Observatório de artifícios - ficções da escrita e do escritor na correspondência de Murilo Rubião com Fernando Sabino e Otto Lara Resende

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OBSERVATÓRIO DE ARTIFÍCIOS: FICÇÕES DA ESCRITA E DO ESCRITOR NA CORRESPONDÊNCIA DE MURILO RUBIÃO COM FERNANDO SABINO E OTTO LARA RESENDE Cleber Araújo Cabral (Doutorando Pós-Lit – UFMG) Maringá, 27 de Agosto de 2014. Até mesmo as cartas extensas não dizem metade do que deixou de ser escrito (ANDRADE, 2003, p.896). A memória nem sempre guarda detalhes. (...) Esta carta não se destina à posteridade nem é simbólica.1

Prezados, inicio esta comunicação, misto de carta aberta e carta de leitor, apresentando uma questão da qual me ocupo há vários anos. Trata-se de uma provocação feita por Davi Arrigucci Jr. em texto hoje canônico para os interessados na ficção de Murilo Rubião: “É possível falar dos contos fantásticos de Murilo sem se repetir” (ARRIGUCCI JR., 1987, p. 165)? Esta pergunta, em que ecoam a incessante reescrita e a circularidade características dos contos rubianos, além de motivar minhas pesquisas, ela faz com que eu me coloque, a todo instante, a seguinte pergunta: como viabilizar abordagens que auxiliem a renovar as condições de leitura da obra de Rubião? Durante o mestrado (CABRAL, 2011), no qual efetuei uma leitura das noções de narrador, personagem, espaço e tempo presentes nos contos rubianos, percebi que Murilo não publicou artigos ou textos teóricos em que formalizasse sua poética ou refletisse acerca do gênero conto. Afora as poucas menções feitas em entrevistas sobre autores de sua preferência ou de opiniões (ora evasivas, ora conclusivas) acerca de sua filiação à literatura fantástica, chamou minha atenção o fato de Rubião não expressar

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Carta de Murilo Rubião a Otto Lara Resende. Belo Horizonte, 05 de agosto de 1948. Fundo Otto Lara Resende. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Murilo Rubião. Instituto Moreira Salles. Rio de Janeiro. Marcações em itálico de minha autoria.

pontos de vista concernentes à sua experiência como escritor ou sobre o seu fazer literário. Diante dessa ausência, coloquei-me a vasculhar o arquivo de Murilo, alocado no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, a fim de averiguar a existência de textos ou de anotações nos quais houvesse comentários ou apontamentos suscitados pelo trabalho de elaboração de sua própria obra. Foi quando me deparei com seu epistolário. Ao examinar suas cartas com escritores, críticos e tradutores, constatei a existência de várias conversas sobre temas e convenções caras à criação ficcional, tais como construção de personagens, vozes narrativas, verossimilhança e representação da realidade, dentre outros. Além disso, também pude observar cartas em que nas quais se discutiam planos de textos em processo, argumentos de contos em desenvolvimento, plantas-baixas de livros em edição e sugestões de mudanças de títulos para contos. Essas reflexões acerca do fazer literário, presentes nas cartas de Rubião, constituem uma espécie de diário da obra do pirotécnico, laboratório (mas também observatório) a aguardar um leitor. Diante de tal achado, passei em revista a fortuna crítica de Rubião e constatei que, à exceção do volume Mário e o pirotécnico aprendiz: cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião (ANDRADE; SOUZA; MORAES, 1995), da tese Para uma história do intelectual: Mário de Andrade através de sua correspondência (KOENEN, 1992) e de comentários esparsos,2 o epistolário de Murilo permanecia inédito e inexplorado. Foi assim que percebi nas cartas um argumento consistente para formular uma resposta à pergunta de Arrigucci Jr., que também resume a hipótese central de minha tese: pensar a poética do conto de Rubião a partir de sua correspondência com escritores, críticos ou tradutores. Penso que tal abordagem possibilita não só esboçar traços de seu projeto literário, mas também pode auxiliar a ler sua obra por outras perspectivas. Construído o objeto e elaborada a hipótese, o próximo passo consistiu em delimitar o corpus a ser analisado. Dado o volume do epistolário, optei, inicialmente, como estratégia crítico-operativa, pela composição de três conjuntos, constituídos por duas séries cada: escritores (séries Fernando Sabino e Otto Lara Resende), críticos 2

Ver ANDRADE, 1995 e MENEZES, 2010.

(séries Jorge Schwartz e Nelly Novaes Coelho) e tradutores (séries Pavla Lidmilová e Thomas Colchie). Os critérios utilizados na elaboração dos conjuntos e na escolha dos destinatários/remetentes foram os seguintes: presença de elementos estéticos que caracterizam o debate crítico sobre a criação literária, reconhecimento na história da literatura brasileira, pertencimento geracional, afinidades intelectuais e relações pessoais (Sabino e Resende), relevância acadêmica e crítica (Schwartz e Coelho), interesse editorial e reflexões sobre o processo criativo de Rubião por meio da prática tradutológica (Lidmilová e Colchie). Mas esse projeto inicial passou por reformulações motivadas por dois fatores: a necessidade de diminuir o volume de cartas a ser trabalhado (que então totalizava 290 documentos), e, principalmente, as tentativas frustradas de reunir a correspondência ativa e passiva. Por essas razões, decidi reduzir o escopo do corpus documental, focando-me nas cartas trocadas entre Murilo, Otto e Sabino. A correspondência de Rubião e Lara Resende é constituída por 90 cartas, que se estendem de 1945 a 1991. No tocante às de Sabino para Rubião, trata-se de um montante de 47 mensagens, que abrangem os anos de 1943 a 1983. Entretanto, cabe mencionar que, apesar dos esforços empreendidos junto a herdeiros, arquivos e instituições de pesquisa, o paradeiro das cartas enviadas por Murilo a Fernando permanece desconhecido. No entanto, não desisti de localizar essas hipotéticas “cartas fantasmas” (DIAZ, 2007, p.129), cujos espectros rondam a tese e têm me estimulado a elaborar outras formas de ler sobre as quais irei discorrer a seguir. O período em que há um corpus epistolar mais significativo se situa entre as décadas de 1940 a 1950 – momento em que Rubião ainda elabora as balizas de seu projeto ficcional e no qual ocorre a edição de seus primeiros livros, O Ex-Mágico (1947) e A Estrela Vermelha (1953). Nas cartas dessas décadas, nota-se a predominância de um tom informal (mas nem por isso menos “encenado”), que reforça o sentimento de camaradagem e de cumplicidade manifesto na troca de ideias, originais ou mesmo quando se predispõem a “puxar angústias”. De modo esquemático, a correspondência de Murilo com Otto e Fernando apresenta os seguintes tópicos que, a meu ver, também se fazem presentes, de modo geral, no intercâmbio epistolar de escritores e intelectuais: apontamentos sobre estilo e linguagem; observações acerca do

ofício de escritor e da vocação para a literatura; sugestões de autores e leituras; propostas de caráter profissional; visões do campo e da crítica literária a respeito da própria obra; comentários sobre relação com editores, tradutores e mercado editorial; considerações acerca de ideias para projetos literários, planos de obras e textos em andamento; traços da vida cultural brasileira do período; solicitações de favores diversos (de pedidos de emprego para terceiros a procurar artigos, contos ou crônicas publicados em periódicos a fim de compor o arquivo); repertório de locais onde residiam, de pessoas e amigos com quem mantiveram contato; traços da vida cultural e política no período que abrange as correspondências; preocupações de ordem financeira; questões relacionadas à doença, envelhecimento, melancolia ou solidão. Acredito que esses tópicos afiançam a possibilidade de ler a correspondência como espaço em que o escritor pensa a escritura e se pensa por meio da escritura – circunstância em que o interlocutor exerce a função de um mediador que possibilita, ao remetente, um exercício de compreensão de si mesmo e de seu trabalho, conforme propõe Brigitte Diaz (DIAZ, 2002, p.137).

*** Estou escrevendo muito depressa e ao correr da pena. É uma explosão. Sincera, nua, sem conveniência, de qualquer espécie.3

Após este breve memorial da pesquisa exposto acima, passo ao comentário de alguns operadores conceituais utilizados na tese. Quando penso em pesquisas com fontes documentais, indago-me, sobretudo, acerca das estratégias de apropriação e atribuição de sentidos empregados pelos pesquisadores no trato com as fontes documentais eleitas como objeto de estudo. De imediato, uma questão se impõe: “como trabalhar os indícios ou traços que chegaram desde o passado (...), como torná-los legíveis, de maneira a [dialogar com eles,] fazê-los falar” (PESAVENTO, 2008, p.63 e 67)? Tendo em mente essa pergunta, bem como a inexistência de uma teoria

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Carta de Otto Lara Resende a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 03 de novembro de 1947. Arquivo Murilo Rubião. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Mário de Andrade, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Jair Rebêlo Horta e Paulo Mendes Campos. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Marcações em itálico de minha autoria.

hermenêutica de cartas, delineio, a seguir, as conjecturas que emprego para embasar a manipulação das fontes documentais objetos desta tese. O fio condutor é a investigação de Murilo Rubião como leitor de sua poética. Já o cerne do modo de leitura que proponho, consiste na articulação da crítica biográfica a três operadores conceituais: dispositivo, espectro e locação. Não se trata necessariamente de um método, mas de alguns pressupostos que configuram uma (dentre outras) maneira de ler que se orienta pelo estudo de edições de correspondências e dos trabalhos de Giorgio Agamben, Carlo Ginzburg, Michel Foucault e Jacques Derrida. Da crítica biográfica busco captar meios de aproximar fragmentos da vida do escritor de seu texto. Eneida de Souza, em Janelas indiscretas, propõe, a partir do trabalho com manuscritos e correspondências de escritores, um enfoque biográfico no qual se permite “associações entre texto e contexto, obra e vida, arte e cultura” (SOUZA, 2011, p.09) por intermédio da aproximação de teoria e ficção. Para tanto, Souza parte do conceito de ficção proposto por Jacques Rancière em A partilha do sensível, que consiste em “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz” (RANCIÈRE apud SOUZA, 2011, p.11). Tal entendimento da ficção viabiliza meios de recuperar dados da vida do escritor que se depreendem da leitura dos manuscritos e documentos alocados nos arquivos de escritores, criando condições de metaforizar e rearranjar tais rastros da experiência e da escrita de si em ficções do escritor e de sua escrita. Com o estabelecimento de tais pontes metafóricas,4 torna-se possível inverter a equação vida-obra para, a partir da obra, interpretar as cartas como índices que facultam ler a vida como texto oportunizando, assim, movimentos “de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento” (SOUZA, 2011, p.13) sem incorrer em aproximações causalistas – como o biografismo do século XIX que tentava interpretar a obra pela vida.

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O termo pontes metafóricas remete ao uso de metáforas tomadas de empréstimo à obra do escritor como conceitos operatórios para pensar sua ficção. Em minha tese, utilizo-me das figuras de indivíduos em constante estranhamento com um mundo tido por fora dos eixos, tal como os protagonistas dos contos “O ex-mágico da taberna Minhota” e “O pirotécnico Zacarias”. Estas imagens funcionam como catalisadores para refletir tanto acerca da ficção de Murilo como das representações que o escritor constrói de si em suas cartas.

A fim de enriquecer a abordagem biográfica, busco na noção de dispositivo, categoria elaborada por Michel Foucault e reformulada por Giorgio Agamben, contribuição para caracterizar a carta como mecanismo que engendra o direcionamento e o exame da consciência, bem como a experiência de formação (mas também de transformação) do sujeito – tanto de quem escreve como daquele que lê (AGAMBEN, 2007). No contexto de minha tese, articulo a noção de dispositivo às ideias de biografia e de espectro com o intuito de propor dispositivos biográficos e espectrográficos a fim de examinar, nas cartas, rastros do artifício de “edição de si”.5 Quanto à ideia de espectro, tomada de empréstimo ao pensamento de Jacques Derrida, considero que ela propicia refletir tanto acerca das aparições (do escritor, da escrita e da literatura) como a propósito da sobrevida6 destes fantasmas elaborados e editados pelos autores em seu epistolário. O espectro, de acordo com as reflexões de Derrida, é um rastro, um traço do passado que insurge na atualidade, “um ser do passado que não para de sobreviver” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.29), imagem provisória que permanece e pode ser reanimada criticamente, mesmo depois do desaparecimento de sua inscrição originária. Há três motivos que orientam o diálogo com tal ideia: primeiro, a recorrência de figuras espectrais na ficção de Murilo, como a não-morte do pirotécnico Zacarias, morto-que-está-vivo; o “ex-Mágico”, (não-)ser surgido de um espelho, que lamenta não ter nascido e não poder morrer; o velho Simeão que assombra a memória d’“A casa do girassol vermelho”; as (ex-)esposas assassinadas que retornam em os “Três nomes de Godofredo”; o retrato da mãe que necessita ter a maquiagem retocada todas as noites em “Petúnia”; a aparição de “Marina, a intangível” no conto de mesmo título;. O segundo motivo consiste nas “cartas fantasmas” de Rubião a Sabino, que têm me estimulado a pensar uma poética indicial (GINZBURG, 2002) que auxilie a fazer ouvir, ainda que 5

De acordo com Ângela de Castro Gomes, faz-se necessário compreender a escrita de si “como tendo ‘editores’ e não autores propriamente ditos. É como se a escrita de si fosse um trabalho de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte do texto, criando-se, através dele, um autor e uma narrativa”. Para mais detalhes sobre essa reflexão, consultar GOMES, 2004, p.16. 6 Penso aqui no conceito de sobrevivência das formas, como assim entende Aby Warburg, para quem as formas e os momentos históricos são impuros, heterogêneos e fantasmáticos. Não possuem a estabilidade conservadora do passado nem se acham dominados pelo estigma da repetição. Não se apresentam enquanto pedras, conceitos cristalizados e aparentemente fechados. Atuam como forças recorrentes que insurgem no presente de modo a revitalizar e dar sobrevida às novas manifestações, sem apagar o elo estabelecido com formas antigas.

por vias indiretas, a voz ausente e as respostas às questões e apontamentos elaborados por Fernando nas cartas ausentes de Murilo. Quanto ao terceiro, este se refere aos espectros do escritor Mário de Andrade que povoam os diálogos dos “jovens moços de Minas”. A figura do “mestre” é evocada de várias maneiras nas cartas, seja nas menções às regras do pacto epistolar por ele formalizado, que deram as balizas de uma comunidade epistolar, no elogio ao amigo ausente, ou, ainda, como legado que se insinua nos conselhos e comentários de Lara Resende e Sabino a Rubião. Por fim, proponho uma leitura do diálogo epistolar a partir da ideia de locação. Reinaldo Marques (MARQUES, 2007), ao recorrer à etimologia deste vocábulo, alude às significações de lugar,7 demarcação e delimitação. Lido num registro mais amplo, o termo remete à indicação de elementos estruturais de uma construção – no caso, a modernidade que se processa no Brasil de início do século XX. Marques propõe que a leitura de locações como a burocracia, vida literária e a jornalística pode auxiliar na contextualização de debates e posicionamentos de escritores em seu discurso sobre si e acerca de suas obras. A partir desta ideia proponho pensar a carta, “gênero de fronteira” (HAROCHE-BOUZINAC, 1995, p.92), espaço enunciativo híbrido e paradoxal, tensionado entre documento e objeto estético, entre real e ficcional, entre objetividade e subjetividade, entre o indivíduo e o coletivo, entre o público e o privado, como sendo composta por um conjunto de ambientes de encenação onde escritores performam sua existência. Com isto faço glosa a leitura de Alain Pagès, para quem “a correspondência, ao contrário do que se pensa, nem sempre é o lugar de um compromisso sincero: trata-se de uma encenação” (PAGÉS apud GUIMARÃES, 2004, p.09). Assim, julgo viável mapear, nas conversas ocorridas nas cartas, as diferentes locações em que os escritorespersonagens se manifestam acerca de situações reais ou imaginárias.

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A fim de precisar melhor o que se compreende por locação, recorro à distinção proposta por Michel de Certeau entre lugar e espaço. A título de síntese, um lugar é um local projetado para configurar o exercício de ações e posicionamentos determinados. Já o espaço é um meio constituído por um conjunto de vários lugares (exemplo: uma casa é um espaço habitacional formado por dormitórios, sanitários, sala de estar, cozinha etc). Conforme propõe o pensador francês, os dois termos, apesar de complementares, encontram-se em relação de oposição mas, também, de mútua reconfiguração. O lugar se relaciona às estratégias institucionais de subjetivação, já o espaço se vincula às táticas de resignificação adotadas pelos indivíduos. Assim um lugar se transforma em espaço pelas táticas de apropriação e uso adotadas pelos sujeitos que o frequentam ou habitam. Para mais detalhes aconselho a consultar CERTEAU, 2004, p.184186.

Enumero a seguir um repertório de locações observadas no corpus que, a meu ver, se apresentam como estimulantes à reflexão e produtivas para análises de conjuntos epistolares: bastidor (ambiente fora do alcance público, em que resoluções são tomadas e ações são empreendidas, mas também suporte em que se prende e se estica o tecido sobre o qual se borda); laboratório (local de manipulações, exames e experiências efetuados no contexto de pesquisas; local provido de instalações e equipamentos próprios para tratar filmes fotográficos ou cinematográficos); observatório (mirante de onde se observa, à distância, as atividades, posicionamentos e relações entre escritores); campo (espaço simbólico no qual os agentes que legitimam as formas de representações culturais se posicionam, estabelecendo relações, seja de enfrentamento, de cooperação ou de aliança); fórum (lugar de debate e julgamento, mas também mercado onde noções e valores de cultura, literatura e política são expostas e discutidas).

*** Aqui me despeço. Aguardo ansioso suas notícias. Que elas sejam muitas, alegres ou tristes, felizes ou infelizes, líricas ou prosaicas, autênticas ou inventadas.8

A primeira palavra do título desta comunicação condensa, em diversos aspectos, características do objeto-tema. Como observatório, as cartas permitem observar, à distância histórica, as atividades, os posicionamentos, as relações e os embates entre os escritores, bem como a linguagem e a cultura de outras épocas. Feitas para afastar (e não para reunir), as missivas, conforme propõe Vincent Kauffmann (KAUFFMANN, 1990), também permitem a quem as escreveu (mas também a quem as lê), formas de aproximação – da história, da memória cultural, do escritor e da escritura. Nesse sentido o artifício de “se pôr em cena”, seja no modelar personas ou ao dissimular aproximações e distanciamentos, é aqui pensado como meio de os participantes do jogo epistolar (incluído também o crítico que dele participa), colocarem-se em perspectiva de modo ambivalente: aproximando-se de si mesmos (ou do outro) conforme se afastam do outro (ou de si mesmos). 8

Carta de Fernando Sabino a Murilo Rubião, N.Y. 22 de julho de 1947. Arquivo Murilo Rubião. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Fernando Sabino. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Marcações em itálico de minha autoria.

Para encerrar este texto, passo à leitura de duas narrativas encontradas em um manuscrito localizado no arquivo de Murilo Rubião. Nelas há subsídios para pensarmos algumas questões abordadas nesta comunicação que se relacionam com a leitura de cartas de escritores. O DOCUMENTO (Parábola) Levou a vida toda decifrando um documento. Palavra por palavra. Cinquenta anos em cima do documento. Um dia, alguém [xxxxxxxxxxxx] lhe diz: — Sabes que levaste a vida toda em cima deste papel, que estás velho e morrerás dentro em pouco. O ancião olha o rosto no espelho, acaricia os cabelos brancos. Pega no documento, sacode-o[,] e volta a decifrá-lo. (RUBIÃO, s.d.)9

Neste texto curto, materializa-se o pesadelo de todo pesquisador (principalmente o que se aventura em arquivos, literários ou não): o texto ilegível, com o qual não se consegue dialogar. Somos apresentados a uma vida dedicada à decifração de um documento. Sua origem não é revelada (não sabemos se é público ou privado) e seu teor (ou “segredo”) permanece inacessível. No esforço de compreender melhor tal documento, examino-o atentamente e noto que, no avesso da página (trama do bordado?), há outra estória, manuscrita, com o título sugestivo de “O mistério”. O mistério Devia ser uma coisa sutil. Um mistério. Todos a entendiam e pouca importância [xxx] davam. [xxxxxx]. a ela. Somente a mim incomodava não decifrá-la. Não perguntaria a ninguém, como seria [ ] lógico, porque sabia, de ante-mão, que não me falariam. Tinha que ser mistério apenas para mim. [xxx] Pens[a?] em mil maneiras de descobrir o sentido daquilo tudo, sem [t?]ardar, ou melhor, indagando de tão sutil maneira que ninguém percebesse o que eu desejava (RUBIÃO, s.d.)10 9

RUBIÃO, Murilo. “O documento (parábola).” [datiloscrito sem data]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta “Anotações antigas para contos improváveis”. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes visam a transcrever rasuras, tal como presentes nos manuscritos. Quanto às marcações em itálico, estas são de minha autoria. 10 RUBIÃO, Murilo. “O mistério.” [manuscrito sem data]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes que possuem interrogação, tais como “Pens[a?]” e “[t?]ardar”, visam a informar quanto a dúvidas sobre a grafia do trecho assinalado. Marcações em itálico de minha autoria.

Recorri a estas narrativas que tematizam a dificuldade de ler para encerrar esta comunicação-carta por considerar que desenvolvem algumas das questões enfrentadas por pesquisadores na abordagem de correspondências de escritores. E com estes personagens que perseveram obstinados na leitura de documentos e de mistérios, deixo em aberto nossa conversa, na certeza de que este texto é apenas o início de uma série de diálogos – presenciais ou, quem sabe, epistolares.

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, 1 : artes de fazer. 10. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis: Vozes, 2004.

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