquido e certo corresponde à adequação da via eleita. Como vimos, trata-se de uma característica que se impões ao mandado de segurança, enquanto instrumento de tutela jurisdicional diferenciada.

44

MAIA FILHO, N. N., et al. Obra Citada ,p. 43.

O direito líquido e certo é um requisito, trazido abstratamente pela Constituição Federal e refletido na Lei 12.016, que expressa exigência indispensável para que o jurisdicionado faça jus ao procedimento especial, para que ele faça jus à via de tutela diferenciada.

Adequação é a relação existente entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. O provimento, evidentemente, deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa, sob pena de não ter razão de ser. Quem alegar, p. ex., o adultério do cônjuge não poderá pedir a anulação do casamento, mas o divórcio, porque aquela exige a existência de vícios que inquinem o vínculo matrimonial logo na sua formação, sendo irrelevantes fatos posteriores. O mandado de segurança, ainda como exemplo, não é medida hábil para a cobrança de créditos pecuniários. 45(g.n.)

O direito líquido e certo é pressuposto que representa um elemento da tipicidade do mandado de segurança, enquanto instrumento de tutela diferenciada. Ensina Flávio Luiz Yarshell:

Primeiro, dizer-se que não há liquidez e certeza e que as ‘vias ordinárias’ é que são adequadas é o mesmo que dizer que o impetrante é carecedor de ação por falta de interesse de agir, diante da inadequação da via processual.46

Em conclusão, na perspectiva processual, o direito líquido e certo nada mais é do que um aspecto do interesse-adequação no mandado de segurança.

2.3. Ilegalidade ou Abuso de Poder 45

46

CINTRA, A. C. A., et al. Obra Citada, p.289. YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória. São Paulo: Malheiros, 2005, p.180.

Como vimos, tanto a constituição quanto a Lei 12.016/2009 fazem referência à ilegalidade ou abuso de poder como requisito do mandado de segurança. Precisamos então, delinear o alcance destas expressões. De maneira singela, poderíamos conceituar ilegalidade como o vício que recai sobre o ato jurídico realizado em desacordo com a lei. Um primeiro dado digno de nota é a proximidade entre o ato abusivo e o ilegal. Alfredo Buzaid, com lastro em Luís Eulálio de Bueno Vidigal e em José Cretella Júnior, afirma a equivalência de sentido das duas expressões.47 De fato, abusivo é todo ato que exorbita da competência ou dos deveres funcionais da autoridade apontada como coatora. Trata-se, assim, de nada mais que uma espécie de ilegalidade. Não nos cabe, neste trabalho aprofundar esta tênue distinção, o que restaria inútil à melhor compreensão de nosso objeto de estudo. Por essa razão, utilizaremos apenas a expressão “ilegalidade”, que sintetiza o requisito em estudo. Por outro lado, vem adquirindo destaque a noção de antijuridicidade, ou seja, a ideia de contrariedade ao ordenamento jurídico, como um desenvolvimento da ideia de ilegalidade. Para esclarecer melhor este ponto, é preciso discorrer um pouco sobre o princípio da legalidade, percorrendo uma breve digressão de Direito Administrativo.

2.3.1.Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade foi um dos principais valores da Revolução Francesa.Surgiu com o Estado de Direito e o próprio princípio da legalidade veio a justificar o surgimento do Direito Administrativo. O Direito Administrativo acaba nascendo do princípio da legalidade, a partir da ideia de legalidade. A ideia básica é de que o Estado, a Administração, só pode atuar quando houver uma prévia habilitação legal.

47

BUZAID, Alfredo. Do Mandado de Segurança Individual. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 108.

A legalidade surge, assim, da ideia de um Estado lastreado na lei, habilitado pela lei. É a ideia que representa esse nascimento do Direito Administrativo. O princípio da legalidade, pelo menos em tese, admitia duas concepções básicas. A primeira concepção é o princípio da legalidade como preferência da lei. Essa primeira concepção de preferência da lei também é chamada de vinculação negativa da Administração. Essa primeira concepção não chegou a vigorar na visão tradicional do Direito Administrativo. Nessa primeira concepção, em tese, o Administrador poderia atuar mesmo que não houvesse lei autorizando expressamente aquela atuação. A Administração poderia atuar sem lei, mas deveria respeitar eventualmente a leis que viessem a ser promulgadas. Nessa primeira concepção, a lei tinha uma função limitadora e não habilitadora. Isto é, a lei tinha um caráter limitador, mas não propriamente habilitador. O Administrador poderia atuar normalmente e nessa atuação ele teria que respeitar a legislação. Se não houvesse lei, ele poderia atuar. Mas com a posterior publicaçãoda lei o Administrador deveria se pautar por essa lei, adequar sua atuação à lei. Essa é uma primeira noção que poderia ser admitida para a legalidade, a noção de vinculação negativa, de preferência da lei. A lei tem preferência sobre os atos administrativos. O Administrador pode atuar e, quando vier a lei, essa terá preferência, ele vai ter que se adequar. Sempre vigorou, no entanto, a segunda concepção de legalidade. Na segunda concepção, a ideia é a reserva de lei. A segunda ideia de legalidade é a reserva de lei, também conhecida como vinculação positiva do Administrador. Mais do que um limite, a lei funciona como uma habilitação legal. A lei é uma habilitadora da atuação administrativa. Em síntese, a lei habilita a atuação administrativa e a própria lei limita essa mesma atuação. Nessa concepção, o administrador, ou a Administração, só pode atuar se o legislador expressamente autorizar e nos limites colocados nessa lei autorizadora. Essa é a concepção que prevaleceu e que aindaprevalece de um modo geral, no Brasil.

Essa ideia de reserva legal, a ideia de que, em regra, o Administrador só pode atuar se a lei expressamente autorizar e nos limites colocados por essa lei. Ocorre que esse princípio passa por uma releitura. Na verdade, a ideia tradicional, que vigorou no Direito Administrativo, passa por uma releitura. A constitucionalização do Direito, a filtragem constitucional dos diversos ramos do Direito impõe essa releitura. Todo o ordenamento hoje passa por uma releitura a partir da Constituição. Neste prisma, para que a atuação administrativa seja considerada válida, deve estar de acordo com a Constituição Federal. Considerando que a Constituição Federal é a norma mais importante do ordenamento, é natural que ela condicione a validade não só do ordenamento como um todo, mas também a validade de atuações concretas dos particulares e do Estado. É nesse sentido que o conceito de ilegalidade abrange também a inconstitucionalidade. E daqui já podemos extrair uma consequência importante para o nosso objeto de estudo: o ato administrativo inconstitucional, quando violador de direito líquido e certo, dá ensejo à impetração de mandado de segurança. Isto é, o ato contrário à constituição também é impugnável via mandado de segurança, pois está compreendido na expressão “ilegalidade”. Esta ideia se encontra sedimentada na jurisprudência. Para exemplificar, trazemos o julgado abaixo:

TRIBUTÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA COM PLEITO DE INEXIGIBILIDADE DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA VEICULADA NO ART. 22, IV, DA LEI Nº 8.212/91, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 9.876/99 - MATÉRIA PRELIMINAR REJEITADA E APELO IMPROVIDO. 1. O mandado de segurança é o meio processual adequado para afastar a ameaça de lesão decorrente de ato inconstitucional praticado por autoridade administrativa [...].(AMS 00246571020064036100, DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, DJU DATA:18/03/2008 PÁGINA: 426 ..FONTE_REPUBLICACAO)

Não é por outra razão que o texto da constituição de 1934 fazia referência ao ato “ilegal ou inconstitucional” quando tratava do mandado de segurança.48

48

O art. 113, número 33 dizia: “Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer

Na visão tradicional, a lei exerceu um papel de protagonista. O parâmetro único de validade jurídica se esgotavana lei.49 Na verdade, essa ideia de que a Constituição Federal é norma principal promove uma releitura da legalidade. A lei deixa de ser sinônimo de Direito e deixade ser sinônimo de Justiça, de tal sorte que a legalidade passa a ser posicionada como um princípio dentre vários outros consagrados no ordenamento. Também a crise da democracia representativa colabora com a releitura da legalidade, pois a lei acaba perdendo parte da legitimidade em sua origem. Com o pós-positivismo, todos os princípios ganham importância. Todos os princípios são normas, não apenas a legalidade. A legalidade não é mais a única protagonista, não é mais um parâmetro isolado, deve conviver com a eficiência, a moralidade, a impessoalidade. Este pensamento encontra respaldo na CF/88.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte [...].

Outros princípios adquirem força normativa. Mais do que legal, a atuação administrativa tem que ser em conformidade com a juridicidade. A ideia, portanto, de princípio da juridicidade vem ganhando força. Juridicidade é uma ideia mais ampla da questão. Juridicidade é uma expressão que aludeao ordenamento jurídico como um todo. Para que uma atuação administrativa seja válida, deve estar de acordo com o ordenamento jurídico.

2.3.2. Legalidade e mérito do MS

Em Direito Processual, o sentido de “mérito” equivale ao de “pedido”. É o provimento solicitado pelo autor. autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.” 49 Há reflexos disso na teoria da ação adotada pelo Direito Processual, como já abordado no início deste capítulo.

Análise ou julgamento de mérito pode ser compreendido como julgamento do pedido, no sentido de afirmar ou negar a razão ao autor. O fundamento jurídico do pedido é a pretensão de direito material, que, somada aos fundamentos de fato compõem a causa de pedir. Sem a causa de pedir, não há como esclarecer o alcance do pedido, não há como apreciar o mérito da demanda. O autor, ao formular a demanda, afirma uma situação subjetiva sobre a qual chama o juiz a se manifestar. O direito constitucional de acesso ao Judiciário, o direito de demandar, assegura ao jurisdicionado que alguma manifestação haverá. Como vimos, o juízo a ser emitido pelo magistrado deve passar previamente pelas questões processuais. Antes de julgar o pedido, o juiz deve se assegurar da admissibilidade da demanda. Isto é, deve verificar a presença das condições da ação e dos pressupostos processuais.

A fase introdutória, que investiga a admissibilidade do mandado de segurança, examina se os fatos estão comprovados de plano. Admitida a impetração porque satisfeita aquela condição, passa-se para o juízo de mérito (...) com a incidência da norma de direito positivo sobre os fatos incontroversos, podendo ser ou não concedido o mandado de segurança conforme reconheça ou não o juiz o direito subjetivo do impetrante.50

E aqui, quanto ao mandado de segurança, adquire especial relevo o interesse processual, na modalidade adequação. Isso porque, como vimos, o requisito constitucional e legal designado como “direito líquido e certo”, apresenta natureza processual e significa que os fatos encontram-se cabalmente demonstrados por meio das provas documentais que acompanham a inicial.

Se os fatos forem certos, ou seja, estiverem devidamente comprovados, cumprida, portanto, essa condição específica do mandado de segurança, inicia-se o juízo de mérito, para aferição da efetiva existência do direito subjetivo e a suposta ilegalidade afirmadas pelo impetrante, ou seja, a análise sobre a procedência ou não do pedido.51

50

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 144.

51

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 127.

E assim se encerra a primeira etapa do raciocínio cognitivo realizado pelo magistrado. A presença dos requisitos de admissibilidade configura o direito do autor a um provimento jurisdicional de mérito. Isso significa que, superado o juízo de admissibilidade, haverá a análise do pedido formulado na inicial. É chegado, então, o momento de aferir se o autor faz jus ou não à tutela jurisdicional. Isto é, é preciso afirmar se o autor tem ou não razão. E então, uma nova etapa do raciocínio cognitivo é iniciada pelo juiz. Ao fim dessa etapa, o magistrado, de acordo com as suas conclusões, julgará a ação procedente ou improcedente. Assim ocorre com qualquer ação civil e não apenas com o mandado de segurança, cuja especialidade demonstraremos oportunamente. O juiz analisa e sopesa as provas produzidas nos autos, para que compreenda com clareza quais são os fatos que compõem o caso concreto. Para julgar qualquer ação civil procedente, o juiz deve interpretar o ordenamento jurídico, ou, se quisermos simplificar, a lei. Deve, então, do processo interpretativo extrair a norma aplicável ao caso concreto.

A análise da operação que o juiz deve desenvolver para julgar procedente uma ação civil revela a sua identidade com a que pratica ao conceder mandado de segurança. Chiovenda indicou, com precisão, as condições gerais da sentença que julga procedente a ação. A primeira condição é que o juiz tenha como existente uma vontade concreta de lei que garanta um bem ao autor. Para fazê-lo, deverá o juiz: a) admitir a existência de uma vontade abstrata de lei; b) admitir como provados um ou vários fatos, em relação aos quais a norma de lei se torna vontade concreta.52(g.n.)

É este o trabalho realizado pelo juiz que julga procedente uma ação civil. Notese bem que há aqui um juízo de legalidade. Admitir a existência de uma vontade abstrata da lei consiste em emitir um juízo de legalidade. Dizer que o pedido do autor é procedente significa dizer que a sua pretensão de direito material está de acordo com a lei.

52

, VIDIGAL, Luiz Eulálio de Bueno. Da imutabilidade dos julgados que concedem mandado de segurança. Tese de Titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 1953, p. 143.

A legalidade, ou a juridicidade, constitui um aspecto do mérito da ação. Não se trata de requisito de admissibilidade. Vejamos agora o raciocínio cognitivo que o magistrado realiza para conceder o mandado de segurança, o que equivale a declarara procedência do pedido.

Declarar que existe direito líquido e certo violado por ato ilegal de autoridade equivale exatamente a afirmar que: a) existe uma vontade abstrata de lei que garante uma certa vantagem a todos que se encontrem em determinada situação; b) essa norma de lei se tornou concreta em virtude de se encontrar o particular na situação prevista na norma; c) ocorreram certos fatos que constituem violação do direito do particular.53

Percebe-se que o raciocínio, o processo cognitivo é, em essência, o mesmo. A única nota que diferencia o mandado de segurança das demais ações é a seguinte: toda a análise probatória, o sopesamento das provas, foi transportada para o juízo de admissibilidade por meio da noção de direito líquido e certo.

A legalidade, porém, permanece no âmbito do juízo de mérito, como em qualquer outra ação cível. Tendo as questões de fato sido devidamente resolvidas, a partir da presença do direito líquido e certo, o juiz passa a analisar as questões jurídicas. E a aferição da ilegalidade do ato coator consiste na questão jurídica central do mandado de segurança, da qual depende a existência do direito invocado pelo impetrante. Ora, a análise da existência do direito material invocado, como não poderia deixar de ser, constitui o mérito da demanda. Veja-se a ementa abaixo, na qual o TRF da Terceira Região realizou o raciocínio aqui preconizado de maneira completa, pois situou corretamente a análise da legalidade do ato coator (no caso, a recusa de expedição de uma certidão) como aspecto do mérito da segurança. Questão, portanto, apartada da adequação da via eleita e que nada tem a ver com “direito líquido e certo”.

DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. NEGATIVA DE EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE ACERVO TÉCNICO. CREA/SP. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO REFORMADA. ARTIGO 515, § 3º, DO CPC. ADEQUAÇÃO

53

, VIDIGAL, Luiz Eulálio de Bueno. Da imutabilidade dos julgados que concedem mandado de segurança. Tese de Titularidade defendida na Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 1953, p. 143.

DA VIA ELEITA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA.RECUSA JUSTIFICADA. ATIVIDADES QUE NÃO CONCIDEM COM ATRIBUIÇÕES DO PROFISSIONAL. SEGURANÇA DENEGADA. 1. Inicialmente, merece reforma a sentença de extinção sem resolução de mérito, pois inexiste nos autos qualquer controvérsia fática, que exija dilação probatória, sendo bastante e suficiente a prova pré-constituída, tal como produzida para a definição do direito aplicável à espécie, restando apenas, na fase própria, apreciar o seu conteúdo para definir a procedência, ou não, do pedido. É, pois, na sede de mérito que se deve abarcar o exame da pretensão, com os contornos formulados, o que se promove, diretamente nesta instância, com fundamento no artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil. 2. Caso em que o Conselho Regional de Engenharia Agronomia e Arquitetura do Estado de São Paulo (CREA-SP) negou a emissão da CAT sob o argumento de que os serviços realizados pelo impetrante por meio de contrato administrativo, não se coadunam às atribuições dispostas no artigo 2º da Resolução 447/00 do CONFEA. 3. As atividades pelas quais o impetrante pretende se declarar responsável não se encontram no rol constante do artigo 1º da Resolução 218/73. 4. Os serviços realizados não são, segundo as Resoluções 447/00 e 218/73, especificamente atribuições de um engenheiro ambiental, tanto mais porque das avenças firmadas não constam sequer cláusulas exigindo as certidões de acervo técnico, tendo o impetrante, inclusive, já executado o contrato sem a expedição do certificado que pleiteia no presente mandado de segurança. 5. Nem se alegue que, a despeito de as clausulas contratuais não exigirem a apresentação dessas certidões, tal previsão se encontra na Lei 8666/93, eis que a qualificação técnica exigida por tal lei pode ser comprovada pela mera presença de um profissional da engenharia (art. 30, I, Lei 8666/93). 6. Considera-se justa a recusa de expedição da Certidão de Acervo Técnico (CAT) por parte do CREA-SP, visto que as Anotações de Responsabilidades Técnicas (ARTs) que o apelante tentou incluir no RAT não coincidem com os requisitos estabelecidos pela legislação para exercício da profissão de engenheiro ambiental. 7. A negativa à emissão de CAT foi considerada de rigor apenas no que se refere à ART 92221220090026305 e à ART 92221220090123779, permanecendo o impetrante livre para realizar novas anotações e obter a referida certidão quando participar de processo licitatório que exija qualificação técnica de engenheiro ambiental de acordo com os requisitos dispostos nas Resoluções do CONFEA. 8. Apelação parcialmente provida. Afastada a extinção do processo, sem exame do mérito (artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil). Segurança denegada. (AMS 00061635620094036112, JUIZ CONVOCADO ROBERTO JEUKEN, TRF3 - TERCEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:18/03/2013 ..FONTE_REPUBLICACAO)(g.n.)

Nesse ponto, adquire particular importância a motivação da sentença. É por meio dos motivos expostos na decisão que será possível verificar se o juiz analisou ou não a legalidade, isto é, analisou ou não o mérito.

Muitas vezes, não obstante conste da sentença a ausência de direito líquido e certo, houve o julgamento do mérito, com o reconhecimento da inexistência do próprio direito invocado, de sorte que a sentença será acobertada pela coisa julgada material e se tornará imutável, após o esgotamento das vias recursais.54

54

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 130.

Para exemplificar e esclarecer a situação acima descrita, trazemos a seguinte ementa.

DIREITO ADMINISTRATIVO. EFEITOS DE PREVISÃO EDITALÍCIA QUE POSSIBILITE A NOMEAÇÃO DOS APROVADOS, CONFORME DISPONIBILIDADE ORÇAMENTÁRIA, EM NÚMERO INFERIOR OU SUPERIOR ÀS VAGAS DE CERTAME DESTINADO À CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS. Não tem direito líquido e certo à nomeação o candidato aprovado dentro do número de vagas em processo seletivo especial destinado à contratação de servidores temporários na hipótese em que o edital preveja a possibilidade de nomeação dos aprovados, conforme a disponibilidade orçamentária existente, em número inferior ou superior ao das vagas colocadas em certame. As regras a serem aplicadas no processo seletivo especial destinado à contratação de servidores temporários devem ser as mesmas do concurso público para cargo efetivo. Todavia, conquanto não se olvide o já decidido pelo STJ acerca do direito subjetivo que nasce para o candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas, deve-se considerar que a situação em análise traz circunstância peculiar — a existência de previsão no edital referente à possibilidade de nomeação dos aprovados, conforme a disponibilidade orçamentária existente, em número inferior ou superior ao das vagas colocadas em certame —, o que afasta o direito líquido e certo à nomeação dos candidatos aprovados, ainda que dentro do número de vagas previsto no edital. (RMS 35.211-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 2/4/2013)(g.n.)

Note-se como o STJ, nesse caso, situou erroneamente a análise da legalidade da pretensão como aspecto do “direito líquido e certo”. Mesmo admitida a impetração, o pedido, por ocasião do juízo de mérito, poderá ser rejeitado, se o impetrante não tiver razão.

Surgem, daí, duas possibilidades: (i) o pedido não pode ser acolhido, porque, não obstante os fatos serem certos (estejam demonstrados), deles não decorre o direito afirmado pelo autor, ou não exsurge a ilegalidade apontada no comportamento do impetrado; trata-se de situação na qual o mérito deve ser julgado, com improcedência do pedido, em decisão que se reveste de autoridade de coisa julgada, e impede, por isto, que a causa seja novamente ajuizada, (ii) o pedido deve ser acolhido, com a consequente concessão da ordem, pois os fatos são certos, e deles deriva ter o autor o direito subjetivo que alega e está presente a ilegalidade, que lesou ou ameaça de lesão o seu direito.55

A juridicidade do ato impugnado é a questão de direito material que deve ser resolvida pelo juiz no mandado de segurança. A ilegalidade ou abuso de poder de que fala a Constituição Federal e a Lei 12.016/2009, não é propriamente um requisito de admissibilidade da segurança.

55

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 127.

Não se trata de um requisito de cabimento (o requisito de cabimento “por excelência” é o direito líquido e certo), mas sim de um pressuposto para que o mandado de segurança seja concedido. Temos razões para concluir que a análise da ilegalidade, ou, dito de outro modo, a aferição da legalidade do ato coator constitui precisamente o mérito da segurança.

CAPÍTULO 3. COISA JULGADA NO MANDADO DE SEGURANÇA

Nesse capítulo conclusivo, trataremos da coisa julgada como consequência teórica dos temas que trabalhamos. A coisa julgada no mandado de segurança não constitui, em si mesma, o objeto central do nosso estudo. Entretanto, trata-se de assunto incontornável para nós, porque intimamente relacionado com a cognição no mandado de segurança (esse sim, objeto deste trabalho). De todo modo, procuraremos empreender abordagem sintética, concisa, do tema.

3.1. Cognição e Coisa Julgada

Podemos estabelecer uma relação entre a extensão e profundidade da cognição realizada no processo e a intensidade da coisa julgada que dele emergirá.

O estudo do papel desempenhado pela cognição, no processo civil, revela-se cada dia mais importante. É através da cognição que o sistema pode permitir a formação de coisa julgada e, para cada tipo de procedimento estabelecido em lei, há um grau de cognição possível, que não deve ser modificado pelo juiz, sob pena de comprometimento da garantia do devido processo legal.56

56

BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. A Reforma do Código de Processo Civil, (lei 11.232/05) e as Relações Existentes entre Cognição e Coisa Julgada na Execução Civil. Revista Dialética de Direito Processual n 40, 2006, p. 112.

No procedimento comum ordinário, temos a cognição plena e exauriente. Desse modo, a sentença de mérito produzirá coisa julgada material. Nos procedimentos de cognição sumária, como, por exemplo, o processo cautelar, não há formação de coisa julgada material. Quanto ao nosso objeto de estudo, o mandado de segurança, a questão é mais delicada. Trata-se de um procedimento concebido pela utilização da técnica da cognição exauriente secundum eventum probationis. Tal técnica foi utilizada no seguinte sentido: desde que presente prova documental suficiente para a demonstração do “direito líquido e certo”, a cognição será plena e exauriente e a sentença produzirá coisa julgada material. Essa é a posição majoritária da doutrina, de que no mandado de segurança temos cognição plena e exauriente. Não haveria, segundo esse raciocínio, limitação cognitiva. Apenas um condicionamento da cognição à presença de “direito líquido e certo”.

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. PROVA DOCUMENTAL. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. Conforme disciplinam o art. 5.º, LXIX e LXX, da Constituição Federal e o art. 1.º, da Lei 1.533/51, mandado de segurança é o remédio constitucional que visa assegurar direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, violado ou ameaçado de lesão por parte de autoridade. São três os pressupostos para a impetração do mandamus: existência de direito líquido e certo, lesão ou ameaça de lesão e ato de autoridade. 2. Por ocasião do julgamento do mandamus, cumpre ao magistrado, em cognição plena e exauriente secundumeventumprobationis, avaliar se os fatos e situações restaram suficientemente comprovados de plano, através de prova documental produzida já com a inicial, concedendo ou denegando a ordem. 3. In casu, não existe prova pré-constituída que demonstre a ocorrência do ato coator alegado, uma vez que a impetrante não se dignou a juntar o requerimento de inscrição que aduz ter feito à impetrada, nem sequer a recusa por parte da autoridade na recepção do pedido. 5. Ausência do alegado direito líquido e certo da impetrante. 6. Apelação e remessa oficial providas. (AMS 00102513319964036100, DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA, TRF3 - SEXTA TURMA, e-DJF3 Judicial 2 DATA:12/01/2009 PÁGINA: 533 ..FONTE_REPUBLICACAO:.)(g.n.)

Assim, há a possibilidade de formação de coisa julgada material, desde que a decisão tenha enfrentado o mérito. Importante observar que, nesse caso, tanto a decisão concessiva, quanto a decisão denegatória (de mérito) são aptas a transitar em julgado. Desse modo, a produção ou não de coisa julgada material no mandado de segurança não é determinável a priori.

Tal questão depende da qualidade da decisão proferida, no sentido de se tratar ou não de uma decisão que enfrente o mérito da segurança.

3.2. Decisão e Coisa Julgada

A partir da delimitação do mérito do mandado de segurança, poderemos extrair algumas consequências a respeito da coisa julgada. É a própria Lei 12.016/2009 que estabelece essa relação:

Art. 19. A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais.

O dispositivo legal transcrito procurou sintetizar, conciliar e condensar duas ideias já bastante sedimentadas na jurisprudência. A primeira dessas ideias é a que ficou consolidada com a súmula 304, do STF, que ficou assim redigida: “Decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria”. Contudo, a referida súmula não distinguiu entre as duas espécies de denegação da segurança. Como vimos, a decisão denegatória pode ter sido dada como resultado da inadmissibilidade da ação, por exemplo, por falta de “direito líquido e certo”. Por outro lado, também pode ter ocorrido a denegação porque não estava configurada a ilegalidade arguida pelo impetrante, ou seja, a decisão apreciou o mérito.

Coube, então, inicialmente à doutrina interpretar e esclarecer o sentido do enunciado, delimitando seu alcance de modo a dele afastar a decisão denegatória de mérito.

[...] se a decisão aprecia o mérito, e entende que o impetrante não tem direito algum, tal decisão é apta à formação de coisa julgada material e, nessa medida, abre, inclusive, caminho para ação rescisória.57

Esse entendimento restou amplamente consolidado na jurisprudência, de tal sorte que foi acolhido no STF.58 O raciocínio pode ser sintetizado da seguinte maneira:

Logo, a sentença desfavorável ao impetrante somente poderá produzir coisa julgada material quando o julgador declara, com base nas provas documentais – consideradas suficientes para examinar a pretensão -, a inexistência do direito substancial pleiteado, porque o ato impugnado não é ilegal nem foi praticado com abuso de poder.59

57

YARSHELL, F. L. Obra Citada, p. 180.

58 “Como resultado dessa interpretação, o pretório Excelso sedimentou jurisprudência no sentido de que a sentença denegatória de mandado de segurança faz coisa julgada, se examinar o mérito e concluir, de modo claro e insofismável pela inexistência do direito pleiteado, estando presentes – é óbvio – a tríplice identidade de pessoas, causa e objeto (RTJ 46/256, 52/344, 52/617, 55/168, 55/689, 58/324, 58/735, 60/516, 63/11, 63/505, 67/872, 74/855, 75/508 e 75/633)”. PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 131. 59

PISTILLI, A. L. C. S. Obra Citada, p. 138.

CONCLUSÕES

A partir do estudo realizado podemos expressar algumas conclusões. Tais conclusões, ainda que pontuais, possibilitam uma melhor compreensão da cognição no processo de mandado de segurança.

1. O mandado de segurança é instrumento da tutela jurisdicional diferenciada. 2. A expressão “direito líquido e certo” significa situação demonstrável de plano, por meio de provas pré-constituídas apresentadas com a inicial. 3. A exigência de “direito líquido e certo” é um elemento da tipicidade do mandado de segurança, no sentido de que é um requisito típico, delineado na lei para que o autor faça jus a um procedimento especial, mais célere. 4. O requisito do “direito líquido e certo” é um aspecto que compõe o interesse de agir, na modalidade adequação. 5. A ilegalidade ou abusividade do ato apontado como coator constitui questão de mérito do mandado de segurança. 6. A cognição no mandado de segurança é plena e exauriente, estando, porém, condicionada à demonstração cabal dos fatos. 7. No mandado de segurança, apenas a decisão que concede a segurança e a denegatória que aprecia o mérito estão aptas a transitar materialmente em julgado.

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