Obstáculos às teorias da diferenciação: colonização e modernidade na formação social brasileira

June 5, 2017 | Autor: V. Foletto Bevilaqua | Categoria: Brazilian History, Sociological Theory, Differentiation Theory
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Obstáculos às teorias da diferenciação: colonização e modernidade na formação social brasileira Vinicius Foletto Bevilaqua1

Resumo

As teorias da diferenciação percorrem um longo caminho na tradição sociológica. De Spencer a Luhmann e Bourdieu, as principais teorizações perpassam o contexto histórico europeu. Fundamentalmente, essas teorias tentarão explicar as estruturas da sociedade moderna através de um viés marcadamente histórico. Frente a essa constatação, importar teorias da diferenciação europeias ao Brasil sugere desafios. O objetivo do artigo é refletir sobre os obstáculos apresentados à teoria da diferenciação quando seu objeto de estudo é o Brasil. Para tal, realiza-se, como metodologia, a revisão bibilográfica de trabalhos sobre a teoria da diferenciação e sobre a formação social, política e econômica brasileira. Como resultados, identificam-se dois obstáculos: a) o obstáculo moderno, ou seja, a diferente formação sócio-histórica do Brasil no século XIX em comparação às nações europeias; e b) o obstáculo colonial, ou seja, a relação colônia-metrópole estabelecida entre o Brasil e Portugal. Conclui-se argumentando que considerar a premissa histórica é fundamental à elaboração de qualquer teoria da diferenciação sobre o Brasil. Palavras-chave: Teoria sociológica; Teoria da diferenciação; Sociologia histórica; História do Brasil; Sociedades modernas.

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Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor substituto na Universidade Federal de Santa Maria. Contato: [email protected].

Introdução As teorias da diferenciação2 percorrem um longo caminho na tradição sociológica. Spencer, Dilhey, Weber, Simmel, Durkheim, Parsons, Luhmann, Habermas, Bourdieu e Lahire são alguns autores que podem ser citados. As abordagens não são homogêneas, para alguns a divisão social do trabalho se encarrega da tarefa da diferenciação, para outros o aumento de complexidade como característica inerente a qualquer sociedade. As teorizações dos autores referidos, em sua maioria, perpassam o contexto histórico europeu3. Fundamentalmente, as teorias tentarão explicar as estruturas da sociedade moderna através de um viés marcadamente histórico. Frente a constatação, importar teorias da diferenciação europeias ao Brasil sugere desafios. O objetivo do artigo é refletir sobre os obstáculos apresentados à teoria da diferenciação quando seu objeto de estudo é o Brasil. Para tal, realiza-se, como metodologia, a revisão bibilográfica de trabalhos sobre a teoria da diferenciação e sobre a formação social, política e econômica brasileira entre os séculos XVI-XIX. A análise se focará nas obras de Spencer, Dilthey, Durkheim, Luhmann e Bourdieu que se inscrevem no que pode ser denominado como teoria da diferenciação. Dependendo do autor, a inscrição será mais explícita ou implícita. Num segundo momento, o resgate de aspectos mais gerais da formação estrutural brasileira será empreendida com o objetivo de contraste com as teorizações européias. A hipotetização a ser perseguida no restante do artigo é sintetizada em dois obstáculos. O primeiro é designado como o obstáculo moderno, isto é, como a fundação estrutural sócio-histórica do Brasil é radicalmente diferente da européia no século XIX. O segundo refere-se ao passado colonial brasileiro com a Europa, mais especificamente, a relação Brasil-Portugal. A secção “A teoria da diferenciação nos clássicos e contemporâneos” procura desenvolver uma linha argumentativa que posicione os autores estudados sob o mesmo guarda-chuva, qual seja, a teoria da diferenciação. Na secção “Refletindo a 2

Definem-se “teorias da diferenciação” as teorias sociológicas que observam o desenvolvimento da sociedade com base em constantes processos de diferenciação, processos que criam diferentes domínios da atividade humana. 3 O “contexto histórico europeu” refere-se ao espaço geográfico da Europa contemporânea. O foco não reside nas diferentes designações – por exemplo, Alemanha pré-unificação ou pós-unificação –, e sim na realidade empírica.

diferenciação em solo brasileiro: entre Brasil e Europa”, resgatam-se os argumentos da secção dos clássicos e contemporâneos para pensar as diferenças entre os contextos do Brasil e da Europa, mais especificamente Portugal na sub-secção sobre o obstáculo colonial.

A teoria da diferenciação nos clássicos e contemporâneos

A teoria da diferenciação não apresenta um consenso. Basta um exame rápido para avaliar que os sociólogos (e alguns filósofos) tanto de uma matriz clássica quanto contemporânea convergem e divergem em muitos aspectos. O objetivo da secção é refletir sobre as implicações das diferentes teorizações sobre a diferenciação e como aparece na obra de autores destacados da tradição sociológica. Herbert Spencer é o primeiro deles. Sua obra cruza referências filosóficas, biológicas e sociológicas4. Sua capacidade de abstração influenciará pensadores, como Durkheim. Spencer recorre a domínios estranhos ao seu meio intelectual para observar e analisar a sociedade. A metáfora biológica é inevitável para pensar a forma como Spencer ficou conhecido na sociologia. Spencer (2002), na obra Do progresso, sua lei e sua causa, argumenta sobre a transformação das coisas da e na natureza. O interesse é investigar sobre como as coisas se transformam a partir da análise histórica de diferentes domínios científicos, seja através da física, astronomia, química ou biologia. Ao estudar as transformações nos diferentes domínios, Spencer começa a suspeitar sobre uma orientação geral inscrita na natureza e presente em todos os domínios. O filósofo analisa que a maioria das transformações apresenta uma característica em comum: em estados iniciais a matéria das coisas é homogênea e, a medida que se transforma, torna-se heterogênea. Identifica a ideia de progresso inscrita na natureza das transformações5. Sinteticamente, Spencer versa sobre o progresso ser a passagem do homogêneo ao heterogêneo6.

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Segundo Lallement (2000), Spencer busca inspiração na mecânica e na fisiologia. O autor versa, por exemplo, a partir da física e astronomia, sobre o estágio inicial da matéria dos planetas e como com o decurso do tempo se transformaram na riqueza heterogênea, dando existência a rios, lagos, oceanos, montanhas, florestas, desertos. 6 De olho nos avanços das outras ciências, Spencer descobre a Lei de Baer e desenvolve uma analogia sobre a evolução das sociedades com base naquela (LALLEMENT, 2000). 5

Insatisfeito, Spencer percorre não apenas a descrição, mas a explicação. Ao descrever o que é o progresso – procurando se afastar da noção de felicidade que os estudos da época se inscreviam –, prossegue buscando entender o porquê das transformações se configurarem da forma observada. Na investigação, produz a lei e a enuncia: “toda força ativa produz mais de uma transformação: toda a causa produz mais de um efeito” (SPENCER, 2002, p. 59). A transformação se realiza como um progresso, pois cada causa produz mais de um efeito7. Reside exatamente na produção de vários efeitos a passagem do homogêneo ao heterogêneo, pois uma força aplicada numa matéria homogênea com o tempo desencadeia a produção de vários efeitos que transformam a matéria, forçando-a a passar para um estado heterogêneo. Para exemplificar sua lei, Spencer recorre aos domínios científicos8. Investigando o conceito e a força explicativa no domínio do social, o filósofo foca a atenção nos diferentes tipos de sociedades existentes. Argumenta sobre as sociedades tribais serem homogêneas, sendo a diferenciação baseada nos sexos, ou seja, os homens caçam, colhem e preparam suas armas, enquanto as mulheres cuidam da família, dos filhos. Todos os eventos num baixo grau de diferenciação, em alguns momentos os diferentes papéis se confundindo. Aos poucos, na retomada histórica, Spencer delineia os nuances das diferenciações, sejam aquelas que resultam na diferença entre governo e governados – na figura da religião e política fortemente articuladas, como na Alta Idade Média por exemplo – ou as que permitem indicar a divisão do trabalho. No último caso que Spencer fornece o cenário em que vive. Versa sobre como a diferenciação entre produtores de trigo, fabricantes de pão, comerciantes, aponta para um alto grau de especialização nas sociedades modernas9. Fundamental na descrição de Spencer é notar três pontos: a) o primeiro refere-se ao seu interesse numa lei geral do progresso, que transversalize as diferentes disciplinas científicas; b) o segundo ponto é como se apropria de um conceito abstrato para pensar o social; c) e, por último, a ênfase na análise comparativa entre diferentes sociais e “estados” de diferenciação. 7

Exemplificando, pode-se pensar numa mesa de bilhar. Ao utilizar uma força x, com o taco, numa bola de bilhar, esta percorre um trajeto específico na mesa, podendo, ou não, atingir outras bolas existentes, desencadeando uma série de causa-efeito. 8 Para economia de argumentação, foca-se nas suas explicações sociológicas. 9 Semelhante ao que Durkheim versa sobre a divisão do trabalho.

Na esteira das teorias da diferenciação, deixa-se Spencer, um inglês, para ser resgatado mais a frente, e começa-se a busca do pensamento alemão, mais precisamente com Wilhelm Dilthey. O autor é mais conhecido pela sua contribuição à fundação das “Ciências do Espírito” articulada à Hermenêutica, em contraposição às Ciências Naturais e seu Positivismo. Entretanto, o foco presente será na sua forma de conceber a diferenciação. Ao conceber a sociedade e as formas como o homem se organiza, Dilthey refere-se aos “sistemas culturais”10. Os sistemas são fundados na ação recíproca, seja indireta ou direta, dos indivíduos na sociedade, refletindo parte da natureza humana11. “Parte”, pois a natureza humana é demasiada rica para gerar apenas um sistema. Caso gerasse apenas um sistema, todos os homens seriam iguais para o autor, porque o sistema reflete a natureza humana. Se a natureza humana é heterogênea e apresenta diversas facetas, pode-se concluir com segurança, para Dilthey, a existência de vários sistemas culturais. Semelhante ao que Durkheim versa sobre a permanência da consciência coletiva, pensando a dimensão temporal, Dilthey argumenta que os sistemas culturais persistem, enquanto os indivíduos particulares não12. Os sistemas culturais são um produto da natureza humana, transformando-se numa ordem diferente da humana, das ações humanas e superior através de sua articulação entre si, ou seja, dos seus elementos internos. A ordem superior significa que os sistemas adquirem uma duração externa independente dos indivíduos, conferindo um caráter de objetividade maciça aqueles. Cada sistema configura sua própria lógica através de uma particularidade inscrita na multiplicidade da natureza humana. Dentro da lógica da diferenciação, a pluralidade de sistemas se especializa cada vez mais em Dilthey. O ritmo da especialização depende do curso do progresso da cultura. O progresso da cultura se inscreve, por sua vez, na realidade efetiva histórica-social. Os sistemas culturais emergem progressivamente no desenvolvimento histórico. O autor argumenta que os sistemas culturais atingem um 10

“Esse sistema baseia-se inicialmente na ação recíproca dos indivíduos na sociedade, na medida em que essa ação, com base em um elemento da natureza humana comum aos indivíduos, tem por consequência uma interprenetração das atividades na qual esse elemento da natureza humana é satisfeito. Por meio daí distingue-se um tal sistema fundamental de toda organização que guarda em si apenas um sistema de meios para as necessidades da sociedade” (DILTHEY, 2010, p. 65). 11 Impossível não lembrar de Max Weber quando pensa a ação social como orientada pela expectativa de outras ações sociais. Para Dilthey, cada ação de um indivíduo gera um horizonte de ações recíprocas diretas daqueles indivíduos envolvidos. 12 Exemplos de sistemas culturais, para Dilthey (2010), seriam a religião, a arte e o direito.

alto grau de desenvolvimento “isolado” e internamente mais rico se estiverem inseridos num nível cultural mais elevado. A ideia de “diferenciação” em Dilthey está associada a noção de “decomposição”, onde agir prático se decompôs em várias formas de ação, cada uma das ações representando particularidades da natureza humana, sendo refletidas na existência de vários sistemas culturais. Existe uma conexão de fins em cada sistema cultural que define sua diferença em relação ao outros. Fundamental para o autor é inserir o sistema cultural analisado na sua realidade histórica-social13. Dilthey, por fim, argumenta que os sistemas culturais são “sistemas fundamentais da sociedade” (2010, p. 77). Alguns sistemas de meios, como a educação, surgem a partir de necessidades da sociedade. Os corpos escolares particulares, as associações, aos poucos se diferenciaram, ligando-se uns aos outros, assim como, para o autor, o sistema educacional progressiva e ainda parcialmente foi incluído na administração pública. Na teorização de Dilthey, mister é ressaltar alguns nós centrais: a) a natureza humana e as ações recíprocas dos homens; b) a formação dos sistemas culturais através da unidade das ações recírpocas dos homens, ou seja, quais as particulares da natureza humana podem ser vistas como conjunto, transformando-se em sistemas culturais; e c) a imersão histórica-social dos sistemas culturais, isto é, para concebê-los é necessário considerar o contexto temporal na qual estão inscritos, junto de sua diferenciação. Da inserção e resgate dos clássicos no tópico da diferenciação, Durkheim fecha com particular contribuição. Diz-se “particular”, pois é em Durkheim que a diferenciação ganha seu tratamento mais socialmente específico a partir do estudo sobre a divisão social do trabalho14. Não por arbitrariedade do artigo, a reflexão sobre a diferenciação, quando objeto de análise é a contribuição de Durkheim, focase na sua obra A divisão social do trabalho (1893). Durkheim (2008), logo no início da sua obra, indica o argumento de que a divisão do trabalho é antiga. Entretanto, é apenas no final do século XVIII que a 13

Para compreender o sistema, por exemplo, da eticidade, é necessário compreender como historicamente surge. Dilthey versa que o sistema surge “em um longo desenvolvimento histórico, talhado de maneira em muitos aspectos autônoma, cunhado em uma pluralidade de formas: uma realidade efetiva não menos poderosa e verdadeira do que a religião ou o direito” (2010, p. 78). 14 Dilthey, por suas próprias razões, torna-se aquele que menos contribui empiricamente. Enquanto Spencer atinge voos mais abstratos e transdisciplinares, Durkheim é mais retido e focado na sua tarefa de pensar a sociedade a partir da sociologia.

sociedade percebe como uma lei. Adam Smith é o primeiro a teorizá-la, de acordo com o sociólogo francês. Seguidamente, o autor recupera exemplos na área da indústria moderna, indicando sua tendência na extrema divisão do trabalho, ou seja, na separação e especialização de ocupações ad infinitum nas fábricas. De forma gritante, o francês versa sobre a agricultura15 cada vez mais não conseguir resistir ao “movimento geral” (DURKHEIM, 2008, p. 2), isto é, ao processo de diferenciação. O argumento inicial de Durkheim é poderoso para os propósitos desta explanação, pois é um indicador de como a divisão social do trabalho, para ser refletida sociologicamente, precisa ser pensada através da ótica histórica16. O autor deixa a dica quando versa sobre os economistas observarem na especialização do comércio como “a lei superior das sociedades humanas e a condição do progresso” (DURKHEIM, 2008, p. 2). Entretanto, a divisão do trabalho para Durkheim, como é vastamente conhecido, não é limitada a esfera econômica da sociedade17. O sociólogo argumenta que pode ser observado a influência crescente da divisão do trabalho nas mais diferentes regiões da sociedade. Seja nas funções políticas, judiciárias, educacionais, artísticas, científicas ou administrativas18. A diferenciação em Durkheim está relacionada com a divisão do trabalho, as necessidades da sociedade e a ideia de complementariedade. Para o francês, a solidariedade acaba sendo um produto dos fatores mencionados. Desenvolve-se uma articulação entre a divisão do trabalho e as necessidades da sociedade. A medida que a sociedade avança, os vínculos sociais tornam-se mais complexos19. A complexidade associa-se a ideia de diferenciação, de maneira semelhante a que Spencer ataca o problema. O francês não expõe uma teoria geral da sociedade ou, para ser mais específico, da diferenciação, porém aponta para caminhos possíveis quando pensa a noção de “função”. Em esquemas mais abstratos, diferentes domínios da vida social preocupam-se com diferentes funções. Durkheim resgata a noção para trabalhar detalhadamente a divisão do trabalho, pensando os diferentes tipos de solidariedade e de relações desempenhadas entre sociedade e indivíduo.

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Por mais que seu exemplo seja a agricultura, pode ser concebido em Durkheim que o autor versa sobre o ritmo da sociedade como um todo. 16 Mais para frente, quando o tópico da diferenciação for atacado diretamente, perceber-se-á sua fundação histórica. 17 É com sua consequência moral que o autor tanto se preocupa. 18 Como forma de ilustração, o direito se especializa em direito doméstico, contratual, comercial, processual, administrativo. 19 O casamento é um exemplo explorado por Durkheim.

A divisão social do trabalho, funciona sustentando o tipo de sociedade que o sociólogo francês analisa, isto é, a sociedade moderna. Mais especificamente, a divisão social do trabalho fornece a diferenciação necessária para separar a sociedade moderna daquilo que pertence as sociedades tradicionais ou prémodernas20. Torna-se uma manifestação de algo que para Durkheim é latente, ou seja, uma exteriorização traduzida da dependência mútua da vida em sociedade. A sociedade moderna torna-se aditiva da diferenciação, pois quanto mais diferenciada for, isto é, empiricamente, quanto mais o trabalho for dividido, mais especializada é a atividade de seus membros. Sintetizando o pensamento de Durkheim, encontra-se, dentro da temática da diferenciação, três pontos: a) o processo de especialização e, mais propriamente, de diferenciação como um “movimento geral” das sociedades; b) a divisão do trabalho como um mecanismo que sustenta determinados tipos de sociedade, especialmente a moderna; c) o resgate histórico de elementos europeus sobre a passagem de sociedades tradicionais a sociedades modernas. Saltando ao pensamento sociológico contemporâneo, pode-se descatar duas figuras centrais dos ditos “neoclássicos”21: Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. O primeiro produz uma teoria altamente empirica, como o conceito de habitus pressupõe. O segundo elabora um arcabouço teórico extremamente vasto e ambicioso. Entretanto, observado o panorama dos autores, foca-se nos conceitos que tocam o tema da diferenciação de alguma forma. A análise da diferenciação, em Bourdieu, circunscreve-se ao debate histórico sobre a gênese de campos diferenciados onde diferentes práticas humanas são desenvolvidas. Cada campo representará diferentes conflitos, práticas, posições, capitais valorizados, habitus e nomos. Para conceber os campos, Bourdieu se inscreve na corrente do pensamento francês sobre a diferenciação, no qual Durkheim é um expoente e influente22.

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Durkheim, sendo direto: “Seu papel [divisão do trabalho], em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem elas, não existiriam” (2008, p. 27). 21 Para Vandenberghe (2010), podem ser incluídos Jürgem Habermas e Anthony Giddens. Entretanto, por motivos de espaço e relevância sociológica, na análise preocupa-se com Bourdieu e Luhmann, pois podem ser chamados de sociólogos com todas as letras. 22 Bourdieu é muito claro na passagem: “a evolução das sociedades tende a fazer com que surjam universos (que chamo de campos) que têm leis próprias, são autônomos” (2011, p. 147).

Na fundação da sociologia, se for pensado o caso francês, Durkheim preocupa-se com a materialidade do fato social, isto é, o fato social como coisa23. O social é pensado como diferente do psíquico, assumindo um conteúdo próprio24. A diferença entre o social e o individual gera, em Bourdieu, o que pode ser chamado de autonomização dos campos. Pressupor que os campos são autonomos significa que são formados por regras próprias – a própria escolha e designação da palavra – que não podem ser definidas por qualquer coisa externa, isto é, heterônoma. O que Bourdieu chama de “a evolução das sociedades” nada mais é do que seu constante processo de complexificação onde a constituição dos campos possui um papel fundamental25. A diferenciação progressiva na qual Bourdieu versa, tratase de conceber que o mundo social se diferencia em universos – para utilizar expressão de Bourdieu – que possuem suas próprias leis e que são constituídos através de diferenças – realizando um jogo de concepções quando resgatamos Luhmann – cruciais. Em seu livro Sobre o Estado (2014), o objeto de análise do autor é a constituição dos Estados modernos na Europa. Mister é indicar que Bourdieu pensa a transição do Estado absolutista francês para o Estado moderno26. Miceli (2014) argumenta que uma das teses sustentadas por Bourdieu é pensar a constituição progressiva de campos específicos – jurídico, administrativo, intelectual e parlamentar – com suas próprias lutas, mas obedecendo a um metacampo, isto é, o Estado moderno27. Na sua crítica ao reducionismo econômico, Bourdieu (2011) compreende que os diferentes campos apresentam diferentes interesses. O campo religioso atende a interesses religiosos, o artístico, aos artísticos e assim por diante28. Argumentar que todos os campos vinculam, em último caso, interesses econômicos significa reduzir 23

Exemplarmente abordado na sua obra As regras do método sociológico (2002). Pensamento semelhante é o que Vandenberghe (2012) desenvolve em seu livro Uma história filosófica da sociologia alemã: alienação e reificação, volume 1. 25 Na seguinte passagem, Bourdieu indica com precisão o que se discute até aqui sobre o mundo social: “na fundamentação da teoria dos campos, temos a constatação (já encontrada em Spencer, em Durkheim, em Weber...) de que o mundo social é lugar de um processo de diferenciação progressiva” (2011, p. 147). 26 Nas palavras de Miceli (2014, p. 19): “a transição entre o Estado dinástico-absolutista e o nascimento do moderno Estado do bem-estar”. 27 Se for pensado a sociedade a partir da sua forma sociologicamente mais popular e implícita, ou seja, a partir da diferenciação da sociedade em economia, política, religião, cultura, pode-se indexar o ímpeto analítico de Bourdieu sobre o Estado moderno europeu numa esfera mais ampla, isto é, a política. 28 Num primeiro momento, soa redudante argumentar que o campo científico atende a interesses científicos, entretanto o que se pretende tornar claro é a diferenciação de campos. 24

a heterogeneidade de interesses da sociedade a um interesse superior, operando o chamado “reducionismo econômico”. Adotar a análise reducionista implica aceitar a configuração de indiferenciação da sociedade ou, ainda, de hierarquização de campos, compreendendo o campo econômico como o campo superior no processo de diferenciação. O processo de diferenciação dos campos, em Bourdieu (2011), tem como resultado a constituição de campos com leis fundamentais, diferentes e irredutíveis. O que gera engajamento no campo artístico é diferente do engajamento no campo econômico. Se um funda-se na expectativa da arte pura, isto é, arte pela arte, no outro o interesse foca-se nos negócios. Cada um dos critérios são irredutíveis uns aos outros. A diferenciação em Bourdieu é o pano de fundo da sua análise sobre a constituição dos campos. Podem-se destacar dois pontos: a) o processo de autonomização dos campos; b) sua gênese histórica e a diferenciação progressiva das sociedades; e c) sua diferenciação em interesses irredutíveis. Por último, Luhmann é o autor para finalizar o resgate sobre o tópico da diferenciação. Fundamental é compreender que o alemão constrói uma teoria ambiciosa e de alto grau de abstrataçao para lidar com a complexidade do mundo. Bebendo das mais diversas fontes, Luhmann (1995) explica que a função dos sistemas sociais é reduzir a complexidade do mundo. A medida que diminuiu complexidade do mundo, adiciona-se a mesma, pois reduzir complexidade é distinguir, da mesma maneira que traçar uma distinção é adicionar complexidade ao mundo. No processo de confronto com a complexidade que os sistemas sociais se distinguem, isto é, diferenciam-se. Se Bourdieu ataca a questão da diferenciação através do conceito de “campo”, Luhmann a faz por meio do “sistema”29. O alvo de análise é a evolução histórica dos sistema sociais. O sociólogo alemão pensa o desenvolvimento dos sistemas sociais apelando principalmente à ótica macroestrutural e histórica das sociedades. Não é à toa que o conjunto de conceitos sobre a organização estrutural dos sistemas sociais em Luhmann adquire contornos de 29

Destaca-se que o conceito de “campo” e de “sistema” para o francês e o alemão são utilizados para objetos diferentes. Enquanto Bourdieu emprega o conceito para analisar uma parte do espaço social constituído por agentes ou grupos de agentes e suas diferentes posições ocupadas numa estrutura, Luhmann opera de maneira mais abrangente e abstrata, isto é, considerando tanto uma interação social, organização ou macro-sistema (a ciência, a religião, a economia) como seu objeto de estudo.

sistemas sociais datados. Quando o autor pensa a organização segmentada – isto é, diferentes famílias pertencendo ao mesmo sistema social e delimitando suas fronteiras através dos laços sanguineos –, refere-se à clãs ou antigas sociedades. Quando tenta refletir sobre o feudalismo europeu, cria conceitos como diferenciação centro/periferia (castelo/ feudo) e diferenciação estratificada (nobres/ plebeus). Por último, recorre à noção “diferenciação funcional” para conceber a organização estrutural da sociedade moderna. A forma de organização estrutural define-se a partir do tipo de diferenciação. Na sociedade moderna, Luhmann (2007) concebe que cada sub-sistema social (ciência, religião, política, educação, arte, economia) diferencia-se para cumprir uma função na sociedade. As fronteiras entre os países dissolvem-se, dando lugar ao estabelecimento de uma sociedade mundial30. O centro da sociedade não mais existe em virtude da diferenciação funcional, radicalmente diferente da diferenciação estratificada, onde a hierarquia topo-baixo organiza os privilégios e desprivilégios. Na diferenciação da sociedade moderna, cada subsistema é responsável por si (e seu sentido), funcionando como condições para a existência de outros sistemas. Em Luhmann (2007), evolução pressupõe diferenciação. A evolução dos sistemas sociais funda-se na sua capacidade de lidar com a complexidade a partir da redução da complexidade, possível através da constante diferenciação e construção de complexidade. Diferenciar-se é um paradoxo: reduz-se complexidade somente através de aumento de complexidade. O aspecto temporal dos sistemas sociais é fundamental para compreensão da diferenciação. Refletindo através de nuances históricos, pensar a diferenciação dos sistemas sociais em Luhmann é refletir sobre como a história das sociedades se desdobra. Operando uma síntese para organizar, resgatou-se a diferenciação em Luhmann como a) uma noção central da sua abordagem sobre a história e a evolução dos sistemas sociais, b) uma forma de explicar a organização estrutural dos diferentes tipos de sociedade e c) seu conceito de diferenciação é tanto empírico quanto teórico, pois as comunicações – e consequentemente sistemas sociais – se diferenciam ao mesmo passo que a diferenciação, enquanto conceito sociológico, funciona para explicar como os sistemas sociais organizam sua complexidade. 30

Por exemplo, o sistema econômico e científico diferenciam-se a nível mundial, apenas os sistemas político e do direito se organizam a partir de delimitações territoriais.

Na próxima secção, o objetivo é refletir sobre algumas características destacadas anteriormente para articular com o caso brasileiro, ou seja, como pensar os obstáculos à teoria da diferenciação quando se lida com uma corrente teórica construída em outro contexto histórico-social.

Refletindo a diferenciação em solo brasileiro: entre Brasil e Europa

A teoria da diferenciação, notavelmente, depara-se com diferentes obstáculos a sua plena teorização. Do que até agora argumentou-se, importante é ressaltar sua significativa fundamentação contextual na história europeia. Independentemente do autor explorado, a história da Europa enquanto objeto de análise e fundamento para pensar a diferenciação de atividades do homem é evidente. Os autores Spencer, Dilthey, Durkheim, Bourdieu e Luhmann são os que se inscrevem no quadro referencial destacado. Pensar a diferenciação de atividades dos homens significa refletir sobre o processo histórico desenvolvido pelas sociedades. Alguns, como Spencer e Dilthey, adotam uma perspectiva mais filosófica, biológica, física e sociológica, enquanto outros, como Durkheim, Bourdieu e Luhmann optam por uma postura sociológica. Entretanto, a unidade que possibilita pensar o conjunto dos autores é inegavelmente histórica. Se a teoria da diferenciação funda-se na perspectiva processual da história, quais as consequências históricas e empíricas para sua teorização? A pergunta expressada eleva a reflexão a novos patamares. Se a teoria tem seu devido valor quando refletida à luz da realidade empírica, como a teoria da diferenciação lida com a dificuldade de versar sobre diferentes realidades? Mais precisamente, se a teoria da diferenciação tem sua gestação originária na história do desenvolvimento das sociedades europeias, como se tornar um candidato sério para explicar a realidade brasileira? Semelhante ao movimento cartesiano sobre as fundações de uma nova ciência no século XVI31, pensar a teoria da diferenciação para o Brasil, significa revirar suas fundações. Deparando-se com essa lógica, necessário se torna analisar aquilo que a obstrui, qual seja, sua história.

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Entretanto, notavelmente mais contida em escopo.

a) O obstáculo colonial

Para pensar o obstáculo colonial, necessário é conceber os diferentes períodos entre Europa e Brasil. A comparação torna-se um método que possibilita diferenciar o que pertence e o que não a Europa e o Brasil. Não significa necessariamente que o que não pertence a Europa pertença ao Brasil e vice-versa, mas ressaltar que a comparação reforça as semelhanças e diferenças. A Europa entre os séculos XV e XVI enfrentava severos desafios à manutenção de sua estrutura de classes e estratificação social. Num período denominado como “Baixa Idade Média”, o Renascentismo e os debates intelectuais, filosóficos, econômicos e políticos ensaiavam transformações estruturais radicais. Maquiavel, por exemplo, discutia a presença da Igreja nas decisões políticas, isto é, qual papel significativo desempenhava32. Qualquer questionamento naquela época adicionaria mais motivos para rever o quadro político-religioso dos países. O regime feudal apresentava sinais de enfraquecimento e perturbação, junto das crises religiosas e sanitárias33. Adam Smith, mais tarde, discute sobre a autonomia do mercado com sua famosa ideia da “mão invisível”. Na filosofia, Descartes critica fortemente a filosofia escolástica e tenta separar aquilo que pertence à ciência e filosofia das infestações religiosas34. Não atrás, Bacon se esforça para dar à ciência um conteúdo próprio, procurando fornecer uma autonomia que a torne independente da religião35. Sociologicamente, os séculos destacados são refletidos por Durkheim quando versa sobre a divisão do trabalho. Durkheim teoriza a divisão social do trabalho e toma várias épocas como objeto de exemplificação. Argumenta sobre a divisão sexual do trabalho em sociedades antigas, sobre o feudalismo e o trabalho dos artesãos e acerca do capitalismo e a passagem do trabalho artesão ao industrial. A tendência da especialização transforma o tipo de solidariedade que sustenta as sociedades. As antigas fundam-se na solidariedade mecânica, a moderna na orgânica. Entretanto, o que cabe destacar é o feudalismo. Se Durkheim reflete sobre 32

Manent (1990) discute no livro História intelectual do liberalismo como o liberalismo, enquanto corrente política-filosófica, disassociou-se de suas raízes religiosas. 33 Johnson (2012) versa sobre o enfraquecimento econômico de Portugal e sua busca por recuperação através das grandes navegações. 34 Na clássica obra O discurso do método. Para um acesso à obra junto de uma adequada introdução à Descartes, ler a coleção Os Pensadores. 35 Para mais, ver a coleção Os Pensadores sobre Bacon (1995).

o trabalho artesão e sua passagem às indústrias nas sociedades modernas e suas consequentes divisão e especialização das funções, como o Brasil pode ser concebido na ótica destacada? No período trabalhado até o momento, a história registrada sobre o Brasil prescreve-o num sistema social do tipo colonização. Anteriormente, o território do Brasil antes de ser nação era delimitado por organizações europeias interessadas. Precisamente, o Tratado de Tordesilhas sustenta o ponto. A divisão da América Latina entre Portugal e Espanha fornece subsídios para pensar a questão. Antes da “descoberta”, o Brasil era povoado por tribos indígenas. Dentro dos esquemas dos filosóficos e sociológicos destacados até então, pode-se pensar numa organização do tipo tribal (Spencer, Durkheim) ou segmentada (Luhmann)36. A economia das tribos brasileiras era fundada num sistema de troca, não monetário. Não por coincidência, a prática do escambo desenvolveu-se com sucesso nos períodos iniciais de trocas de experiências e visões de mundo entre os europeus e os indígenas. Entretanto, quando observado o processo de colonização do Brasil, o esquema de observação precisa ser ajustado. A vinda dos navios de escravos e o sistema escravista instalado no Brasil problematiza o caso e o torna diferente. Os modelos de organização estrutural propostos por Luhmann não satisfazem a questão. O caso histórico destacado não possibilita pensar o Brasil em termos de uma organização estratificada nem segmentada. O Brasil não tinha uma organização social estável o suficiente para torná-la estratificada que nem a europeia, pois o constante conflito entre indígenas – tupi, na costa, e jê, mais ao interior – e os portugueses tornava a dominação insustentável37. Não era um sistema de estratificação à la Luhmann, pois a doação das capitanias não envolvia, necessariamente, o critério da relação familiar com a Coroa portuguesa, mas tinham seus donatários definidos a partir do critério de habilidade econômica, ou seja, em geral eram comerciantes ou militares com relativo prestígio em seus campos de atuação (como no Oriente)38. Da mesma forma, o Brasil não era constituído apenas 36

Infelizmente, os registros pré-descobrimento do Brasil são escassos se comparados aos pósdescobrimento. 37 No máximo, o contexto brasileiro marcava-se pelo conflito era entre diferentes sistemas: segmentado (tribos indígenas brasileiras) e estratificado (portugueses). No raciocínio acerca do conflito, Johnson (2012) trabalha a questão do entre indígenas e portugueses de forma bem descritiva. Argumenta que as estratégias de aliança e guerra dos portugueses oscilava. De acordo com as circunstâncias, os portugueses formavam alianças com tribos que eram inimigas de seus alvos para, após a conquista dos primeiros alvos, tornar-se contra seus aliados e surpreendê-los. 38 De acordo com Johnson (2012).

de tribos para ser caracterizado como uma organização estrutural do tipo segmentada. O processo de conflito entre indígenas e portugueses, foi uma substituição de um sistema social por outro, não sendo realizado de forma endógena como a diferenciação europeia, ou seja, não veio de dentro – como a transformação do Ancién Regime em Estado moderno –, mas relacional e interno-externo, isto é, entre Brasil e Portugal. Na arena religiosa, segundo Johnson (2012), o problema da catequização era um desafio a ser enfretado pelos portugueses, pois os jesuítas tinham dificuldades em transformar indígenas em camponeses quase-europeus que vivessem em aldeias colonizadas e praticassem a religião de uma sociedade agrária.

b) O obstáculo moderno

A teorização da diferenciação social tem como pano de fundo a história da formação das sociedades europeias. Quando se pensa a formação social brasileira, diferenças significativas são observadas. O movimento da diferenciação nas análises

sociológicas

europeias

surge

como

algo

natural,

intrínseco

ao

desenvolvimento de qualquer sociedade. Basta resgatar como exemplo a forma como Spencer encara o processo. Expõe casos referentes a diferentes ciências, como física, biologia e sociologia. Dentro da concepção do natural, quando versa sobre tribos, Alta Idade Média e a divisão social do trabalho do seu tempo, encaraas como transformações naturais das sociedades, nada mais congruente para sua própria lei enunciada, qual seja, a ideia do progresso inscrita na transformação das coisas. Durkheim inscreve-se no pensamento ao refletir sobre a divisão do trabalho e seus efeitos nas sociedades modernas. Num contexto histórico de diferenciação turbulenta, com dois grandes eventos ocupando espaço na transformação histórica – Revolução Industrial e Revolução Francesa –

não é de se assustar as

preocupações de Durkheim com a divisão do trabalho. Da mesma forma, a esfera da política na França ganha uma relativa autonomia ao transformar o Ancién Regime

em república, disassociando a monarquia das decisões políticas39. Ambos partilham do processo de diferenciação que inaugura a sociedade moderna. Quando versa sobre os sistemas culturais, Dilthey afirma que sua formação se desenvolve de acordo com a realidade efetiva histórica-social. A medida que a cultura se desenvolve e “eleva”40, os próprios sistemas culturais tornam-se mais especializados e ricos. A “elevação” da cultura tem como pano de fundo as discussões antropológicas do século XIX quando a diferença entre culturas radicalmente opostas torna-se objeto de atenção e análise41 dentro da corrente do evolucionismo42. O caso brasileiro apresenta contornos diferentes. Nos séculos XVIII e XIX, pode-se observar aquilo que Fernandes (2009) chama de “padrões de dominação externa”. Tanto quanto Bourdieu pensa o fechamento dos campos, especialmente o político (BOURDIEU, 2011, p. 141), Luhmann (NAFARRATE, 2004; TOSINI, 2006) segue a mesma linha de raciocínio e argumenta sobre o fechamento operacional da política e sua diferenciação entre situação/ oposição e governo/ governados. Fernandes (2009) versa sobre as diferentes formas que o Brasil se manteve a mercê das expectativas econômicas dos países externos, especialmente no século XVIII e início do XIX com a Inglaterra e a Holanda interferindo no lucro da Coroa portuguesa. O fechamento político no caso brasileiro é duvidoso, pois a relação operada entre economia – com Holanda, Inglaterra, Portugal e, é claro, Brasil – e política – Portugal-Brasil – apresenta dificuldades inerentes de autonomia operacional, colocando em interrogação as contribuições sociológicas europeias de Bourdieu e Luhmann43. 39

Vandenberghe (2012) quando reflete sobre a reificação na tradição da sociologia alemã, resgata a questão da Revolução Francesa ser um período marcante no processo de autonomização das esferas sociais na França. Por outro lado, Rousseau e suas reflexões filosófico-políticas elevam o debate político a um novo nível que reforce a diferença entre monarquia e povo. Para mais, ver Nascimento (2000) e Manent (1990). 40 A escolha do termo “elevar” não é arbitrária, pois reflete a decisão de Dilthey em encarar a diferença entre culturas a partir daquela base. 41 A corrente do evolucionismo foi muito influente na Europa do século XIX em virtude das contribuições de Spencer, principalmente suas contribuições produziram fortes ecos na antropologia. Para mais, ver Castro (2005). 42 O ponto não é indicar que Dilthey se inscreva naquela corrente, pois a resposta oposta praticamente é a correta. Entretanto, a questão é elucidar que o que o autor versa sobre “elevação de cultura” encontra ressonância no debate paralelo sobre o evolucionismo na antropologia do século XIX. 43 Atualmente, a contribuição dos autores soa mais plausível, entretanto, muitas questões precisam ser resolvidas de forma satisfatória. Por exemplo, explicar os casos recentes (e históricos) de corrupção em solo brasileiro como a operação entre política e economia, um interferindo no outro, assim como a própria autonomia e fechamento operacional daquelas, tanto no modelo luhmanniano

Em outras áreas, como a científica, o Brasil no século XIX engatinhava se comparado com a Europa. No projeto de Nação do Brasil, no seu período de independência, isto é, século XIX, a relação entre política e ciência era interessante e reveladora das transformações estruturais que estavam por vir. Segundo Priore e Venancio (2010), Dom Pedro II estava interessado em reconstruir a história do Brasil e enviou vários pesquisadores à regiões distintas do Brasil para recuperar arquivos que pudessem contar a história de cada região. Reunindo os registros seria possível tecer uma história do Brasil enquanto Nação ao destacar suas singularidades.

Notas conclusivas

O debate desenvolveu-se a partir de dois pontos. O primeiro significou um resgate da teorização de autores que contribuiram e se encaixaram numa espécie de teoria da diferenciação. Spencer, Dilthey, Durkheim, Bourdieu e Luhmann foram os autores indagados. As contribuições destacadas ressoavam tanto debates filosóficos e naturalistas, como em Spencer, quanto estruturais e empíricos, como Luhmann, Bourdieu e Durkheim. O segundo analisou a formação sócio-histórica brasileira, comparando-a com o contexto europeu, tanto no século XVI quanto XIX. Conclui-se argumentando que a premissa histórica é fundamental à elaboração de qualquer teoria da diferenciação sobre o Brasil. Quaisquer dos autores resgatados apresentaram suas considerações sobre a diferenciação a partir do ângulo histórico. Especialmente, Dilthey pode ser destacado como um dos autores mais teóricos. Compreensível, pois o autor, na sua obra principal, preocupase principalmente em elaborar direções para uma Ciência do Espírito. Como resultado ao objetivo geral da análise, dois obstáculos à teorização da diferenciação no Brasil foram refletidos. O primeiro refere-se ao obstáculo colonial, o segundo ao obstáculo moderno. O obstáculo colonial significou pensar a veia histórica da diferenciação quando comparado os séculos XV e XVI na Europa e no Brasil, principalmente através da ótica dos autores abordados e suas considerações sobre a Europa. Para pensar o Brasil, resgataram-se historiadores. Com referência aos obstáculos, pode-se afirmar que uma das conclusões gerais indicam que outros

quanto bourdieusiano, não resolve a questão, pois pressupõe que se encontram fechados. Um dos caminhos possíveis é percorrer a questão historicamente, isto é, através da análise do fechamento dos campos político e econômico no Brasil, junto de suas peculiaridades.

obstáculos podem ser explorados, mas, por enquanto, problematizaram-se dois específicos. A temática da teoria da diferenciação está longe de ser esgotado e, muito pelo contrário, encontra-se em estágios iniciais de sistematização e resgate da sua importância à teoria social e teoria sociológica. Fundamental é destacar que a reflexão de uma teorização europeia numa outra realidade – o Brasil – fortalece estudos mais abrangentes sobre o processo de diferenciação nas sociedades modernas. Mais precisamente, pensar a história do Brasil sugere revisitar a teoria da diferenciação e refleti-la a luz de uma realidade empírica radicalmente diferente da europeia. Se a Europa testemunhou processos de feudalização e modernização, o Brasil enfrentou problemas de colonização e escravização da sua história. Por fim, a emancipação sociológica no Brasil é fundamental para a constante superação de problemas localmente inscritos. Refletir sobre a produção sociológica no continente é, em parte, pensar sobre a própria história e se conhecer enquanto povo e unidade coletiva.

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