Observatório da cultura: entre o óbvio e o urgente

July 17, 2017 | Autor: José Marcio Barros | Categoria: Cultural Politics
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Numa sociedade de “descolamento” entre informação e conhecimento, observatórios enfrentam não apenas o desafio das realidades vividas, mas também aquilo que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e tantos outros especialistas chamam de os desafios do conhecimento no século XXI. Arrisco uma primeira proposição: tanto é importante definir os objetos e os métodos de um observatório quanto explicitar os pressupostos sobre os quais ele se funda. Se há uma concordância quanto aos riscos de uma “sociedade da informação” não produzir uma “sociedade do conhecimento”, um observatório tem a enfrentar, necessariamente, os clássicos desafios do “quem, como, onde, por que e para quem”.

imagem: Daya B/acervo particular

Jacques Delors (Paris, 1925-), economista pela Sorbonne, foi ministro das Finanças da França (1981) e presidente da Comissão Européia entre 1985 e 1995, quando se destacou pelo empenho no relançamento da construção da União Européia. Autor e organizador do relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI: Educação, um Tesouro a Descobrir (1996), em que se exploram os Quatro Pilares da Educação. “A educação deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro.” 2

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Decorre da questão a necessidade de pensar que: • sua arquitetura e funcionamento poderiam integrar, de modo interdisciplinar, diferentes pesquisadores e especialistas portadores de diferenças espaciais, temporais e teóricas. Um observatório deve assumir caráter plural na composição de suas capacidades críticas relacionadas a suas bases conceituais e suas referências espaciais e temporais. Onde quer que ele esteja ancorado espacialmente, a forma de operar de um observatório deve reunir olhares e sujeitos de diferentes contextos sociocientífico e cultural; • sua ação, para além da produção de conhecimento, deve se comprometer com a formação de competências, ou seja, certo compromisso com a perspectiva de formação de um número cada vez maior de competências “a serviço” da cultura. Para além de gerar conhecimento com base em informações culturais, deve haver compromisso em formar competências para o trabalho com indicadores culturais; • seu modo de operar precisa se adequar, desde a origem, aos desafios inclusivos contemporâneos. Para além dos compromissos de disponibilização e circulação, por meio de várias e complementares mídias, a transparência e a acessibilidade a seus meios e métodos são centrais. Assim, os processos e as mídias colaborativas surgem centrais na construção e no desenvolvimento de propostas e projetos. Penso, portanto, num observatório ancorado no estímulo da aprendizagem e da mudança. Penso num observatório capaz de reunir e processar informação, produzir conhecimento e competências por meio dos desafios que Jacques Delors apresentou em 1996 no Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, especialmente no que se refere ao aprender a conhecer e ao aprender a fazer. Dessa maneira, evitaríamos o risco de produzir um conhecimento que em seu processo e produto negaria o que singulariza seu objeto: a cultura como experiência fundamental do encontro e da troca.

Dessa forma, estaríamos pesquisando as culturas em suas mais diversas formas e significados, mas produzindo, por meio do conhecimento, uma experiência cultural perdurante.

COELHO, Teixeira. Cultura na universidade. São Paulo: Jornal da USP, ago. 1997. 3

Um observatório como uma rede dinâmica de sujeitos e práticas em torno de objetos comuns, construídos com base no equilíbrio entre demandas e possibilidades de interação de grupos de pesquisadores distribuídos no tempo e no espaço. Enfim, um observatório que enfrente a falta de informação, mas também os riscos da obesidade informativa a que se refere Ciro Marcondes Filho, professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP. O campo cultural Mas o que eleger como objeto de um observatório com tais características? Que recorte poderia ser estrategicamente realizado para dar conta da amplitude e complexidade do que se designa sob a legenda da cultura, evitando-se a indeterminação de direção e foco? Não há como fugir de escolhas de modo que se evite um “apetite antropológico” que abarque a totalidade, trocando-as por uma capacidade de realizar cortes que possam produzir conhecimento a ser totalizado. Penso em alguns pressupostos: • a cultura deve ser investigada como realidade plural e dinâmica. Isso significa que, além da diversificação de contextos, modelos, processos e experiências culturais a ser investigadas, as fronteiras e as contaminações entre essas realidades devem merecer atenção e destaque. Dessa forma, além dos campos tradicionais da cultura – artes cênicas, artes visuais, audiovisual, literatura, música, memória e patrimônio, culturas tradicionais (folclore, artesanato, culturas de matrizes étnicas) –, os cruzamentos e as misturas entre si precisam ser também objeto de tipologias móveis e dinâmicas capazes de perceber não apenas as convergências de suportes técnicos, mas também os modelos de criação e de consumo híbridos e contaminados, que se mostram mais complexos que a tentativa de síntese do conceito de artes integradas e que mobilizam cada vez mais o cenário cultural metropolitano; • a cultura, devido a sua pluralidade e capilaridade, tanto se manifesta nos espaços institucionais convencionais quanto nos espaços informalmente instituintes. Para além dos conceitos de mercado formal e informal, trata-se de reconhecer aquilo que é tornado invisível nas pesquisas, posto que classificado como anônimo, periférico, residual e ilegal; • a cultura, portanto, deve ser pesquisada pelo cruzamento de diferentes perspectivas conceituais. A título de exemplo, apresento três que poderiam agregar objetividade e profundidade. O conceito de arranjos produtivos nos remete à idéia de articulação, interação e cooperação entre diferentes atores sociais, em determinadas .61

Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo de formação, foi diretor da escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e consagrou-se como um dos maiores intelectuais de seu tempo. O mundo social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital. 4

realidades territoriais. O conceito de cadeias produtivas nos remete à relação entre insumos e os ciclos de produção, distribuição e comercialização de bens e serviços culturais. Outro conceito aplicável à análise da cultura é o de campo, de Pierre Bourdieu, entendido como uma construção teórica que permite compreender a realidade social de forma interativa, resultado das relações, tensões e disputas entre grupos sociais que instituem espaços com autonomia relativa e regras próprias. Pensar a cultura como um dos campos da sociedade permitiria compreendê-la de forma dinâmica. De acordo com Inesita Araújo (2000, p. 10): “Campo é um conceito que permite lidar ao mesmo tempo com estruturas materiais da sociedade – as organizações – e com o conjunto de valores e regras que as sustentam – as instituições. Permite perceber o modo como funcionam as homologias de posições (essenciais como fatores de mediação), as intersecções e os antagonismos entre os vários domínios. Permite, sobretudo, identificar novos campos transversais, processo que adquire cada vez mais relevância nos estudos da sociedade. Favorece, ainda, uma construção teórica e metodológica transdisciplinar. É um conceito operativo no âmbito macro da metodologia. Lembro que campo, em Bourdieu, é uma noção que não descarta, nem oculta o conflito; pelo contrário, um campo é definido por uma hegemonia, mas que se instala por uma luta de poder. A aparente homogeneidade de certos campos pode vir da doxa, senso comum compartilhado, mas que foi estabelecida a partir de disputas. Ou seja, uma hegemonia.”

Com base nas proposições para um observatório da cultura, com as características até aqui delineadas, algumas estratégias se apresentam como alternativas viáveis e necessárias: • para além de colher dados, há o desafio de construir indicadores qualitativos e quantitativos sobre a cultura, entendida como campo, cadeias e arranjos produtivos. Tais indicadores deveriam ser capazes, inclusive, de diferenciar cultura e atividades de entretenimento e lazer, atribuindo-lhes pesos e significados diferenciados; • a busca de parcerias institucionais para a construção de bancos de dados confiáveis, apropriados às realidades culturais e abertos aos interessados, mostra-se tão importante quanto o conhecimento a ser produzido; • a realização de atividades de difusão, formação e crítica, sempre em parceria com institutos, universidades e instituições voltadas para a ação e a reflexão cultural, seria decorrência natural de um modelo de observatório como o proposto.

“Contra o determinismo das análises estruturalistas, que reduzem o agente, segundo ele [Bourdieu], a um mero “portador” da estrutura, mas, por outro lado, sem cair na filosofia da consciência, embora dela preservando a possibilidade de considerar o agente como operador prático de construções do objeto, ele desenvolveu o conceito de campo: espaço definido por sua estruturação segundo suas próprias leis de funcionamento e suas próprias relações de força – cada campo é relativamente autônomo, muito embora entre os diversos campos (econômico, educacional, político, cultural etc.) exista uma homologia estrutural.”

No que se refere ao trabalho com a informação em matrizes quantitativas, penso que se deveria priorizar: • a ação conjunta com outras instituições, como IBGE, FGV, Ipea, BID, Unesco e outros observatórios e parceiros para a construção de indicadores específicos e confiáveis para a cultura. A padronização de fontes e indicadores, mas também a construção de novos parâmetros e ferramentas, poderia aprofundar os esforços e resultados realizados até aqui de forma que conferissem “harmonização internacional e comparabilidade com estatísticas nacionais”, produzindo-se universalidade e inteligibilidade dos dados e, portanto, extensão das informações (Lins, 2006). • a realização de estudos tendo como objeto plataformas de dados existentes ou a construir, com as quais se poderia eleger temáticas com base em três grandes campos: a) cadeias e arranjos produtivos da cultura, abarcando as dimensões de produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais, correlacionando os setores da indústria, de serviços e do comércio; b) monitoramento crítico de gastos e investimentos governamentais, privados e não-governamentais com a cultura nas esferas federal, estadual e municipal, organizados em setores correspondentes às câmaras setoriais hoje em vigor; c) análise contínua de hábitos de consumo cultural da população brasileira com base em segmentações várias.

Tal como na perspectiva de Bourdieu sobre o campo literário, o campo cultural, entendido como uma dimensão dos campos sociais, se configuraria dinamicamente por meio de singularidades e universalidades simbólicas simultaneamente estruturais e conjunturais.

Uma segunda direção, correlacionada à primeira, estaria mais preocupada em realizar análises qualitativas, centradas em cenários, sujeitos e práticas hegemônicas no campo cultural e em realidades circunscritas a dimensões específicas de contextos e conjunturas da cultura.

A abordagem da cultura por meio da idéia de campo permitiria que as pesquisas realizadas evitassem os riscos de idealização e autonomização do sujeito, sempre em voga em tempos de modismos gerenciais. Segundo Laplane & Dobranszk (2002, p. 58):

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Estratégias

Essa é uma das recomendações do estudo Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2003, do IBGE. 5

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Como prioridades, entre as quais se escolheriam alternativas, arriscaria sugerir: • estudo sobre as relações de articulação e complementaridade entre os três níveis de governo (federal, estadual e municipal), correlacionado com as realidades culturais de cada esfera; • análise do comportamento de instrumentos de financiamento da cultura (incentivo fiscal, fundos, investimentos diretos e mercado) e suas relações de integração, complementaridade e sobreposição; • análise de modelos de gestão, dando prioridade às formas de decisão e compartilhamento de escolhas e ações; • diagnóstico dos recursos humanos artísticos, técnicos, educacionais e gerenciais relacionados à cultura, além de uma especial atenção às relações entre educação e cultura; • realização de estudos problematizando hábitos de consumo cultural e habitus culturais (na perspectiva de Bourdieu), buscando compreender os impactos da contemporaneidade nos modos de participar, expressar e criar da sociedade brasileira; • análise da cultura de corporações artísticas, carreiras artísticas e instituições culturais, oferecendo diagnósticos sobre modelos usuais de organização do trabalho com a cultura; • realização de estudos de experiências e modelos de inovação espontâneos e institucionais, de usos e apropriações de equipamentos culturais formais e informais; • realização de análise comparativa entre política cultural e diferentes políticas sociais nos âmbitos nacional e internacional; • construção de possíveis cenários futuros.

Referências bibliográficas ARAÚJO, Inesita. Mediações e poder. Texto apresentado ao GT Estudos da Recepção, no Alaic 2000, Santiago (Chile), abr. 2000. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução de Sergio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 1987. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1. COELHO, Teixeira. Cultura na universidade. Jornal da USP, São Paulo, ago. 1997. LAPLANE, Adriana Friszman & DOBRANSZK, Enid Abreu y. Capital cultural: ensaios de análise inspirados nas idéias de P. Bourdieu. Horizontes, Bragança Paulista, v. 20, jan./dez. 2002, p. 59-68. LARA, Marilda Lopes Ginez de & CONTI, Vivaldo Luiz. Disseminação da informação e usuários. São Paulo Perspec., v. 17, n. 3-4, jul./dez. 2003, p. 26-34. LINS, Cristina Pereira de Carvalho. Indicadores culturais: possibilidades e limites às bases de dados do IBGE. Abr. 2006. Disponível em http://www.cultura.gov.br/upload/EdC_CristinaPereira_1148588640.pdf. MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos. 1. ed. São Paulo: Hacker Editores, 2000. p. 176. MARTINS, Maurício Vieira. Bourdieu e o fenômeno estético: ganhos e limites de seu conceito de campo literário. Rev. Bras. Ci. Soc., São Paulo, vol. 19, n. 56, out. 2004. WERTHEIN, Jorge. A sociedade da informação e seus desafios. Revista Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, mai./ago. 2000.

Penso no observatório da cultura como lugar onde se processam e transformam informações, e não necessariamente onde se produzem tais insumos básicos para a pesquisa. Trata-se de um lugar que faz falar a informação de forma plural e compromissada com o conhecimento. Quanto às formas de divulgação e circulação, penso que devem se mostrar sintonizadas com os vários meios, as várias tecnologias e as diferenças de linguagens concernentes a cada uma. Uma política de informação deve ser construída de forma que coordene ações por meio de internet, suportes digitais, publicações impressas, televisão e rádio, seminários, cursos, palestras e concursos de trabalhos e pesquisas em bases de dados. O principal parece ser o compromisso com a multiplicação de meios em função da multiplicidade de interlocutores.

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