Objeto, preensão e performance na construção de um desenho de Letícia Grandinetti

July 23, 2017 | Autor: Cláudia França | Categoria: Performance Art, Vida Cotidiana, Desenho; Arte contemporanea
Share Embed


Descrição do Produto

objeto, preensão e performance na construção de um desenho de Letícia Grandinetti1 Cláudia Maria França da Silva2 Resumo: Análise de “Desenho de objeto”, performance em que Letícia Grandinetti - artista brasileira desenha objetos de cozinha em uma grande parede. Tais objetos encontram-se sobre uma mesa próxima à parede. A artista não utiliza instrumentos convencionais para desenhar e sim, os próprios objetos da mesa; cada um oferece sua dureza para converter-se em instrumento gráfico. O trabalho é analisado a partir da relação do desenho com a performance, dos instrumentos utilizados e em outras solicitações que fazem de sua mão. Palavras-chave: desenho contemporâneo, objetos, apreensão tátil. Title: Object, hold and performance in Leticia Grandinetti’s drawing Abstract: Analysis of “Object Drawing”, performance in which Brazilian artist Leticia Grandinetti represents kitchen objects on a huge wall. The objects are on a table next to the wall. The artist doesn’t use conventional instruments to draw, but even the table objects. Each offers its hardness to be converted into graphic instrument. Her artwork is analyzed from drawing relation to performance, from instruments used by the artist and the request that they make of her hands. Keywords: contemporary drawing, objects, hold.

considerações iniciais Este texto refere-se à análise de um desenho-performance de Letícia Grandinetti, artista brasileira natural de Belo Horizonte (MG). Em geral, seu trabalho é marcado pelo Desenho de observação como expressão autônoma, com um destacado interesse por objetos e ações feitas na casa, vinculados principalmente à alimentação e organização de utensílios próprios ao preparo de alimentos. Atualmente, a artista tem se direcionado às performações, vinculadas tanto ao ato de desenhar quanto à manipulação desses objetos domésticos. No trabalho em exame – uma intervenção gráfica nomeada “Desenho de objetos” - a artista prepara uma cena formada por uma parede extensa, pintada de preto e posteriormente repintada de branco. Em posição perpendicular a uma das extremidades da parede, encontra-se uma mesa com diversos objetos de uso na cozinha, feitos de metal, madeira ou vidro. Cada qual oferece sua dureza para se converter em instrumento de inscrição na parede. Após escolher um dos objetos da mesa, Grandinetti o representa no plano vertical e ao mesmo tempo usa-o como “ponta seca” para a realização do Desenho. A rapidez da ação e a proximidade de seu corpo do anteparo parietal lhe fornecem muito mais uma “visão tátil”, em que o corpo háptico é convocado a agir. Trata-se, 1

Uma versão compacta deste artigo está em FRANÇA, Cláudia Maria. “Objeto, preensão e performance na construção de um desenho de Letícia Grandinetti.” In: CROMA, Estudos Artísticos, Lisboa, FBAUL-PT, v.3, n.º 6, julho-dezembro de 2015, p. 83-89. 2 Artista visual, natural de Belo Horizonte (Brasil). Doutora em Artes pela UNICAMP e docente no Instituto de Artes (Graduação em Artes Visuais e Mestrado em Artes) pela Universidade Federal de Uberlândia (MG). Expõe regularmente em individuais e coletivas, produzindo Desenhos, Objetos e Instalações.

sobretudo, de um desenho de memória. Não há como olhar distanciadamente para o objeto nem mesmo para o suporte, em função de uma proximidade excessiva com esses elementos, um desenho dado muito mais por contato e memória. Uma interessante economia se processa ali: a linha é o sulco na parede, retirada de matéria que revela a camada preta subjacente; mas essa retirada, em contrapartida, oferece um território branco no chão, contíguo e residual da ação. Desse modo, podemos perceber que os territórios da parede e do chão são lugares para “desenhos (relativamente) cegos”, dados por outras forças além do olhar: o pó se deposita em densidades fornecidas pela gravidade, pela ação da sulcagem e pela movimentação do corpo da artista, o que gera ao seu redor correntes mínimas de ar, suficientemente fortes para redirecionarem a queda das partículas brancas sobre o chão escuro. Gostaríamos de analisar “Desenho de objetos” por meio de três eixos de reflexão, que se entrelaçam: a que tipo de Desenho e Espacialidade a ação se reporta; consequentemente, aos tipos de instrumentos usados na intervenção gráfica e ainda na solicitação que tais objetos fazem da mão e da preensão.

Figuras de 1 a 6: Letícia Grandinetti em ação em “Desenho de objetos”, 2010, Galeria de Arte da CEMIG, em Belo Horizonte (MG). Fotos: Gláucia Rodrigues.

desenho e performatividade A pesquisadora Ana Leonor Rodrigues (2003, p. 12-3) convida-nos a imaginar um desenho de perspectiva sobre um papel, cujos traços sejam, no entanto, invisíveis: “nada podia então ser olhado a não ser os gestos que construíam aquilo que se queria fazer, uma espécie de acção teatral coreografando a movimentação do desenhar de uma perspectiva”. Prosseguindo em suas considerações, a autora infere que, na invisibilidade dos traços resultantes dos gestos, o Desenho não poderia existir, pois este é definido minimamente em

sua condição indicial, ou seja, como “traço de uma actividade”, visibilidade sutil consequente de nossa intenção de construir uma inscrição sobre um suporte. De acordo com a visão da pesquisadora, percebemos uma ênfase no Desenho como resultado gráfico de gestos corporais. A visibilidade do resultado suplanta a percepção do modus operandi do artista, mesmo que o trabalho final dê indícios de seu fazer. Essa tem sido a percepção histórica e mais aceita no senso comum, de Desenho como manifestação artística: uma relação hierárquica entre a visibilidade da obra de arte e sua invisibilidade processual. Desse modo, a afirmação da identidade do ser-Desenho seria proporcional ao grau de visibilidade e estabilidade de seus traços, linhas e manchas sobre um suporte, componentes físico-formais que se oferecem em composição intencional ao espectador3. A série de fotografias de Hans Namuth, feitas no atelier de Jackson Pollock em 1950, abrem um importante precedente na questão, atiçando nossa curiosidade sobre uma dupla inscrição na conduta criadora, qual seja: expõe-se o trabalho em processo ao mesmo tempo em que se expõe o artista agindo nesse processo. Agora, ao mesmo tempo em que vemos as enormes lonas de Pollock suspensas em paredes de museus, é possível que os registros fotográficos do artista em sua pintura de ação sejam mostrados também, ao lado ou mesmo próximos daquelas grandes telas. Cria-se assim uma linhagem outra de trabalhos que problematizam a hierarquia das visibilidades e instâncias mencionadas, favorecendo a performatividade da conduta criadora como possível ação artística. Tais considerações relacionam-se diretamente ao desenho-performance de Letícia Grandinetti. Os desenhos resultantes de suas ações, estas visíveis a uma platéia, colocam bem claramente um aspecto constituinte do trabalho, qual seja, a visibilidade/publicização do ato de sulcar a parede enquanto fenômeno tão ou mais importante quanto o desenhovestígio resultante, o qual não se mostra mais tão nítido assim, a partir de uma boa distância do suporte parietal. A performance deixa visível também a mesa de objetos como lugar recorrente na ação de desenhar. Isso não significa dizer, no entanto, que as reflexões de Ana Leonor Rodrigues sejam impróprias ao Desenho-performance da artista – o desenho guarda sua visibilidade enquanto “traço de uma actividade”, permanecendo na galeria durante toda a exposição, mas coabitando com signos que denunciam o seu vir-a-ser: o pó branco acumulado sobre o chão preto, perfazendo outro “desenho”, ainda mais residual. Temos também a mesa com os objetos-instrumentos. Pensando ainda no modus operandi de Jackson Pollock, é interessante capturar novamente a fala de Harold Rosenberg a respeito da action painting: “tornou-se apropriado falar da tela como uma arena...” (ROSENBERG, 1997, p.157). Pollock trabalha o gotejamento das tintas sobre uma longa extensão horizontal colocada diretamente no chão, como se estivesse dançando. O trabalho resultante será então alçado e preso à parede, na condição

3

Há de se observar, no entanto, que o Desenho, em suas funções projetuais, hipotetigráficas e processuais – na elaboração de formas, objetos e teorias ainda inexistentes - resguarda sua relativa “invisibilidade” como marca, já que não é a finalidade da obra, e sim o meio de sua realização. Consideramos aqui os esquemas e gráficos, os projetos, os esboços, por exemplo.

de visibilidade usual de trabalhos bidimensionais, tão ereto quanto está o nosso corpo. Leo Steinberg está atento a isso: Pollock de fato lançava a tinta sobre telas estendidas no chão, mas isso era um expediente. Após uma primeira seção de trabalho com a tela no chão, pendurava a tela numa parede – para se familiarizar com ela, segundo costumava dizer; para ver em que direção ela queria seguir. Convivia com a pintura em sua posição vertical, como com um mundo em confronto com sua postura humana. (STEINBERG, 1997, p.201)

Anteriormente aos registros de Hans Namuth no atelier de Pollock, compreendemos que a verticalidade do trabalho finalizado é soberana à horizontalidade processual. No entanto, quando estamos em algum tipo de contato com suas grandes telas eretas, as imagens de Namuth emergem, mas no plano mental. A ortogonalidade dos planos horizontal (plano de trabalho) e vertical (plano de exposição) se dão em regimes existenciais distintos. Em “Desenho de objetos”, tudo se oferece à nossa percepão visual, ao mesmo tempo. Letícia Grandinetti efetua um trânsito constante entre a horizontalidade (que responde pela mesa-suporte dos objetos de cozinha) e a verticalidade (desenho em processo de construção). Embora a arena de Grandinetti seja o plano vertical preparado - onde se dá o embate entre a representação, a preensão/pressão e uma visão-tátil – não se pode subestimar o plano horizontal, onde, por breves momentos, a artista se detém e efetua escolhas de instrumentos, num misto de percepção visual, tátil e a memória do uso desses objetos. É no fluxo entre a table e o tableau que a corporeidade da artista se dá e se organiza. Nesse fluxo contínuo, as hierarquias entre as posições dos planos (mesa de trabalho e plano expositivo) são embaralhadas ou entretecidas por meio do corpo em vaivém.

objetos Nos trabalhos da artista, há uma exploração do potencial de uso dos objetos, o que dá outra dimensão e entendimento para o Desenho; suas performances são “uma grande conversa sobre o desenho e as suas possibilidades. Muita gente entende o desenho como o lápis no papel, mas é maior do que isso, podemos desenhar com a sobra de um líquido de um vinho ou com café, por exemplo. O desenho é bem mais amplo”, aponta a artista, em depoimento informal. Vinho e café são distintos das tintas usuais. Manchas e nódoas cotidianas são fornecidas continuamente pelo acaso, quando esses e outros líquidos se impregnam em nossas roupas e móveis, o que percebemos como “sujidades”. Mas manchas de líquidos e molhos, escorridos de café em uma xícara ou de vinho em uma taça, linhas circulares por sobre uma superfície – podem ser percebidos para além de sujidades, e também como Desenhos. De igual maneira, Desenhos podem ser percebidos como líquidos lançados, numa relativa aproximação dos drippings de Pollock: tais grafismos entrariam mais no campo do

aleatório, assim como as circunferências na superfície entrariam no campo do “excessivamente” indicial, o que se distancia da premissa investigatória deste trabalho da artista, relacionado à observação e memória de objetos. Tintas e bebidas podem gerar Desenhos, frutos do acaso ou da mais alta deliberação; necessitam, no entanto, de instrumentos mediadores para se impregnarem sobre o suporte ou que conduzam o líquido até lá. Usamos nossos dedos, a solidez de um objeto, pincéis, trinchas e buchas para que os movimentos se tornem visíveis. No entanto, todas essas possibilidades (à exceção dos dedos) lidam com uma mediação entre a mão, o líquido e o suporte. Em “Desenho de objetos”, as formas são obtidas por sulcagem na parede, sem tinta ou outro material gráfico que efetue a inscrição. O que nos chama a atenção é uma radicalização na mediação, desembocando em uma radicalização na ação gráfica, já que o objeto doméstico exerce uma dupla função: é motivo da representação gráfica e ao mesmo tempo, o instrumento com o qual o corpo faz a inscrição direta no suporte parietal. Utilizamos os termos “mediação” e “mediador” algumas vezes nos parágrafos anteriores. Abraham Moles (1981) define o objeto como mediador social e universal: situase na relação do indivíduo com o seu ambiente mais próximo, com os outros, com os ambientes perspectivos e afastados. Mas o objeto é também considerado como um “mediador funcional”: prolongamento das ações humanas, o objeto pode ser pensado como prótese que amplia o grau, a duração, a eficiência, a extensão e a intencionalidade de nossos atos. Desse modo, o objeto insere-se em uma complexa rede de desejos, de sistemas comunicacionais, serviços e signos. Moles também nos informa que é a intencionalidade que transforma uma “coisa” em objeto: “Não se falará de uma pedra, de uma rã ou de uma árvore como um objeto, mas como uma coisa. A pedra só se tornará um objeto quando promovida a peso de papéis...” (MOLES, 1981, p.26). Essa passagem nos faz compreender como um dedo da mão pode se transformar em pincel. Entretanto, nos faz também compreender as transformações que ocorrem no processo de criação de “Desenho de Objetos”: um bule, balde ou jarra passam por estágios de mediação funcional. Se antes receptáculos com suas funções definidas no uso cotidiano, perdem, já na seleção, essa função inicial. O material de que são feitos – metal, vidro e madeira - passa a importar mais do que suas funções costumeiras. No transcurso da ação artística, os objetos ficam latentes sobre a mesa, onde são vistos pela artista como dotados de forma e, possivelmente, como instrumentos gráficos. Desse modo, os objetos, por um tempo, tornam-se “coisas”, entes imbuídos de uma indefinição momentânea e, pela intencionalidade poética da artista, possivelmente designados a adquirirem outro sentido e função durante a ação. É num momento muito rápido que a artista, após valer-se de um objeto, volta-se à mesa, o deixa ali e pega outro. Mas o que está em jogo nesse momento? Será o critério da forma o fator ressignificador do objeto? Como é a passagem da latência à sua potência? Nesta reversibilidade funcional que os constitui (pois podem voltar às suas funções originais após a exposição que abriga o desenho-performance em exame), os objetos

adquirem assim um fluxo constante, tal como o corpo da artista em vaivém: são objetos de cozinha, coisas, formas, motivos e/ou instrumentos gráficos. Escolhidos pela artista a partir de um critério específico, tais objetos pertencem a um sistema de classificações ou a uma “taxonomia objetual” que, por sua vez, define um lugar específico no ambiente doméstico. A cozinha é a parte da casa onde certamente um pesquisador em ciências humanas pode efetuar uma pesquisa de campo. Abraham Moles define os campos de pesquisa para o estudo dos objetos como “esferas de acesso ao objeto, (...) pontos de espaço-tempo onde a linha do universo do indivíduo se encontra cercada da densidade máxima de objetos por unidade de volume deste espaço-tempo”. (MOLES, 1981, p.33). Na cozinha, temos uma gama enorme de pequenos utensílios que pertencem à “concha do gesto imediato”, conforme Moles, cuja escala nos permite segurá-los com as mãos ou entre os dedos. Mas também temos diversos que são mediadores para outros objetos, como os móveis. Em seu interior, guardamos outra população de objetos. Os armários e prateleiras podem ser considerados seus recantos de “descanso”, até que se use uma próxima vez. No pragmatismo da vida diária, tendemos a deixar mais expostos aqueles de uso contínuo, guardando em armários, gavetas e cristaleiras os objetos de uso mais cerimonial ou menos frequente. É provável que muitos dos elementos selecionados pela artista tenham pouca serventia em seu cotidiano, em função de seu estilo de vida; no entanto, foram ressignificados a partir do critério de “dureza” (facilidade em produzir sulcos em uma superfície áspera e dura). De igual modo, a mesa, móvel usado na ação artística, também foi ressignificada, convertendo-se também em dupla mediação funcional: de suporte horizontal apoio para atividades caseiras, tornou-se apoio para os prováveis instrumentos de Desenho e ainda uma table de exposição, “vitrine” de uma nova taxonomia objetual - um novo “sistema de objetos”.

preensão Quando praticamos o Desenho ou estudamos sua teoria, grande parte dos esforços e considerações se dá sobre a relação que a conduta criadora estabelece com o olhar, no sentido de sua educação, “para que da imensidão de estímulos visuais se consiga isolar aquilo que se quer ver” (RODRIGUES, 2003, p.52), ordenando-o em outra realidade. Mas para esse transcurso, a relação com o controle da mão é extremamente importante. No entanto, esquecemos que a premissa do controle motor passa pela preensão, ou seja, como pegamos os instrumentos gráficos (lápis e pincéis). O modo como cada um de nós os retém é aprendizado de uma vida, mas determinante na relação que o Desenho adquire com a identidade de seu autor, o aspecto caligráfico ou singular que abarca - aproximando o ato de desenhar ao ato de escrever. Mary Marzke (apud SENNETT, 2012, p. 171) estabelece três maneiras distintas de pegarmos as coisas. Entre a pegada côncava (segurando objetos esféricos), a sustentação de um objeto na palma da mão friccionando-o com os dedos e a retenção de um pequeno objeto entre as extremidades do polegar e do indicador – o ato de pegar um lápis aproxima-se mais desta última possibilidade.

A questão que se coloca aqui é que em “Desenho de objetos”, na medida em que os instrumentos gráficos não são lápis ou afins, outros modos de preensão são convocados. Uma observação poética, sobretudo fenomenológica, cabe aqui, para que compreendamos que a complexidade da percepção tátil se apresenta no trabalho de Letícia Grandinetti, mas é algo “mudo”, secundado na rapidez de sua ação: Tocar uma estátua não provoca apenas a sensação de frio, como pode pensar um observador desatento. O atrito entre pele e pedra é capaz de gerar variadas nuances de temperatura. A pele humana, tecido elástico, se renova sem cessar. Já a superfície da estátua é mais estável, marcada pela rigidez de sua constituição. Quando se aproximam a pele humana e a pele de pedra das estátuas, o mutável e o perene, fica realçada a irregularidade do contato. Em cada pequeno deslocamento da mão, uma nova onda de calor – minimamente distinta mas fundamentalmente distinta – se produz e se espalha. As ondas não são absorvidas pela pedra, mas por ela refletidas. Através da ação do tecido mineral, as zonas de calor vão adquirindo gradações. O ser humano que toca a estátua passa a sentir que é a estátua que o toca: é ela que o estimula, tecendo uma sofisticada rede térmica. A estátua desperta o homem para as sutilezas possíveis no encontro de dois corpos desiguais. (SANTOS, 1999, p.17)

Esse encontro de desigualdades entre mão e pedra, posto nas diferenças de temperatura e dureza, são encontros diários que efetuamos na organização de nossos espaços de morada e de trabalho. Mais do que o simples contato das mãos com o objeto, o que se observa é a variedade de possibilidades de preensão e aplicação de forças. Para o curso da intervenção gráfica na galeria, é fundamental que o corpo de Letícia Grandinetti se dê conta dessas diferenças e imprima considerável força com as mãos, como se os músculos dos braços lhes emprestassem uma dureza passível de enfrentar a dureza do objeto escolhido, ou que lhe seja proporcional. A artista agarra o objeto e todo o braço é convocado a ser o seu cabo, a ser tão duro e forte quanto o objeto em questão, de modo a efetivar a inscrição de si e consigo, no plano da parede. É perceptível que os modos com que a artista pega seus objetos vem de um aprendizado repetitivo no cotidiano e não de sua experiência como estudante de artes. Trata-se de um jogo entre repetição, erros e ajustes do corpo para a ação em questão. Para Richard Sennett, a preensão implica sempre uma antecipação do significado antes mesmo da ação física propriamente dia; isso significa dizer que a preensão “indica um estado de alerta, envolvimento e disposição para o risco no mesmo ato de olhar à frente.” (SENNETT, 2012, p. 174). Esse aspecto fica bem perceptível no trabalho diário em uma cozinha, manancial de pequenas descobertas. Quando usamos louças e panelas, por exemplo, tiramos partido de uma série de ações similares de disposição desses objetos: desde a lavagem, secagem e guarda em seus locais originários, ocorre um processo de reorganização mental/coordenação motora na manipulação cuidadosa dos elementos, em função de sua fragilidade e/ou resistência. Os objetos “migram” de um ponto a outro nos equipamentos e móveis: mesa, pia, lavadora, secadora de objetos, armário ou prateleira.

Abrir as portas do armário é sempre se deparar com um tableau, quadro onde se dispõe o resultado da eterna tarefa cotidiana. Após o uso, lavagem e secagem de cada utensílio, inicia-se o jogo da acomodação espacial: sobre, atrás, do lado, dentro, à frente. Há uma tensão implícita dada no espaço milimétrico entre uma forma e outra, contribuindo para que se perceba a contra-forma das coisas, a cada dia de trabalho. Cada objeto, de modo mais ou menos frequente, é animado pelo uso e realiza seu trânsito entre a “vitrine” e a mesa de trabalho, entre a verticalidade e a horizontalidade. Por isso é sempre tenso guardar taças e xícaras, porque o “sucesso” da empreitada depende da memória acerca da distância exata da situação anterior ao uso dos objetos. As posições dos objetos, definidas por um modo pragmático de lida com eles, não diminui uma tensão resistente no trato com materiais frágeis, o que demanda certa concentração mental e motora no ato simples de guardar a louça.

considerações finais Nossas chaves de leitura de “Desenho de objetos”, de Letícia Grandinetti, consideraram que a noção de “Desenho ampliado” se estende para além do uso de instrumentos alternativos que exigirão outros modos de preensão e força física para a realização das inscrições no suporte. Nessa acepção, a performatividade de suas ações torna-se um fator preponderante na percepção do trabalho, pois dela decorre a organização espacial dos seus elementos constituintes. Há duas instâncias justapostas na ação, definidas espacialmente: o tableau e a table. Ao mesmo tempo em que nosso campo de visão percebe a comunicabilidade entre tais instâncias, há uma cisão entre elas: um plano refere-se ao ato expositivo, domínio da artista; outro plano refere-se ao trabalho, domínio do indivíduo no espaço doméstico. Podemos ver a artista em ação, construindo a imagem-desenho em uma grande parede, que é o que ficará exposto e assegurado como Desenho. No entanto, restarão outros sinais da formatividade do trabalho e consequentemente da presença humana em ato no lugar expositivo: o pó branco residual das sulcagens na parede. Outro índice importante é a mesa: apresenta-nos os objetos domésticos usados de fato e os aventados para uso na ação; a mesa também é uma referência a um sítio importante na concepção do desenho-performance. Existe um trânsito interessante entre o modo de perceber os objetos, por conta mesmo do trânsito entre a cozinha e o atelier e como essa relação migra para o espaço expositivo. A casa é o lugarorigem das ações contínuas de organização das coisas, das percepções de pequenos fenômenos, lugar das deliberações sobre a migração do campo da vida para o campo da arte. Desse modo, acreditamos que a performance visibiliza a todos nós um desenho em processo de execução, mas mais do que isso, ela nos dá a ver uma comunicabilidade intensa entre espaços, objetos e papeis sociais respectivos a uma mesma figura de subjetividade, em ato.

referências MOLES, Abraham. Teoria dos objetos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. RODRIGUES, Ana Leonor M.M. Desenho. Lisboa: Editora Quimera, 2003. ISBN: 97-25891-02-3. ROSENBERG, Harold. 1961. Action painting: crise e distorções. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.) Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: FUNARTE/Zahar, 1997. P. 155-162. ISBN: 85-85781-31-9. SANTOS, Luís Alberto Brandão. Da temperatura das estátuas. In: ____. Saber de pedra: o livro das estátuas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. P 16-7. ISBN: 85-86583-59-6. SENNETT, Richard. O artífice. São Paulo: Record, 2012.ISBN:978-8501-08314-2. STEINBERG, Leo. 1972. Outros critérios. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.) Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: FUNARTE/Zahar, 1997. P. 175-210. ISBN: 85-85781-319.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.