Observações sobre alegria e tristeza na \'Ética\' de Spinoza

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OBSERVAÇÕES SOBRE ALEGRIA E TRISTEZA NA ÉTICA DE SPINOZA

Igor Alves de Melo Doutorando em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e bolsista Capes

Resumo: O objetivo deste texto é analisar brevemente a significação da alegria e da tristeza em Spinoza, precisamente segundo as partes III e IV de sua Ética. Esse procedimento envolve uma análise dos modos de concepção dos atributos humanos (extensão e pensamento) para compreender de que maneira os afetos primários de alegria e tristeza podem aumentar ou expandir a potência humana pelo aumento da capacidade de se afetar de diversas maneiras.

Introdução No escólio da E III 11,1 Spinoza distingue o afeto de alegria em excitação (titillatio) e contentamento (hilaritas), e o afeto de tristeza, em dor (dolor) e melancolia (melancholia). A excitação e a dor referem-se ao homem quando uma de suas partes é mais afetada do que as outras, e o contentamento e a melancolia, contrariamente, quando todas as suas partes são igualmente afetadas. A partir disso, pretendo analisar brevemente a significação dos afetos de alegria e tristeza no que se referem especialmente ao atributo da extensão. Nesse sentido, em que medida os afetos passivos de alegria (ou paixões alegres) podem ser úteis para o indivíduo? A alegria pode ser má? A tristeza pode ser boa? Utilizo as referências convencionais para as citações de Spinoza: primeiro a referência geométrica (enunciado da proposição, escólio, demonstração, definição, capítulo ou apêndice), depois o nome da obra (Ética: E) e sua respectiva parte (I, II, III, IV ou V) e, por último, o número da proposição.

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Os três afetos primários: desejo, alegria e tristeza Segundo Spinoza, todos os afetos provêm de três afetos primários, a saber: desejo, alegria e tristeza. Além disso, como veremos mais adiante, os afetos podem estar mais referidos ao corpo ou à mente – eis um dos métodos de abstração utilizado por Spinoza. Vale sempre esclarecer que o corpo e a mente são atributos de uma única e mesma substância, ou seja, “a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão” (esc. da E III 2). É o que também se pode deferir pelo escólio da E II 7: [...] tudo o que pode ser percebido por um intelecto infinito como constituindo a essência de uma substância pertence a uma única substância apenas e, consequentemente, a substância pensante e a substância extensa são uma só e mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob o outro. Assim, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras. Para Spinoza, corpo e mente não seriam partes diferentes de uma única e mesma coisa – proposição que se configuraria de modo logicamente contraditório. Também não são partes interdependentes, nem paralelas2. Os atributos do pensamento e da extensão pertencem à mesma substância, logo não poderiam ser diferentes, no entanto podem ser compreendidos ora sob um atributo, ora sob o outro. Além disso, os modos e a ideia desses modos podem se exprimir de duas maneiras, ou seja, podemos também compreender ou interpretar os modos da substância de duas maneiras. Trata-se de uma multiplicidade do olhar humano sobre os problemas do homem, e não da transposição de um olhar humano que desqualifica aquilo que olha (a natureza humana) e concebe seu próprio ato de olhar como distinto e verdadeiro. Portanto, os modos de concepção dos atributos humanos dos quais Spinoza lança mão seriam, antes de mais nada, um instrumento conceitual para pensar os problemas da natureza humana. Antes de prosseguir diretamente com as questões, exponho abaixo a definição spinozista dos três afetos primários seguida de uma breve explicação sobre cada um deles. 2

Cf., por exemplo, E III 11 e E V 1.

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Desejo – é o esforço pelo qual cada um persevera em seu ser (conatus) ou a própria essência do homem, que nada mais é do que o esforço pelo qual cada um busca conservar seu próprio ser, pois o homem é determinado a agir em prol de sua própria conservação (definição 1 dos afetos, E III). Para Spinoza, não há diferença entre desejo e apetite, ou qualquer outra denominação para as volições humanas, como vontade e impulso, por exemplo. Mas apenas para facilitar a expressão, convém-se designar o desejo como o apetite enquanto dele somos conscientes. Assim sendo, não há, como induz a linguagem metafísica e a doutrina do livre-arbítrio, uma vontade consciente e livre na tomada de uma decisão; segundo essa doutrina, a decisão é tomada mediante uma atividade da consciência exercida entre o apetite e a ação. Mas, para Spinoza, apetite e ação se dão simultânea ou concomitantemente, pois antes de qualquer consciência da ação, o indivíduo é determinado por um afeto dominante (que nem sempre é possível identificar), e o afeto que vence é resultado de uma espécie de agonística ou dinâmica dos afetos. É a partir disso que se define o que é bom ou ruim para cada um, como diz o célebre escólio da E III 9: “[...] não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa”. Uma decisão humana seria determinada de acordo com cada modo de se afetar e, portanto, se uma decisão muda a direção de outra, é porque a capacidade ou o modo de se afetar do corpo também mudou. Assim, um indivíduo poderia ser afetado por uma causa externa que o leve a compreender o prejuízo de algo que diminui ou refreia sua potência de agir e, assim, reivindicar sua própria natureza, isto é, buscar o que lhe é útil e perseverar em seu ser. Um indivíduo também poderia – por acidente, talvez – ter uma ideia inadequada que o levasse a compreender suas paixões, ideia esta que, por sua vez, poderia se transformar numa ideia adequada capaz de gerar outras do mesmo gênero por uma espécie de encadeamento, como fica evidente pela própria dinâmica do desejo que surge da alegria, o que já não ocorreria com o desejo que surge da tristeza (demonstração, E IV 18). Mas, para isso, é fundamental que o homem afirme a si mesmo, algo possível apenas mediante um progressivo aumento ou expansão da potência de agir através de suas relações com outros corpos e com todo o ambiente exterior. Pela variação de uma potência maior para uma menor, o indivíduo não seria capaz de afirmar

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seu próprio conatus. É nessa direção que Spinoza apresenta os “ditames da razão” na demonstração da E IV 18: Como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que cada qual ame a si próprio; que busque o que lhe seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente, conduza o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que cada qual se esforce por conservar, tanto quanto está em si, o seu ser. Spinoza pergunta: “o que pode o corpo?”. Com isso, ele coloca em questão os fundamentos da metafísica moderna. Segundo a concepção cartesiana, o corpo jamais seria capaz de realizar os engenhos da mente senão conduzido pela mesma. No entanto, Spinoza demonstra por diversos exemplos da experiência comum, como o assim chamado “corpo” é capaz de muitas proezas sem participação alguma da chamada “mente”, esta que é considerada, segundo a metafísica moderna, a essência do homem. Logo, se o homem pode prescindir da “mente” em algum momento, a “mente” por si só não poderia ser essencial ao homem, conforme a própria definição spinozista de essência: “aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida e vice-versa” (def. 2, E II). Por outro lado, a memória também não interferiria numa decisão ao atenuar um afeto contrário ao que é registrado, tampouco seria responsável por registrar um apetite fraco por um livre julgamento de sua relevância, pois tudo o que nos é mais necessário, seria ipso factu afetivamente mais forte. De acordo com a doutrina do livre-arbítrio, faríamos mais livremente as coisas pelas quais temos menos apetite, pelas quais menos nos empenhamos, e faríamos menos livremente aquelas coisas pelas quais somos tomados pelos apetites mais veementes (demonstração, E III 2). Para Spinoza, no entanto, não há diferença substancial entre apetite e decisão, uma vez que a ação do corpo é concomitante à ideia da mente. É o que evidencia a demonstração da E III 2: (...) tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento e explicada por si mesma, e determinação, quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso (...).

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Alegria – “é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior” (definição 2 dos afetos da E III). Segundo a potência plena da substância, tudo aquilo que existe é perfeito e varia apenas segundo o grau de perfeição. Para Spinoza, a alegria é um afeto gerado pela potência das relações entre um modo e outro, e cuja concretização se dá mediante um desejo que afirma a própria natureza do indivíduo; a tristeza, ao contrário, leva o indivíduo a padecer por causas externas, contrárias a seu conatus. Spinoza desenvolve originalmente suas definições de alegria e tristeza no escólio da E III 11, onde chama o afeto de alegria de excitação ou contentamento “quando está referido simultaneamente à mente e ao corpo”; sendo que a excitação se refere ao homem “quando uma de suas partes é mais afetada do que as restantes”; por outro lado, chama de contentamento o afeto de alegria “quando todas as suas partes são igualmente afetadas”. Numa palavra, a alegria é o processo pelo qual a potência de agir do homem é aumentada. Tristeza – “é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor” (def. 3 dos afetos, E III). Não existe afeto perfeito em si, logo a alegria não é a própria perfeição:3 os afetos significariam a própria variação de passar para um grau maior ou menor de perfeição, o que é totalmente diferente de um status de maior ou menor perfeição. Dito de outro modo, os afetos seriam esse processo de variação entre maior e menor perfeição, e não estados de perfeição maior ou menor em si, os quais poderia se atingir. Além disso, um afeto não poderia ser percebido por si mesmo senão por um afeto oposto. Assim, a alegria seria percebida pela tristeza e vice-versa. Na mesma definição, diz Spinoza: [...] se o homem já nascesse com a perfeição a qual passa, ele a possuiria sem ter sido afetado de alegria, o que se percebe mais claramente no afeto da tristeza, que é o seu contrário. Com efeito, ninguém pode negar que a tristeza consiste na passagem para uma perfeição menor e não na perfeição menor em si, pois o homem, à medida que participa de alguma perfeição, não pode se entristecer. Tampouco podemos dizer que a tristeza consiste na privação de uma perfeição maior, pois a privação nada é. No escólio da E III 11, Spinoza chama o afeto da tristeza de dor ou melancolia quando “está referido simultaneamente à mente e ao corpo”; sendo Além disso, veremos mais adiante que a alegria não é boa só por si mesma.

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que a dor está referida ao homem “quando uma de suas partes é mais afetada do que as restantes”; já a melancolia, “quando todas as suas partes são igualmente afetadas”. E pela demonstração da E III 57, Spinoza me permite reiterar o que foi dito até agora sobre tristeza e alegria: [...] a alegria e a tristeza são paixões pelas quais a potência de cada um – ou seja, seu esforço por perseverar no seu ser – é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada (pela prop. 11 e seu esc.). Ora, por esforço por perseverar em seu ser, enquanto esse esforço está referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo, compreendemos o apetite e o desejo (veja-se o esc. da prop. 9). Portanto, a alegria e a tristeza são o próprio desejo ou o apetite, enquanto ele é aumentado ou diminuído, estimulado ou refreado por causas exteriores, isto é (pelo mesmo esc.), é a própria natureza de cada um. Excitação e contentamento, dor e melancolia Ao final da explicação da terceira definição dos afetos (E III), Spinoza declara: “omito as definições de contentamento, excitação, melancolia e dor, porque estão mais referidas ao corpo e não passam de espécies de alegria ou de tristeza”. Um pouco antes, no escólio da E III 59, ele diz: “Quanto ao restante, deixei de lado as afecções exteriores que se observam em afetos como o tremor, a palidez, o soluço, o riso, etc., porque se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente”. Ao ler tais declarações, um leitor que não conhece a filosofia de Spinoza, naturalmente poderia perguntar: quais são, então, os afetos (e não “espécies de afeto”) de alegria e tristeza que estão mais referidos à mente? Respostas a esta pergunta podem ser encontradas sob diversas perspectivas na Ética de Spinoza. Mas, em primeiro lugar, é necessário deixar claro que a terceira parte da Ética, como indica seu próprio título (A origem e a natureza dos afetos), trata especificamente dos afetos em sua manifestação primeira, portanto, afetos passivos ou afetos como paixões. De acordo com a terceira definição da E III, os afetos são afecções do corpo e ao mesmo tempo as ideias dessa afecção. Nesta definição, Spinoza ainda explica: “Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma

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paixão” (explicação da def. 3, E III). E sabemos, conforme a demonstração da E III 57, que a alegria e a tristeza são paixões que podem aumentar ou diminuir a potência ou conatus. Isso já bastaria para demonstrar ao certo que a alegria pode estar relacionada à mente, concebida então como ideia dessa afecção do corpo. É o que se pode verificar pelo enunciado da E III 59: “Entre todos os afetos que estão relacionados à mente à medida que ela age não há nenhum que não esteja relacionado à alegria ou ao desejo”. Apenas quando a mente padece é que os afetos a ela relacionados podem estar relacionados à tristeza. E todo afeto ativo, isto é, todo afeto pelo qual a mente age (compreende os afetos através de sua própria natureza) é necessariamente um afeto de alegria. Mas o que significa, afinal, um afeto enquanto está “referido ao corpo” ou “mais referido ao corpo” ou, ainda, “exclusivamente referido ao corpo”? Para tornar mais compreensível esta questão, segue o esclarecedor capítulo 2 do apêndice da E IV: Os desejos que se seguem de nossa natureza, de maneira tal que podem ser compreendidos exclusivamente por meio dela, são os que estão relacionados à mente, à medida que esta é concebida como consistindo de ideias adequadas. Quanto aos outros desejos não estão relacionados à mente senão à medida que esta concebe inadequadamente as coisas. A força e a expansão desses desejos devem ser definidas não pela potência humana, mas pela potência das coisas que estão fora de nós. Por isso, os primeiros desejos são, apropriadamente, chamados de ações, enquanto os segundos são chamados de paixões; pois os primeiros indicam, sempre, a nossa potência, enquanto os segundos indicam, ao contrário, a nossa impotência e um conhecimento mutilado. A mente pode ter ideias adequadas e inadequadas, e estas ideias existem segundo a mesma ordem e conexão das afecções do corpo. Logo, o desejo que surge da alegria, quando referido ao corpo, seria uma paixão porque, neste caso, a nossa natureza, cuja mente tem apenas a ideia da afecção, não é capaz de compreender os afetos por si mesma. Um afeto é definido como ação ou paixão na medida em que a mente é capaz de compreender sua própria natureza, ou seja, à medida que ela concebe as ideias adequadamente. Se a mente padece ao conceber ideias inadequadas, o corpo padece da mesma forma, e se

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a mente age ao conceber ideias adequadas, é porque o corpo é afetado por uma potência externa que, na medida em que é compreendida, aumenta ou estimula sua potência de agir. Assim, já poderia considerar razoavelmente demonstrada ‘a significação dos afetos de alegria e tristeza no que se referem especialmente ao atributo da extensão’, como anunciei na introdução. Mas ainda restam algumas observações. No entanto, outro caminho, para mim, mais interessante para a questão acima, é o da dinâmica entre os afetos de alegria e tristeza sugerida pelo enunciado da E IV 41: “A alegria não é diretamente má, mas boa; a tristeza, em troca, é diretamente má”. Então, logo podemos deduzir que a alegria pode ser indiretamente má e a tristeza, indiretamente boa. Esse é o sentido apontado pelas próximas proposições. O enunciado da E IV 42 diz: “O contentamento nunca é excessivo, mas sempre bom, enquanto, inversamente, a melancolia é sempre má”. O contentamento, “enquanto está referido ao corpo”, é sempre bom porque todas as partes do corpo são igualmente afetadas (demonstração, E IV 42). Assim, “a potência de agir do corpo é aumentada ou estimulada de tal maneira que todas as suas partes adquirem, entre si, a mesma proporção entre movimento e repouso” (idem). Ao contrário, a melancolia, “enquanto referida ao corpo, consiste em que a potência de agir do corpo é inteiramente diminuída ou refreada” (idem). Logo a seguir, Spinoza introduz a já suspeitada exceção à regra. O enunciado da E IV 43 diz: “A excitação pode ser excessiva e ser má; em troca, a dor – à medida que a excitação, ou seja, a alegria, for má – pode ser boa”. A excitação, “enquanto referida ao corpo”, pode ser má porque uma parte ou algumas de suas partes é mais afetada do que as outras, de modo que o excesso de potência desse afeto pode se sobrepujar às outras ações do corpo, além de concentrar esse afeto em apenas uma parte ou algumas partes do corpo, impedindo, assim, que este seja capaz de se afetar de diversas outras maneiras. O excesso de potência fixada numa só parte do corpo não compensaria a impotência das outras partes, mas, pior que isso, só reforçaria a carência de potência dessas outras partes. Além disso, de acordo com a demonstração da E IV 18, o desejo que surge da alegria é aumentado ou estimulado pelo próprio afeto de alegria, enquanto o contrário ocorre com o desejo que surge da tristeza, que é diminuído ou refreado pelo próprio afeto de tristeza. Disso se segue que a excitação, porque só afeta uma ou algumas partes do corpo, anularia as partes não afetadas, e só através do refreamento da excitação mediante outros

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afetos (mais fortes, logicamente) é que o corpo poderia se afetar de outra maneira e restabelecer a potência das partes que foram prejudicadas. Se o desejo que surge da alegria for excessivo, como no caso da excitação excessiva, as partes do corpo não afetadas ficarão completamente à mercê da potência da causa exterior. Então, como pude demonstrar, o prejuízo provocado pela excitação pode ser revertido por outro afeto, a saber, a dor, considerada por Spinoza como diretamente má: Quanto à dor, que é, contrariamente, uma tristeza, considerada por si só, não pode ser boa (pela prop. 41). Mas como sua força e expansão são definidas pela potência da causa exterior, considerada em comparação com a nossa (pela prop. 5), podemos, então, conceber infinitos graus e modos das forças desse afeto (pela prop. 3). Podemos conceber, pois, uma dor tal que possa refrear a excitação para que essa não seja exclusiva e fazer, dessa maneira (pela primeira parte desta proposição), com que o corpo não se torne menos capaz (demonstração, E IV 43). Cada vez mais Spinoza torna evidente a sua teoria da capacidade humana para múltiplos e diversos modos de se afetar, como podemos perceber, por exemplo, pelo enunciado da E IV 60: “O desejo que surge de uma alegria ou de uma tristeza que está relacionada a uma só parte do corpo, ou a várias, mas não a todas, não leva em consideração a utilidade do homem como um todo”. Pois isso infringiria os próprios ditames da razão que conduzem o homem a buscar o que lhe é útil. Quando o corpo é afetado de forma parcial, a mente não fica ociosa (o que seria como que sua inexistência ou privação da perfeição, pois, como diz a def. 3 dos afetos da E III, a privação nada é), mas enquanto isso padece justamente por se ocupar com o que é contrário a sua potência: se ocupa em função ou em detrimento das causas exteriores e não com a produção das ideias provocadas por elas. Assim, segundo o escólio da E IV 44, É mais fácil conceber o contentamento, que eu disse ser bom, do que observá-lo. Com efeito, os afetos pelos quais somos cotidianamente afligidos estão referidos, em geral, a uma parte do corpo que é mais afetada que as outras e, por isso, esses afetos são, em geral, excessivos, e ocupam a mente de tal maneira na consideração de um único objeto que ela não pode pensar em outros.

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Na medida em que o homem aumenta sua capacidade de se afetar de diversas maneiras, ele pode se afetar cada vez mais igual e integralmente as partes do seu corpo. O contentamento nunca é excessivo justamente porque afeta igualmente todas as partes do corpo. É como afirma Spinoza, por exemplo, no segundo escólio da E IV 45, “[...] o riso, tal como a brincadeira, é pura alegria e, portanto, desde que não seja excessivo, é, por si, bom (pela prop. 41)”. Com o contentamento, todas as partes do corpo são igualmente afetadas tanto pela potência interna quanto pela potência da causa externa, de modo a impossibilitar a decadência de alguma das partes do corpo. Mas a alegria do contentamento não é de modo algum ordinária, razão pela qual Spinoza afirma que a alegria experimentada comumente pelos homens é má porque excessiva e, portanto, inútil porque não favorece o aumento ou a expansão do conatus. “Como, pois, a alegria está relacionada, em geral (pelo esc. da prop. 44), a uma só parte do corpo, desejamos, em geral, conservar o nosso ser sem qualquer consideração por nossa saúde como um todo” (esc., E IV 60). No segundo escólio da E IV 45, Spinoza apresenta com notável precisão essa relação de interdependência, concomitância ou reciprocidade entre as diversas partes do corpo: [...] o corpo humano é composto de muitas partes, de natureza diferente, que precisam, continuamente, de novo e variado reforço, para que o corpo inteiro seja, uniformemente, capaz de tudo o que possa se seguir de sua natureza e, como consequência, para que a mente também seja, uniformemente, capaz de compreender, simultaneamente, muitas coisas. Considerações finais Em sua teoria dos afetos, Spinoza se refere ora ao corpo, ora à mente como atributos de uma mesma substância, e isso não passaria de um método de abstração muito próprio de sua “meticulosa ordem geométrica”. O contentamento, compreendido como um afeto de alegria pelo qual o corpo tem todas as suas partes igualmente afetadas, é condição para que a mente possa da mesma forma se afetar de diversas maneiras e, assim, aumentar sua potência de pensar. Em outras palavras, o contentamento é uma alegria fundamental para a autoafirmação do homem, isto é, para a afirmação do seu conatus. Uma

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perspectiva enorme avança sobre esses afetos concebidos por Spinoza sob o atributo da extensão, já que todas as experiências potentes do pensamento nascem da saúde humana, ou melhor, da saúde de um corpo capaz de se afetar de diversas maneiras.

REFERÊNCIA

SPINOZA, B. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Edição bilíngue: latim/ português. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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