OCIDENTALIZAÇÃO, TERRITÓRIOS E POPULAÇÕES INDÍGENAS NO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA UFRN

OCIDENTALIZAÇÃO, TERRITÓRIOS E POPULAÇÕES INDÍGENAS NO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE

HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS

OCIDENTALIZAÇÃO, TERRITÓRIOS E POPULAÇÕES INDÍGENAS NO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE

HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO

NATAL 2007

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Trabalho não normalizado pela BSE-CCHLA.

Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande / Helder Alexandre Medeiros de Macedo. – Natal, RN, 2007. 309 f. Orientador: Profª Drª Fátima Martins Lopes. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História. 1. Rio Grande do Norte – História – Dissertação. 2. Ocidentalização – Dissertação. 3. Populações indígenas - Sertão da Capitania do Rio Grande – Dissertação. 4. Freguesia de Santa Ana do Seridó – História do RN – Período Colonial – Dissertação. I. Lopes, Fátima Martins. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA

CDU 94(813.2)

HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO

OCIDENTALIZAÇÃO, TERRITÓRIOS E POPULAÇÕES INDÍGENAS NO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa Natureza, Relações Econômico-Sociais e Produção dos Espaços, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Profª Drª Fátima Martins Lopes.

NATAL 2007

Quem me dera, ao menos uma vez, Que o mais simples fosse visto como o mais importante, Mas nos deram espelhos E vimos um mundo doente. Quem me dera, ao menos uma vez, Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três E esse mesmo Deus foi morto por vocês – É só maldade então deixar um Deus tão triste. (Renato Russo)

Para Helenice e Aurisci, mães e exemplos de mundo, a quem tudo devo

AGRADECIMENTOS A tarefa de agradecer não é das mais fáceis, afinal de contas, nenhum trabalho é feito sozinho. Sempre há alguma mãozinha por trás, um amigo que cochicha uma idéia, outra que ajuda com uma indicação de fonte, um professor que dá sugestões, enfim, agradecer, neste momento, é a evidência maior de que, mesmo na ciência, nada se constrói individualmente. No meu caso, acredito que seriam muitas páginas para retribuir a ajuda oferecida por uma infinidade de pessoas que têm me ajudado desde o início dos anos de 1990, quando comecei a interessar-me pela questão indígena e, sobremaneira, desde 1999, momento em que iniciei minhas pesquisas sistemáticas sobre a Freguesia de Santa Ana do Seridó e as populações indígenas que aí residiram junto com os outros grupos sociais. Sem dúvida tive um apoio espiritual, dessa maneira, não posso deixar de esquecer o quanto me confortaram, em momentos de aflição e excitação, a força e o amparo do Pai eterno e celestial e, dentre outras, as seguintes deidades: Nossa Senhora da Guia, com seu manto protetor e estrela flamejante; Vishnu, com sua bondade e harmonia; Athena, com sua sabedoria e Oxoce, com suas armas. Minha família esteve apoiando as minhas loucuras e neuras nesses quase dois anos e meio, em especial minhas mães Helenice e Aurisci, a quem devoto respeito, amor e dedicação, bem como as manas Hilene e Hivana, que me auxiliaram na composição dos registros de bancos de dados com assentos paroquiais. Amigos da cidade que, malgrado minhas constantes e irresolutas faltas nas noites, ainda assim me estimularam: Sidney, Cristiano, Valdemar (mesmo à distância), Dedé, Jefferson, Edmilson, Janaína, Laysi, Expedita, Genibaldo. Outros, além de amigos fiéis, também foram companheiros de trabalho durante esse tempo, permitiram que eu me enfiasse, de penetra, em seus quartos nas residências universitárias e, de quebra, não fizeram objeção a ler a dissertação e propor carinhosas e cuidadosas sugestões: Marcos Antônio, Rosenilson, Evaneide. Aos funcionários da Casa do Trabalhador em Educação, de Natal, meu muito obrigado, também, pelas hospedagens constantes durante metade do tempo das aulas do mestrado. Em Natal, durante as aulas e mesmo depois delas, reencontrei alguns amigos e fiz outros novos, que também incorporei ao meu patrimônio: Bruna, que hoje considero minha irmã, por várias batalhas e dificuldades que vivemos juntos, além das afinidades com a Colônia, é claro; Mirian, pernambucana que é conselheira, amiga e, também, amante dos tempos coloniais; Juciene, amiga desde os tempos da especialização em Caicó, poço de afabilidade e de sensatez. Além dessas três últimas, que também colaboraram dando suas

opiniões para o texto desta dissertação, é irresistível lembrar, também, de Olívia, Úrsula, Lênin, Daniel Breda, Adriana Patrício, Daiane, Isabel, Wendy, Luís Carlos, Tatiana, Raquel e Soraya, além dos professores Aurinete, Conceição Coêlho, Roberto Airon e Wicliffe. Sem esquecer de Erivan, Gênison, Késsia, Bruno, Davina e Marluce, amigos do Queiquó. Um registro especial para Cétura, secretária do mestrado, pelos auxílios sempre prestados nos momentos de precisão, bem como aos bolsistas Filipe, Heloísa e André. Também na capital mantive contatos e fui aluno de importantes mestres, que contribuíram, cada um a seu modo, para dar sustância à minha formação: Durval Muniz, Denise Monteiro, Raimundo Arrais, Paulo Possamai (que, inclusive, acompanhou o início da minha caminhada no mestrado, como orientador), Maria Emília, Raimundo Nonato, Flávia Pedreira e Rubenilson Teixeira. Agradeço, em particular, aos professores Paulo Possamai e Maria Emília pelas criteriosas sugestões durante meu exame de qualificação, e também a Joel Carlos, Iranilson Buriti, Henrique Alonso, Paula Sônia e Eugênia Dantas, docentes do Campus de Caicó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por sempre lembrarem de mim. Tenho, também, dívida para com os amigos que participaram, junto comigo, dos Projetos Contando o trabalho e os dias: demografia histórica do Seridó (Colônia e Império) ou Sangue da terra: história da família seridoense colonial, ambos coordenados pelo Prof. Muirakytan Macêdo: Alcineia, Katianne, Edkalb, Rosinéia, Paulo Herôncio, Sebastião, Edna, Hugo, Rosenilson, Gracineide – colegas de transcrição e digitação de documentos, bem como de muitas trocas de informações. Espaço também para lembrar e agradecer a quase uma centena de alunos que tive quando lecionei no Campus de Caicó, de 2003 a 2005, os quais atuaram como voluntários em um projeto que coordenei para recuperação de narrativas orais sobre as caboclas-brabas. É momento, também, de reconhecer a presteza com que fui atendido por pessoas singulares na Casa Paroquial São Joaquim, da Paróquia de Santa Ana de Caicó (Monsenhor Antenor, dona Laurentina, Adriel e Lívia); no 1º Cartório Judiciário da Comarca de Caicó (Júnior); no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (Antonieta, Lúcia, Tânia e Vilma); LABORDOC (Joel, Joelma, Gracineide, Márcia); NEHAD (Conceição Coêlho). Tenho que agradecer, também, àqueles historiadores que me instruíram nos arquivos e nas leituras sobre o Seridó nos meus primeiros tempos de apaixonado pela história: Olavo de Medeiros Filho (in memoriam), Joaquim Martiniano Neto, Sinval Costa, Antonio Luís de Medeiros, Pedro Arbués Dantas e Oswaldo Lamartine de Faria (in memoriam). Ao Prof. Muirakytan Macêdo, orientador acadêmico na graduação e na especialização, meu sincero agradecimento por ter me formado. Sem dúvida, grande parte do historiador que sou devo a

você, pelas suas críticas sinceras e profundas, o desapego com os venenos acadêmicos e, acima de tudo, pela confiança (de um pai) que me passaste. Saiba que estarei sempre ao seu lado. Em Natal, tive a felicidade de conhecer e compartilhar da amizade da Profª Fátima Lopes, minha orientadora no mestrado. Orientadora esta que não resumiu as suas funções apenas a direcionar o meu trabalho acadêmico, mas, acima de tudo, a encaminhar-me como pessoa para o crescimento profissional e como pesquisador. Suas críticas não menos sinceras e a confiança que depositou em mim, certamente, são difíceis de apagar, bem como a sua ajuda em todas as horas. Essa mãe que ganhei em Natal, com sua calma, paciência e sabedoria, soube me conduzir pelos melhores caminhos dentro da academia. É uma honra, para mim, ser seu filho e receber seus ensinamentos. Ao pessoal que trabalhou comigo no Grupo de Estudos em Patrimônio e Arqueologia do Seridó – GEPS (de 2003 a 2005) e do Projeto Carnaúba dos Dantas: Inventário do Patrimônio Imaterial de uma Cidade do Sertão do Rio Grande do Norte (de 2004 a 2006), pesquisadoras, bolsistas e voluntários, agradeço por acreditarem neste que vos fala e, nas minhas muitas ausências de Carnaúba dos Dantas, segurarem as pontas. Agradeço, por fim, de todo o meu coração, àquelas pessoas que, com sua iniciativa, me permitiram sobreviver, através de diversos empregos, nesses quase dois anos e meio sem bolsa de pós-graduação: Isaura Rosado, Trícia Maia, Cléa Bacurau, Desinha Medeiros, Almir Bueno, Durval Muniz e Bernadete Oliveira. Por último, aos professores Ricardo Pinto de Medeiros e Maria Emília Monteiro Porto, pelas sugestões e críticas argutas que fizeram, na qualidade de examinadores da banca de dissertação de mestrado ao meu texto. E, de maneira geral, a gratidão a todos que me ajudaram, direta ou indiretamente, na empreitada do mestrado, com um beijo de perdão, sobretudo, para os que minha memória não foi capaz de recordar.

RESUMO O objetivo deste trabalho é o de compreender algumas das modificações causadas pelo fenômeno da ocidentalização no sertão da Capitania do Rio Grande e na vida das populações indígenas que aí habitavam durante o Período Colonial. Partimos da discussão de Serge Gruzinski acerca da ocidentalização, entendida enquanto fenômeno imerso no contexto da expansão do capitalismo comercial e que, pela imposição da cultura ocidental às alteridades do Novo Mundo, emprende a conquista dos seus territórios, corpos e almas. O recorte espacial cobre o sertão da Capitania do Rio Grande, especificamente o território colonial da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. O limite cronológico escolhido para a pesquisa corresponde ao Período Colonial e parte do Imperial. Entretanto, a ênfase recai sobre o período que inicia em 1670, ano da mais antiga concessão de sesmaria – conhecida até o momento – no sertão do Rio Grande, estendendo-se até a década de 1840. Fontes de natureza manuscrita, impressa e cartográfica compõem o rol de documentos utilizados: correspondência e legislação oficiais, requerimentos de sesmaria, inventários post-mortem, justificações de dívida, registros de paróquia, mapas, ações cíveis, notas de cartório, demarcações de terra. Tomamos o método indiciário, problematizado por Carlo Ginzburg, para cruzar essas fontes entre si e detectar as suas particularidades e idéias subentendidas nas entrelinhas, mas, atribuindo a elas o status de um discurso colonial, fruto da burocracia de onde foi originado e do lugar social de quem o produziu. Procuramos demonstrar, ao longo do trabalho, que o fenômeno da ocidentalização desestruturou as sociedades indígenas e seu habitat, construindo, por cima dos seus escombros, um território colonial que encontrou na cartografia da Freguesia de Santa Ana um eficiente instrumento de controle do espaço e da população. Por outro lado, se a imposição da cultura ocidental exterminou grande parte da população nativa que habitava o sertão do Rio Grande, os remanescentes desses índios e os mestiços deles descendentes sobreviveram de diversas maneiras na Freguesia de Santa Ana: na condição de cativos de guerra ou em regime de trabalho servil, como moradores ou assistentes nas fazendas, povoações e vila; perambulando sem rumo nos campos e nas manchas populacionais; como agentes mediadores entre o mundo ocidental e o nativo, exercendo cargos militares ou civis. Palavras-chave: Ocidentalização; Populações Indígenas; Freguesia de Santa Ana do Seridó

ABSTRACT The objective of this work is to understand some of the modifications caused for the phenomenon of the westernization in the hinterland of the Capitania do Rio Grande e in the life of the indians populations that inhabited there during the Colonial Period. We break of the quarrel of Serge Gruzinski concerning the westernization, understood while immersed phenomenon in the context of the expansion of the commercial capitalism and that, for the imposition of the culture occidental person to the alteridades of the New World, emprende the conquest of its territories, bodies and souls. The space clipping has covered the hinterland of the Capitania do Rio Grande, specifically the colonial territory of the Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. The chosen chronological limit for the research corresponds to the Colonial Period and part of the Imperial one. However, the emphasis falls again on the period that it initiates in 1670, year of the oldest concession of would sesmaria – known until the moment – in the hinterland of the Rio Grande, extending itself until the decade of 1840. Sources of written by hand nature, cartographic printed and compose the used document roll: official correspondence and legislation, petitions of would sesmaria, inventories post-mortem, justifications of debt, registers of parish, maps, action civil court jurisdiction, notes of notary's office, land landmarks. We take the method, analyzed for Carlo Ginzburg, to cross these sources between itself and to detect its implied particularitities and ideas in the space between lineses, but, attributing it status to they of a colonial speech, fruit of the bureaucracy of where it was originated and of the social place of who produced it. We look for to demonstrate, throughout the work, that the phenomenon of the westernization desestruturou the aboriginal societies and its habitat, constructing, over its rubbles, a colonial territory that found in the cartography of the Freguesia de Santa Ana an efficient instrument of control of the space and the population. On the other hand, if the imposition of the culture occidental person exterminou great part of the native population that inhabited the hinterland of the Rio Grande, the remainders of these indians and the mestizos of descending them had survived in diverse ways in the freguesia: in the condition of captives of war or in regimen of servile work, as living or assistants in the farms, populations and village; rambling without route in the fields and the population spots; as mediating agents between the world occidental person and the native, exerting military or civil positions and still appealing to Justice in search of its rights of inheritance. Experiences of slavery, servitude, errância and mediation, but, also of resistance, adaptation, mestization in the Freguesia de Santa Ana. Key-words: Westernization; Indians populations; Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS 1ºCJ

-

Primeiro Cartório Judiciário (Subfundo)

AHU

-

Arquivo Histórico Ultramarino

BN

-

Biblioteca Nacional

BND

-

Biblioteca Nacional Digital

CA

-

Comarca de Acari

CC

-

Comarca de Caicó

CNBB

-

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CPB

-

Sesmaria da Capitania da Paraíba

CRG

-

Sesmaria da Capitania do Rio Grande

Cx.

-

Caixa

D.

-

Documento

DIV

-

Diversos (Série temática)

DNPM

-

Departamento Nacional de Produtos Minerais

FCC

-

Fundo da Comarca de Caicó

FGSSAS

-

Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

FJABM

-

Fundo José Augusto Bezerra de Medeiros

FJM

-

Fundo Joaquim Martiniano Neto

FVR

-

Fundação Vingt-Un Rosado

GGB

-

Governo-Geral do Brasil

IHGRN

-

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

IPHAN

-

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPM

-

Inventário post-mortem

LABORDOC

-

Laboratório de Documentação Histórica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó

LB

-

Livro de assento de batizados

LC

-

Livro de assento de casamentos

LE

-

Livro de assento de enterros

LN

-

Livro de Notas

NEA

-

Núcleo de Estudos Arqueológicos da Universidade Federal de Pernambuco

NEHAD

-

Núcleo de Estudos Históricos, Arqueológicos e de Documentação da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte PMC

-

Prefeitura Municipal de Caicó

UFPE

-

Universidade Federal de Pernambuco

UFRN

-

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

LISTA DE FIGURAS Figura

Descrição

Página

01

O Ocidente geográfico. Fonte: LE GOFF, Jacques. A civilização no

41

Ocidente medieval. 02

O Ocidente religioso. Fonte: LE GOFF, Jacques. A civilização no

41

Ocidente medieval. 03

Fragment du planisphère envoyé de Lisbonne à Hercule d’Este Duc de

55

Ferrare avant le 19 novembre 1502 par Alberto Cantino - Biblioteca Estense à Modène, Itália. Fonte: Biblioteca Virtual de Cartografia Histórica do século XVI ao XVIII – Biblioteca Nacional 04

Detalhe do mapa anterior, de 1502, com ênfase no Cabo de São Jorge (1),

55

Rio de São Francisco (2), Baía de Todos os Santos (3) e Porto Seguro (4) 05

As capitanias do Brasil no século XVI. Fonte: adaptação de Helder

57

Alexandre Medeiros de Macedo a partir de mapa elaborado por JOHNSON, Harold B. A colonização portuguesa do Brasil, 1500-1580, p. 255. 06

Mapa das Capitanias Hereditárias, de Luís Teixeira (ca. 1586) –

59

Biblioteca da Ajuda, Portugal. Fonte: Projeto Mapas Históricos da Brazilgenweb – Genealogia Brasileira. Disponível em (Acesso em 12 ago. 2006) 07

Partie de la Guyane et littoral du Brésil depuis la Guyane jusqu’au Rio

61

real, de Jacques de Vaulx (1579). Seção Cartes et Plants, Biblioteca Nacional de Paris, Cód. Rés. Ge D 13871. Fonte: BELLUZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 08

Detalhe do mapa anterior com a representação das aldeias

61

09

Detalhe do mapa anterior com a representação do momento antropofágico

61

10

“Prespectiva da fortaleza da Barra do Rio grande”, original que ilustra o

64

códice “Relação das Praças Fortes do Brasil”, de Diogo Campos Moreno, existente no Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa, 1609, p. 348, citado por REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial, p. 124. Destaque para o rio Potengi (1), a Cidade do Natal (2), o antigo Arraial (3) e a Fortaleza dos Santos Reis (4)

11

Mapa da América Holandesa (capitanias com destaque, de baixo para

87

cima: Sergipe, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará). Fonte: adaptação de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Nova et Accurata Brasiliae, de Ioanne Blaeu (séc. XVII). Acervo da Biblioteca Nacional



Biblioteca

Nacional

Digital.

Disponível

em

. Acesso em: 23 mar 2006. 12

Veroveringe van Rio Grande (1633), de Vingboons. Gravura avulsa,

89

Mapoteca do Itamarati, Rio de Janeiro. Fonte: REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial, p. 125 13

Afbeeldinghe van T’Fort op Rio Grande ende Belegeringue (Planta do

111

Forte do Rio Grande e arredores), de Izaak Commelyn (ca. 1633). Fonte: LAET, Joannes de. Historia ou annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes desde o seu começo até ao fim do anno de 1636, Livro 10º, p. 340-1. 14

Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande, de Jorge Marcgrave (1643).

112

Fonte: Biblioteca Nacional Digital de Portugal, disponível em 15

Detalhe de Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande, de Jorge Marcgrave

113

(1643), com ênfase nas ribeiras do Ceará-Mirim, Potengi, Pitimbu, Pirangi e Trairi. Fonte: Biblioteca Nacional Digital de Portugal, disponível em 16

Provável itinerário de Roeloff Baro do litoral ao sertão da Capitania do

117

Rio Grande (1647). Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo a partir das informações do mapa de Jorge Marcgrave (1643), do relato de viagem de Roeloff Baro (1651) e da interpretação de Benjamin Teensma (2000). Adaptado do Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 17

Desenho incluído no livro de Jorge Marcgrave. Fonte: MARCGRAVE,

118

Jorge. História Natural do Brasil, p. 280. 18

Homem Tapuia (1641). Óleo sobre tela de Albert Eckhout, 161 x 272 cm Fonte: Acervo da Coleção Etnográfica do Nationalmuseet da Dinamarca, em Copenhagen. Disponível em . Acesso em: 23 mai 2006.

123

19

Omem Tapuÿa, de Zacharias Wagener. Fonte: WAGENER, Zacharias.

123

Zoobiblion – Livro de Animais do Brasil, p. 322 20

Casal de tapuias tarairiu, de Jorge Marcgrave (incluso na edição brasileira

124

de 1942). Fonte: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 88. 21

Casal de tapuias tarairiu, de Joan Nieuhof (incluso na edição brasileira de

124

1942). Fonte: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 88. 22

Códice “Animaux et Oiseaux”, Prancha 12. Fonte: TEIXEIRA, Dante

124

Luiz Martins (org.). Brasil Holandês: Coleção Niedenthal, Animaux et Oiseaux & Naturalien-Buch de Jacob Wilhelm Griebe. Rio de Janeiro: Index, 1998. v. 3, p. 17 23

Rota das sesmarias na Ribeira das Espinharas. Elaboração de Helder

144

Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTECRN, 1998. 24

Prováveis limites do “Datão” das Piranhas, com ênfase para a

151

propriedade do Riacho da Inês. Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 25

Geografia atual dos rios Acauã, Seridó e Piranhas. Elaboração de Helder

154

Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTECRN, 1998. 26

Geografia dos rios Acauã, Seridó e Piranhas na segunda metade do século

155

XVII. Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 27

Detalhe dos prováveis alicerces da Casa-forte do Cuó. Crédito: Helder

158

Macedo (2003) 28

Detalhe dos prováveis alicerces da Casa-forte do Cuó. Crédito: Helder

158

Macedo (2003) 29

Prováveis rotas dos sesmeiros na Ribeira do Acauã. Elaboração de Helder

160

Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTECRN, 1998. 30

Prováveis rotas dos sesmeiros nas Ribeiras das Espinharas, Piranhas,

162

Acauã, Sabugi (século XVII). Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 31

Manchas populacionais (povoações) da Ribeira do Seridó até a década de

164

1740. Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 32

Prováveis limites da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do

171

Piancó – 1721. Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 33

O Sertão do Seridó no século XVIII. Fonte: MATTOS, Maria Regina

176

Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – um estudo de caso da pobreza, p. 12 34

Limites da Freguesia da Gloriosa Senhora Santana. Fonte: MACÊDO,

177

Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: espaço e história no regionalismo seridoense, p. 58 35

Freguesia de Santa Ana até 1788. Fonte: MACEDO, Helder Alexandre

178

Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX, p. 96. 36

Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Anna do Seridó – 1748. Fonte:

179

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência, p. 73. 37

Provável área de abrangência da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa

179

Ana do Seridó até 1788. Elaboração de Helder Alexandre Medeiros de Macedo sobre Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (DNPM - 4º Distrito/UFRN/PETROBRÁS/SINTEC-RN, 1998. 38

Mappa topographico da capitania do Rio Grande do Norte (1811). Acervo

184

da Biblioteca Nacional – Biblioteca Nacional Digital. Disponível em . Acesso em: 23 mar 2006.

LISTA DE TABELAS Tabela 01

Descrição Correspondências entre os vocábulos apontados por Moureau e Baro com

Página 108

possível localização atual 02

Batizados da Freguesia de Santa Ana por origem social (1803-1806)

208

03

Legitimidade entre os defuntos da Freguesia de Santa Ana (1788-1811)

211

04

Proporção do número de expostos em freguesias urbanas e rurais da

211

América Portuguesa 05

Casamentos da Freguesia de Santa Ana (1788-1809)

212

06

Legitimidade dos noivos nos casamentos envolvendo índios na Freguesia

214

de Santa Ana (1788-1821) 07

Uniões mistas na Freguesia de Santa Ana envolvendo índios (1788-1838)

215

08

Naturalidade dos índios e de seus consortes (1788-1838)

216

09

Mortalidade na Freguesia de Santa Ana segundo a faixa etária (1788-1811)

219

10

Regiões de sepultamento na “geografia da morte” – Freguesia de Santa

220

Ana (1788-1811) 11

Sacramentos recebidos pelos índios na Freguesia de Santa Ana (1789-

222

1843) 12

Fregueses que não receberam os sacramentos por não pedirem/não procurarem/não chamarem o padre Freguesia de Santa Ana (1788-1838)

222

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 22 1

MUNDOS EM CONFLITO: OCIDENTALIZAÇÃO NA CAPITANIA DO RIO GRANDE................................... 42 1.1 World Trade Center: a reafirmação da ocidentalização .......................................... 42 1.2 Construções do Oriente ........................................................................................... 46 1.3. Construções do Ocidente ........................................................................................ 48 1.4. Ocidentalização: uma expansão do Ocidente ......................................................... 50 1.5 Capitania do Rio Grande: prospecções ................................................................... 56 1.6 Rio Grande: mestiçagens e mediações .................................................................... 71

2

DO LITORAL AO PAÍS DOS TAPUIAS: EXPERIÊNCIAS HOLANDESAS ................................................................................ 87 2.1 Um outro lado da ocidentalização ............................................................................ 88 2.2 Alteridades devassadas: os tapuias .......................................................................... 95 2.3 Aliados infernais: os Tarairiu ................................................................................... 98 2.4 Rumo ao País dos Tapuias ..................................................................................... 106 2.4.1 Escritos e pós-escritos .................................................................................. 109 2.4.2 Territórios e territorialidades ........................................................................ 112 2.5 O início do fim: Baro e os Tarairiu......................................................................... 120

3

DO TEMPO DO GENTIO AO TEMPO DA FÉ: PRODUÇÃO DO TERRITÓRIO DA FREGUESIA DA GLORIOSA SENHORA SANTA ANA DO SERIDÓ ............................................... 145 3.1 O “tempo do gentio”.................................................................................................. 147 3.1.1 Espinharas e Sabugi...................................................................................... 147 3.1.2 Piranhas ........................................................................................................ 151 3.1.3 Acauã ............................................................................................................ 157 3.1.4 Espinharas, Sabugi, Piranhas, Acauã ........................................................... 169 3.2 O tempo da fé: cartografias da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana............ 172

3.2.1 Desenhos, mapas e manchas......................................................................... 175 3.2.2 Santa Ana: estrutura da freguesia e produção do território .......................... 189

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VIDAS TRANSFORMADAS: ÍNDIOS E MESTIÇOS FRENTE À OCIDENTALIZAÇÃO................................... 209 4.1 Cifras demográficas: os índios fregueses de Santa Ana ............................................ 212 4.1.1 Nascidos, batizados, expostos ...................................................................... 214 4.1.2 Unidos, casados ............................................................................................ 218 4.1.3 Mortos, enterrados ........................................................................................ 223 4.2 Itinerários micro-históricos........................................................................................ 230 4.2.1 Anastácio, Domingas, tapuias e curibocas: sobre a escravidão indígena..... 231 4.2.2 Mateus de Abreu e Tomé Gonçalves: vassalos de El-rei ............................. 239 4.2.3 José Carneiro, Bibiana da Cruz e Policarpo Machado: mestiçagem ............ 246

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 269 FONTES ............................................................................................................................. 276 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 284

INTRODUÇÃO Janeiro de 1988. Um menino que morava na cidade de Carnaúba dos Dantas deixa sua residência para passar dois dias na zona rural, em companhia de seu pai, motorista de caminhão, que ia buscar uma carrada de pedras no Ermo. O destino era a terra de Sibiu, como era mais conhecido o senhor Severino Adelino Dantas, hoje falecido. Este morava quase na divisa dos sítios Ermo com a Volta do Rio, onde criava gados e plantava suas roças e vazantes no leito sempre úmido do rio Carnaúba. O contato com o campo era um alívio para o tormento da vida urbana, ainda mais se considerando que era período de férias. Nada da obrigação de ir à escola, apenas o prazer de correr livre pelo mato, de ver as vacas sendo ordenhadas nas primeiras horas do dia, de comer manga e imbu quente, de subir uns serrotes próximos à casa sem a permissão do dono do sítio. Descendo o leito do rio Carnaúba junto com um sobrinho de dona Zefinha, esposa de Sibiu, o menino acompanhava o movimento das águas no leito encanecido e ladeado de muitos serrotes de pedra e quantidades consideráveis de taboca, jurema, marmeleiro, mororó, flor-de-cera, imburana, caraibeira e mesmo o panasco nas barrocas. Aqui e acolá o regato formava poços nas reentrâncias do leito criadas pelas rochas, suscitando, inclusive, sua nomeação pelas gentes que moravam nas proximidades: o Poço de Sibiu, o Poço de Celso, o Poço dos Peixes... Quando o menino se aproximou de um desses poços, na ânsia de tomar banho naquela água cristalina aglomerada nas proximidades das rochas, foi advertido pelo sobrinho de dona Zefinha de Sibiu que olhasse para cima: - Olhe as pinturas dos índios! Lá em cima, no serrote! Somente depois de acostumar a vista, o menino da cidade pôde divisar, num abrigo sob a rocha localizado na encosta de um penhasco às margens do rio, diversas pinturas na cor vermelha. Pareciam manchas emanadas de dentro daquele corpo petroso, mas, por outro lado, lembravam muito os riscos que as crianças faziam em seus primeiros esboços de desenho, ainda na época do Pré-Escolar. Segundo o sobrinho da esposa de Sibiu, aquelas eram pinturas dos índios que tinham habitado naquela região no tempo da onça1, segundo lhe dizia Celso Gama, um sábio erudito que andava periodicamente pelo sítio. O menino da cidade custou a acreditar que fossem pinturas de origem indígena, pois aprendera no ano anterior (1987), com sua professora, que os Kariri tinham sido os primeiros habitantes de Carnaúba dos Dantas e que já estavam desaparecidos quando o município foi fundado por Caetano Dantas Corrêa. Depois do banho no poço e da volta ao sítio, a enxurrada de perguntas se sucedeu a Sibiu, a

dona Zefinha e mesmo às pessoas mais velhas que apareceram pelo Ermo: eram pinturas mesmo aquelas manchas lá na furna? foram feitas pelos índios? quem foi que falou que eram de índio? Perguntas que não encontraram respostas bem fundamentadas, a não ser pela reafirmação constante de que se tratava de pinturas que tinham sido feitas pelos índios. Além do mais, todos foram unânimes em apontar, do alpendre da casa, a existência de mais pinturas dessa mesma natureza num enorme serrote de pedra preta, situado a pouca distância da casa, conhecido como a Pedra dos Índios. O menino voltou para a cidade apreensivo e com a cabeça fervilhando de dúvidas a respeito daquelas pinturas deixadas por índios naquele serrote nas margens do rio Carnaúba. O vislumbrar daquelas pinturas indígenas marcou para sempre a vida do garoto que morava na cidade. Aquele menino era o autor deste trabalho, que viu há quase vinte anos aquelas inscrições rupestres debuxadas na face da rocha, e, mesmo assim, tudo parece que foi ontem. Aquele acontecimento foi o ponto de partida para que pudéssemos levar adiante questionamentos sobre a presença indígena na história local e, posteriormente, na da região do Seridó. A partir de 1991 iniciamos pesquisas sobre a história de Carnaúba dos Dantas e a genealogia das parentelas que ocuparam esse espaço desde o Período Colonial. Paralelamente, começamos a pesquisar acerca dos índios que entraram em contato com os conquistadores luso-brasílicos2 e a catar informações sobre a existência de vestígios similares aos que tínhamos observado nas terras próximas à propriedade do Sr. Severino Adelino Dantas. Começamos visitando a aludida Pedra dos Índios, que a literatura arqueológica dos anos 90 chamava de Pedra do Alexandre3, remetendo ao antigo morador das proximidades, Alexandre José Dantas. Sítio arqueológico que, além de abrigar pinturas rupestres, guardava, no seu subsolo, restos de 28 esqueletos dispostos em sepulturas cerimoniais que continham, também, cultura material. Evidências que demonstravam a presença de grupos de caçadores-coletores na região, utilizando o abrigo como lugar cerimonial e cemitério há quase nove mil anos antes do presente4. Durante a década de 90 visitamos outros sítios arqueológicos encravados nos vales do rio Carnaúba e seus afluentes, além do riacho do Bojo / riacho do Olho d’Água, onde pudemos conhecer diferentes evidências da presença humana pré-histórica no Seridó. Ao mesmo tempo, íamos aquilatando conhecimentos sobre esse tema na literatura arqueológica produzida sobre a região pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, posteriormente, pela Universidade Federal de Pernambuco5. Cada vez mais nos conscientizávamos da forte presença de grupos de caçadores-coletores no Seridó durante a 23

Pré-História, a julgar pelas evidências da cultura material presentes em sítios como a Pedra do Alexandre (em Carnaúba dos Dantas) e Mirador (em Parelhas), além dos inúmeros locais com pinturas ou gravuras rupestres nos vales da região. Na contemporaneidade, certos lugares de memória6 traziam à tona elementos que remetiam à presença nativa, como a toponímia7 e as cozinhas das casas de moradia na zona rural8. Por outro lado, no senso comum e nas escolas, já se tornara chavão escutar palavras como desaparecimento, extermínio, fuga e morte para designar o destino dos índios que habitavam o Seridó9. Esse era, em grande parte, um eco da historiografia regional10 que tomou os limites do atual estado do Rio Grande do Norte como objeto de estudo. Idéias como a de desaparecimento, de integração e de retorno à vida errante podem ser observadas nos estudos de Vicente de Lemos, Augusto Tavares de Lira, Rocha Pombo e Luís da Câmara Cascudo11. O desaparecimento, concordando com a problematização de Maria Sylvia Porto Alegre, pode ser entendido como um discurso que emerge no século XIX12 e se estende pelo século seguinte para explicar a desorganização das sociedades indígenas e mesmo dar uma justificativa para a expropriação das suas terras13. Não é à toa que esses historiadores, ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, têm sua matriz teórica influenciada pela historiografia produzida no século XIX, que primava pela construção de “histórias locais”, que tivessem um passado comum com o do Estado Nacional em construção no Brasil, perpassadas por valores como a unidade da nação, o catolicismo e a cultura ocidental, sobretudo européia e ibérica14. Essa mesma historiografia, conectada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838) e aos demais institutos surgidos nas províncias do Império, se mostrava fortemente influenciada pelas teorias deterministas e evolucionistas do Oitocentos, que utilizavam a terminologia raça como meio de fixar claramente os grupos e suas identidades sociais15. O mesmo silenciamento da população nativa e da sua participação no processo histórico que observamos no parágrafo anterior pode ser visibilizado, também, na historiografia do Seridó que produziu trabalhos sobre sua ocupação pelos conquistadores brancos. As obras de Manoel Dantas16, José Augusto Bezerra de Medeiros17, Eymard Monteiro18, José Adelino Dantas19, Juvenal Lamartine20, Jayme da Nóbrega Santa Rosa21, Oswaldo Lamartine de Faria22 e Olavo de Medeiros Filho23, basilares para a compreensão da história do Seridó e dos diferentes sujeitos históricos que o construíram, trazem escassa informação a respeito dos povos indígenas que o habitaram. Informação essa, quase sempre, situada no Período Colonial. Perpetuando uma determinada versão da história da região que tem suas origens mais remotas na chegada dos conquistadores luso-brasílicos e na instalação 24

de fazendas de criar gado, após subjugados os autóctones e apropriados seus territórios. Versão esta que, além de relegar um papel secundário aos indígenas, se traduz na personificação de um herói conquistador, de onde descendem as estirpes fundadoras das atuais municipalidades24. Essa historiografia regional, entretanto, apresenta dois casos atípicos: o de José Adelino Dantas e o de Olavo de Medeiros Filho, que mesmo apresentando um modo de abordagem conservador e tradicional das fontes e dos fatos históricos, dotando de extrema valorização as elites coloniais, forneceram importantes evidências para se pensar a presença indígena durante as Guerras dos Bárbaros25 e mesmo nos anos que se seguiram a esta. José Adelino Dantas, estudando as principais causas-mortis dos habitantes da Ribeira do Seridó, recorreu aos dois livros mais antigos de registros de enterros da Paróquia de Santa Ana de Caicó, que cobrem o período que vai de 1788 a 183826. Nesse intervalo de cinqüenta anos, encontrou registros de morte e enterro de dezoito índios, lado a lado aos assentos de brancos, negros e mestiços nas capelas da antiga Freguesia do Seridó27. Olavo de Medeiros Filho publicou, em 1981, Velhas Famílias do Seridó, estudo sobre os troncos genealógicos por ele considerados os mais importantes para a formação das famílias do Seridó. Posteriormente, em 1983, editou Velhos Inventários do Seridó, em que perscrutou sobre elementos da cultura material dos patriarcas dessas mesmas famílias – constituidoras ou ligadas à elite colonial, diga-se de passagem –, por meio da análise dos seus inventários post-mortem. Em 1984, todavia, o tema de seu novo livro dizia respeito aos nativos que habitavam o sertão do Rio Grande do Norte no momento de choque com a conquista européia: Índios do Açu e Seridó28, que traz um estudo dividido em duas partes. A primeira acerca das práticas culturais dos tapuias29 (aparência física; saúde, doenças e morte; vida amorosa; gravidez e parto; ferocidade, armas e lutas; habitações; caça, pesca e agricultura; linguagem; religião), observadas nas descrições de cronistas coloniais de diversas procedências. Na segunda, tomando por base documentação manuscrita e impressa, abordou o processo de conquista das Ribeiras do Açu e Seridó e os conflitos que nestas se sucederam no contexto das Guerras dos Bárbaros, enfatizando a participação dos índios nas diversas contendas com as tropas coloniais. O mérito desta obra está, em linhas gerais, no fato de atribuir a classificação dos índios que habitavam o que hoje conhecemos como Seridó ao grupo Tarairiu, dando conhecimento, inclusive, dos momentos em que tomaram parte no conflito armado das guerras acima citadas. Em 2002, em um livro de síntese sobre sua região de nascimento – Cronologia Seridoense30 –, ao lado dos fatos históricos, datas e personagens arrolados

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cronologicamente, acrescentou listagens populacionais dos índios da Freguesia do Seridó, de autoria do padre Francisco de Brito Guerra. Os estudos de José Adelino Dantas, de Olavo de Medeiros Filho31 e mais o de Sinval Costa – que, ao debruçar-se sobre as origens e entrelaçamentos genealógicos da família Álvares dos Santos, anotou em apêndice ao seu livro uma relação de enterros e casamentos de índios encontrada nos livros de assento da Paróquia de Santa Ana, do final do século XVIII ao início do século XIX – foram pistas importantíssimas que nos ajudaram a levar adiante a seguinte proposição: a de que a população indígena do território hoje conhecido como Seridó não havia desaparecido totalmente e da forma brutal após a chegada dos conquistadores brancos, como estava escrito na historiografia clássica ou mesmo dito no senso comum. Essa hipótese foi confirmada quando fizemos o levantamento dos livros de assentos religiosos32 mais antigos da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, conservados na Paróquia de Santa Ana de Caicó. O coroamento desse percurso pelos assentos da freguesia referentes ao período de 1788 a 1843 foi a constatação de que, mesmo decorridos muitos anos após as guerras, populações indígenas conviviam junto com os luso-brasílicos, negros e mestiços nas povoações, vilas e fazendas da grande Ribeira do Seridó e de seus afluentes33. Essa constatação ganhou importância quando pudemos encaixá-la numa problemática mais ampla, a das relações entre os luso-brasílicos e os nativos durante os momentos da conquista que tiveram como motor a expansão da empresa pecuarística pelo sertão34. Relações amistosas, a princípio, porém, que se tornam propensas a conflitos à medida em que as diferenças entre a cultura nativa e a ocidental começam a se tornar evidentes. Diferenciação que se dá quando consideramos que o sertão do Rio Grande foi cenário de um amplo processo, de escala mundial, o fenômeno da ocidentalização35. Entendemos ocidentalização, adotando a perspectiva de análise do historiador Serge Gruzinski, como o processo de ocupação das terras situadas na outra margem do Atlântico pelas potências mercantilistas da Europa Ocidental, que acarretou a conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo36. Esse processo, a partir do final do século XV, produz, no solo americano, mestiçagens (leia-se, misturas) entre seres humanos, imaginários e formas de vida oriundas das quatro partes do mundo (da própria América, da Europa, da África e da Ásia)37. As mestiçagens, assim, transformam a vida das populações nativas que habitavam na colônia portuguesa na América. A ocidentalização, de modo mais amplo, contribui, numa época de intensa circulação planetária de pessoas38, para a construção de territórios coloniais e de mediações culturais entre os diferentes grupos sociais que aí transitam. 26

O território e sua vinculação com o espaço39 têm sido amplamente discutidos do ponto de vista epistemológico no âmbito das ciências humanas e sociais40. O geógrafo francês Claude Raffestin, em sua conceituação, enuncia que o território é formado a partir do espaço, sendo resultante de uma ação conduzida por um determinado ator ou grupo social em qualquer nível, uma apropriação que leva à territorialização do espaço. O espaço aparece, portanto, como pré-existente, necessitando de uma intenção de apoderamento, possibilitada pela existência de relações de poder, por parte de um grupo social para que possa, assim produzido, transformar-se em território41. A anterioridade do espaço ao território e a existência de relações de poder também está presente na forma de abordar o conceito pelo geógrafo Marcelo José Lopes de Souza. Este afirma que o território é “fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”42, não necessariamente sendo representado apenas pela sua forma grandiloqüente da nação, mas, também como aparece com mais cadência na formulação de Claude Raffestin. Assim, os territórios existem e são construídos nas mais diversas escalas temporais e espaciais, podendo ter um caráter permanente, mas, também, cíclico ou periódico43. O geógrafo Rogério Haesbaert, embora tome como referência um enfoque cultural44 do território, ao estudar a desterritorialização e a identidade entre a rede da gaúchos no Nordeste contemporâneo, propõe a retomada de diversos tipos de enunciação do conceito, admitindo que a sua formulação depende, fundamentalmente, da posição filosófica a que estiver agregado o pesquisador. Mapeando os seus usos nas ciências sociais, Rogério Haesbaert conseguiu agrupar as diferentes concepções de território45 em dois referenciais teóricos. O primeiro, que parte da compreensão do binômio materialismo e idealismo, distribuído numa visão mais totalizante (a vinculação da sociedade com a natureza) e noutra mais parcial do território (a vinculação da sociedade com as estruturas econômicas, políticas e/ou culturais). O segundo, que preocupa-se com a historicidade do conceito, ao indagar sobre sua abrangência histórica (seria uma condição geral de qualquer sociedade, ou seria historicamente circunscrito a determinados períodos ou grupos sociais?) e sobre seu caráter mais absoluto ou relacional (seria representado como uma “coisa” ou objeto ou como relação?)46. Ao discorrer sobre o segundo grupo de aportes teóricos, Rogério Haesbaert expõe que, ao considerar-se o território como indissociável da reprodução dos grupos sociais – na medida em que as relações entre esses grupos são espacial ou geograficamente mediadas –, podemos estender o conceito “a qualquer tipo de sociedade, em qualquer momento histórico”.

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Ou seja, trata-se da noção mais ampla de território, definida, antes de tudo, pelas relações sociais ou culturais em que está mergulhada47. Essa postura, que reflete um entendimento mais amplo do território, foi assumida pelo geógrafo Antonio Carlos Robert de Moraes ao estudar as bases da formação territorial do Brasil no Período Colonial, especificamente, no século XVI. Epistemologicamente parte da categoria de espaço, considerada vaga, para a precisão do conceito de território: enuncia que a valorização do espaço é um processo historicamente identificado de formação de um território, onde estão envolvidas representações, discursos e consciências48. O território, dessa maneira, coresponde a um espaço social, construído com base na apropriação e transformação dos meios criados pela natureza. Nas palavras do autor, é “um produto socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo humano com o espaço que o abriga”49. Estreitando o viés de análise e tratando da realidade colonial facultada pelos empreendimentos marítimos dos séculos XV e XVI, afirmou que nesse período pode-se perceber uma lógica territorial reprodutora das relações capitalistas de produção, ao distinguir centro e periferia na economia-mundo em gestação. A formação de um Antigo Sistema Colonial, assim, corresponderia à tentativa de organização dos espaços periféricos num período inicial da ocidentalização, que avança na América através da criação de territórios coloniais50. Partindo dos autores elencados e tomando a realidade da Capitania do Rio Grande como objeto de estudo, compreendemos território como sendo um espaço apropriado em função e a partir de relações de poder, sociais e culturais. Consideramos, assim, a territorialização – transformação do espaço em território – como um processo que se dá pela apropriação de um indivíduo, de um grupo social ou mesmo de uma nação sobre determinada superfície da terra, dotando-a de visibilidade e de funcionalidade específicas. A ocidentalização, portanto, acarreta o choque de várias territorialidades: algumas, ocidentais (portuguesas, francesas, holandesas), cujas fronteiras eram definidas pelo índice de penetração ou da ocupação permanente no Novo Mundo, em grande parte medido pela apropriação do território visando o aproveitamento econômico (no caso português, outro elemento característico é a instalação de diferentes níveis da administração lusitana para o gerenciamento do espaço apropriado); outras, nativas, com fronteiras definidas pelos limites entre os grupos indígenas hostis e amigos, pelas linhas de demarcação das incursões das caçadas ou mesmo pelo ciclo anual de coleta de cada grupo51. O choque de ambas produziu um vasto território colonial e mestiço, que favoreceu o surgimento de agentes mediadores entre o mundo ocidental e o nativo. 28

Estamos tomando o conceito de agentes mediadores do ponto de vista de trabalhos que vêm sendo debatidos desde o ano de 1995, sob a supervisão do Centre de Recherches sur les Mondes Américains (EHESS-CNRS), no sentido de captar as experiências do contato e da mescla de culturas e coexistência de grupos de origem diversa, pertencentes a tradições diferentes, em realidades historicamente construídas – das quais a conquista da América é a mais fecunda, caracterizada, essencialmente, pelo fenômeno das mestiçagens. Os agentes mediadores, portanto, podem ser encarados como indivíduos que favoreceram as transferências e os diálogos entre universos aparentemente incompatíveis, elaborando negociações muitas vezes incomuns e contribuindo para sua articulação e para a porosidade entre suas fronteiras52. Os diversos momentos de contato entre as territorialidades nativa e ocidental fomentaram, no âmbito da Capitania do Rio Grande, o surgimento de diferentes atores sociais, como os missionários e o chefe indígena Mar Grande, que estabeleceram as pazes entre os Potiguara e os colonos nos derradeiros momentos do Quinhentos; o judeu alemão Jacob Rabbi e o holandês Roeloff Baro, de um lado, e o rei Janduí do outro, como personagens que facilitaram as alianças entre os holandeses e os Tarairiu na primeira metade do século XVII; o índio Tomé Gonçalves da Silva e o mestiço Policarpo Carneiro Machado, dos quais trataremos no último capítulo deste trabalho, que estiveram pela Vila Nova do Príncipe no decurso do século XVIII, os quais, assim como os outros indivíduos citados anteriormente, circularam pelos dois mundos em processo de mestiçagem – o nativo e o ocidental –, possibilitando uma maior ligação entre suas fronteiras. Dessa forma, nosso objetivo, com esse trabalho, é o de compreender algumas das modificações causadas pelo processo de ocidentalização no sertão do Rio Grande e na vida das populações indígenas que aí habitavam durante o Período Colonial. Essas transformações atingiram tanto os índios, imersos nas malhas do sistema colonial, como os conquistadores, que se vêem obrigados a lançar mão de etapas de readaptação ao novo mundo em que foram lançados. Uma dessas estratégias, senão a mais brutal e palpável pela leitura dos documentos coloniais, é a do esvaziamento demográfico dos territórios ocupados pelos índios, para que em seu lugar um novo território fosse construído na medida em que a ocidentalização alastrava-se pelo interior. Entendemos, assim, que a ocidentalização não se dá momentaneamente, mas, que essa difusão da cultura ocidental se faz pari passu às variegadas frentes de expansão que são dedilhadas pela Coroa Portuguesa no solo da Capitania do Rio Grande. Frentes que equivalem a correntes de povoamento, onde a cruz e a espada andaram juntas no sentido de 29

implementarem um novo mundo nos trópicos: desde o litoral, com a constituição de uma economia voltada prioritariamente para a atividade açucareira, até o sertão, que se vê inundado, no período pós-expulsão dos holandeses, por milhares de cabeças de gado em suas ribeiras, visando o abastecimento do mercado interno. Diferentes instâncias administrativas foram sendo construídas pela metrópole no solo percorrido pelo gado, na tentativa de se consolidar cada vez mais a ocupação e o povoamento colonial. Uma dessas instâncias, de cunho eclesiástico, foi a Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó53, criada em 1748 com o objetivo de cuidar da espiritualidade do aprisco localizado nas ribeiras da porção centro-meridional da Capitania do Rio Grande. Escolhemos essa freguesia como o recorte espacial de nossa pesquisa, por se tratar da “primeira delimitação do espaço que viria a ser conhecido como Seridó”, não mais representado apenas pelo curso d’água homônimo, mas, por “uma malha de rios: Acauã, Seridó, Espinharas e Piranhas. Estende-se seu espaço de abrangência, um território que deveria acomodar um domínio institucional, um locus esquadrinhado para que o poder se exerça”54. Em linhas gerais, a Freguesia do Seridó abarcava as ribeiras banhadas pelo Seridó e seus afluentes, tanto na Capitania do Rio Grande, como na da Paraíba, constituindo-se num território cristão/ocidental que se sobrepôs aos antigos territórios indígenas. A investigação cobre o Período Colonial e parte do Imperial, embora os seus objetivos não estejam atados a essas periodizações. Dessa forma, o marco cronológico inicial é o ano de 1670, de quando data o requerimento de sesmaria mais antigo, de que se tem conhecimento, em uma ribeira que posteriormente seria incorporada à Freguesia de Santa Ana do Seridó. Estende-se até a década de 1840, quando a freguesia citada sofreu uma grande desfragmentação territorial, ocasionada pela criação do Curato de Nossa Senhora da Guia, do Acari (1835). Até então, era uma cartografia que abarcava, praticamente, todo o Seridó hoje conhecido, em sua porção norte-rio-grandense. Foi também nas décadas de 1830 e seguinte que morreram o índio Tomé Gonçalves e sua esposa, Maria Egipcíaca, cuja história de vida analisamos no quarto capítulo. Não pretendemos, com esse intervalo diacrônico, esgotar os mananciais de fontes existentes, já que o interesse prioritário, no momento da coleta, transcrição, fichamento ou indexação dos documentos, dizia respeito àqueles que tivessem registros de índios ou de seus descendentes. Quatro corpus documentais formam a base de dados, utilizada de modo que pudéssemos responder às indagações apontadas: 1) textos manuscritos oriundos da Igreja Católica Romana, representada pela Freguesia do Seridó, constituídos de assentos de batizado, casamento e morte que cobrem o período de 1788 a 1838 – tratados através do 30

método francês da reconstituição de famílias, tributário da Demografia Histórica –, além do livro de tombo; 2) textos manuscritos oriundos do Estado, representado pelo Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe55, constituído de papéis avulsos, notas de cartório, justificações de dívida e inventários post-mortem abarcando o período de 1737 a 1822; 3) textos impressos (a partir de manuscritos) oriundos do Estado, representado pelas Capitanias da Bahia, Rio Grande e Paraíba, constituídos de cartas de sesmarias inerentes ao período de 1670 a 1822; 4) mapas produzidos por portugueses, holandeses e franceses contendo representações cartográficas do território da Capitania do Rio Grande. Para responder à problemática levantada, partimos da idéia de que os dados e informações que nos interessam não aparecem chapados nas fontes, mas, encontram-se imiscuídos nos diferentes corpus documentais. É necessário, assim, que os indícios recolhidos possam ser esquadrinhados, comparados com outras fontes e cruzados com outras realidades – a fim de que possam fornecer uma explicação mínima da realidade do período em estudo –, bem como, observados com minúcia e rigor56. Da mesma forma, acreditamos que a elucidação das questões passa por uma crítica documental a esses diferentes tipos de fontes57, ainda mais quando referimo-nos a populações marginalizadas historicamente, como as indígenas. Essa posição confirma o que Maria Sylvia Porto Alegre aconselha para pesquisas sobre índios do Nordeste em sua historicidade: o uso de métodos que incluam “a pesquisa documental, a etno-história, a história oral e a etnografia”58. Além do mais, temos a consciência de que as fontes mencionadas no parágrafo anterior se constituem enquanto discursos coloniais, carregados de conceitos e de filtros decorrentes do lugar social onde os seus produtores – a Igreja, a Justiça, o Estado – estão localizados. Apresentam, portanto, uma versão fragmentária do passado e restrita à visão de mundo daqueles que os redigiram. Por outro lado, a busca de tentar compreender as transformações provocadas pela ocidentalização nas sociedades indígenas que habitavam o sertão do Rio Grande se coloca como empresa árdua. Vez que as iniciativas tomadas com vistas a se obter uma possível versão da história refletida pelo índio esbarram na problemática das fontes, quase sempre, escritas pelos conquistadores59. Entretanto, a tarefa não se coloca como impossível, considerando que diversos trabalhos, nos últimos anos, têm conseguido, através de fontes coloniais, sondar “pistas sobre as posturas e as transformações das sociedades nativas face ao avanço dos europeus”60. Não é demais citar as experiências de pesquisa dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco61 e de outros centros de pesquisa – a exemplo do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo –, que têm produzido alentados catálogos de fontes e trabalhos acadêmicos 31

versando sobre temas ligados à questão indígena62. Nossa meta, no rastro desses trabalhos, é a de oferecer respostas – ou caminhos para estas – à problemática levantada, considerando os índios do período abordado como sendo parte integrante de uma sociedade mestiça e, por conseguinte, sujeitos de sua própria história e atores políticos responsáveis por seu maior ou menor envolvimento no sistema colonial. A dissertação de mestrado resultante de nossa pesquisa está dividida em quatro capítulos. No primeiro, sob o título Mundos em conflito: ocidentalização na Capitania do Rio Grande, discutimos a construção dos conceitos de Oriente, de Ocidente e de ocidentalização, bem como as formas de difusão da cultura ocidental na América e as relações de dominação, subordinação e intermediação que se processaram entre conquistadores e autóctones, seja nas possessões castelhanas, seja nas lusas. Estreitando nosso olhar, discutimos como o processo da ocidentalização acontece através de etapas sucessivas no plano espacial da Capitania do Rio Grande, podendo ser dividido em prospecções, experiências e implantação efetiva. No primeiro capítulo, dessa forma, são discutidas as prospecções dos portugueses no litoral, que culminaram na edificação da Fortaleza dos Santos Reis e da Cidade do Natal nos últimos anos do século XVI. O foco da narrativa, assim, recai sobre a ocidentalização no litoral e seus reflexos mais imediatos com a tentativa de construir réplicas do mundo deixado do outro lado do Atlântico no solo americano. O segundo capítulo, que está denominado de Do litoral ao País dos Tapuias: experiências holandesas narra algumas das experiências neerlandesas no sertão – decorrentes de um outro lado da ocidentalização – na primeira metade do século XVII, firmando políticas de alianças com os Tarairiu, que resultaram nas descrições mais expressivas desses índios e mesmo de seus territórios. Discute acerca da construção do marcador genérico tapuia e do termo Tarairiu para designar os nativos que habitavam o sertão da capitania e que estavam sob o manto do rei Janduí. Faz uma análise do relato da viagem de Roeloff Baro, emissário da Companhia das Índias Ocidentais junto aos Tarairiu, tentando apreender qual a percepção dos holandeses em relação aos territórios nativos e à importância desses índios enquanto apoio bélico na manutenção da fronteira oeste da capitania. A implantação efetiva do Ocidente no sertão, da segunda metade do século XVII em diante, com a doação de sesmarias, é o tema do terceiro capítulo, nomeado de Do tempo do gentio ao tempo da fé: produção do território da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó.

O resultado dessa implantação se materializa no levantamento de templos

católicos, currais de gado e de fazendas de criar nas proximidades de ribeiras, inclusive com aproveitamento dos remanescentes dos conflitos como mão-de-obra escrava. Em outras 32

palavras, na conquista efetiva do sertão pelo incremento da pecuária. Nesse texto procuramos discutir uma das modificações causadas pela ocidentalização no interior da Capitania do Rio Grande (na impossibilidade de estudar todas), que se dá com a transformação dos territórios nativos em um território colonial. Supondo que diversas cartografias de poder foram construídas pela Coroa para melhor racionalizar a apropriação e o controle da terra e da população que habitava o interior dos trópicos, acreditamos que a difusão da cultura ocidental nesses territórios acarretou a disseminação, também, do Antigo Regime e de suas práticas63. Tais cartografias podem ser visibilizadas, no caso do sertão do Rio Grande, se pensamos na administração lusitana, como sendo dividida em cinco grandes esferas: a civil (Arraial do Queiquó, 1700; Povoação do Caicó, 1735; Vila Nova do Príncipe, 1788); a militar (Companhia de Ordenanças da Ribeira do Seridó, 1726); a religiosa (Freguesia do Seridó, 1748); a fazendária (recolhimento de dízimos a partir da segunda metade do século XVIII) e a judiciária (Termo da Vila Nova do Príncipe, em 1788). A ênfase, nesse capítulo, será dada à Freguesia do Seridó, por dois motivos. Primeiro, por se tratar de importante elemento da governabilidade do Império Ultramarino Português, infundida nos trópicos e adaptada às situações de um novo mundo64. Segundo, pelo fato das áreas de administração religiosa serem tomadas, no universo colonial, como unidades básicas da administração pública – em conformidade com os laços do Padroado Régio – e da disseminação de informações sobre a população (com base nos assentos de batizado, casamento e morte) que eram enviadas ao Reino65. O quarto e último capítulo, Vidas transformadas: índios e mestiços frente à ocidentalização direciona-se para o território da Freguesia de Santa Ana, desta feita, procurando enxergar como a difusão da cultura ocidental afetou os homens e mulheres que aí viviam antes da chegada das divindades cristãs. Enxergamos essas populações desterritorializadas imersas numa sociedade mestiça66, fruto das interseções entre as referências culturais autóctones, africanas e ocidentais. Trata-se, aqui, de dar visibilidade a essas pessoas na medida em que a documentação produzida pelos diversos agentes coloniais (a Igreja, o Estado, por exemplo) as diferencia enquanto índias, embora façam parte de uma cultura de contato67. Inicialmente fazemos uma análise, partindo dos livros de assento da freguesia, do perfil demográfico da população que habitava na Ribeira do Seridó e nos seus afluentes, com ênfase nos índios cristianizados, tentando perceber a sua adaptação aos ritos cristãos e a possibilidade de existência de algumas fagulhas de resistência a essas práticas. Logo após empreendemos uma discussão acerca da escravidão indígena na Freguesia de Santa Ana, com base em inventários post-mortem cruzados com outras fontes, ocasião em que 33

tratamos, também, dos índios que sobreviveram envolvidos em regime de servidão nas fazendas da região. Por último, analisamos as histórias de vida de Mateus de Abreu, Tomé Gonçalves e Policarpo Carneiro, que foram, respectivamente, capitão, porteiro de auditório e vaqueiro. Os dois primeiros, índios. O último, mestiço, filho de índia com um pardo. Dada a especificidade de suas trajetórias, consideramos essas três pessoas agentes mediadores entre o universo nativo e o ocidental, já que viveram uma vida meio indígena, meio européia. Esperamos, ao reconstituir a produção do território da Freguesia de Santa Ana e as histórias de vida de alguns de seus fregueses índios, imersas no fenômeno da ocidentalização, contribuir para o debate acerca da mestiçagem e do contato entre o mundo ocidental e o nativo nos tempos coloniais e no sertão da Capitania do Rio Grande.

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Notas 1

Tempo da Onça: ditado popular que remete ao passado, a épocas imemoriais.

2

A partir de agora estaremos utilizando a expressão luso-brasílico (ao invés de luso-brasileiro), seguindo a orientação de Luiz Felipe de Alencastro, que opta pelo brasílico por ser mais comum na documentação colonial para designar os habitantes do Brasil (enquanto que brasileiro indicava, nos primeiros tempos da colonização, aqueles que comerciavam com o pau-brasil) (ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul). Outros autores também concordam com o cuidado que devemos ter ao falar de brasileiros para designar os habitantes da colônia portuguesa na América, no Período Colonial (NOVAIS, Fernando. Condições da privacidade na Colônia, p. 14-39; SOUZA, Laura de Mello e. O nome do Brasil. Revista de História, n. 145, p. 61-86). 3

MARTIN, Gabriela. A Subtradição Seridó de pintura rupestre pré-histórica do Brasil. Clio, n. 5, p. 19-26; Id. Novos dados sobre as pinturas rupestres do estilo Seridó, no Rio Grande do Norte. Clio, v. 1, n. 4, p. 129-31; Id. O cemitério pré-histórico “Pedra do Alexandre”, Carnaúba dos Dantas-RN. Clio, v. 1, n. 11, p. 43-57. 4

A datação mais antiga obtida a partir do método do C14 (Consejo Superior de Investigaciones Científica – CSIC, Espanha) para os restos ósseos em contato com fogueiras, no Sítio do Alexandre, é de 9.400 + 90 BP [ CSIC 1051 ] (MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil, p. 83). A recalibração recente dessa datação, procedida pelo Centre de Datation par le RadioCarbone, da Université Claude-Bernard, Lyon, resultou em um avanço para -9115 e -8341 AC (QUEIROZ, Albérico Nogueira de. Fauna de vertebrados do sítio arqueológico Pedra do Alexandre, Carnaúba dos Dantas, RN: uma abordagem zooarqueológica e tafonômica, v. 1, n. 11, p. 270). 5

Durante cinco anos (1995-2000) fizemos parte, na categoria de voluntário, das atividades do Núcleo de Estudos Arqueológicos (NEA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob a coordenação da Profª Gabriela Martin. Período de intenso aprendizado, sobretudo no que diz respeito aos conceitos e terminologias da Arqueologia Pré-Histórica, bem como ao conhecimento acumulado e que tinha sido produzido sobre o Seridó pela UFPE a partir do início dos anos 80. Além das citadas anteriormente, GOLDMEIER, Valter Augusto. Geomorfologia de alguns sítios préhistóricos do Seridó (RN). Clio, n. 5, p. 33-8; LUNA, Suely; NASCIMENTO, Ana. Levantamento Arqueológico do Riacho do Bojo, Carnaúba dos Dantas, RN, Brasil. Clio, v. 1, n. 13, p. 173-86; MARTIN, Gabriela. Amor, violência e solidariedade no testemunho da arte rupestre brasileira. Clio, v. 1, n. 6, p. 27-37; Id. Arte rupestre no Seridó (RN): o sítio Mirador do Boqueirão de Parelhas. Clio, n. 7, p. 81-95; Id. Casa Santa: um abrigo com pinturas rupestres do estilo Seridó, no Rio Grande do Norte. Clio, n. 5, p. 55-78; Id. Indústrias de pontas de projétil no Rio Grande do Norte. Clio, n. 5, p. 81-90; Id. Os rituais funerários na Pré-história do Nordeste brasileiro. Clio, v. 1, n. 10, p. 29-46; Id. Os sítios rupestres do Seridó, no Rio Grande do Norte (Brasil), no contexto do povoamento da América do Sul. Fumdhamentos: Revista da Fundação Museu do Homem Americano, v. 1, n. 1, p. 339-46; Id. Registro rupestre e registro arqueológico do Nordeste do Brasil. Revista de Arqueologia, v. 8, n. 1, p. 291-302; QUEIROZ, Albérico Nogueira de; CARDOSO, Glória Maria Brito. Nota prévia sobre a fauna holocênica de vertebrados do sítio arqueológico “Pedra do Alexandre”, Carnaúba dos Dantas-RN, Brasil. Clio, v. 1, n. 11, p. 137-40; TORRES, Ana Catarina ; VILARROEL, Hugo Sérgio. O uso de raios-X na identificação de jazidas minerais: o sítio “Pedra do Alexandre”, RN. Clio, v. 1, n. 10, p. 21-46; TORRES, Ana Catarina. Estudo dos pigmentos do sítio préhistórico Pedra do Alexandre - Carnaúba dos Dantas – RN. Clio, v. 1, n. 11, p. 59-70. Somente a partir dos anos 2000 fomos conhecedores de que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, através do Museu Câmara Cascudo, mais o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), fizeram importantíssimas – e pioneiras – pesquisas na região do Seridó, desde o final dos anos 60 e início dos anos 70, estendendo-se até meados dos anos 80. Conferir, a esse respeito, SOUZA, Oswaldo Câmara de. Acervo do Patrimônio histórico e artístico do Rio Grande do Norte; SOUZA, Maurina Sampaio; MEDEIROS, Osmar. Inscrições rupestres no Rio Grande do Norte; LAROCHE, Armand François Gaston. Relatório das primeiras pesquisas realizadas referentes ao estudo dos grupos humanos pré-históricos pertencentes a Tradição Potiguar. 6

Estamos utilizando a expressão lugares de memória na acepção de Pierre Nora. Para este historiador um lugar de memória é acima de tudo um lugar de aparência material, simbólica e funcional (ao mesmo tempo, em diversos graus), que passa a ter caráter memorialístico quando uma determinada comunidade, através de sua

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imaginação, o investe de uma aura simbólica que relembra, de alguma forma, o passado (NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, n. 10, p. 7-28). 7

Seridó, Jucurutu, Carnaúba, Acauã, Caicó são exemplos de alguns nomes de lugares de origem indígena, seja proveniente do Tupi, seja do Tarairiu. Em relação à região do Seridó, a origem etimológica dos topônimos oriundos de língua indígena foi anotada por SOARES, Antonio. Dicionário Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e por CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte. 8

Ainda hoje é possível observar, nas cozinhas das casas de moradia localizadas na zona rural dos municípios do Seridó, determinados artefatos de uso doméstico que remetem à cultura material nativa: quartinha, gamela, pote e panela de barro, conhecidas como louças ou loiças, além da cesta, urupemba e do abanador, feitos de palha trançada. Registre-se, também, a forte presença da trempe (estrutura composta de três pedras em forma de triângulo, onde se cozinham alimentos, sendo abastecida com lenha) e das cuias de cabaça. Essa sobrevivência da cultura material nativa foi observada por Maria Regina Mendonça Furtado Mattos ao examinar inventários post-morten de famílias da Comarca do Príncipe (hoje, Caicó) no período de 1850 a 1890. Segundo a historiadora, “Entre os utensílios domésticos mais citados nos inventários, destacamos os pilões de madeira, as cestas, as cuias de cabaças e, em algumas vezes, as urupemas. Estas influências que o europeu assimilou da cultura indígena correspondem ao único legado que o verdadeiro dono da terra conseguiu deixar” (grifos nossos) (MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe - 1850/1890: Sertão do Seridó - Um estudo de caso da pobreza, p. 26-7). 9

Uma exceção que fazemos diz respeito à recorrência da imagem de uma cabocla braba, pega a dente de cachorro e casco de cavalo, que emerge dos discursos orais de moradores do Seridó quando se referem às suas genealogias ancestrais, notadamente aos primeiros intercursos sexuais ocorridos em solo sertanejo durante a conquista. A respeito desse assunto, verificar CAVIGNAC, Julie. A índia roubada: estudo comparativo da história e das representações das populações indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte. Caderno de História, v. 2, n. 2, p. 83-92; Id. Vozes da tradição: reflexões preliminares sobre o tratamento do texto narrativo em Antropologia. Mneme – Revista de Humanidades; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Desvendando o passado índio do sertão: memórias de mulheres do Seridó sobre as caboclas-brabas. Vivência, n. 28, p. 145-57.

10

Estamos tratando historiografia regional como sendo a produção do conhecimento histórico de determinada região (o Rio Grande do Norte e o Seridó, em particular) a partir da literatura impressa, não necessariamente de autoria de historiadores acadêmicos, incluindo, portanto, o importante trabalho dos eruditos. Incluimos, portanto, a historiografia clássica do Rio Grande do Norte (TAKEYA, Denise Monteiro. História do Rio Grande do Norte: questões metodológicas – Historiografia e História Regional. Caderno de História – UFRN, v. 1, n. 1, p. 8-11), representada pelas Histórias de Augusto Tavares de Lira, Rocha Pombo e Luís da Câmara Cascudo.

11

LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte (1912); LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte (1921); POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte (1922); CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte (1955).

12

Sobre o discurso construído em cima da figura do indígena durante o século XIX e a possibilidade de sua incorporação ao Império, verificar SILVA, Edson. Bárbaros, bons selvagens, heróis: imagens de índios no Brasil. Clio – Revista de Pesquisa Histórica, n. 15, p. 53-71; Id. O lugar do índio na formação do Estado nacional. Ethnos – Revista Brasileira de Etno-história, ano 1, n. 1.

13

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos povos indígenas. Ethnos, n. 2, p. 21-44. Verificar, ainda, da mesma autora, Id. Cultura e História: sobre o desaparecimento dos povos indígenas. Revista de Ciências Sociais, v. 23/24, n. 1/2, p. 213-25.

14

DIEHL, Astor Antônio. A Cultura Historiográfica Brasileira, p. 23-90.

15

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional, p. 13-44.

16

DANTAS, Manoel. Homens d’outrora.

17

AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses; Id. Seridó.

36

18

MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Caicó: subsidios para a historia completa do municipio.

19

DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo.

20

LAMARTINE, Juvenal. Velhos costumes do meu sertão.

21

SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento.

22

LAMARTINE, Oswaldo. Sertões do Seridó.

23

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó; Id. Velhos inventários do Seridó.

24

Casos típicos dessa personificação em um herói conquistador, representante da chegada da civilização aos rincões sertanejos, se dão quando a mesma historiografia citada acima e, bem assim, os tratados de genealogia da região, atribuem aos patriarcas Caetano Dantas Corrêa, Tomás de Araújo Pereira e Antonio de Azevêdo Maia a fundação dos núcleos populacionais que originariam Carnaúba dos Dantas, Acari e Jardim do Seridó, respectivamente.

25

As Guerras dos Bárbaros correspondem aos movimentos de resistência indígena ao avanço da pecuária pelo sertão, entre os séculos XVII e XIX. Segundo MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 125, o ano de 1725 corresponde aos últimos combates dessas guerras no âmbito da Capitania do Rio Grande. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720, enxerga esse movimento como tendo ocorrido em várias partes do sertão, sem lideranças formais, seja no Recôncavo, seja no Açu e ribeiras afluentes, daí tratá-lo não como uma “guerra”, mas, como “Guerras” dos Bárbaros. A terminologia “Guerras” dos Bárbaros, todavia, já era utilizada por Luís da Câmara Cascudo em sua História do Rio Grande do Norte. Sobre o assunto consultar, ainda, TAUNAY, Afonso de E. A Guerra dos Bárbaros e PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência e conflitos no Norte Colonial.

26

DANTAS, José Adelino. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? Tempo universitário, v. 2, n. 1, p. 129-36.

27

Entrementes, trata-se do mesmo autor que, posteriormente, reuniria esforços para a composição de uma biografia comentada do Patriarca da família Dantas no Seridó, baseada em documentação manuscrita e tradição oral (DANTAS, José Adelino. O coronel de milícias Caetano Dantas Correia: um inventário revelando um homem). 28

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó.

29

Estamos utilizando etnônimos identificadores de povos indígenas escritos com letra maiúscula, sem flexão portuguesa de número ou gênero, no uso substantival, segundo preceitua a Convenção sobre a Grafia dos Nomes Tribais, aprovada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro em 1953, citada por SCHADEN, Egon. Leituras de etnologia brasileira. No caso dos tapuias, por se tratar de um marcador genérico (e não um etnônimo), essa convenção não será seguida e o nome será flexionado. Quanto aos etnônimos, estaremos flexionando quando se tratar do uso adjetival.

30

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense.

31

A presença de índios nos registros eclesiásticos da antiga Freguesia do Seridó também já havia sido sentida pelo historiador Olavo de Medeiros Filho, segundo o qual “Nos velhos livros de assentamentos de batismos, casamentos e óbitos, da Freguesia da Gloriosa Senhora Santana do Seridó (Caicó), até mais ou menos o ano de 1820 (daí para trás) encontrei inúmeros registros sobre os nossos velhos indígenas”(MEDEIROS FILHO, Olavo de. Carta endereçada a Helder Macedo. Natal, 26 jan. 1995. Manuscrita). Contudo, em sua obra Velhas Famílias do Seridó (1981) – que trata das principais famílias que originaram o caldo étnico dessa região – o componente genealógico indígena está praticamente ausente. Exceção seja feita à referência feita à índia Custódia de Amorim Valcácer, que casou com o português Pedro Ferreira das Neves, donde descende, além doutros ramos, o da família Medeiros. E, ainda, a uma índia anônima, natural da Freguesia da Paraíba, que teria tido uma filha com Manuel Vaz Varejão, de nome Isabel da Rocha Meirelles. Esta casou com o português José Dantas Corrêa, tendo sido pais do coronel Caetano Dantas Corrêa, donde descendem os Dantas do Seridó (Id. Velhas Famílias do Seridó, p. 15; 116).

37

32

O contato com as fontes manuscritas da região do Seridó a respeito de populações marginais foi favorecido, em grande parte, pela nossa participação como bolsista de iniciação científica em projetos de pesquisa coordenados pelo Prof. Muirakytan Kennedy de Macêdo e registrados na Pró-Reitoria de Pesquisa e PósGraduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Crime e castigo – escravos nos processos judiciais do Seridó (século XIX); O cotidiano do Príncipe – uma vila do Seridó no século XIX e, especialmente, Contando o trabalho e os dias – Demografia Histórica do Seridó (Colônia e Império) – 1ª edição. E, ainda, como voluntário nos projetos O cotidiano do Príncipe – uma vila seridoense no século XIX – Parte II; História Social da Cultura no Seridó e Contando o trabalho e os dias – Demografia Histórica do Seridó (Colônia e Império) – 2ª edição. Nos dois projetos Contando o trabalho e os dias, compulsamos os livros de assentos de batizados, casamentos e enterros mais antigos da Freguesia do Seridó, utilizando fichas catalográficas próprias seguindo o modelo de Louis-Henry (HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição de famílias. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). Demografia histórica: orientações técnicas e metodológicas, p. 41-63) e ajustadas à realidade local. 33

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX

34

O termo sertão foi sendo construído, desde os cronistas coloniais, para designar os espaços afastados do litoral, continentais, portanto e povoados de selvagens, em oposição ao litoral açucareiro e barroco. Na opinião de SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. ‘Nas solidões vastas e assustadoras’: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII, p. 189, “A palavra sertão parece ser um termo oriundo de desertão, de deserto: Não o deserto físico, mas o espaço onde há um vazio de súditos da Coroa Portuguesa”.

35

Desde o estudo que empreendemos e que resultou na nossa monografia de graduação (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Op. cit.), tivemos contato com o debate sobre o processo de ocidentalização, sobretudo por meio da história cultural. Em relação ao Rio Grande do Norte, a verificação da presença indígena junto aos demais grupos sociais no período colonial e sua participação enquanto agentes ativos de seu tempo foi aguçada pela leitura dos trabalhos de LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte e de PORTO, Maria Emília Monteiro. Jesuítas na Capitania do Rio Grande (séculos XVI-XVIII), que abordam a história nativa e sua forte relação – muitas vezes, de subserviência; outras, de resistência – com o sistema colonial. Entretanto, somente após as discussões efetuadas sobre a relação entre história e espaços, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – sobretudo, na disciplina Teoria e Metodologia da História – é que nos demos conta de que poderíamos enveredar na tentativa de compreender o sertão do Rio Grande do Norte e as populações nativas que aí habitavam como envoltos e transformados pela construção do Ocidente nas terras de domínio lusitano durante o período colonial. 36

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço, p. 63. Conferir o primeiro capítulo desta dissertação para uma análise acerca dos conceitos de Oriente, Ocidente e ocidentalização. 37

Id., p. 62.

38

Segundo Serge Gruzinski apud IVO, Isnara Pereira. A conquista do sertão da Bahia no século XVIII: mediação cultural e aventura de um preto forro no Império Português, p. 3, “A mobilização de homens – descobridores, conquistadores, missionários, burocratas, mercadores e aventureiros – circulando pelas quatro partes do mundo não é algo novo no mundo lusitano. Desde o século XVI, milhares de pessoas transitam em escala planetária, o mundo assiste às aventuras de portugueses e espanhóis que não se limitam em se deslocar da Europa para a América: as frotas ibéricas percorrem toda a superfície da terra”.

39

Discussões sobre o conceito de espaço podem ser obtidas em CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, um conceito-chave da geografia. In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA, Paulo César da ; Id. Geografia: conceitos e temas; CASTRO, Cláudio Eduardo; MARQUES, Ana Rosa. Espaço, um conceito histórico: desdobramento da evolução do pensamento, da Escola Alemã à década de 50. Outros tempos, p. 81-7; GODOY, Paulo. Uma reflexão sobre a produção do espaço. Estudos geográficos, v. 2, n. 1, p. 29-42. BARROS, José d’Assunção. História, geografia e espacialidade. Ágora, v. 11, n. 2, p. 83-98.

40

Um exemplo de utilização do conceito de território na antropologia é a discussão empreendida pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira a respeito da problemática da mistura dos índios – sobretudo, do Nordeste

38

– enquanto herança colonial. Nesse rumo, defende a noção de territorialização, percebida como um processo de reorganização social, implicando “i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado” (OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana – Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 1, p. 22). 41

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder, p. 143-5.

42

SOUZA, Marcelo José Lopes de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA, Paulo César da; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas, p. 78. 43

Id., p. 81. Marcelo Lopes de Souza propõe, também, a enunciação do termo territorialidade, ambíguo, em sua opinião, na abordagem de Raffestin, e que ele propõe seja tratado em duas formas: no singular, para remeter à abstração “das relações de poder espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato referencial” e no plural, para designar os tipos em que podem ser classificados os territórios pelas suas propriedades e dinâmica (Id., p. 99)

44

Ver, a esse respeito, HAESBAERT, Rogério. Território, poesia e identidade.

45

Observar, para compreender concepções de território, sobretudo, nos dias atuais, SANTOS, Milton. O retorno do território. In: Id.; SOUZA, Maria Adélia A. de; SILVEIRA, Maria Laura (orgs.). Território: globalização e fragmentação; ANDRADE, Manuel Correia de. Territorialidades, desterritorialidades, novas territorialidades: os limites do poder nacional e do poder local. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A. de; SILVEIRA, Maria Laura (orgs.). Território: globalização e fragmentação; CARDOSO, Ciro Flamarion. Repensando a construção do espaço. Revista de história regional, v. 3, n. 1; BRITO, Cristóvão. Algumas observações sobre o conceito de território. Ágora, v. 11, n. 2, p. 99-114. 46

HAESBAERT, Rogério. Concepções de território para entender a desterritorialização. In: SILVA, Carlos A. Franco da et all (orgs.). Território, territórios, p. 18-9.

47

Id., p. 25.

48

MORAES, Antonio Carlos Robert de. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no “longo” século XVI, p. 17.

49

Id., p. 18-9. O autor afirma, ao discutir a gênese do conceito, que a antropogeografia de Ratzel apreendeu o território como sendo um espaço qualificado pelo domínio de um grupo humano, definido pelo controle político de determinada superfície. Conceito que foi preterido pela hegemônica geografia regional de Vidal de la Blache, sendo reincorporado no momento em que a geografia se propunha a uma renovação em seu pensamento epistemológico, dos anos 60 em diante, através de um viés marxista.

50

Id., p. 22-3. A respeito desse processo de apoderamento das terras situadas além-mar e incorporação no território do Império Português, ver ANDRADE, Manuel Correia de. A ocupação territorial e a evolução das cidades e vilas brasileiras (séc. XVI e XVII). In: Id. A questão do território no Brasil; ABREU, Maurício de Almeida. A apropriação do território no Brasil Colonial. In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA, Paulo César da; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs.). Explorações geográficas. 51

Partimos da noção de fronteiras coloniais e indígenas problematizada por HEMMING, John. Os índios e a fronteira no Brasil Colonial. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, p. 423-69.

52

ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales y agentes mediadores, p. 9-10. Para o Brasil, consultar PAIVA, Eduardo França & ANASTÁSIA, Carla M. J. (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX).

53

Freguesia de Santa Ana, bem como Freguesia do Seridó, serão expressões usadas como homônimas neste trabalho. Ambas são formas diminutas de “Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó”.

39

54

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense, p. 67-8. 55

A Vila Nova do Príncipe, criada em 1788 a partir da Povoação do Seridó, corresponde, nos dias atuais, ao município de Caicó-RN, como será explicitado no terceiro capítulo desta dissertação.

56

A inspiração para essa atitude em relação às fontes vem do método indiciário, prescrito por GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, especialmente o ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário.

57

Partindo das discussões empreendidas pela Escola dos Annales no início do século XX, admitimos que por fonte histórica se possa atribuir a qualquer vestígio deixado pelo homem, passível de utilização para se reconstituir fragmentos do passado. Assim, o historiador deve valer-se de toda a "habilidade (...) que lhe permite [ ser utilizada ] (...) para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais". Palavras, signos, paisagens, telhas, formas do campo e das ervas daninhas, eclipses, exames de pedras feitos por geólogos e as análises de metais feitos pelos químicos são dados que permitem demonstrar-se "a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem" (Lucien Febvre, apud LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Id. História e Memória, p. 540).

58

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos povos indígenas, p. 5.

59

Consultar, a respeito da problemática das fontes para a história indígena, CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil, p. 9-14.

60

MONTEIRO, John. Entre o etnocídio e a etnogênese: identidades indígenas coloniais. In: Id. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo, p. 57.

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Dentre as dissertações de mestrado e teses de doutorado oriundas da Universidade Federal de Pernambuco, sem aspirarmos à exaustão, podemos indicar PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência e conflitos no Nordeste Colonial (mestrado); PIRES, Maria Idalina da Cruz. Resistência Indígena nos sertões nordestinos no Pós-Conquista Territorial: legislação, conflito e negociações nas vilas pombalinas (1757 – 1823) (doutorado); AZEVEDO, Anna Elizabeth Lago de. O Diretório Pombalino em Pernambuco (mestrado); ELIAS, Juliana Lopes. Moradia indígena: alterações sofridas pela habitação nativa após a inclusão dos jesuítas no cenário colonial (1548-1700) (mestrado); LOPES, Fátima Martins. Missões Religiosas: Índios, Colonos e Missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte (mestrado); LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII (doutorado); MEDEIROS, Ricardo Pinto de. O descobrimento dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial (doutorado); SILVA, Edson Hely. O lugar do índio. Conflitos, esbulhos de terras e resistência indígena no século XIX: o caso de Escada-PE (1860-1880) (mestrado); SILVA, G. K. A. Índios e Identidades: formas de inserção e sobrevivência na sociedade colonial (1530 - 1716) (mestrado); SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. ‘Nas solidões vastas e assustadoras’: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII (doutorado).

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Entre os trabalhos acadêmicos produzidos fora da Universidade Federal de Pernambuco realçamos, sobretudo, os de PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720 (doutorado); MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (livre docência); POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial (doutorado); ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro (doutorado). 63

Entendemos, a partir da interpretação de A. J. R. Russell-Wood, que a expressão Antigo Regime representa o conjunto de práticas e idéias marcadas por concessão de mercês reais, direitos monopolistas, concessão de privilégios a indivíduos e grupos corporativos e isenções a outros setores, característico da expansão ultramarina colonial (RUSSELL-WOOD, A. J. R. Prefácio. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), p. 167).

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Concordamos, assim, com a assertiva da historiadora Maria de Fátima Silva Gouvêa, para quem “a formação política do Império [ português ] baseou-se na transferência de uma série de mecanismos jurídicos e administrativos da metrópole para as mais distantes regiões do globo. Padroado, poderes concelhios, governadores, ouvidores e capitanias hereditárias foram alguns dos principais institutos acionados pela Coroa portuguesa no processo de organização de seu governo sobre o complexo ultramarino em expansão”. (grifo nosso) Cf. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808), p. 289. 65

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; LINHARES, Maria Yedda L. Região e história agrária. Estudos históricos, v. 8, n. 15, p. 4.

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Estamos utilizando a expressão sociedade mestiça partindo da problematização de GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço, para quem o mundo colonial na América foi marcado por intercursos entre povos vindos de diferentes continentes, com diferentes esquemas de dominação, subordinação e mesmo de negociação.

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A noção de cultura de contato foi pensada a partir do modelo de aldeamento jesuítico usado no Guairá, Alto Uruguai e Amazônia, estudado por Carlos de A. Moreira Neto e que pressupõe uma cultura compósita, cujos elementos não poderiam ser remetidos a um grupo indígena em particular, mas, a vários, além das influências européias (MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: da maioria à minoria). No caso da Ribeira e posterior Freguesia do Seridó, essa cultura de contato não se processa no âmbito de missões religiosas (situadas no litoral e na região serrana, na extremidade oeste do atual estado do Rio Grande do Norte), mas, na própria convivência entre os diferentes grupos sociais nas fazendas de criar gado e mesmo nas povoações e vilas surgidas em função do crescimento populacional no entorno de capelas. Entretanto, temos de reconhecer que considerável parte dos índios registrada pela pena dos curas da Freguesia do Seridó era oriunda de antigas missões religiosas (tanto no âmbito da Capitania do Rio Grande, quanto no de outras capitanias vizinhas), transformadas em vilas pela política pombalina. A respeito das vilas de índios durante a época pombalina na Capitania do Rio Grande, verificar LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII.

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1 MUNDOS EM CONFLITO: ocidentalização na Capitania do Rio Grande

1.1 World Trade Center: a reafirmação da ocidentalização 11 de setembro de 2001, um dia que ficou marcado na história do Ocidente. Horrorizados, os países do hemisfério oeste do planeta acompanham via televisão e internet, sobretudo, os atentados terroristas contra as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York e contra o Pentágono, em Washington. Por debaixo dos destroços e das mais de três mil vidas tiradas quando os aviões com pilotos suicidas se chocaram contra as torres gêmeas, num plano arquitetado pela rede terrorista Al Qaeda, repousam mais que implicações de ordem geopolítica entre os Estados Unidos e o Islã: trata-se de uma guerra de civilização, de um embate entre o Oriente e o Ocidente, fruto da globalização1. Foi com esses termos que a rede televisiva CNN – e as demais televisões hegemônicas nos países europeus e americanos, principalmente – noticiou e engendrou um verdadeiro esquema discursivo, dando conta: a) do perigo por que passava o Ocidente face aos ataques de organizações que trabalhavam tendo como égide o uso sistemático da violência e do terror, justificados por motivos de ordem religiosa, a exemplo da Al Qaeda, capitaneada por Osama Bin Landen; b) da necessidade que os países ocidentais tinham de se irmanarem em torno dos Estados Unidos da América, nação tida como a que deveria representar a civilização2 ocidental, numa cruzada contra o Oriente terrorista; c) da consciência – a ser (re)afirmada – de que o mundo ocidental era superior em poderio bélico, tecnológico e inteligência, frente ao Oriente Médio3. Essas idéias reafirmam um ponto de discussão comum entre os chamados estudos póscoloniais4: o de que o processo de ocidentalização – sobre o qual voltaremos a falar adiante –, longe de estar consolidado, encontra-se em plena ebulição. A evidência mais palpável dessa efervescência veio a lume decorridos quase dois anos do 11 de setembro, quando um consórcio entre o Reino Unido e Estados Unidos, mesmo sem a autorização expressa do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), invadiu o Iraque. O motivo: a acusação de que Saddam Husseim, líder autoritário desse último país, estaria

acumulando armas de destruição em massa, fugindo aos acordos internacionais de paz assinados no período pós-Guerra Irã-Iraque (anos 80) e Guerra do Golfo (anos 90). A invasão do território iraquiano iniciou-se em março e obteve sua primeira vitória em abril, com a tomada e ocupação da capital, Bagdá, seguida da instalação de um governo de ocupação, que tinha como chefe o diplomata norte-americano Paul Bremer. Os conflitos entre os diversos grupos étnicos e religiosos do Iraque e as forças de ocupação se estenderiam no transcorrer do ano, culminando na captura e prisão do líder Saddam Hussein pelas tropas norte-americanas em dezembro de 2003. Novamente, a máquina televisiva da CNN centrou esforços para (re)afirmar a supremacia do Ocidente através de notícias veiculadas em escala mundial. Supremacia que leva em conta um choque de civilizações. Particularmente com relação à série de notícias propagada no bojo da invasão e ocupação do Iraque, o intelectual palestino Edward Said pronunciou-se afirmando que a idéia de choque de civilizações tem um aspecto caricatural muito nocivo, como se enormes entidades chamadas ‘Ocidente’ e ‘Islã’ estivessem num ringue, lutando para ver qual é a melhor. Essa imagem das civilizações exibindo seus músculos uma para a outra como Brutus e Popeye no desenho animado é de uma infantilidade atroz5.

A opinião de Edward Said nos encaminha para uma discussão a respeito da própria constituição dessas duas entidades que, a julgar pelos discursos construídos e veiculados pela mídia televisiva de escala global, se digladiam numa interminável batalha que opõe civilização e barbárie, progresso e retrocesso, modernização e arcaísmo, Ocidente e Oriente. Caricaturas, portanto, de discursos construídos e que dão visibilidade a relações de dominação global forjadas no âmbito da própria historicidade das duas metades do mundo, a ocidental e a oriental. É inegável que o esforço de compreender a divisão do planeta em dois hemisférios acabe recaindo no critério geográfico. Essa demarcação, que a priori contrapõe o Ocidente (a Europa) ao Oriente (a Ásia)6, não corresponde a um desenho tão perfeito e cartesiano, já que esses referenciais geográficos são profundamente marcados, também, por conteúdos culturais. Além disso, lembremos que, a partir do século XV, os homens que viviam na Europa conheceram outras partes do mundo ainda não reveladas ou imersas em relatos de viagem, sobretudo as áreas que correspondem, na atualidade, à Índia, à América e ao Japão. Por outro lado, a demarcação geográfica do Oriente e do Ocidente necessita de uma materialização física no espaço, para que possa ser percebida, apreendida e mesmo discutida. Essa materialização aparece com realce na obra de Jacques Le Goff que trata da história do 43

Ocidente medieval. Aliás, não se trata de uma separação, mas, de um corte feito pelo historiador gerando a representação que ele considera ser o Ocidente em um mapa. Temos a consciência, assim, de que a cartografia é uma forma de expressão e, o mapa, suporte material dessa representação do espaço. Isso nos leva a concordar com o pensamento do historiador Paulo Knauss, que enxerga o mapa-múndi como uma representação do espaço historicamente condicionada pelo seu tempo e pelas maneiras pelas quais os seus produtores enxergavam o mundo. Para o autor, A representação cartográfica do mundo que utilizamos por convenção se relaciona com a história européia, uma vez que foi esse universo cultural que pela primeira vez conviveu com a experiência de freqüentar sistematicamente todos os continentes, desde o início da Época Moderna.7

O Ocidente cartografado por Jacques Le Goff (Figura 01) corresponde ao Ocidente geográfico, composto de partes da Europa, da África e da Ásia, tendo o mar Mediterrâneo como centro. A visualização do mapa, entretanto, deixa claro, inclusive em termos territoriais, a superioridade da Europa nessa composição. O segundo mapa elaborado pelo autor (Figura 02), trata do Ocidente religioso, equivalendo praticamente à Europa e, nesse caso, é patente a identificação com o cristianismo. Um e outro, os dois mapas constituem-se enquanto fruto da representação de Jacques Le Goff sobre o que ele imaginou ser o Ocidente durante a Idade Média. Partindo do pressuposto de que a demarcação entre Ocidente e Oriente – não originada, certamente, na Idade Média – corresponde a uma construção historicamente processadas, interessa-nos, neste trabalho, discutir essa construção e, mais adiante, como o avanço deste último, em particular, processou-se pelas terras anexadas ao Velho Mundo a partir do final do século XV.

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Figura 01 O Ocidente geográfico

Figura 02 O Ocidente religioso

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1.2 Construções do Oriente No plano físico, o Oriente corresponde aos territórios situados no continente asiático. Todavia, dada a pluralidade de línguas e culturas existentes nessa superfície do globo, o sinólogo Mário Sproviero nos adverte para a existência não apenas de um, mas, de três Orientes, que o autor considera como grandes sistemas culturais, denominados por sua relação de proximidade/longinqüidade com a Europa: o Próximo Oriente, o Oriente Médio e o Extremo Oriente. A cultura árabe constitui o Próximo Oriente, em territórios ocupados, no passado, por sumérios, egípcios, assírios, babilônios, persas, judeus, gregos e romanos, que corresponde, conforme a opinião do crítico social francês René Guenón8, aos confins da Europa, parte da Ásia e toda a África do Norte – atualmente confundido, sobretudo nos meios de comunicação ocidentais, com o Oriente Médio. Este, para Mário Sproviero, corresponde ao universo cultural hindu, enquanto o Extremo Oriente é formado pelo universo da cultura chinesa, estendendo-se pelo Vietnã, Coréia, China e Japão, principalmente9. Que seria, então, o Oriente? Quais suas relações (discursivas) com o Ocidente? Essas são perguntas centrais que norteiam a obra de Edward Said10, que citamos pouco antes, quando comentávamos sua posição frente à política de George Bush em relação ao Oriente Médio. Orientalismo, título de sua obra mais conhecida, analisa essa temática de forma ampla e significativa, se constituindo em uma tentativa de encarar o Oriente pela visão de um oriental ocidentalizado – lembrando a situação do autor, que residiu durante boa parte de sua vida nos Estados Unidos. Said acredita que o século XVIII seja o lugar privilegiado para que as idéias sobre o Oriente viessem à tona e ganhassem nova roupagem sob o signo da filologia e de outras disciplinas do conhecimento11. Essa (re)significação das idéias, imaginários e doutrinas teve em Flaubert, Sacy e Renan nomes dignos de nota, pelo fato de transmitirem suas representações sobre o Oriente através da literatura de romance (no caso do primeiro) e da compilação de antigos textos orientais e sua tradução (no caso dos dois últimos)12. Embora reconheça significados diversos no tempo para o termo orientalismo, Edward Said não crê que Oriente possa designar apenas um lugar de romances, de exotismo, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis, de um Egito imortalizado e de babilônios, sírios, fenícios e cretenses mitificados na literatura. Acima de tudo, trata-se de uma invenção do Ocidente, ou seja, de uma criação discursiva da Europa, com o objetivo de (re)afirmar: a) sua superioridade frente às regiões designadas como orientais, tidas como

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atrasadas e deslocadas no tempo e espaço; b) a identidade homogênea das populações européias, diversa da dos povos não-europeus; c) a necessidade de definição de um determinado lugar através do reconhecimento da alteridade, isto é, do Oriente. Opinião semelhante demonstra o sociólogo Sérgio Costa, ao problematizar a importância dos estudos pós-coloniais para as Ciências Sociais, quando se refere ao orientalismo como uma maneira institucionalizada de produzir representações sobre uma determinada região do mundo – a sua parte leste –, alimentada, confirmada e atualizada pelas próprias imagens e conhecimentos (re)criados. Anuncia o autor, a propósito, que O oriente do Orientalismo, ainda que remeta, vagamente, a um lugar geográfico, expressa mais propriamente uma fronteira cultural e definidora de sentido entre um nós e um eles, no interior de uma relação que produz e reproduz o outro como inferior, ao mesmo tempo que permite definir o nós, o si mesmo, em oposição a este outro, ora representado como caricatura, ora como estereótipo e sempre como uma síntese aglutinadora de tudo aquilo que o nós não é e nem quer ser13.

Assim, podemos definir o Oriente, indo além da mera amarração a critérios de ordem geográfica, como uma construção ocidental, baseada em estereótipos reducionistas (o oriental é sensual, vicioso, tirânico, retrógrado e preguiçoso) para construir uma cultura homogênea passível de ser dominada, em nome de um Ocidente também idealizado. Isto pode ser confirmado em estudo realizado pela historiadora Teresa Teófilo acerca de uma comunidade chinesa em Portugal, quando afirmou, a propósito da discussão empreendida por Said, que este tenta provar que o Ocidente construiu a sua própria identidade por oposição à do Oriente. Ao longo desse processo identitário foi consolidada a idéia de que a diferença entre o Ocidente e o Oriente é a racionalidade, o desenvolvimento e a superioridade do primeiro. Ao segundo sãolhe atribuídas características como aberrante, subdesenvolvido e inferior14.

Diferentes experiências políticas de, pelo menos, três grandes potências, foram utilizadas como verdadeiros fios condutores dessa construção discursiva do Ocidente sobre o Oriente, em várias épocas. Inicialmente, a Inglaterra e a França, no contexto da colonização (imperialista) da África e da Ásia, momento em que o Oriente deixa de ser um campo de observação – inclusive suscitando estudos e traduções de originais (principalmente do árabe) para o inglês e o francês – para ser um campo de expansão. Como se os povos orientais fossem um problema a ser resolvido por meio da aceitação de um poder superior que os dominasse. Em outras palavras, podemos afirmar que o discurso orientalista deu fundamento

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e justificação para as estratégias de colonização imperialista inglesa e francesa durante o século XIX15. Posteriormente, no século XX, os Estados Unidos da América elegeram-se e foram eleitos, pelos países que orbitavam em torno de seus ditames, sobretudo após as duas grandes guerras mundiais, como os representantes de uma nova ordem mundial, ocidental, capitalista, democrata e liberal. Foram os territórios intelectuais e imaginativos dessas nações – a Inglaterra, a França e os Estados Unidos – que escreveram, produziram e construíram determinadas versões do Oriente, algumas das quais, ainda hoje, (re)correntes na televisão, no cinema e mesmo na literatura16. Se o Oriente é, portanto, uma invenção do Ocidente, o que dizer deste? Quem inventou o Ocidente?

1.3. Construções do Ocidente A constituição discursiva do Ocidente é formada de chaves históricas e filosóficas que nos ajudam a compreender como se deu o processo de auto-reconhecimento e de reconhecimento pelos outros da cultura ocidental. Essas chaves foram analisadas e discutidas pelo filósofo Philippe Nemo, que considera Ocidente não como um povo, mas, enquanto uma cultura constituída sucessivamente por vários povos, cujos homens e mulheres, de diferentes origens, voluntariamente assumiram valores estranhos aos de seus grupos de origem: os romanos, que passaram por processos de helenização; os gauleses, que foram submetidos pelos romanos e, em duas ou três gerações, abandonaram sua língua em favor da aceitação da latinidade; os europeus pagãos, que se converteram em massa ao cristianismo e os europeus cristãos, que se apropriaram do direito romano e da ciência grega, “reconhecendo esses passados como seu passado, como a fonte de suas normas, de seu imaginário e de sua identidade”17. Dessa forma, a morfogenia cultural do Ocidente repousaria, apesar de sua complexidade, em cinco acontecimentos essenciais: a) a invenção, grega, da cidade, da liberdade sob a lei, da ciência e da escola; b) a invenção, romana, do direito, da propriedade privada, da noção de pessoa e do humanismo; c) a revolução ética e escatológica da Bíblia, imanente à cultura judaico-cristã; d) as mudanças na igreja e sociedade cristã com a Revolução Papal dos séculos XI ao XIII, que utilizou a razão (leia-se, a ciência grega e o direito romano) para inscrever a ética e a escatologia bíblicas na História, realizando, assim, a

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primeira fusão evidente entre Atenas, Roma e Jerusalém18; e) a promoção da democracia liberal, coroada pelas grandes revoluções democráticas e burguesas, que acabou por dar existência à modernidade. Desses cinco acontecimentos podemos extrair, conforme Philippe Nemo, os valores e instituições que se configuram enquanto componentes essenciais do Ocidente: o Estado de direito, a democracia, a liberdade intelectual, a racionalidade crítica, a ciência e a economia baseada na propriedade privada19. A discussão realizada por Philippe Nemo tendo como base essas chaves históricofilosóficas, todavia, está carregada de forte etnocentrismo, na medida em que reafirma, em diversas passagens do seu texto20, a superioridade do Ocidente, negando às nações de cultura oriental qualquer possibilidade – a não ser que se ocidentalizem – de progresso material, tecnológico e social. Essa reafirmação também fica notória quando o autor, ao final da discussão sobre o Ocidente, baliza as fronteiras que o dividem do Oriente: somente as sociedades que tenham passado por todos e cada um dos cinco acontecimentos listados no parágrafo anterior podem ser considerados de cultura ocidental. Partindo desse critério, quatro grandes blocos existiriam no planeta: o Ocidente (apenas as sociedades da Europa Ocidental e da América do Norte), os países próximos do Ocidente (situados na Europa Central, na América Latina21, no mundo ortodoxo e Israel), o mundo árabe-muçulmano e as “outras” civilizações (Oceania, África, Índia, China e Japão). O historiador Bernard Gueneé, por outro lado, ao estudar os Estados que existiam na Europa no decurso dos séculos XIV e XV, entende o Ocidente como uma comunidade cultural com significados diversos desde a Antiguidade – a noção do que pode ser considerado ocidental, portanto, depende da temporalidade e do espaço a que estamos nos referindo. Entre os séculos III e V, grosso modo, no âmbito do Império Romano, a diferença entre Ocidente e Oriente se demarcava nas possessões dominadas pela língua latina e pela língua grega, respectivamente – fruto da divisão do Império procedida no ano 395, em decorrência de crises internas, em que Teodósio retalhou a vastidão de Roma em dois territórios, o Império Romano do Ocidente (cujo centro, a Roma decadente, cairia oitenta anos mais tarde) e o Império Romano do Oriente (com capital em Constantinopla, sobrevivendo até 1453)22. Com a oficialização do cristianismo enquanto religião oficial do Império Romano (392) e sua crescente expansão no continente resulta que, na Idade Média, a unidade do Ocidente possa ser medida pelo termômetro da religiosidade e da cultura. Em outras palavras, Bernard Gueneé acredita que, no entorno do século XIII, os termos cristandade e latinidade

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fossem sinônimos de Ocidente: ou seja, designariam o conjunto dos países europeus que reconheciam a autoridade do Papa de Roma e cuja língua era o latim23. Nessa época, segundo o autor, o vocábulo Europa não passava de um termo com valor apenas geográfico e de emprego raro. A partir do final do século XV, todavia, a chegada dos europeus ao Novo Mundo e conseqüente ampliação da Cristandade daria as condições necessárias para que o termo Europa permanecesse melhor para qualificar a velha comunidade do Ocidente. O Ocidente não se definiria mais simplesmente pela religião romana (cristã) ou pela cultura latina, mas, também, pela liberdade política ensejada pelo surgimento e fortalecimento dos Estados, com estruturas políticas e econômicas bem definidas, monarquia centralizada, forte caráter expansionista e presença de um sentimento nacional24. É o momento histórico em que o Ocidente se expande, estendendo seus tentáculos por outras partes do planeta.

1.4. Ocidentalização: uma expansão do Ocidente O alvorecer dos tempos modernos25 corresponde ao instante em que o Ocidente inicia um amplo processo de dilatação frente a lugares ainda não conhecidos ou até aquele momento fora do seu manto dominial, sobretudo os espaços que hoje correspondem ao continente africano, americano, parte do asiático e oceânico. Coincidentemente, trata-se do momento de transição de uma sociedade feudal para uma sociedade capitalista, marcado pelo que Karl Marx denominou “acumulação primitiva do capital”26, exercida, em grande medida, pela burguesia mercantil. Do ponto de vista cultural, Jean Delumeau enuncia que, na Europa, a recuperação do legado da Antiguidade Clássica – que deveria servir de modelo aos europeus, tidos como legítimos herdeiros desses valores e ideais – constitui-se enquanto instrumento para a elaboração gradativa de um modelo de sociedade ocidental: a “civilização do Renascimento”. Sociedade esta que se (re)afirmará perante as não-européias autopromovendo-se enquanto superiora e avançada por retomar a herança greco-romana e romper com o “obscurantismo” dos tempos medievais. O Renascimento, mais que um movimento de renovação intelectual e artística, desse modo, seria uma tentativa de “promoção do Ocidente numa época em que a civilização da Europa ultrapassou, de modo decisivo, as que lhe eram paralelas”27.

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Partindo das premissas acima, acreditamos que dois conjuntos de processos históricos são responsáveis pela formação do mundo ocidental moderno, sem acreditar que eles estiveram separados e descontínuos no tempo e no espaço. O primeiro desses conjuntos diz respeito a acontecimentos de ordem cultural, política e econômica que, a princípio, tiveram como palco a Europa, alastrando-se por outros continentes. Dentre eles, podemos listar, acompanhando o raciocínio dos historiadores Joel Carlos de Souza Andrade e Manoel Carlos Fonseca de Alencar, o Renascimento, a “descoberta” e a anexação do Novo Mundo, a Reforma Religiosa e sua relação com o nascimento do capitalismo, as revoluções burguesas (Industrial e Francesa), o imperialismo e a expansão do capitalismo e, finalmente a guerra armamentista e o terrível poderio bélico acumulada pelas nações no século XX, em parte conseqüência das duas grandes guerras que assolaram o mundo28

Trata-se de acontecimentos, portanto, que representam mais de cinco séculos de historicidade, entre o Velho e o Novo Mundo, e que traduzem, através do ângulo da longa duração, relações de dominação da Europa para com outras partes do globo.

Nessa

dominação, chegamos mesmo a cruzar com os conflitos dos dias atuais, a exemplo dos que assolam o Oriente Médio, tido como região das mais conflituosas do planeta, envolvendo o armazenamento de armas de alto poder destrutivo, notadamente as nucleares. Esses processos, portanto, inscreveram a Europa – e, a partir do século XX, os Estados Unidos da América – como locais de irradiação de onde se partiam as idéias e determinações hegemônicas em se tratando de dominação e de subordinação. O outro conjunto diz respeito a um amplo processo histórico inscrito em um dos eventos listados no rol anterior, o da descoberta e da anexação do Novo Mundo. Esse processo, motivado pelo ápice do Capitalismo Comercial, favoreceu a expansão da cultura ocidental por terras ainda não conhecidas (pelos europeus); em outras palavras, deu condições para que a ocidentalização acontecesse. Nas terras situadas na outra margem do Oceano Atlântico os europeus conheceram sociedades radicalmente diferentes das suas e, notadamente, com um grau tecnológico e cultural não semelhante. Essa diferença, convertida em inferioridade dos nativos das novas terras, se constituiu em uma das formas que levou o europeu a se encontrar na imagem do outro – embora este fosse diferente, bárbaro, infiel, oposto aos valores da cultura cristã –, quer dizer, a ver no seu contrário, como num espelho, o que ele não era. Com a anexação dos territórios pelo poder político das potências peninsulares – Portugal e Castela – paulatinamente procedeu-se, também, à incorporação dos corpos e das almas dos indígenas, 51

na tentativa de torná-los súditos dos reis (católicos) e do Supremo Pontífice de Roma. De forma que através dos contatos com as sociedades indígenas, inicia-se o longo itinerário da descoberta do Outro. É como se, tendo forçado os limites do horizonte, o ocidental fosse encontrar o seu Outro, como se o olhar não tivesse outra saída a não ser o reflexo de si mesmo no Outro: o ocidental começa a tornar-se consciente no contato com um novo mundo exterior. As sociedades indígenas revelaram para o Ocidente o seu lado oculto que ele ignorava29.

Desse modo, podemos inferir que o processo de reconhecimento e construção do Ocidente, na época moderna, se dá tanto por eventos desencadeados a partir da Europa e que concorrem para o fortalecimento de sua hegemonia, como pela própria relação de descoberta30 feita nas terras situadas na outra margem do Atlântico, de povos autóctones até então ignorados e que se fazia necessário conduzir para a grei cristã – em outras palavras, ocidentalizá-los. É, pois, na passagem do século XV para o XVI que encontramos a plenitude do Ocidente, à medida em que a cultura ocidental se alastra por outras partes do globo – sobretudo na América – e destrói territórios nativos para, em cima de seus escombros, fundar novas territorialidades, semelhantes, em tese, às deixadas no Velho Mundo. Mortes, fugas, escravização, esses são apenas alguns dos acontecimentos que caracterizaram o processo de Ocidentalização na América, notadamente o “desaparecimento” dos povos autóctones que habitavam nesse continente há milênios. Desaparecimento que se manifestou através da violência expressa, da exploração do trabalho indígena, das guerras de conquista, da aculturação31, de grandes fomes, de hecatombes32 e de fugas para novas regiões33. E, também, da imposição de quadros e modos de vida da Europa Ocidental, sobretudo da Península Ibérica, elaborados durante os séculos precedentes à conquista34. Estabelecidos na América, os europeus dedicaram-se com afinco na árdua tarefa de edificar réplicas da sociedade que haviam deixado do outro lado do Oceano Atlântico. Desejavam transmigrar o mundo ibérico, com suas instituições e imaginários, como se fossem duplicar o Velho Mundo dos lusos e dos castelhanos – cuja centralização política precoce favoreceu ambos os reinos a lançarem-se aos mares – nas terras “descobertas” após 149235. A ocidentalização corresponde, portanto, ao movimento de difusão/imposição da cultura ocidental nas colônias dos Impérios Ultramarinos – em outras palavras, à conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo. Esse movimento de ocidentalização36, levado à frente por castelhanos e posteriormente por portugueses, produz situações de choque e relações de poder entre os recém-chegados (os europeus) e os que se encontravam na terra firme (os nativos). Segue mais ou menos o mesmo padrão – o da 52

imposição da cultura ocidental sobre os modos de vida e as cosmogonias nativas –, porém, cria especificidades dependendo da porção do continente que estava sendo ocupada, determinada pela linha de Tordesilhas, bem como do tipo de sociedade que habitava nessas terras. Na porção que pertencia ao domínio de Castela, sobretudo na costa banhada pelo Atlântico, os colonizadores encontraram, a partir do século XVI, grupos de caçadores vivendo em regime semi-nômade. Entretanto, nas terras baixas alagadiças, planaltos semi-áridos e vales férteis da Mesoamérica encontraram sociedades com alto grau de complexidade do ponto de vista tecnológico, centralização político-administrativa, grandes centros urbanos, notáveis realizações no campo das artes e a coexistência de formas comunitárias de produção e de propriedade da terra pelo Estado. Sociedades com características similares também foram encontradas na área da Cordilheira dos Andes, num altiplano com altitudes acima de 2.500 metros, densas florestas e costas áridas37. No processo de conquista da América hispânica, povos como os mexicas, os incas, os astecas, os mixtecas e os tlaxcaltecas tiveram seus mundos derrubados e abalados por catástrofes demográficas, perda das referências cosmogônicas, descontextualizações espaciais e imposição de um novo padrão de escrita, o do alfabeto latino, em substituição ao uso anterior de pictografias e glifos. Resultados como estes, que caminhavam pari passu à destruição dos templos autóctones e edificação de igrejas e mosteiros cristãos – que se tornariam lugares privilegiados das cidades e da difusão da cultura ocidental –, poderiam significar o total arrasamento dos mundos nativos frente ao choque da conquista. Ao ocidentalizar as novas terras, os conquistadores desejavam, como dissemos anteriormente, replicar o Velho Mundo na América e expandir a cristandade, da qual também seriam fiéis e súditos reais os índios a serem convertidos. Esperava-se que esse movimento de imposição cultural expurgasse o universo de pensamento e os saberes dos indígenas, mas, o que se observou, pelo menos nos idos do século XVI em diante, foi que a ocidentalização não conseguiu construir réplicas perfeitas do Velho Mundo, mas, esse movimento andou lado a lado com outro fenômeno, o da mestiçagem38. Nas palavras do historiador francês Serge Gruzinski, A ocidentalização não foi apenas uma irrupção destrutiva ou um empreendimento normalizador, já que participou da criação de formas mestiças de expressão. Participação a um só tempo calculada e involuntária, mas participação inegável. Portanto, a política de substituição nem sempre resultou num efeito de tábua rasa, muito pelo contrário. Nem todo o antigo foi substituído e, em geral, o que dele resta se mistura ao que a Igreja

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conseguiu impor, ao que os índios quiseram conservar, ao que foram capazes de assimilar ou ao que não tiveram força para rejeitar39.

A capacidade de mimetismo frente à imposição de hábitos e modos de vida, e, mais que isso, de adaptação dos povos indígenas aos mecanismos da conquista ocidental é fato que caracterizou as sociedades indígenas encontradas pelos castelhanos na Mesoamérica, especialmente em Tenochtitlán e nos derredores do Vale do México. Parte da população de nativos dessa região, após cristianizada e alfabetizada nos códigos de leitura e escrita latinos, passou a escrever a sua própria história em textos mestiços que ainda se conservam nos arquivos do México e mesmo da Espanha. Trata-se de documentos epistolográficos enviados da parte das autoridades indígenas locais à metrópole, onde faziam um balanço do que haviam guardado na memória, tomando tempo e espaço enquanto categorias hispânicas bastante diversas de suas próprias noções cíclicas e sagradas: o primeiro, unilateral, sucessão linear de fatos; o segundo, um misto de paisagem e toponímia, marcada pela profundidade e pela perspectiva. Nessas Relaciones geograficas os índios produziram, portanto, uma versão aceitável de sua história para os castelhanos, uma leitura achatada e unidimensional de suas histórias, cujo ponto fulcral, relembrado, é o choque da conquista40. Enquanto as Relaciones são típicas do século XVI, no decorrer do século XVII os índios cristianizados e alfabetizados produzirão outro tipo de documento, desta vez, não de caráter epistolográfico, mas, com finalidades jurídicas. Estamos nos referindo aos Títulos primordiales, que se assemelham na forma e no conteúdo aos títulos fundiários dos colonos, embora sejam anônimos e redigidos – como algumas das Relaciones – em língua nativa náuatle nos pueblos, registrando “os limites territoriais, exortando os índios da localidade a defendê-los com unhas e dentes”. Eram “dossiês de tamanho variável, que reuniam escrituras de doação, de venda, de concessão de jurisdição, laudos de reconhecimento – as vistas de ojo – destinados a definir os limites das terras, interrogatórios contraditórios e, finalmente, escrituras de confirmação que sancionavam a posse”41. Misto de escrita alfabética latina-náuatle e recheada de glifos de origem pré-hispânica que teimavam em persistir mesmo após sua condenação pela Igreja Católica, os Títulos expressavam a apropriação do espaço autóctone pela Coroa de Castela, ao passo em que reforçava e corroborava a posse das terras dos pueblos pelos nativos. Contraditórios e reflexos de um passado remendado e fragmentado, em que remissões ao mundo pré-hispânico e ao cristão são constantemente (re)alinhadas, os Títulos indicam que “Muitos encontraram meios de ‘contornar’, assumir e reinterpretar a esgarçadura da Conquista, incorporando as 54

instituições, as estruturas, os cargos e os esquemas instalados pela dominação colonial”42. Essa mesma perspectiva podemos encontrar nos trabalhos do historiador Guillaume Boccara, estudioso dos Mapuche do Chile, que entende uma lógica mestiça como elemento que permeia a história colonial do continente americano. Todavia, não credita aos indígenas o papel de meros espectadores dessa nova história, iniciada com o choque da conquista. Afirma, do contrário, que seu dinamismo e abertura cultural lhes permitiu tirar proveito das contradições e debilidades do sistema colonial e tomar o curso dos acontecimentos. Para tanto, “Utilizaron la misión y otras instituciones de control para sus propios fines, manejaron a su favor los antagonismos que existían entre los distintos actores imperialistas o coloniales, y fueron creando espacios de intermediación y de negociación”43. Nos domínios lusitanos de além-mar diversas formas de resistência44 também estiveram presentes, desde os momentos posteriores à chegada dos europeus. Na Capitania do Rio Grande, objeto de análise neste estudo, a cada passo dado pelos conquistadores revelavam-se reações adversas e, por vezes, de passividade e acomodação por parte dos nativos. Compreendemos melhor esse esquema explicativo se encararmos a ocidentalização enquanto um processo gradativo, cujos resultados dependem do maior ou menor grau de aceitação ou incorporação, pelos indígenas, da idéia de coexistir com um território colonial construído sobre seus antigos habitats. Ainda mais, como um processo historicamente marcado por tentativas de natureza diversa com o objetivo essencial de integrar os espaços situados na porção norte da colônia portuguesa na América – como a donataria do Rio Grande – à ordem ocidental45. Não compartilhamos da idéia, todavia, de que a ocidentalização tenha transmigrado os valores da cultura ocidental – e bem assim, suas instituições – de maneira incólume para o Novo Mundo. Mas, sim, que o Ocidente foi construído, nas terras situadas no ultramar, através de mestiçagens provenientes de um dado momento histórico de encontros interculturais entre povos de quatro partes do mundo, nos séculos XVI, XVII e XVIII. A observação de diferentes acontecimentos ligados ao alargamento das fronteiras coloniais, através da historiografia clássica potiguar46, permite-nos distinguir três momentos bastante nítidos do processo de ocidentalização na Capitania do Rio Grande. Correspondendo, grosso modo, aos três primeiros séculos de colonização, esses momentos históricos podem ser definidos como o de prospecções (século XVI), o de experimentos (século XVII) e o de consolidação do Ocidente (século XVIII).

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1.5 Capitania do Rio Grande: prospecções No século XVI a ocupação colonial das terras que viriam a formar a Capitania do Rio Grande confunde-se com a própria conquista da nova possessão de Portugal no ultramar. O imaginário dos europeus acerca dessa colônia, nos primeiros tempos do Quinhentos, foi marcado fortemente pela idéia de que as novas terras se constituiriam enquanto um paraíso na terra, um novo Jardim do Éden, como encontra-se grafado na narrativa epistolar de Caminha47. O paraíso nos trópicos assinalado por Caminha não muito tarde estaria povoando o imaginário europeu com outros sentidos: o hábito nativo de andar nu, por exemplo, despertou os olhares dos viajantes do Velho Mundo, que viam na intimidade um grande tabu. A partir do fim do século XVI as crônicas escritas sobre a América Portuguesa qualificariam os indígenas como luxuriosos e pecadores, até mesmo por manterem relacionamentos intrafamiliares – incestuosos, para a moral ocidental. Alie-se a aversão às práticas antropofágicas dos índios do litoral, rotulados como verdadeiros canibais e seres sedentos de sangue48. A consciência cristã parecia abalada com as notícias chegadas à Europa sobre os costumes dos nativos, que não mais eram vistos em inocência e simplicidade, mas, como as formas mais grotescas possíveis de humanidade, dada sua predisposição natural à luxúria e ao canibalismo. O paraíso tropical mais parecia, agora, um inferno verde e essa visão religiosa que oscilava entre o bem e o mal caracterizaria os escritos sobre os povos indígenas nos séculos posteriores.49 A historiadora Laura de Mello e Souza demonstrou, a propósito, em seu estudo sobre as práticas de feitiçaria e religiosidade popular coloniais na América Portuguesa, como os relatos europeus fariam com que o imaginário do Velho Mundo oscilasse, nos primeiros séculos da colonização, entre considerar as novas terras cheias de figurações do Éden ou do Inferno. Para a autora, A infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno se alternavam no horizonte do colonizador, passando paulatinamente a integrar, também o universo dos colonos e dando ainda espaço para que, entre eles, se imiscuísse o Purgatório. Durante todo o processo de colonização, desenvolveu-se pois uma justificação ideológica ancorada na Fé e na sua negação, utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório.50

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Daí a razão para que, com a complexificação do sistema colonial nas fímbrias das terras portuguesas na América, índios, negros e, posteriormente, colonos tenham sido identificados com imagens edênicas ou demoníacas oriundas dos discursos dos viajantes e exploradores, mediados pelas idéias religiosas da época. Laura de Mello e Souza nos adverte, ainda, para o fato de que tais construções imagéticas não devem ser dissociadas do contexto global do fim da Idade Média e início dos tempos modernos, caracterizado pelo abandono – na Europa – do trabalho servil (de base feudal) e adoção do trabalho assalariado, enquanto que nas colônias se alastrava o trabalho escravo. Para ela, “(...) a visão paradisíaca foi, neste momento histórico, instrumentalizada pelas camadas dirigentes, convertendo-se em chamariz de gente e em elemento constitutivo da ideologia colonizadora. Povoar a colônia significava, também, purgar a metrópole: não apenas dos elementos humanos ‘doentes’ mas ainda das formas de exploração compulsória do trabalho(...)”51. Os espaços que posteriormente comporiam a Capitania do Rio Grande, desde as primeiras tentativas de exploração, demonstraram refletir uma natureza e uma humanidade hostil e selvagem, pelo menos, para os lusos52. Evidência disso é o insucesso da expedição exploradora que saiu de Lisboa em 1501, que tinha o destino de adentrar pelas terras que Cabral comunicara a D. Manuel em sua carta no ano anterior. Contando com a participação de André Gonçalves e Gaspar de Lemos e do cosmógrafo italiano Américo Vespúcio, as três caravelas aportaram a 5º ao sul da Linha do Equador, num ponto que foi batizado de Cabo de São Roque. Aí observaram a presença de nativos e tomaram “posse do país em nome deste sereníssimo Rei de Portugal”.53 O ritual de tomada de posse, que reafirmava a superioridade do Ocidente e sua primazia com relação ao domínio das novas terras, foi marcado pela aposição de um marco de pedra lioz54 – rocha branca e calcária – no Cabo de São Roque. Tomada de posse que seguia o ritual padrão55 de espanhóis e portugueses e ratificava o domínio da Coroa de Portugal sobre a Terra de Vera Cruz. A primeira reação de Américo Vespúcio sobre os nativos encontrados foi de receio frente a sua atitude de não se apresentarem aos europeus, como se depreende do trecho de uma de suas cartas, narrando os acontecimentos do dia 08 de agosto de 1501: (...) e porque tínhamos grande necessidade de água e lenha, nos resolvemos, no dia seguinte, a tornar à terra para fazermos o nosso provimento. Estando, pois ali, vimos alguma gente no cume de um monte, a qual olhava para nós sem ousar descer abaixo. Estavam todos nus, e eram da mesma cor e feição dos anteriores [ anteriormente vistos ], e por mais diligências que fizemos para que descessem e nos viessem falar, nunca os podemos resolver a isso, não se querendo fiar de nós pelo que, vendo a sua obstinação, e sendo já tarde, tornamos para os navios, deixando-lhes em terra muitos cascavéis, espelhos e outras quinquilharias. Assim que

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nos afastamos pelo mar dentro desceram do monte, pelo que lhes tínhamos deixado, ficando muito maravilhados de tudo o que viam; e assim neste dia não nos provemos senão de água.56

A apreensão não duraria muito. Face ao maravilhamento dos naturais com os presentes deixados na terra, e atendendo a acenos destes, que se encontravam reunidos no dia seguinte (09 de agosto) próximos à praia, dois dos marujos da expedição decidiram ir ao seu encontro, levando fazendas e em busca de encontrar riquezas, especiarias ou drogas. Quatro dias depois, para o terror dos que estavam a bordo, um dos marinheiros que havia ido à terra para averiguar a situação dos companheiros foi cercado por várias índias em um círculo e morto com uma bordoada, sendo, logo em seguida, despedaçado, assado e comido. A expedição singraria dali em direção a outros pontos do território, nomeando-os, também, em função do nome do santo do dia, porém, com a lembrança do mau selvagem57 e de um inferno verde na memória. Do relato desta expedição a el-rei surgiria a primeira representação cartográfica conhecida do Novo Mundo com uma referência a um ponto que, mais tarde, viria a compor o território da Capitania do Rio Grande. Trata-se do planisfério português, anônimo, datado de 1502 e conhecido como “Mapa de Cantino”. Atualmente conservado na Biblioteca de Modena, na Itália, essa representação do globo está dotada de muita importância para a compreensão da primeira fase de ocidentalização promovida pela Península Ibérica. Isto porque, conforme entende Luís Jorge Semedo de Matos, esse mapa “reflecte o conhecimento geográfico português, num dos seus momentos mais decisivos, pouco tempo depois das viagens de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e João da Nova”58, ao que acrescentaríamos a expedição de 1501. O fragmento que apresentamos abaixo traz, no alto e à esquerda, a representação das ilhas de domínio castelhano, vizinhas ao Oceanus occidentalis, e, abaixo, os contornos do que seria, decorridos alguns anos, chamado de Brasil. À direita encontra-se a representação da África e da Europa. Na parte que correspondia à Terra de Santa Cruz, podemos perceber o destaque para o Cabo de São Roque (no mapa, São Jorge) demarcado por uma bandeira, certamente, indicando a presença do marco de pedra. No detalhe ainda aparecem as sinalações do Rio São Francisco, da Bahia de Todos os Santos e de Porto Seguro, este último, também demarcado por uma bandeira indicativa da posse lusitana. O mapa abaixo (Figura 03) e o seu detalhe (Figura 04) indicam o que acabamos de exprimir:

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Figura 03 Fragment du planisphère envoyé de Lisbonne à Hercule d’Este Duc de Ferrare avant le 19 novembre 1502 par Alberto Cantino - Biblioteca Estense à Modène, Itália

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(2) (3) (4)

Figura 04 Detalhe do mapa anterior, de 1502, com ênfase no Cabo de São Jorge (1), Rio de São Francisco (2), Baía de Todos os Santos (3) e Porto Seguro (4)

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Nos anos seguintes à aposição do marco de pedra no Cabo de São Roque a Terra de Santa Cruz presenciou mais uma expedição exploradora (1503) e duas expedições guardacostas (1516 e 1526), enquanto a costa foi pontilhada por feitorias59, responsáveis por atividades que não iam além da comercialização dos produtos naturais, sobretudo, o escambo do pau-brasil com os nativos. Esse primeiro contato dos europeus com a possibilidade de lucros no Novo Mundo, ligado a um movimento mais amplo de harmonia da colonização com os mecanismos da exploração monopolista no ultramar, foi puramente “predatório”, nas palavras de Fernando Novais60. Trata-se de um momento histórico em que, conforme a asserção do historiador Harold B. Johnson, os lusos aplicaram um dos padrões básicos de império desenvolvidos no Atlântico Sul: o de comércio sem colonização, posto em prática anteriormente ao longo do litoral africano, que tem seu modelo inspirado no sistema de feitorias realizado no Mediterrâneo no fim do Medievo61. Isto se deve ao fato da metrópole lusitana, nos primeiros trinta anos do século XVI, estar colhendo poderosos lucros no comércio com as especiarias orientais e na exploração do litoral africano – sobretudo do seu ouro62. O enfraquecimento desse comércio no Oriente e no litoral africano, mais a constante pressão francesa63 no Novo Mundo teve como resultado a premência de se conquistar efetivamente as terras do além-mar. Dessa vez, não adotando o padrão desenvolvido na costa africana, mas, pondo em prática a experiência vivida em ilhas do Atlântico como Cabo Verde, Madeira e mesmo nos Açores: o entendimento de que as terras encontradas por Cabral eram juridicamente consideradas extensões do reino, devendo ser concedidas a fidalgos pelo rei – tal como acontecia na península – e colonizadas por imigrantes portugueses através de um sistema de colonização herdado da Reconquista medieval64. Esse entendimento, na prática, correspondeu à implantação do conhecido sistema de Capitanias Hereditárias65. Esse sistema consistiu na repartição do vasto território colonial em quinze capitanias, que foram, através de doação real, concedidas a representantes da pequena nobreza – um grupo de doze capitães-mores, desde aqueles soldados com experiência no Oriente, como Duarte Coelho, até humanistas como João de Barros –, com a finalidade de serem colonizadas por intermédio do investimento privado. Os territórios das capitanias eram representados a partir de linhas demarcatórias paralelas que tinham como limite leste o Atlântico e oeste a Linha (imaginária) de Tordesilhas, como demonstra o mapa elaborado pelo historiador Harold B. Johnson (Figura 05).

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Figura 05 As capitanias do Brasil no século XVI

A observação desse mapa nos mostra que o quinhão que tocou ao já citado João de Barros – Feitor da Casa da Mina e da Índia – e a Aires da Cunha66 constituía-se enquanto um dos maiores lotes do ponto de vista territorial: a Capitania do Rio Grande, com cem léguas de 61

extensão, cujo topônimo remetia ao nome do rio que desembocava no Atlântico, o Potengi. Seu limite sul era a Baía da Traição, divisa com a Capitania de Itamaracá, estendendo-se rumo a norte até o rio Jaguaribe (hoje, no Ceará), conforme afirmam os historiadores Luís Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz67. Ainda é ponto de controvérsias, na historiografia norte-rio-grandense, o limite norte da Capitania do Rio Grande, sendo unânime a afirmação de sua extensão, rumo a oeste, por territórios que hoje correspondem ao Ceará, Piauí e Maranhão68. A historiografia clássica aponta, pelo menos, duas tentativas de colonização da Capitania do Rio Grande, financiadas, em parte, por el-rei. A primeira, de 1535, em que estiveram associados João de Barros e Aires da Cunha mais o também donatário Fernando Álvares. A expedição69 – comandada por Aires da Cunha e com a presença de dois filhos de João de Barros (Jerônimo e João de Barros) e de um delegado de confiança de Fernando Álvares – era formada de dez navios, com novecentos homens. Saindo de Pernambuco pela costa, logo depois do Cabo de São Roque foi dispersada por um temporal, indo os tripulantes parar em territórios que hoje correspondem ao Maranhão70. A segunda tentativa deu-se aproximadamente em 1555, encabeçada pelos dois filhos de João de Barros acima referidos, mas, também, malogrou em face da oposição dos Potiguara71. As tentativas frustradas pela resistência dos nativos aliados aos franceses e a morte de João de Barros em 1570 concorreram para que a donataria fosse, após essa data, revertida para a Coroa, tornando-se, efetivamente, capitania real. A devolução da capitania a El-rei teve como recompensa para os herdeiros de João de Barros o recebimento de 150$000 de tença (pensão), por mercê real de 21 de junho de 1582, com direito de deixar em testamento até 30$000. A mercê, concedida por Filipe II de Espanha – naquele momento, rei de Portugal – foi dirigida ao filho Jerônimo de Barros. É provável que à concessão da tença corresponda a reversão definitiva das terras do Rio Grande.72 Isso explica o porquê de, no mapa das Capitanias Hereditárias confeccionado por Luís Teixeira – cuja produção deu-se entre as duas últimas décadas do século XVI73 – ainda figurar o nome de João de Barros, mesmo depois de sua morte (ver Figura 06).

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Figura 06 Mapa das Capitanias Hereditárias, de Luís Teixeira (ca. 1586) - Biblioteca da Ajuda, Portugal

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O mapa de Luís Teixeira, longe de representar apenas a cartografia dos domínios lusitanos na América, ilustrada com riqueza de detalhes nos pontos até então conhecidos na costa, determinava à distante metrópole o imperativo da colonização das áreas ainda não ocidentalizadas pelo aparelho colonial português. O fato é que, quando da produção desse mapa, a Ibéria já era palco de mudanças na estrutura administrativa das duas coroas: por motivo de problemas de sucessão em Portugal, ambas as nações estavam sob o manto da dinastia espanhola dos Habsburgos, num período que durou de 1580 a 164074. Do outro lado do Atlântico, no antigo lote de terra doado a João de Barros, corsários franceses mantinham uma política de alianças com os Potiguara, mediante o escambo. Mercadorias trazidas da Europa eram constantemente trocadas por pau-brasil, essências vegetais, plantas medicinais, algodão, minérios, pedras preciosas, penas de pássaro, âmbar, peles de onça e animais como sagüis, macacos e papagaios, operação que se realizava nas desembocaduras dos rios Pititinga (Punaú), Ceará-Mirim, Pirangi (Porto dos Búzios) e Potengi e nas enseadas de Tabatinga e de Aratipicaba (Baía Formosa)75. Potengi, Tabatinga e Aratipicaba eram espaços de longa convivência dos franceses, como demonstra o mapa concebido pelo cartógrafo normando Jacques de Vaulx, de Claye, datado de 1579. A carta, que foi elaborada em Dieppe, representa o atual litoral do Nordeste, estendendo-se do rio Real (Bahia) ao Maranhão. O litoral que corresponde, nos dias de hoje, ao Rio Grande do Norte, está circundado por uma meia esfera, tendo como limite norte a Baía de São Domingos (rio Paraíba) e sul o rio do Parcel (atual rio Acaraú, no Ceará). Nele estão representados desaguadouros de rios, montes, baixios e baías, com a respectiva indicação de qual produto embarcava para a França, por meio dos navios que aí aportavam. Não somente os aspectos físicos emergem da representação de Jacques de Vaulx, mas, também, uma geografia da alteridade. Imagens de índios, junto a arvoredos e serras, preenchem os espaços vazios da costa76, inclusive servindo de baliza para a indicação de pontos de embarque/desembarque de naus francesas, como podemos observar na Figura 07. O cartógrafo aponta, pelo menos, a localização de três aldeias indígenas. Uma no litoral, chamada de Random, que Olavo de Medeiros Filho acredita tratar-se, dada a equivalência geográfica, da antiga aldeia seiscentista de Papari, habitada por índios Potiguara. As outras duas, Tarara Ouasou e Ouratiaume, situadas no interior da capitania, seriam povoadas por nativos Tarairiu77. Corroborando a tendência dualista, ocidental, de representar o nativo enquanto bom ou mau selvagem, a pena do cartógrafo não deixou de detalhar um momento antropofágico, que simboliza a primeira representação iconográfica, conhecida, dos índios que

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habitavam o sertão da Capitania do Rio Grande78 (ver, nas Figuras 08 e 09, detalhes do mapa anterior com a imagem das aldeias e do canibalismo).

Figura 07 Partie de la Guyane et littoral du Brésil depuis la Guyane jusqu’au Rio real, de Jacques de Vaulx (1579) Seção Cartes et Plants, Biblioteca Nacional de Paris, Cód. Rés. Ge D 13871

Figura 08 Detalhe do mapa anterior com a representação das aldeias

Figura 09 Detalhe do mapa anterior com a representação do momento antropofágico

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Não seria muita coincidência o fato de, ao lado da gravura do ritual antropofágico, aparecer um trecho escrito afirmando que dessa região seriam utilizados dez mil selvagens para desferir guerra aos portugueses, por serem estes nativos mais ousados que os do litoral79 – agressividade que seria um dos distintivos dos índios que habitavam o vasto interior do norte colonial nas representações de cronistas e missionários a partir do Quinhentos80. Essa agressividade dos nativos, aliada à pertinácia dos franceses, devia preocupar as autoridades reinóis na Ibéria. A existência do mapa de 1579, por outro lado, deixava bem claro que os franceses tinham conhecimento da costa e, quiçá, do interior, mantendo pacto com os grupos indígenas que habitavam esses dois espaços. Informou, a propósito, o frei Vicente do Salvador, que os franceses, além de tratar com os Potiguara, roubavam os navios que iam e vinham de Portugal, tomando-lhes os tripulantes e as fazendas, “vendendo-os aos gentios para que as comessem” 81. A preocupação com a situação traçada no parágrafo anterior estimulou Filipe II, monarca das duas coroas ibéricas, a encaminhar expedientes82 ao Governador-Geral do Brasil, D. Francisco de Souza e ao capitão-mor de Pernambuco, para que fosse ao Rio Grande, lá construísse uma fortaleza e erguesse uma povoação83 este último, subsidiado pelo primeiro, a fim de que o domínio lusitano ficasse assegurado no norte colonial84. Para custear o empreendimento, o governador-geral colocou à disposição de Manuel de Mascarenhas Homem, capitão-mor de Pernambuco, o saldo dos dízimos reais, os direitos sobre a saída de açúcar, a sisa dos escravos vindos da África, doze mil cruzados tomados a uma nau da Índia que aportara na Bahia e todo o dinheiro recolhido do cofre dos defuntos e ausentes (quase nove contos de réis)85. O germe da expedição de conquista ao Rio Grande, portanto, deu-se ainda na sede do governo-geral, na Bahia, nos fins de 1597, indo somar-se aos recursos humanos e bélicos da Capitania de Pernambuco e posteriormente da Paraíba, esta, governada por Feliciano Coelho de Carvalho. Na cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves a força-tarefa foi dividida em duas unidades no avanço rumo ao norte. Uma esquadra dirigiu-se por mar, sob a chefia de Mascarenhas Homem, composta de catorze embarcações a vela e quatrocentos homens. Outra, por terra, formada por companhias de infantaria e cavalaria comandadas por Feliciano Coelho e composta de trezentos homens de espingarda, cinqüenta de cavalo, novecentos índios flecheiros e escravos originários da Guiné com o intuito de carregar as munições e apetrechos de guerra. Esta última, que partiu da Paraíba em 17 de dezembro de 1597, não duraria muitos dias de pé: a febre, dor no corpo, vômito e lesões na pele provocadas pela varíola, que infectara grande parte e matara outro tanto dos expedicionários, obrigou Feliciano 66

Coelho a regressar. A companhia sob a direção de Jerônimo de Albuquerque, integrante da frente expedicionária que ia por terra, não retornou para a Paraíba e, em um porto intermediário86, seguiu em um caravelão com destino ao Rio Grande, juntando-se, dias depois, às forças de Mascarenhas Homem. Estas veriam as dunas da antiga capitania de João de Barros na manhã do dia de Natal de 1597, quando ancoraram na barra do Rio Grande87. No dia seguinte, em terra firme, após tomarem posse da capitania, construíram uma trincheira com varas de mangue para proteção, temendo a investida dos Potiguara88. Obtido o refúgio no mangue cortado das proximidades e por ordem do general da conquista, Mascarenhas Homem, as tropas iniciaram a construção da fortaleza, cumprindo a determinação real, no dia 06 de janeiro de 1598. O início das obras foi principiado na praia, em pau-a-pique, com varas, barreado com lama do mangue. Segundo o costume, lavrou-se o competente auto, que não chegou ao nosso conhecimento. Arvorou-se a cruz sob as salvas da artilharia, hasteou-se a bandeira com as armas reais, celebrou-se o santo sacrifício da missa e um dos sacerdotes presentes deu a bênção litúrgica89.

Por esse mesmo tempo, dez a doze dias da chegada na foz do Rio Grande, a paliçada de Mascarenhas Homem e de seus subordinados foi atacada por dois mil flecheiros Potiguara, sob o comando do principal Mar Grande, auxiliados por cinqüenta franceses, alguns dos quais casados com índias. No combate, acontecido na praia, os Potiguara foram repelidos, ficando encarcerado o principal Mar Grande. O local da prisão era, provavelmente, o arraial formado nas proximidades da embocadura do Rio Grande, onde ficaram alojadas as tropas da conquista durante o período de construção da fortaleza. Esse arraial, conforme a asserção de Olavo de Medeiros Filho, ficava situado onde hoje existe o Círculo Militar de Natal e era formado de casas circundando uma capela e um padrão confeccionado em arenito. Presente numa iconografia portuguesa de 1609, esse padrão de pedra ainda persistia por ocasião da invasão holandesa de 163390. Essa gravura de 1609, atribuída a Diogo de Campo Moreno, ressalta através de suas linhas a gradativa instalação de marcos ocidentais nos terrenos habitados pelos Potiguara: a fortaleza, o arraial referendado acima, a cidade do Natal e os diversos portos e locais onde se jogavam rede para a atividade da pesca. Marcos que se misturam, na gravura manuscrita, ao rio (Potengi), aos recifes, às dunas e às ondas do mar (Figura 10).

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Figura 10 “Prespectiva da fortaleza da Barra do Rio grande”. Destaque para o rio Potengi (1), a Cidade do Natal (2), o antigo Arraial (3) e a Fortaleza dos Santos Reis (4)

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Os primeiros dias de 1598, portanto, se configuravam como de tensão e de temor para os construtores da fortaleza, dada a constatação de que, mesmo com a vitória frente aos flecheiros no início do ano, não seriam somente aqueles os nativos a habitar naquelas praias e mesmo nas margens do rio. Entretanto, esses construtores foram assistidos pelas tropas de Feliciano Coelho, reintegradas, e que novamente entraram em cena para o auxílio de Mascarenhas Homem no cumprimento dos ditames régios envolvendo a posse efetiva do litoral. Tais tropas, constituídas de trezentos e cinqüenta flecheiros (com seus principais), uma companhia de cavalaria (com vinte e quatro homens) e duas de infantaria (com trinta arcabuzeiros, cada uma), saíram da Paraíba em março e em abril já divisavam o Rio Grande91. Contribuiriam para o fortalecimento da segurança no arraial e, também, no encurtamento das obras da fortificação, que, dessa forma, ficou minimamente acabada – de taipa e situada na praia, ou seja, em lugar distinto de onde hoje se encontra a fortaleza – e em estado de defensão no dia 24 de junho de 1598. Nessa ocasião, Mascarenhas Homem delegou a João Rodrigues Colaço as obrigações de capitão-mor da fortaleza e a Jerônimo de Albuquerque de seu preposto e administrador das obras, considerando que a projeção era de se construir em alvenaria aquele lugar fortificado. Logo após, junto com Feliciano Coelho, seguiu aquele para a sede da capitania de Pernambuco e este para a da Paraíba, a fim de assumirem suas funções corriqueiras92. Mascarenhas Homem retornaria, ainda, ao rio Grande, na condição de general da conquista, para supervisionar as obras em andamento, em duas ocasiões. A primeira, em 09 de janeiro de 1600, quando doou a primeira sesmaria conhecida na Capitania do Rio Grande, ao capitãomor João Rodrigues Colaço, com extensão de 2.500 braças ao longo do rio Potengi93. A segunda, no final de 1601, quando, alertado por Feliciano Coelho sobre a insistência de grupos Potiguara no ataque aos colonos na capitania do Rio Grande, ali esteve novamente, quando “fez longo discurso aos seus homens, encorajando-os contra os infiéis e recomendou que todos se confessassem e comungassem no dia seguinte”94. Antes disso, os padres Francisco de Lemos e Gaspar de Samperes, jesuítas, haviam obrado as pazes com os Potiguara, consideradas necessárias para o empreendimento da catequese e, porque não dizer, da conquista efetiva do território – obra para a qual foi de imprescindível valia o concurso do mameluco Jerônimo de Albuquerque, integrante da expedição de Mascarenhas Homem. Valendo-se da influência do principal Mar Grande – a que nos referimos acima, agora, simpático à causa portuguesa – e do conhecimento da língua tupi de que dispunham, lentamente chegaram-se aos Potiguara homiziados pelos mangues e 69

cajuais das proximidades do rio Potengi. Após diálogos, desditas e vitórias, conseguiram celebrar concórdia com os nativos, na pessoa do principal Potiguaçu – nome indígena que designava o Camarão Grande, que governava os nativos da costa – compromissando-se estes últimos a abandonar o hábito de comer carne humana e de guerrear com os lusos. Essas pazes, que também tiveram como interlocutores os índios da Serra da Copaoba, situada entre as capitanias de Pernambuco e do Rio Grande, foram celebradas oficialmente em Filipéia de Nossa Senhora das Neves no dia 11 de junho de 1599. Estavam presentes, além de autoridades coloniais – como o capitão-mor Mascarenhas Homem – e religiosas, a exemplo do Padre Francisco Pinto (da Companhia de Jesus) e do franciscano Bernardino das Neves, ambos intérpretes, os chefes indígenas Pau Seco, Braço-de-Peixe, Braço Preto e Pedra Verde95. As pazes, embora não tenham sido o ponto final nas diferenças entre portugueses e nativos, ensejou a execução da parte restante do mandado de Filipe II: a ereção de uma povoação. Esta foi demarcada96 a cerca de meia légua da fortaleza, num terreno alto e firme, que, para Câmara Cascudo seria a atual Praça André de Albuquerque97 e, para Hélio Galvão, estaria compreendida num retângulo tendo como limites as atuais ruas Ulisses Caldas (norte) e Apodi (sul), Avenida Rio Branco (leste) e o próprio Rio Potengi (oeste)98. Inicialmente chamada de Cidade de Santiago e posteriormente de Cidade dos Reis, o nome Cidade do Natal já era usado em1614, quando se procedeu à lavratura do auto de repartição das terras do Rio Grande, motivado pela informação de que o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque havia doado sesmaria com limites exorbitantes a seus filhos, no vale do Cunhaú. O historiador Olavo de Medeiros Filho credita a origem do topônimo Santiago ao fato de serem São Filipe e São Tiago os padroeiros da Espanha, razão que levara a cidade fundada em 1585, nas proximidades do rio Paraíba, a ter sido chamada de Filipéia de Nossa Senhora das Neves. O que hoje conhecemos como Natal teria sido denominada no mesmo rastro, homenageando o outro padroeiro da Espanha, o que leva a se imaginar que a data de sua fundação tenha sido 25 de julho de 1599. Com relação ao topônimo Cidade dos Reis, Olavo de Medeiros Filho supõe que tenha sido em memória do dia de início da construção da fortaleza (1598) ou mesmo da data em que Mascarenhas Homem concedeu a primeira sesmaria (1600), destinada a João Rodrigues Colaço. E, no que se refere a Natal, crê que o nome que se perpetua até hoje tenha seu ponto de partida na rememoração do dia em que as embarcações chefiadas por Mascarenhas Homem adentraram no rio Potengi (1597) ou mesmo porque a delimitação para o sítio da cidade tenha se dado no dia de Natal do ano de 159999.

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1.6 Rio Grande: mestiçagens e mediações A narrativa que sintetizamos nas linhas anteriores, relacionada à conquista do litoral da capitania, é lugar-comum na literatura produzida sobre a história do Rio Grande do Norte. Essa versão do processo que originou o território da Capitania do Rio Grande, assim, emerge da historiografia clássica e dos estudos revisionistas100 como uma espécie de relato a lembrar e eternizar a conquista das terras banhadas pelo rio Potengi pelos portugueses e lusobrasílicos. Essa literatura, que se espelhou, principalmente, no testemunho dos cronistas coloniais, acabou reproduzindo o sentimento de superioridade tão caro ao Ocidente – sobre o qual discorremos na primeira parte deste capítulo – e servindo de base para a historiografia acadêmica surgida no Rio Grande do Norte101 acerca das questões envolvendo o período que vai do século XVI ao XVIII. A seqüência de acontecimentos que cobrem o século XVI, da alvorada ao seu crepúsculo, observada pela lente da historiografia clássica, permite-nos encará-la como constitutiva da dinâmica da colonização. Dinâmica esta que tinha como sentido precípuo o de natureza fundamentalmente comercial, isto é, a produção para o mercado externo a partir dos produtos tropicais e metais fornecidos pelas colônias102. Não será enfadonho lembrar que dois marujos que acompanhavam Américo Vespúcio no distante 1501, navegando pelas costas do que hoje é o Rio Grande do Norte, decidiram seguir rumo à terra firme em busca de “alguma riqueza ou especiaria, ou outras drogas” – ali mesmo encontraram a morte e foram moqueados pelos nativos, provavelmente pertencentes ao tronco lingüístico Tupi103. Pouco mais de trinta anos depois, a expedição administrada por Aires da Cunha (1535) com vistas a ocupar a capitania de João de Barros, livrando-a dos corsários franceses, foi objeto de questionamento, em Lisboa, por parte do embaixador do rei espanhol Carlos V, Luís Sarmiento. Julgava o embaixador que o grande aparato militar da esquadra de Aires da Cunha não se resumia a uma expedição de caráter privado – por mais que contasse com o apoio de el-rei – apenas com o desejo de conquista do litoral norte das terras de além-mar. Acreditava que essa esquadra, das particulares a maior que zarpara do Tejo até então, tinha como destino final a busca de ouro no Peru, por meio do rio Amazonas, ao que foi negado veemente por D. João III104. Não conformado com a negativa do rei, e sabedor dos desastrosos resultados das forças de Aires da Cunha, Sarmiento escreveu a Carlos V em 1536, denunciando o interesse em alcançar o Peru pelo Amazonas105.

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Os dois trechos citados acima expõem, portanto, a tentativa de incluir os domínios lusitanos de além-mar no circuito da economia européia, aproveitando o seu potencial enquanto complementar ao frutuoso comércio com o Oriente. Os sonhos de João de Barros e Aires da Cunha, donatários do Rio Grande, de tirar proveito da concessão real, entretanto, malogram em função da oposição dos Potiguara conjuntamente com os franceses. Revertida à Coroa após a morte de João de Barros (1570), somente no contexto da política expansionista filipina seria de fato (re)conquistada106. A construção de uma fortaleza cujos patronos eram os Reis Magos – a princípio, de taipa e depois erguida em alvenaria – e de uma cidade aceleraram o processo de ocupação da terra pelos colonos luso-brasileiros, na medida em que representavam pilares da administração lusitana que ia, paulatinamente, se instalando nas terras habitadas pelos Potiguara. A partir da cidade107 surgida a meia légua da fortaleza, o empreendimento da colonização tomaria seus rumos, seguindo o caminho natural dos cursos d’água a partir do Seiscentos: alastrando-se para oeste, mormente para o leito e as ribanceiras dos rios Potengi e do Jundiaí; para norte, rumo ao vale do rio Ceará-Mirim e para sul, acompanhando a costa, orientando-se pelos caminhos conhecidos que levavam às capitanias da Paraíba e Pernambuco. A historiografia costuma apontar apenas dois pontos em que a atividade açucareira gerou bons frutos nos solos do Rio Grande: no Engenho Potengi, posteriormente Ferreiro Torto, na várzea do Jundiaí e no Engenho Cunhaú, de propriedade dos descendentes de Jerônimo de Albuquerque, situado na várzea do Cunhaú108. Nos outros pontos da capitania, atingidos pela ocidentalização até o prelúdio do século XVII, vivia-se da agricultura, da caça, da pesca e da criação de gado109. Longe de representar apenas um empreendimento econômico, a ocidentalização representou um processo de (re)conhecimento do outro, na medida em que, do século XVI em diante, por meio das navegações marítimas e do estabelecimento de colônias, pessoas dos quatro cantos do mundo – ou que nesses cantos tiveram experiências – passaram a se encontrar. É o caso do donatário Aires da Cunha, “soldado vitorioso na Índia” e que, das águas orientais, comandara posteriormente uma armada na patrulha de flibusteiros nas imediações dos Açores110. Poderíamos anotar, ainda, o nome do jesuíta Gaspar de Samperes, que, antes de professar os votos e adentrar na ordem inaciana, trabalhou na confecção de plantas cartográficas na Espanha (seu país de origem) e Portugal. Esse padre, inclusive, foi o autor da planta da construção da Fortaleza dos Reis Magos – em sua versão de taipa –, que foi aprimorada e construída de alvenaria pelas mãos e desenhos de outro arquiteto, o português Francisco Frias, a partir da década de 10 do século XVII. 72

Recuando no tempo até 1501, acreditamos que o contato trágico entre os tripulantes da expedição de Américo Vespúcio e os nativos da costa da futura Capitania do Rio Grande certamente irrompeu em um choque de temporalidades e de cosmogonias distintas entre o Ocidente e sua contraparte, agora conhecida no contexto da anexação das terras do além-mar ao império marítimo português111. Não podemos afirmar se tal choque também ocorreu no instante em que os franceses iniciaram seu convívio – clandestino, em relação aos portugueses – com os Potiguara. Podemos, todavia, assegurar que o relacionamento desses corsários com os nativos do Rio Grande foi marcado pela aliança contra os lusos, já que aos primeiros interessava o tráfico do pau-de-tinta e sua comercialização na Europa, reclamado pelo fato da França não aceitar a divisão do globo entre Portugal e Espanha. O historiador Tarcísio Medeiros assegura que, além de amplo conhecimento dos territórios nativos e da coabitação com alguns principais dos Potiguara, vários normandos e bretões geraram filhos nas índias: dado que nos leva a crer que as primeiras mestiçagens não se deram entre os portugueses e os nativos, mas, destes com os franceses112. Os piratas que se amalgamaram às nativas desempenharam, portanto, o papel de agentes mediadores, já que, nas circunstâncias da exploração irregular da costa à busca dos produtos tropicais, mantiveram um trânsito entre duas culturas – a ocidental e a indígena –, estreitando as fronteiras de dois mundos que, à primeira vista, poderiam parecer tão díspares e distantes. Esse estreitamento seria o terreno fértil para germinarem as alianças entre os que se encontravam na costa quando o branco dos caravelões foi avistado e os que, descontentes com um suposto testamento de Adão, passaram a comerciar nas áreas de domínio ibérico. Os contatos do mundo ocidental com a colônia portuguesa na América, durante a maior parte do século XVI, foram esporádicos e ocasionais. Não é vã, portanto, a opinião de frei Vicente do Salvador de que os portugueses eram negligentes, pois, “sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”113. Em que pese a resistência indígena ao modelo de colonização adotado pelos portugueses – num primeiro momento, especialmente nos engenhos, mas, também, na coleta do pau-de-tinta – e a insistência dos corsários franceses em se apoderarem do que os trópicos lhes ofereciam, passando por cima dos ditames de Tordesilhas, esse bordejamento pelo litoral explica o porquê de estarmos tratando de prospecções. Essa fase do processo de ocidentalização corresponde ao momento de conhecimento do litoral por meio de pequenas investidas, não se indo tão longe rumo a oeste, sempre com o receio dos Potiguara e dos franceses, porém, ao mesmo tempo, com interesse

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em constatar a geografia desse verde que suscitava a imaginação e, por outro lado, atemorizava os olhares com seus perigos e armadilhas. Enquanto outras capitanias prosperavam nos rincões da América Portuguesa, sobretudo com a instalação de núcleos populacionais em torno de engenhos de cana-deaçúcar, na donataria do Rio Grande o Ocidente apenas efetuava prospecções, promovendo varreduras por sobre a extensão do território conhecido. O resultado dessas buscas pelo conhecimento da geografia da colônia e mesmo sua efetiva ocupação geraram, na Europa, descrições não muito pormenorizadas ou superficiais sobre a Capitania do Rio Grande, seja na literatura, seja na cartografia quinhentista. A exceção a ser lembrada é com relação aos franceses, que puderam, graças à política de alianças perpetrada com os Potiguara, penetrar um pouco mais nas reservas naturais dos indígenas e, a julgar pelos dados que nos fornece o mapa de Jacques de Vaulx, de Claye, ter um contato mínimo com os que habitavam no interior da capitania. Essas prospecções encontram o seu termo durante o período filipino, quando os intentos expansionistas de Filipe II propiciam condições favoráveis para a montagem de uma estratégia visando assegurar o domínio ibérico no norte da colônia. A expedição de conquista de 1597, capitaneada por Mascarenhas Homem e contando com o beneplácito direto do rei e do governador-geral do Brasil, representa, por conseguinte, uma intervenção mais profunda e que consegue transformar a paisagem, dotando-a de dois monumentos: a fortaleza e a cidade. Monumentos que se traduzem em signos da administração colonial ibérica, que, paulatinamente, vão fincando raízes nos solos americanos e modificando as noções indígenas de tempo e de espaço: a fortaleza, como marco da administração militar; a cidade, enquanto marco de uma incipiente administração civil. Os finalmentes do século XVI marcam, também, as primeiras descrições mais detalhadas acerca da alteridade encontrada no Novo Mundo, pela pena de cronistas como Pero de Magalhães Gândavo, Gabriel Soares de Souza, frei Vicente do Salvador e Ambrósio Fernandes Brandão114. Por outro lado, o fim das prospecções pela costa induz ao estabelecimento de percursos menos distantes entre o Ocidente e os nativos do ponto de vista dos contatos. Lembramos da importância de Jerônimo de Albuquerque como preposto de Mascarenhas Homem nas obras de erguimento da fortaleza, considerando que, sendo mestiço – filho de Jerônimo de Albuquerque com a índia Maria do Arcoverde – o seu conhecimento sobre a língua e as peculiaridades indígenas lhe permitiram negociar e forjar laços com os Potiguara quando ainda resistiam. A permeabilidade dessas fronteiras culturais estaria mais presente, todavia, no momento em que a intermediação dos jesuítas possibilitou o estabelecimento de 74

pazes entre o projeto colonial ibérico e os índios descontentes. Mediação cultural que contribuiria, inclusive, para que o território colonial em construção cada vez mais se sobrepusesse aos territórios nativos: ao invés dos limites estabelecidos pela caça e pelas hostilidades entre os grupos indígenas, as fronteiras tendiam a se materializar em marcos da administração ibérica como a cidade, a fortaleza e a freguesia – referimo-nos à Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, que tem seus primórdios ligados à conquista do litoral e fundação da Cidade do Natal. A ocidentalização promovida pelos povos ibéricos, em direção ao interior da capitania, seria obstruída pela ocupação holandesa do norte colonial, no contexto das rivalidades entre potências européias. Nessa nova etapa da ocidentalização, os holandeses firmariam alianças com os grupos indígenas do interior, possibilitando uma experiência que revelaria para os olhos europeus representações iconográficas e das práticas culturais da outra alteridade indígena. Nas próximas páginas nos debruçaremos sobre essa experiência dos neerlandeses junto com as populações nativas do sertão, na tentativa de visibilizar a construção de uma determinada imagem do índio e dos seus territórios.

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Notas 1

Escrevendo a respeito da relação entre a destruição das torres gêmeas e os processos de mundialização, Jacques Le Goff nos lembra de que “Sendo os Estados Unidos a potência dominante da globalização atual, os atentados de 11 de setembro foram a resposta de grupos que se apresentam como os intérpretes de populações muçulmanas que entendem a globalização dominada pelos Estados Unidos como uma opressão”. O autor encara, assim, a atitude da Al Qaeda como uma resposta motivada por razões de ordem civilizacional e, principalmente, religiosa, já que a globalização levada a cabo pelos Estados Unidos acarreta “o maior dos males que pode sofrer uma sociedade: a recusa da tolerância” (LE GOFF, Jacques. Qual o impacto dos atentados sobre o processo de globalização? Veja, 26 dez. 2001, p. 158-60).

2

Estamos tomando civilização partindo da concepção discutida por BRAUDEL, Fernand. O espaço e a história no Mediterrâneo, p. 105-51, para quem as civilizações são realidades de longuíssima duração e solidamente enraizadas em seu espaço geográfico, constituindo-se em verdadeiros germes das futuras nações, entendendo esse processo como inscrito no âmbito da longa duração. 3

Luis Fernando Ayerbe classifica o atentado de 11 de setembro de 2001 – uma verdadeira invocação da religião como fonte inspiradora contra os Estados Unidos, símbolo máximo da ameaça à sobrevivência do modo de vida islâmico – como sendo parte do novo terrorismo, caracterizado por enorme número de vítimas fatais, alvos simbólicos, ataques suicidas e demora em assumir a autoria, não havendo um objetivo político preciso, do contrário, o engajamento em ações mortíferas feitas em nome de Deus e supostamente com sua bênção seriam a chave explicativa dos vários processos desencadeados. Diferentemente do velho terrorismo, onde grupos conhecidos como o Exército Republicano Irlandês (IRA), a Frente Popular para a Libertação da Palestina e as Brigadas Vermelhas não costumavam esconder o fato de praticarem atos de terror do restante da comunidade internacional (AYERBE, Luis Fernando. O Ocidente e o “resto”: A América Latina e o Caribe na cultura do Império, p. 40-1). 4

Os estudos pós-coloniais se constituem, conforme Sérgio Costa, em uma variedade de contribuições com orientações diversas, que têm como traço comum uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade, sobretudo as noções – e aplicações em pesquisas – de eurocentrismo, ocidentalização e globalização. O prefixo pós não indica apenas um depois na acepção cronológica do termo, mas, uma operação de ressignificação do campo discursivo: são pós-coloniais, portanto, relações que extrapolam os limites do colonialismo e remetem a situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais (COSTA, Sérgio. Muito além da diferença: (im)possibilidades de uma teoria social póscolonial. Cholonautas – Biblioteca Virtual, p. 1-28). Não é à toa que Orientalismo, de Edward Said, seja considerado um dos manifestos do pós-colonialismo. Aliás, os intelectuais que representam essa tendência, em sua maioria, são de origem oriental, a exemplo de Ranajit Guha, Homi Bhabha, Gayatri Spivak, Gyan Prakash, Achille Mbembe, Mani Lata, Ella Shohat, Arjun Appadurai e Partha Chatterjee (MACHADO, Igor José de Renó. O que é Pós-Colonialismo?, p. 5-6). 5

SAID, Edward. Entrevista concedida ao jornalista Carlos Graieb sobre os planos de George Bush com relação ao Oriente Médio. Veja, 25 jun. 2003. Verificar, para um melhor entendimento a respeito das práticas do Imperialismo e de sua relação com os diferentes padrões culturais envolvidos nas relações de dominação e subordinação, SAID, Edward. Cultura e imperialismo.

6

Essa demarcação de caráter bipartido é confirmada pela análise etimológica dos termos Oriente e Ocidente, na análise do sinólogo Mário Sproviero: “A palavra oriente vem do latim oriens, ‘o sol nascente’, de orior, orire, ‘surgir, tornar-se visível’, palavra da qual nos vem também ‘origem’. A palavra ocidente nos vem do latim occidens, ‘o sol poente’, de occ-cidete, de op, ‘embaixo etc’, e cadere, ‘cair’. Seríamos induzidos a seguinte analogia: da mesma maneira que o sol nasce no Oriente e morre no Ocidente, assim também a cultura nasce no Oriente e morre no Ocidente.” Para o autor, embora sejam incertas as origens dos termos Ásia e Europa, as evidências lingüísticas levam a crer que se tratem de sinônimos, respectivamente, de Oriente e Ocidente (SPROVIERO, Mário B. Oriente e Ocidente: demarcação, p. 2). 7

KNAUSS, Paulo. Imagem do espaço, imagem da história: a representação espacial da cidade do Rio de Janeiro. Tempo, v. 2, n. 3, p. 4.

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8

A opinião de René Guenón acerca das diversas realidades orientais e a construção de determinas imagens sobre elas pelo Ocidente pode ser aprofundada em GUENÓN, René. Oriente y Occidente [ 1924 ].

9

SPROVIERO, Mário B. Op. cit., p. 3-5.

10

Dentre as críticas que foram feitas à obra de Edward Said podemos anotar a de Manuela Delgado Leão Ramos, num estudo sobre Antonio Feijó e Camilo Pessanha tendo por base a literatura, tida pela autora como um dos mais eficientes filtros de imagens, discursos e conceitos sobre o outro. Manuela Ramos considera a posição de Said como de acepção negativa em relação ao orientalismo, que ela considera não apenas como sendo baseado numa relação de dominação intelectual e política, mas, também, numa intenção de conhecimento e entendimento mútuos. Enfatiza, portanto, um orientalismo positivo, ao abordar obras de escritores portugueses como Wenceslau de Morais e Eça de Queiroz (RAMOS, Manuela Delgado Leão. Antonio Feijó e Camilo Pessanha no panorama do orientalismo português. Lisboa: Fundação Oriente, 2001, apud TEÓFILO, Teresa. Identidade e reconhecimento: o outro chinês. Contributos para a o estudo da Comunidade Chinesa de Portimão, p. 11-3).

11

Para Teresa Teófilo, “Há quem afirme que os portugueses criaram o primeiro orientalismo europeu a partir do século XVI. (...) as navegações marítimas portuguesas permitiram a construção de um império, não só territorial, geográfico, comercial, mas também cultural e imagético: o Oriente Português. Do contacto com culturas tão diferentes como a Índia ou a China, resultou uma construção da visão do Outro ao longo dos séculos.” (Id., p. 10). 12

SAID, Edward. Estruturas e reestruturas orientalistas. In: Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, p. 121-205. O autor afirma, ainda, que quatro grandes correntes de pensamento determinam a presença do movimento de (re)estruturação do intelecto e das instituições orientais no século XVIII: a expansão geográfico-religiosa do Oriente; a capacidade de tratar historicamente com culturas não-européias e não judeucristãs; solidariedade na identificação seletiva com regiões e culturas; as classificações da humanidade por cristérios (cor, raça, origem, por exemplo) que não as de ordem religiosa. 13

COSTA, Sérgio. Muito além da diferença: (im)possibilidades de uma teoria social pós-colonial, p. 3-4.

14

TEÓFILO, Teresa. Op. cit., p. 9.

15

Sobre o imperialismo francês e inglês no século XIX e início do século XX, sobretudo suas conseqüências e desdobramentos na Primeira Grande Guerra, observar HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios – 1875-1914.

16

SAID, Edward. Op. cit., p. 13-39. As duas situações que citamos no início desse texto – a do 11 de Setembro e a da invasão do Iraque pelos Estados Unidos – partem, portanto, da experiência norte-americana de construção de determinadas idéias sobre o Ocidente e sobre o Oriente. 17

NEMO, Philippe. O que é o Ocidente?, p. 11.

18

Essa fusão é corroborada por SPROVIERO, Mário B. Op. cit., p. 3, que considera a cultura ocidental, surgida na Europa, como um grande sistema cultural, formado da síntese de três culturas: a grega, a romana e a judaica (na componente cristã), mais os elementos vindos dos povos germânicos. 19

NEMO, Philippe. Op. cit., p. 9-10.

20

Esses excertos, caracterizantes da abordagem etnocentrista e eurocentrista do autor, encontram-se em praticamente todos os capítulos da obra. Podemos dar destaque, para exemplo, dos seguintes: “ Nenhuma civilização não-ocidental parece ter desejado deliberadamente o progresso” (p. 45); “O atraso do islã, em termos de ciência, técnica e economia seria por causa da ‘opressão’ imposta pelas potências colonizadoras que, deliberadamente, teriam ‘bloqueado’ seu desenvolvimento” (p. 81); “Houve uma ciência indiana, chinesa, japonesa, árabe; no entanto, a ausência de verdadeira liberdade crítica acabou-lhes sendo fatal. É ponto pacífico que esses embriões de ciência jamais conseguiram provocar a espécie de ‘precipitado químico’ do progresso científico observada no Ocidente a partir da Era Moderna, ou seja, do momento em que foram instaladas as instituições de liberdade (...)” (p. 89); “Podemos realmente duvidar de que a democracia – pelo menos, na forma como a conhecemos – venha a enraizar-se onde não existe esse húmus intelectual e moral, ou seja, na maior parte das civilizações não-ocidentais” (p. 96). E, para finalizar, em tom aterrador, Philippe Nemo apregoa que “O

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Ocidente foi colonizador por ter sido tecnológica e economicamente superior, graças ao processo de morfogênse cultural, já descrito (...). Na colonização, não houve nenhuma ‘maldade’ ou, de forma mais exata, não foi cometido nenhum exagero diferente do que possa ter ocorrido em todos e em cada um dos fenômenos anteriores de poder.” (p. 121-2). 21

A problemática da América Latina – inclusive dessa nomenclatura – e de sua inserção no circuito econômico mundial pode ser encontrada em ROUQUIÉ, Alain. O Extremo Ocidente: introdução à América Latina. Para o autor, cientista político e embaixador da França no México, os países tidos como “latinos” constituem uma América periférica e que culturalmente pertence ao Ocidente. Pelo fato da maioria desses países serem subdesenvolvidos, a América Latina pode ser encarada como o “Terceiro Mundo do Ocidente” ou o “Ocidente do Terceiro Mundo” (Id, p. 25).

22

GUENEÉ, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados, p. 47-8.

23

Id., p. 48.

24

Id., p. 49-60.

25

Não há consenso, na historiografia, sobre as balizas cronológicas dos períodos históricos que nos antecederam. As datas mais aceitas para a periodização da Idade Moderna são a de 1453 (tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos) para o início e 1789 (Revolução Francesa) para o término. Hilário Franco Júnior, todavia, credita pelo menos três anos para o início dos tempos modernos, dependendo do critério observado: 1453 (coincidentemente, fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (chegada à América pelos europeus) e 1517 (início da Reforma Protestante) (FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média: nascimento do Ocidente, p. 11-5). A viagem de Cristóvão Colombo e a ocidentalização das terras situadas a oeste da Europa foram tão importantes para a história da humanidade, na opinião de Tzvetan Todorov, que o ano de 1492 de fato poderia ser tomado como marco do alvorejar da Idade Moderna (TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro, p. 56).

26

MARX, Karl. O Capital, v. II, p. 261-94.

27

DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento, v. 1, p. 20.

28

ANDRADE, Joel Carlos de Souza; ALENCAR, Manoel Carlos Fonseca de. Do Paraíso às Chamas, das Chamas ao Paraíso. Mneme – Revista de Humanidades, v. 5, n. 10, p. 2.

29

NOVAES, Adauto. A outra margem do Ocidente, p. 8. Os outros textos dessa coletânea problematizam, por meio de diferentes óticas, o processo de reconhecimento de uma outra alteridade a ser incorporada ao Ocidente a partir da descoberta da América.

30

A chegada dos europeus às terras situadas além Atlântico vem sendo tratada de forma diferenciada (entre aspas, ou em itálico) nesse texto, por acreditarmos, junto com O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América, que o descobrimento se trata de uma construção discursiva bem ao gosto da literatura européia da transição entre os séculos XV e XVI.

31

Estamos tomando o conceito de aculturação com base na problematização de Nathan Wachtel, para quem esse fenômeno não merece ser encarado apenas como uma “evolução” das sociedades nativas em face do contato com os europeus, devendo ser visto como um movimento contínuo onde dominantes e dominados são levados a compartilhar (espontaneamente ou de forma imposta) dos valores culturais um do outro, levando à formação de sociedades extremamente complexas e mestiças - especificamente no caso da América da conquista (WACHTEL, Nathan. A aculturação. In: LE GOFF, Jacques ; NORA, Pierre (dir). História: novos problemas, p. 113-28).

32

Os números do processo depopulativo na América são assustadores, embora as cifras exatas ainda sejam controversas. Manuela Carneiro da Cunha, citando Sapper (1924), Kroeber (1939), Rosenblat (1954), Steward (1949), Borah (1964), Dobyns (1966), Chaunu (1969) e Denevan (1976), atribui à faixa de 1 a 11 milhões a população apenas das terras baixas da atual América do Sul, enquanto que para toda a vastidão do continente os números iriam de 8 a 100 milhões de habitantes (CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil, p. 14).

78

33

Id., p. 9-14.

34

Octavio Ianni, em A era do globalismo, ao tratar desse processo de difusão planetária desde a época das navegações ultramarinas dos séculos XV-XVI, denomina de transculturação o fato de a globalização ser, concomitantemente, um processo de ocidentalização do mundo e de orientalização. Sustenta, por conseguinte, que a propagação das culturas em nível global não se dá verticalmente, tomando como ponto de partida apenas o Ocidente, mas, propiciando que elementos de culturas africanas, indo-americanas e afro-americanas circulem pelo mundo (apud GROPPO, Luís Antonio. Transculturação e novas utopias. LuaNova, n. 64, p. 63). Essa posição de entendimento da formação das culturas do Novo Mundo a partir da mescla de elementos orientalizantes e ocidentalizantes pode ser vista em trechos da obra de Gilberto Freyre (sobretudo Casa-Grande & Senzala). Ao considerar a Península Ibérica ponto de transição entre Oriente e Ocidente, Gilberto Freyre assegurou que muitos dos hábitos e costumes em voga no Período Colonial seriam heranças, sobretudo, dos muçulmanos e dos árabes (BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro Ocidente? Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira, p. 1-16). 35

O conceito e a problemática da ocidentalização estão sendo tomados, aqui, de GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço, p. 63-110. 36

Muito antes de Serge Gruzinski problematizar os reflexos da ocidentalização e da mestiçagem cultural fruto desse amplo processo, no Brasil a temática dos intercursos culturais entre povos de diferentes origens já encontrara refúgio na obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Referimo-nos a Caminhos e Fronteiras (publicado em 1957), onde o autor discute a proposta de aculturação tanto dos indígenas quanto dos portugueses. Essa atitude de aculturação do europeu ocasionou-se, segundo Sérgio Buarque de Holanda, devido ao meio hostil e inseguro que fez com que os marinheiros (como eram chamadas as pessoas que vinham do Velho Mundo pelo mar) renunciassem a uma vida nobiliárquica e sedentária, assimilando os usos e costumes indígenas para sobreviver – o que acarretava um novo estilo de vida, mestiço, parte europeu, parte nativo. Para um aprofundamento desse assunto, consultar HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras.

37

Conforme argumenta Jean Delumeau, as mais importantes cidades do mundo, nos princípios do século XVI, estavam fora da esfera da civilização ocidental. Ambas capitais de fortes impérios, ignoravam-se mutuamente e tinham, a primeira, 250 mil habitantes e a segunda 300 mil, mais que Paris (talvez tivesse 200 mil, à época) e Nápoles (com cerca de 150 mil). Essas cidades eram Constantinopla, no Velho Mundo e a Cidade do México, na América (DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento, v. 1, p. 27).

38

Embora reconheça que o conceito de mestiçagem é prenhe de ambigüidades e incertezas, podendo ser dividido, grosso modo, em mestiçagem biológica e cultural, Serge Gruzinski utiliza o termo para apontar “as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos, imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes - América, Europa, África e Ásia” (Id., p. 62). O autor analisou e comparou obras de arte dos mais diversos matizes (afrescos, mosaicos, pinturas e gravuras em códices) e exemplares escritos de cantos musicais e ainda de escritos literários, tanto da América como da Europa. A partir dos seus pressupostos de mestiçagem desses dois mundos o que conseguiu concluir foi que as pinturas ou gravuras executadas por pintores índios (os tlacuillo), para usarmos um exemplo, não conservam somente elementos ameríndios e as de autoria de europeus não guardam somente motivos ocidentais. As produções pictográficas e literárias dos dois mundos, o México da Conquista e a Itália do Renascimento, foco de análise do autor, são fruto de mestiçagens culturais, mesmo quando se tratam de códices de gravuras concebidas em Florença com elementos picturais que pertencem ao universo pré-hispânico. No complexo fenômeno da mestiçagem, que interpõe vencedores e vencidos numa intricada rede de significações, estes usam elementos culturais uns dos outros, reciprocamente, para explicar a sua realidade após um evento traumático, no caso, o choque da conquista da América, que teve conseqüências para ambos os lados.

39

Id., p. 294.

40

Id. A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol (séculos XVIXVIII), p. 21-151.

41

Id., p. 152-3.

42

Id., p. 216.

79

43

BOCCARA, Guillaume. Mundos Nuevos en las Fronteras del Nuevo Mundo: Relectura de los Procesos Coloniales de Etnogénesis, Etnificación y Mestizaje en Tiempos de Globalización. Mundo nuevo/Nuevos mundos, n. 1 p. 10. Opinião compartilhada por ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, em relação à capacidade de adaptação dos índios da América Portuguesa, em situações de dominação/imposição, sobretudo nos ambientes dos aldeamentos missionários. 44

Estamos tratando como resistência, neste ponto, as diversas formas de oposição do nativo ao empreendimento colonial, desde as resistências mudas ou subreptícias até as que tomaram o confronto armado como meio de resolução de suas queixas contra o europeu. Exemplos dessas resistências podem ser vistos em TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro, quando analisa as reações e adaptações das sociedades indígenas da América frente aos conquistadores, bem como em BRUIT, Héctor. O visível e o invisível na conquista hispânica da América. Cadernos CEDES: a conquista da América. Para o Brasil, referência obrigatória no assunto é VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial e BARROS, Paulo Sérgio. Idolatrias, heresias, alianças: a resistência indígena no Ceará Colonial. Conferir ainda, sobre a mesma temática, BARROS, Paulo Sérgio. Cultura e resistência indígena no Ceará colonial (1603-1720) e ARAÚJO, Soraya Geronazzo. A resistência indígena na conquista e colonização da América Latina.

45

PORTO, Maria Emília Monteiro. Jesuítas na Capitania do Rio Grande (séculos XVI-XVIII): arcaicos e modernos, p. 15-6. Ao problematizar a relação entre arcaísmo e modernidade/tradição e inovação nos documentos produzidos pelos inacianos a respeito da Capitania do Rio Grande, a autora afirma que, no geral, esse território passou por dois momentos a ser integrado na ordem ocidental: um representado pela conquista do litoral e outro pela dos interiores. Partindo desse raciocínio, acreditamos que essa conquista dos interiores pode ser dividida em dois instantes, um representado pela experiência dos holandeses com os nativos, como se o sertão fosse um laboratório do processo de ocidentalização, e outro que se configura como a implantação do Ocidente, também no sertão, situada historicamente no período da Restauração Portuguesa e assinalada com a construção, paulatina, de diferentes níveis da administração lusitana.

46

Entendemos como historiografia clássica potiguar, na veia de Denise Monteiro Takeya, os primeiros estudos realizados sobre o Rio Grande do Norte em visão totalizante, com a tentativa de abarcar todos os acontecimentos que se deram nesse território desde a ocupação colonial até a data de publicação das obras. Como primeiros testemunhos dessa historiografia assinalamos as obras de NOBRE, Manuel Ferreira. Breve notícia sobre a Província do Rio Grande do Norte (1877; 1971 – 2.ed.), LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte: 1598-1967 (1912) e LIRA, Augusto Tavares de. Domínio holandês no Brasil (especialmente no Rio Grande do Norte) (1915). Segue-se a produção de uma história-síntese do estado, bem ao gosto da historiografia emanada do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e de suas filiais nas unidades da federação: LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte (1921; 1982 – 2.ed.; 1998 – 3.ed.), POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte (1922) e CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte (1955; 1982 – 2.ed.) (TAKEYA, Denise Monteiro. História do Rio Grande do Norte: questões metodológicas – Historiografia e História Regional. Caderno de História – UFRN, v. 1, n. 1, p. 9). 47

O primeiro registro escrito acerca dos nativos encontrados na costa norte da Terra de Santa Cruz os envolve numa atmosfera de candura e de ingenuidade. Escrita em primeiro de maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota cabralina, a carta dirigida ao Rei de Portugal fala dos índios encontrados como sendo “pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.” Relato que se assemelha a uma reprodução ou recriação do texto bíblico do Gênesis, onde os indígenas, dadas as devidas semelhanças, são comparados a Adão e Eva e a colônia, por conseguinte, ao Jardim do Éden, pela sua grande riqueza natural, de fauna e de flora. Os nativos a que Caminha se reporta são selvagens, mas, também, salváveis, pelo que se depreende de sua exortação ao Rei Dom Manuel: “E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseje acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!” A CARTA, de Pero Vaz de Caminha. Disponível em Acesso em: 22 abr. 1999. Assim, a justificativa de que os habitantes das novas terras deviam ser cristianizados – ou trazidos de volta para a fé, já que alguns os consideravam filhos de Deus que haviam se perdido de seus irmãos europeus – andaria de braços dados com as motivações que levaram à colonização ibérica.

80

48

Essa outra tendência aparece nos relatos do missionário calvinista Jean de Léry, (História de uma viagem feita à terra do Brasil, 1580), do padre francês André Thevet (A singularidade da França Antártica, 1557) e de Gabriel Soares de Souza (Tratado Descritivo do Brasil, 1587), apud PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões, p. 27-33. É de se observar, todavia, que esses relatos não são terminantemente a favor do bom ou do mau selvagem, mas, dependendo do contexto e do seu envolvimento (ou não) com a realidade dos nativos, são propensos a compará-los a habitantes do paraíso ou do inferno.

49

A respeito de como as opiniões sobre a colônia portuguesa no Novo Mundo oscilaram no imaginário europeu dos primeiros séculos após a chegada de Cabral consultar BETTENCOURT, Lucia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios. In: GRUPIONI, Luís Donizetti. Benzi (org.). Índios no Brasil e ainda SILVA, Janice Theodoro da. O Paraíso perdido: descrição e negação da terra descoberta. In: Id. América Barroca: tema e variações. Em BELLUZZO, Ana Maria M. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In: GRUPIONI, Luís Donizetti. Benzi (org.). Índios no Brasil podemos encontrar tanto as impressões de alguns viajantes coloniais sobre os povos indígenas como uma discussão acerca da iconografia produzida a propósito de suas viagens na América Portuguesa. 50

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial, p. 372. O tema da imagem paradisíaca como constituidora de elementos que contribuiriam para a expansão dos europeus no Novo Mundo, em especial na América Hispânica e Portuguesa podemos observar em HOLANDA, Sérgio Buarque. de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento do Brasil.

51

SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit.

52

Por outro lado, a historiografia clássica registra a presença de emissários de outras nações européias no território citado: holandeses fundeando nas costas do atual Rio Grande do Norte (Alonso de Hojeda e Vicente Pinzón) e franceses contrabandeando pau-brasil junto com os Potiguara, suprindo-os, via escambo, de quinquilharias e bugingangas (LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 12; POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte, p. 15-6; CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 29-30).

53

VESPÚCIO, Américo. Lettera, de 4 de set, 1504, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande, p. 8.

54

Este marco, a princípio, permaneceu chantado na Praia dos Marcos, como ficou mais conhecida com o passar dos séculos, no atual município de Touros. Recentemente foi conduzido para a parte interna da Fortaleza dos Reis Magos, em Natal.

55

Entre os atos simbólicos mais comuns nos rituais de posse luso-hispânicos, Stephen Greenblatt destaca a presença na terra, um mecanismo de registro legal, a alteração física ou demarcação da terra, a construção de um edifício, o exercício formal da justiça e, também, “colocar pedras, cortar a relva, erguer montículos ou pilares, erigir cruzes e até beber água” (grifos nossos) (GREENBLATT, Stephen. Possessões maravilhosas, p. 80). Para saber mais sobre o tema, especialmente as diferenças entre o ritual hispânico e o lusitano de tomada de posse, ver SEED, Patrícia. Cerimônias de posse na conquista européia do Novo Mundo (1492-1640).

56

VESPÚCIO, Américo. Lettera, de 4 de set, 1504, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 8-9.

57

A respeito da discussão em torno do mau/bom selvagem no imaginário europeu e, em particular, lusitano, conferir ROUANET, Sergio Paulo. O mito do bom selvagem. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo.

58

MATOS, Jorge Luís Semedo de. Planisfério anónimo de 1502 (dito «de Cantino») in CENTRO VIRTUAL CAMÕES. Cartografia e cartógrafos.

59

No início do período de implantação de feitorias, objetivando mercantilizar os poucos produtos encontrados (pau-brasil, macacos, escravos e papagaios, sobretudo), a Coroa arrendou o Brasil a um consórcio de comerciantes com sede em Lisboa, comandados por Fernão de Noronha (cujo nome ainda perdura em uma ilha no litoral, na altura do Rio Grande do Norte), homem experiente no comércio com a África e as Índias. O consórcio teria enviado duas frotas para explorar a nova colônia, mas, o fim do contrato (1505) fez a Coroa

81

retomar o controle direto do comércio no Brasil (JOHNSON, Harold B. A colonização portuguesa do Brasil, 1500-1580. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, v. I: América Latina Colonial, p. 248-9). 60

NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII), p.46-7.

61

JOHNSON, Harold B. Op. cit., p. 245.

62

Os trinta primeiros anos do Quinhentos são considerados, pela historiografia tradicional, como um Período Pré-Colonial ou de Colonização de Feitorias, devido ao interesse extremo de Portugal pelo Oriente e pelo litoral da África. A colonização propriamente dita teria iniciado apenas com a implantação do regime de Capitanias Hereditárias (SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e colonização da América Portuguesa In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil, p. 26). 63

Espanhóis e franceses eram presença constante nas costas da colônia portuguesa na América durante o século XVI. Os franceses, com destaque, por não aceitarem as linhas demarcatórias do Tratado de Tordesilhas, prenunciadas em bula que incorporava a tradição canônica medieval da jurisdição universal do papa sobre o mundo. Reclamava o Rei Francisco de Vallois, a propósito, que desconhecia o testamento de Adão partilhando as terras descobertas entre as nações da Península Ibérica, reclamando, dessa forma, a utilização do instituto jurídico romano do uti possidetis – ou seja, o de que os possuidores de uma determinada área seriam aqueles que efetivamente a ocupassem (FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 43).

64

JOHNSON, Harold B. Op. cit., p. 245

65

Pouco antes da implantação desse sistema, D. João III havia enviado uma expedição chefiada por Martim Afonso de Souza (1532) com o tríplice fim de patrulhar a costa com relação aos ataques de outras nações, estabelecer uma colônia real e explorar a foz do Amazonas e do Prata (SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, p. 30-5).

66

Face ao achado da Carta de Doação de el-rei referente à Capitania do Rio Grande, pelo Dr. Ivoncísio Medeiros (filho de Tarcísio Medeiros) no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, ficou evidenciado que a donataria de cem léguas foi concedida a João de Barros e Aires da Cunha, dividida em duas partes. A primeira, que ia da Baía da Traição ao delta do Rio Açu, corresponderia aos domínios de João de Barros, seguida de outra, que se estendia até o lugar Angra dos Reis, hoje, em território cearense (MEDEIROS, Tarcísio. Proto-história do Rio Grande do Norte, p. 192-5). 67

SUASSUNA, Luís Eduardo Brandão; MARIZ, Marlene da Silva. História do Rio Grande do Norte colonial (1597/1822), p. 19.

68

Augusto Tavares de Lira, em 1921, já discutia o confim norte da Capitania do Rio Grande, levantando as possibilidades do mesmo se situar no rio Jaguaribe (opinião de Cândido Mendes), rio Mandaú (conforme pensava Rocha Pombo) e mesmo na Cordilheira do Apodi, na acepção de Matoso Maia (LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 12). Rocha Pombo, um ano depois, confirmava sua opinião de que a capitania tinha seu termo, a norte, no rio Mandaú (POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte, p. 17). Câmara Cascudo, em 1955, levanta as mesmas possibilidades, especificando o lugar Angra dos Negros, no rio Jaguaribe, como sendo um dos prováveis limites da donataria (CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 15), pensamento que é seguido pela historiadora Denise Mattos Monteiro (MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 27). Tarcísio Medeiros, por sua vez, em 1973, afirma ser o rio Jaguaribe o marco de delimitação norte da capitania (MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte, p. 23).

69

João Lisboa, citado em Rafael Moreira e William Thomas, considerou essa expedição “tão poderosa como as de Colombo, Vasco da Gama, Cortés e Pizarro reunidas”. Cf. PINTO, Lenine; PEREIRA, Gerardo. A integração do Rio Grande do Norte e do Amazônas à Província do Brasil, p. 27.

70

POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte, p. 17-9. Tavares de Lira, citando a História Geral do Brasil, de Porto Seguro, afirmou que a expedição – reforçada pelo auxílio de Duarte Coelho, quando chegara de Lisboa – aportou três léguas a norte do rio Potengi, fundeando no rio Baquipe (nome indígena dado ao rio Pequeno, hoje Ceará-Mirim), mas, não perdurou muito tempo em terra firme devido à resistência dos

82

Potiguara unidos aos franceses. Teriam ido, desgarrados, parar em águas que hoje pertencem ao território maranhense (LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 14). 71

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 18. Ambas as expedições – a de 1535 e a de 1555 – são ponto controvertido entre a historiografia clássica potiguar, dada a escassez de fontes sobre o período e mesmo opiniões divergentes entre cronistas coloniais.

72

Id., p. 20.

73

Luís Teixeira foi o “mais ilustre representante” da família Teixeira, importante oficina e escola de cartógrafos, que ultrapassou cinco gerações no processo de produção de mapas. Sua carta de ofício foi concedida em 18 de outubro de 1564, com autorização para fazer cartas de marear, instrumentos náuticos e regimentos de altura e declinação do sol. Segundo João G. Ramalho Fialho, esteve no Brasil no período de 1573 a 1578, levantando dados para futuros trabalhos cartográficos. Daí a maioria dos trabalhos que citam o seu mapa das capitanias o datarem de 1574. Correm nessa esteira as opiniões, no Rio Grande do Norte, de MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 18 e PINTO, Lenine; PEREIRA, Gerardo. Op. cit., p. 19. Maria Dulce de Faria e João Ramalho Fialho, todavia, anunciam que o mapa do Brasil dividido em capitanias e outros, parciais, da costa, estejam reunidos no Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que ha na costa do Brasil desde o cabo de Santo Agostinho ate ao estreito de Fernao de Magalhaes, de Luís Teixeira, datado de cerca de 1586 (FARIA, Maria Dulce de. A representação cartográfica no Brasil Colonial na Coleção da Biblioteca Nacional. Projeto Cartografia Histórica (Biblioteca Nacional); FIALHO, João G. Ramalho. Família Teixeira. In: CENTRO VIRTUAL CAMÕES. Cartografia e cartógrafos).

74

Ver, a esse respeito, MAURO, Frédéric. Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do Império, 1580-1750. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, v. I: América Latina Colonial e, ainda, SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e colonização da América Portuguesa In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil, p. 41-2. Nesse período, conhecido como o da União das Coroas Ibéricas, portanto, o monarca espanhol reinava sobre Castela e sobre Portugal, adotando títulos diferentes de acordo com a sucessão de cada reino. 75

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande, p. 21.

76

A carta de Jacques de Vaulx, dessa maneira, insere-se no quadro da representação cartográfica comum na Europa, caracterizada pela representação da natureza por intermédio de uma série de símbolos ditados em convenções, bem ao gosto dos séculos XV e XVI. Cf. BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Decifrando mapas: sobre o conceito de “território” e suas vinculações com a geografia. Anais do Museu Paulista, v. 12, n. 12, p. 202. 77

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a história do Rio Grande do Norte, p. 37-8. Com relação às aldeias do interior da capitania, o autor acredita que as mesmas ficavam situadas nos atuais territórios das ribeiras do Açu-Piranhas e Mossoró-Apodi.

78

É questionável, todavia, a maneira com esse momento antropofágico está representada, já que se assemelha mais ao moquém, típico dos grupos Potiguara do litoral, que às práticas endocanibalistas dos índios do sertão, os Tarairiu, que chegariam ao conhecimento europeu por meio de crônicas holandesas publicadas no século XVII. É preciso considerar que, no caso de contatos estabelecidos entre emissários franceses com os nativos do interior, é possível que aqueles tenham presenciado algum ritual antropofágico e comentado com os companheiros que ficavam no litoral. Se Jacques de Vaulx estava entre estes últimos, existe probabilidade de que tenha representado o ritual descrito pelos que foram ao interior através do arquétipo de antropofagia largamente difundido na Europa por meio das gravuras de Theodore de Bry ou, mesmo, através de sua observação em algum ritual tupi na costa.

79

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 38-9.

80

A respeito da distinção entre os índios do litoral e do interior, respectivamente, agrupados sob o nome de tupi e tapuia, considerar PUNTONI, Pedro. Tupi ou não Tupi? Uma contribuição ao estudo da etnohistória dos povos indígenas no Brasil Colônia. Ethnos – Revista brasileira de etnohistória, ano 2, n. 2. 81

SALVADOR, Vicente do. Historia do Brazil, p. 152.

83

82

Os expedientes foram duas ordens régias, datadas de 9 de novembro de 1596 e 15 de março de 1597 (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande, p. 21).

83

Idem. A ordem de fundar uma povoação está baseada em SALVADOR, Vicente do. Op. cit.

84

A concretização da conquista do Rio Grande, nas palavras de Capistrano de Abreu, significou mais que a ratificação da presença ocidental na colônia portuguesa da América. Além do afastamento dos franceses e pacificação dos índios, representava o encurtamento da distância aos territórios posteriormente nomeados oficialmente de Maranhão e Amazonas (ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 60).

85

GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande, p. 28.

86

Hélio Galvão acredita que esse porto pode ter sido o de Baía da Traição ou Baía Formosa, considerando que a varíola contaminou a frente expedicionária de Feliciano Coelho praticamente em território da Capitania do Rio Grande, na divisa com a Paraíba (Id., p. 28-9).

87

Posteriormente chamado de Potengi, decorrente de poti-gi, rio dos camarões, numa referência expressa aos Potiguara, índios da família lingüística Tupi que tinham seus territórios firmados na costa da Capitania do Rio Grande (CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte, p. 117). O historiador Olavo de Medeiros Filho atribui ao local do desembarque das tropas de Mascarenhas Homem o ponto correspondente, nos dias de hoje, ao porto de Canto do Mangue, no bairro das Rocas. Local que, em 1633, também daria passagem para as embarcações holandesas em invasão ao Rio Grande (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra natalense, p. 10). 88

Carta do Padre Pero Rodrigues (19 de dez. 1599) apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomos I-III, p. 184. Transcrição desta carta, considerada a primeira narrativa sobre os episódios da conquista (ocidental) do Rio Grande, encontra-se em GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 239-46. 89

GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 31-2.

90

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 47-8.

91

Id., p. 48.

92

Essa posição acerca das delegações de João Rodrigues Colaço e Jerônimo de Albuquerque encontra-se em GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 39-40.

93

Aluara sobre a repartição que Vossa Magestade manda fazer das terras da Capitania do Ryo Grande no Estado do Brazil para Vossa Magestade ver todo e vae por duas vias (1614). In: FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. I, p. 7.

94

GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 35.

95

Carta do Padre Pero Rodrigues (19 de dez. 1599) apud LEITE, Serafim. Op. cit., p. 184-7.

96

Na maior parte da literatura historiográfica, a referência se dá à fundação de Natal. Utilizamos este termo grafado em itálico por não concordarmos com esse tipo de abordagem, visto que fundação pressupõe um momento a partir do qual determinada coisa passa a ter status de outra. No caso de Natal, a sua fundação corresponde ao momento em que teria surgido oficialmente, mesmo sem pessoas residindo. Da mesma forma, discordamos da nomenclatura fundador para designar aquela pessoa que deu início a determinado aglomerado de pessoas ou de casas, mesmo porque não seria capaz de levar tal empresa sozinho, necessitando do papel dos outros atores sociais. Os termos serão utilizados nesse texto pelo fato de serem voz comum na historiografia clássica, da qual partimos para discutir o tema.

97

CASCUDO, Luís da Câmara. Historia do Rio Grande do Norte, p. 28-9.

98

GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 44.

84

99

Se a data de fundação e o topônimo estão envoltos em polêmica na historiografia, imagine-se, então, os aspectos que dizem respeito ao fundador. As opiniões giram em torno de Mascarenhas Homem, João Rodrigues Colaço e Jerônimo de Albuquerque Maranhão (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 54-9).

100

Estamos considerando, como clássicos, os livros de Vicente de Lemos, Augusto Tavares de Lira, Rocha Pombo e Luís da Câmara Cascudo, a partir de raciocínio esboçado em nota anterior. Na categoria de estudos revisionistas estamos englobando a produção local e erudita, também, como os clássicos, ligada ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, mas, que teve como meta auscultar temas controversos ou lacunares na historiografia. Dentre outros, gostaríamos de lembrar os nomes de Tarcísio Medeiros (Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte, 1973; Proto-história do Rio Grande do Norte, 1985; Estudos de História do Rio Grande do Norte, 2001), Hélio Galvão (História da Fortaleza da Barra do Rio Grande, 1979; 1999 – 2.ed.), José Moreira Brandão Castelo Branco (Quem fundou Natal? In Revista Bando) e o monumental Olavo de Medeiros Filho (Terra Natalense, 1991; Aconteceu na Capitania do Rio Grande, 1997; Os holandeses na Capitania do Rio Grande, 1998; Notas para a História do Rio Grande do Norte, 2001 e, dentre muitos outros, sobretudo a respeito do Sertão do Seridó, Gênese Natalense, 2002). Esses historiadores, graças à insistente pesquisa documental, inclusive em mananciais de documentos do exterior (sobretudo Portugal), puderam lançar novas luzes interpretativas sobre determinados acontecimentos da história norte-rio-grandense. 101

Dentre os trabalhos, são dignos de lembrança os de Fátima Martins Lopes (Missões religiosas: índios, colonos e missionários na Capitania do Rio Grande do Norte, dissertação de mestrado, 2001; Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, tese de doutorado, 2005) e Maria Emília Monteiro Porto (Jesuítas na Capitania do Rio Grande: séculos XVI-XVIII. Arcaicos e Modernos, tese de doutorado, 2000). Bem como os esforços de escrita de uma história-síntese dos professores Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz (História do Rio Grande do Norte colonial – 1597/1822, 1997) e Denise Mattos Monteiro (Introdução à História do Rio Grande do Norte, 2000; 2003 – 2.ed.). 102

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, p. 16-29. Aprofundamento desta discussão acerca do sentido da colonização, enquadrando-a nos moldes do Capitalismo mercantil europeu, encontra-se em NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII), p.29-35.

103

VESPÚCIO, Américo. Lettera, de 4 de set, 1504, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande, p. 9. 104

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 16.

105

MEDEIROS, Tarcísio. Proto-história do Rio Grande do Norte, p. 197.

106

Sobre a política de expansão dos domínios coloniais no Brasil levada à frente por Filipe II, verificar WRIGHT, Antônia Fernanda P. de Almeida; MELLO, Astrogildo Rodrigues de. O Brasil no período dos Filipes. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira, v. I: A Época Colonial, t. 1, do descobrimento à expansão territorial, p. 180-4. 107

Estamos utilizando o termo cidade partindo das referências documentais do período, citadas na historiografia clássica, que assim denominou o aglomerado populacional surgido onde hoje se encontra o centro histórico da cidade de Natal. Durante a primeira metade do século XVII, pelo menos, essa cidade teria registrada baixa densidade demográfica e o reduzido número de casas, fazendo com que fosse chamada, também, de povoação (por Diogo de Campos Moreno, em 1609) e até de aldeia (pelo holandês Joan Nieuhof, em 1646). A respeito do processo de constituição de Natal enquanto cidade, consultar TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Os nomes da cidade no Brasil Colonial: considerações a partir da Capitania do Rio Grande do Norte. Mercator – Revista de Geografia da UFC, ano 2, n. 3. 108

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte, p. 35.

109

Id., p. 33-7.

110

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 16.

85

111

Expressão tomada de empréstimo de BOXER, Charles. O império marítimo português: 1415-1825, apropriada para designar a amplitude das possessões lusitanas durante cerca de quinhentos anos, em diversos pontos do globo.

112

MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte, p. 236; Id. Proto-história do Rio Grande do Norte, p. 189-91.

113

SALVADOR, Vicente do. Op. cit., p. 201.

114

As informações acerca das práticas culturais dos Potiguara, como o ritual da antropofagia, e sobre sua língua indicam que esses índios pertenciam ao tronco lingüístico Tupi. Verificar LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na Capitania do Rio Grande do Norte, p. 31-41 para uma descrição do modo de vida dos Potiguara, baseada nos relatos de cronistas coloniais.

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2 DO LITORAL AO PAÍS DOS TAPUIAS: experiências holandesas

A conquista do Rio Grande, a construção da Fortaleza dos Reis Magos, o surgimento da “cidade” do Natal, o estabelecimento das “pazes” com os Potiguara: esses foram acontecimentos que nos permitem demarcar o período em que os luso-brasílicos estiveram levando a efeito prospecções pela costa da Capitania do Rio Grande, no sentido de ocidentalizar suas possessões. Nas primeiras décadas do século XVII, a “cidade” situada às margens do rio Potengi cresceu lentamente do ponto de vista estrutural e demográfico, o que nos possibilita inferir que não eram à toa descrições do período que têm como característica duas referências: a pouca quantidade de pessoas residentes ou a atribuição do status de povoação e não de cidade1 ao aglomerado. Assim, em 1602 a narrativa do naufrágio da nau Santo Iago, assinalada por Melchior Estácio do Amaral, menciona a Cidade de Santiago, no Rio Grande, com apenas três casas de alvenaria2. Por sua vez, na Relação das Capitanias do Brasil, manuscrito anônimo elaborado entre 1605 e 1607, consta a referência à povoação situada a meia légua da Fortaleza dos Reis Magos, que tinha vinte e cinco ou trinta moradores3. Um ano depois (1608), em carta dirigida pelo governador-geral do Estado do Brasil, D. Diogo de Menezes, ao Rei de Portugal, a situação era desanimadora ao se mencionar a povoação do Rio Grande como não tendo gente, embora considerada a importância do seu porto4. Em 1609, na Relação das Praças Fortes do Brasil, Diogo de Campos Moreno citou essa mesma povoação como sendo pequena, composta de casas de pedra e cal suntuosas onde habitavam até vinte e cinco vizinhos5, “pobremente acomodados nas vivendas das casas”6. O exame do documento lavrado quando da repartição das terras da Capitania do Rio Grande, por sua vez, menciona treze casas de residência no aglomerado às margens do rio Potengi, já registrado como Cidade do Natal do Rio Grande7. Nas décadas de 20 e 30 do século XVII os informes conhecidos através de fontes coevas ainda nos fazem rememorar uma cidade despossuída de muitos moradores. Em 1628, na cidade de Amsterdam, a imagem que índios conduzidos da Baía da Traição para a Holanda

tinham da Cidade do Potengi era a de um lugarejo com oito casas e uma igreja, próximo a um castelo (a fortaleza) com nove canhões de metal e quarenta soldados8. Dois anos mais tarde (1630), o resultado da observação da cidade feito por Adriano Verdonck, espião a serviço dos neerlandeses, lhe dá condições de anotar trinta a quarenta casas de palha e barro, com a ressalva de que “os habitantes mais abastados dos arredores vivem habitualmente nos seus sitios, e vêm apenas à cidade aos domingos e dias santificados para ouvir missa”, assegurando, ainda, que apenas “120 ou 130 homens, na maioria camponeses ignorantes e grosseiros” eram a população conhecida da capitania9. Todas essas descrições confirmam que o povoamento na “Cidade” do Natal, resultante do processo de ocidentalização, caminhava a passos acanhados10. Ao passo que as áreas circunvizinhas, onde se praticava, principalmente, o plantio da cana-de-açúcar, a criação de gado e a extração de sal natural11, gozavam de uma população mais numerosa e concentrada nas fazendas ou nos pouquíssimos engenhos levantados nas reservas de terras férteis. Essas atividades econômicas foram atrativos que impulsionaram o interesse dos holandeses com relação à capitania do Rio Grande, ocasionando uma dominação desse território por vinte e um anos (1633-1654). As razões dessa dominação holandesa sobre as terras portuguesas na América estão ligadas a disputas entre as potências ocidentais, tendo como cerne o usufruto da produção colonial. Tal disputa nos leva a pensar numa outra faceta da ocidentalização, empreendida, desta feita, pelos neerlandeses.

2.1 Um outro lado da ocidentalização Onde está o testamento deixado por Adão? E, mais, qual a sua cláusula que determinava a divisão das terras desconhecidas (e “descobertas”) em duas partes, destinadas a Castela e a Portugal? Esses foram questionamentos feitos pelo rei francês Francisco de Vallois e mesmo estiveram no bojo das discussões geopolíticas de outros Estados europeus, insatisfeitos com o monopólio ibérico dos territórios situados além-mar e até então desconhecidos do Ocidente, promovido pelo Tratado de Tordesilhas (1494). A partir do século XVI, portanto, a presença de marinheiros de corso estrangeiros, não oriundos da Ibéria, seria constante na colônia portuguesa da América, contribuindo, em dados momentos históricos, para a quebra do “exclusivo” colonial12, afetando as linhas-mestras do mercantilismo.

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Nesse cenário dos tempos modernos, em que Castela e Portugal demonstravam pujança com o domínio de vastas e importantes áreas do globo até então ignoradas pelo Ocidente, um dos Estados próximos à Península Ibérica, graças a sua experiência mercantil, conseguiu encaixar-se no circuito econômico do mercantilismo: os Países Baixos13. Se a burguesia desse país não esteve presente nos acontecimentos ligados à “descoberta” dos territórios situados além do Atlântico, seu capital foi utilizado para financiar – via empréstimo – a instalação de engenhos de cana na América Portuguesa e o transporte do açúcar para o reino. Além disso, o produto dos engenhos na colônia lusitana era beneficiado nas refinarias holandesas, de onde era distribuído para o restante da Europa14. Essa experiência peculiar com o trato mercantil, conforme expresso por Fernando Novais, provinha do fato de que, desde os temos medievais, a área que hoje corresponde à Holanda era um dos mais ativos centros do desenvolvimento da economia de mercado na Europa. A riqueza dos holandeses, portanto, advinha de sua posição de entreposto comercial, centro de transferência dos produtos e redistribuição das várias regiões econômicas européias15. Do ponto de vista político, desde o século XVI, as “Províncias Setentrionais” – como eram mais conhecidos os Países Baixos – eram controladas por Castela, que impunha forte repressão ao movimento protestante de orientação calvinista, espalhado pelo território do país. Os holandeses entram em atrito com o reino de Castela e, sob o comando de Guilherme, da Casa de Orange, empreendem guerras visando sua libertação do domínio castelhano, que culminam com a proclamação da República Unida da Holanda, em 1579. Concidentemente, um ano depois (1580), como atentamos no capítulo anterior, problemas de sucessão dinástica fazem com que Portugal passe a ser governado pelo rei de Castela, a junção dos dois reinos formando um império luso-espanhol que se estendeu de 1580 a 1640 – período comumente conhecido na historiografia brasileira como de união das Coroas Ibéricas. Posteriormente, em represália aos movimentos de independência neerlandeses, a Coroa luso-espanhola proibiu terminantemente a Holanda de manter vínculo ou empreender qualquer operação comercial que estivesse ligada aos produtos oriundos das suas colônias na América. Essa interposição de obstáculos aconteceu alternadamente em 1585, 1596 e 1599, quando diversos navios holandeses sofreram, “por ordem dos Filipes, embargos mais ou menos prolongados em portos de Portugal, ocasionando interrupções temporárias do comércio e conseqüente escassez dos gêneros que ali iam buscar, sobretudo do sal, ingrediente essencial às indústrias do pescado e dos laticínios”16. Razão que os levou a procurarem o abastecimento de sal nas colônias ultramarinas de possessão ibérica, como as ilhas de Cabo Verde. A monarquia castelhana percebeu, a partir daí, o quanto Portugal e suas colônias estavam 89

estreitamente ligados à Holanda através dos laços mercantis, já que os holandeses abasteciam os portos lusitanos com mercadorias do norte da Europa (trigo, madeira, metais e manufaturas) e de sua própria indústria (peixe, manteiga, queijo)17. Face a essa interligação e à possibilidade de prejuízo econômico para Portugal, a Coroa castelhana cedeu à pressão dos mercadores e assinou a Trégua dos Doze Anos, que durou de 1609 a 1621, objetivando mitigar as desavenças – ainda ressoantes das guerras de independência – com os Países Baixos. O fim da trégua ensejou a retomada das desarmonias entre Castela e a Holanda, ameaçando o abastecimento de açúcar para esta última e, por conseguinte, a desestruturação de considerável setor da economia neerlandesa. José Antonio Gonsalves de Mello confirma o fato do açúcar, sobretudo o produzido na colônia lusitana na América, ter-se constituído, historicamente, arrimo para a economia dos Países Baixos. Aponta, para tanto, o fato de cerca de 40 a 50 mil caixas de açúcar terem sido levadas, anualmente, do Brasil para a Holanda, no decurso da Trégua dos Doze Anos; de que metade a dois terços do comércio de transporte do Brasil estarem em mãos holandesas; do número de refinarias de açúcar existentes nos Países Baixos ser de 3 a 4 em 1594 e ter aumentado vertiginosamente para 29 em 1621, das quais 25 apenas em Amsterdã18. Uma nova ameaça de bloqueio do comércio com as colônias ibéricas no além-mar, certamente, colocaria em apuros a economia dos Países Baixos, o que levou os comerciantes holandeses a sugerirem aos Estados Gerais a tomada das fontes produtoras da doce e rentável substância branca na América, à época em que a capitania de Pernambuco era a mais próspera no que diz respeito ao plantio da cana e preparação do açúcar nos engenhos19. Resultante dessa preocupação, em 1621 foi criada a Companhia das Índias Ocidentais, a partir da convergência do interesse e do capital de muitos comerciantes holandeses, a quem os Estados Gerais concedeu monopólio, pelo período de 24 anos, do comércio, navegação e conquista dos territórios situados na América e África20. Em 1624 os holandeses apoderaramse da sede administrativa da colônia portuguesa na América, a capitania da Baía de Todos os Santos, mas, a resistência luso-espanhola, no ano seguinte, fez os navios retornarem para a Holanda. Pouco depois, vários emissários e espiões holandeses cruzaram novamente o Atlântico, na surdina, para sondar as condições de defensão das capitanias e os benefícios a serem auferidos, caso tentassem, de outra vez, a conquista das fontes produtoras do açúcar. A conquista neerlandesa da colônia lusitana somente se daria em 1630, tendo como locus de entrada a capitania de Pernambuco, mal aparelhada do ponto de vista defensivo, porém, a que mais produzia açúcar no mundo ocidental até então conhecido. De Pernambuco os holandeses, gradativamente, foram vencendo os bastiões portugueses no litoral, até que 90

consolidaram o seu domínio sobre um vasto território que, nos dias atuais, corresponde aos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará (Figura 11). Estiveram na posse dessa parte da colônia lusa na América até 1654, quando os acontecimentos da Insurreição Pernambucana, aliados ao desmanche da união peninsular entre Portugal e Castela (desde 1640), obrigaram os holandeses a despedirem-se do paraíso do açúcar, retornando para os Países Baixos21.

Figura 11 Mapa da América Holandesa (capitanias com destaque, de baixo para cima: Sergipe, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará)

A referência mais antiga à presença neerlandesa nas proximidades da capitania do Rio Grande é de 1625, quando uma esquadra comandada por Boudewijn Hendricksz aportou na Baía da Traição – antigo limite das capitanias do Rio Grande e Itamaracá – com a finalidade de coletar água e alimentos. Em terra firme manteve contato com índios Potiguara, que 91

acabaram levando para a Holanda, onde foram instruídos na língua, leitura e na doutrina reformada. Entre os conduzidos estavam Gaspar Paraupaba e André Francisco, naturais do Ceará, além de Pedro Poty, Antônio Guiravassauay, Antônio e Luís Gaspar, da Baía da Traição, cujos prenomes de origem lusa denunciavam a sua cristianização22. Esses indígenas forneceram importantes informações sobre o quadro físico das capitanias anexas a Pernambuco para os holandeses, colaborando, portanto, para o planejamento das missões de tomada da colônia portuguesa na América. O cronista Johannes de Laet informa uma entrada em Cunhaú pelos holandeses um ano depois (1626), certamente com a finalidade de observação dos rendimentos do trabalho com a cana-de-açúcar23. O engenho seria novamente motivo de observação – e, desta vez, de minucioso relato apresentado ao Conselho Político do Brasil – em 1630, pelo espião Adriano Verdonck, que também adentrou pela aldeia de Mipibu, pela Cidade do Natal e pela Fortaleza dos Reis Magos. A descrição da capitania, anteriormente referida, atribuiu extremo valor à criação de gado, ao cultivo da cana-de-açúcar e à exploração das salinas no litoral norte enquanto atividades econômicas que davam um diferencial ao Rio Grande – além da pesca e da pequena agricultura. Com a investida militar sobre Pernambuco vitoriosa nesse mesmo ano (1630) e tendo em vista a necessidade de abastecimento das tropas, a ocupação do Rio Grande apresentou-se como um imperativo a ser concretizado, ainda mais pela sua abundância de gado, farinha e peixe. Não desprezemos, também, a importância da costa atlântica do Rio Grande, sobretudo pela fortaleza ali incrustada, como ponto de apoio logístico para a conquista neerlandesa das outras capitanias do norte. Assim, após o pacto de alianças firmado entre os holandeses e os Tarairiu, mediado pelo índio Maximiliano em 1631, a Fortaleza dos Reis Magos cedeu às pressões marítima e terrestre de uma esquadra holandesa, capitulando em 12 de dezembro de 1633. O capitão-mor Pero Mendes de Gouveia foi substituído por Joris Gardtzman, em seu posto de comandante da fortaleza, que passou a ser chamada de Forte (ou Castelo) Ceulen, em homenagem ao general Mathias van Ceulen, um dos conselheiros e diretores da Companhia das Índias Ocidentais, além de ter comandado uma das embarcações da esquadra que tomou a fortificação em 163324. O mapa de Vingboons (Figura 12) nos dá uma idéia do movimento de tomada da Fortaleza dos Reis Magos por mar e por terra:

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Figura 12 Veroveringe van Rio Grande (1633), de Vingboons

O período em que a capitania do Rio Grande ficou sob o domínio holandês é visto, pela historiografia clássica norte-rio-grandense, como um tempo de muita devastação, roubos, saques, mortes e violência. Enquanto Augusto Tavares de Lira referiu-se aos massacres de Cunhaú como “teatro de inomináveis carnificinas e indiscritíveis devastações”25, Rocha Pombo alude aos neerlandeses como invasores que conseguiram impor, “sem contrastes o seu inexoravel jugo em toda a Capitania do Rio Grande”26. Mais enfático foi Luís da Câmara Cascudo, o qual reconheceu o esplendor trazido por Maurício de Nassau para Pernambuco, porém, afirmou que “O Rio Grande do Norte só conheceu violência, extorsão, vilipêndio, rapinagem. Os nomes holandeses passam em nossa crônica como manchas de sangue vivo. Para nós foram exclusivamente os invasores, os vitoriosos pela fôrça”27. Para uma historiografia que defendia de maneira abrasadora a colonização lusitana e os valores cristãos da Igreja de Roma, essa atitude de aversão aos holandeses já era prevista. Não foi ao acaso que as principais críticas ao período em estudo circularam, nos textos dos historiadores citados, em torno dos massacres de Cunhaú, Uruaçu e de Ferreiro Torto, nos quais foram assassinados luso-brasílicos pelas mãos de holandeses de orientação calvinista. Ressaltemos, a propósito, a construção de uma figura tida como aterradora e sanguinária na historiografia clássica norte-rio-grandense, a de Jacob Rabe, um “truculento orientado”, nas 93

palavras de Luís da Câmara Cascudo28. Envolvido no planejamento e execução do massacre de Cunhaú, afirma o referido autor que Amavam-no [ os índios ] até o delírio. Rabí não tentou elevar o espirito selvagem mas fez ele proprio um curso pratico de barbaridades proveitosas. (...) Ninguem confiava naquele sordido e desconfiado europeu, inteligente e branco, que era por dentro um cariri autentico, desde o temperamento aos costumes diários29.

Esse sentimento de repugnância pelos neerlandeses e, sobretudo, pela figura de Jacob Rabe, encontrou ressonância na historiografia norte-rio-grandense posterior à década de 195030, o que contribuiu para sustentar, cada vez mais, uma versão do período que rendeu, à Igreja Católica Romana, vários mártires da fé. Estamos nos referindo às pessoas que foram assassinadas pelos neerlandeses e indígenas em Cunhaú e Uruaçu no ano de 1645, as quais, segundo os católicos, merecem ter seu exemplo de vida e de fé seguido, já que sucumbiram face à recusa em abraçar a fé reformada31. Esse martírio foi ratificado oficialmente pelo Vaticano em 1998, quando um decreto do papa João Paulo II inscreveu os trinta mortos de que se têm informações (Cunhaú e Uruaçu) no catálogo dos bem-aventurados da igreja, transformando-os, dessa maneira, em beatos por terem resistido à investida dos holandeses calvinistas em convertê-los ao protestantismo32. Essa antipatia pelo período holandês chegou mesmo a estabelecer extremos no que diz respeito à compreensão, pela historiografia, da natureza da expansão holandesa pelo Novo Mundo. Exemplo disso é a opinião de Rocha Pombo, que atribuía aos portugueses o papel de estarem promovendo a expansão do espírito ocidental por todo o mundo, enquanto que aos holandeses havia restado o papel de disputar, com os “heróis do descobrimento”, as vantagens dos feitos marítimos no além-mar. E continua o autor, afirmando que O papel dos holandeses e dos outros concorrentes de Portugal e Espanha foi o de simples instigados da fortuna, campeões retardatários, que tinham como certo muito valor, mas que só chegaram depois de ferida a batalha e ganha a vitória, com o pensamento de recolher os despojos33.

Transparece, pela assertiva de Rocha Pombo, que os holandeses não representavam, tanto quanto os lusitanos, a bandeira da ocidentalização. Embora tenhamos que reconhecer que essa é uma idéia fortemente cultivada pelos historiadores do seu tempo – e, mais ainda, pelos agremiados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como era o caso do autor em apreço –, não concordamos com o pensamento de que somente as nações peninsulares da

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Ibéria foram as responsáveis pela imposição da cultura ocidental no Novo Mundo, afinal de contas, os Países Baixos, do ponto de vista geográfico, também fazem parte do Ocidente. Do ponto de vista religioso, é evidente que Portugal, Castela e a Holanda não compartilhavam dos mesmos dogmas. Porém, colocados num mesmo tabuleiro – a Europa – e analisando a sua situação do ponto de vista econômico, ambas as nações aparecem como peões em um único jogo, o do mercantilismo: as nações ibéricas tocando direta e oficialmente nos territórios, nos corpos e nas almas do Novo Mundo; a Holanda, fazendo parte do circuito econômico gerado pela ocidentalização, ao participar enquanto financiadora dos empreendimentos ligados à cana-de-açúcar e enquanto beneficiadora dos produtos oriundos dos engenhos. Assim, podemos dizer que o período em que parte da colônia portuguesa ficou sob domínio neerlandês (1630-1654) também foi atravessado pelo fenômeno da expansão da cultura ocidental. Trata-se de uma outra aresta da ocidentalização, onde permaneceu o mesmo modelo de exploração que os lusitanos empreenderam desde, pelo menos, os anos 30 do século XVI34. Talvez a diferença que mais salte aos nossos olhos seja a de que os colonizadores neerlandeses professavam outro credo, a fé reformada em sua vertente calvinista, além de não ser conhecida, nos Países Baixos, uma instituição similar ao Padroado real, com tantas imbricações35. Não é nossa intenção, neste trabalho, efetuar uma longa discussão acerca da natureza da formação das colônias holandesas no século XVII. Mas, o de lembrar que foi durante o período de gerenciamento das capitanias do Norte pela Companhia das Índias Ocidentais que a Europa conheceu mais de perto, pela palavra e pela imagem, uma outra alteridade, diferente encontrada nas praias ao longo da costa: a dos tapuias, os índios que habitavam a vastidão das áreas sertanejas.

2.2 Alteridades devassadas: os tapuias No âmbito da capitania do Rio Grande, as experiências dos holandeses com os nativos, além de garantirem pactos de aliança militar para propiciar sua estada mais prolongada abaixo do Equador, permitiram que se visualizasse aqueles que, no final do século XVII, se interpuseram contra a extrema atitude do Império Português de despovoar de índios para povoar de colonos as terras do sertão: os tapuias.

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O significado atribuído ao termo “tapuia”, nos séculos XVI e XVII, tem ampla relação com os contatos iniciais que os europeus fizeram com os nativos da costa da América portuguesa. Cedo ficou evidenciado, pelos lusitanos, que os indígenas com quem primeiro tiveram contato falavam uma língua cujas palavras assemelhavam-se em quase toda a extensão do litoral, o que viria a facilitar a política de alianças da Coroa com os seus principais36. Pero de Magalhães Gândavo, cronista luso da época, nos informa, a propósito, que “A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos vocabulos differe n’algumas partes; mas nam de maneira que se deixem huns aos outros de entender (...)”.37 A opinião desse cronista, que é corroborada nos escritos do padre Fernão Cardim, seu contemporâneo, indica quão foi importante a questão da língua para os primeiros relacionamentos entre brancos e índios38. Ademais, os nativos que habitavam a costa e falavam praticamente a mesma língua – ou línguas ligadas ao mesmo tronco lingüístico – ficaram conhecidos como Tupi39. A sua participação no processo de colonização oscilou a ponto de serem considerados seres passivos, dóceis e prontos para serem subjugados (seja pela fé, seja pela espada) ou, de forma paradoxal, peça indispensável para o sucesso da empresa colonial, tanto pela sua utilização como força de trabalho como por constituírem um contingente populacional que facilmente poderia suprir o desejo da Coroa de povoar as novas terras.40 Ao passo que a ocidentalização se encaminhava em direção ao interior do território, afastando-se da área próxima ao mar, outros grupos foram sendo conhecidos, os quais falavam várias línguas e pertenciam a diferentes etnias. Os discursos coloniais que apontam essa diferença entre os nativos afastados do litoral com relação aos Tupi – sobretudo crônicas de colonos e de jesuítas e ainda a correspondência oficial mantida entre a colônia e o Reino – colaboraram para “produzir uma visão bipolar da humanidade indígena na América Portuguesa”, utilizando-se das palavras de Pedro Puntoni41. Dessa forma, os indígenas que habitavam o sertão da América portuguesa ficaram conhecidos como tapuias, nome que lhes era atribuído pelos Tupi, tradicionalmente considerados como seus inimigos. Tupi e tapuia. Dois pólos opostos que refletiam a lógica colonial de se utilizar as divergências locais (disputas entre grupos) para se beneficiar e instituir a política de dominação dos territórios por parte da empresa ibérica. A distinção entre eles se originava da dualidade firmada quase que exclusivamente no critério lingüístico, já que os Tupi falavam a chamada “língua geral” ou nheengatu, de “grandíssimo bem para a sua conversão”, como relatou o jesuíta José de Anchieta42 e de bom entendimento para os falantes da língua

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portuguesa, ao passo que os tapuias falavam a “língua travada”, “tremendo o papo”, assim como escrevia o cronista quinhentista Gabriel Soares de Souza43. Seguindo o mesmo raciocínio, podemos dizer que, sendo o Tupi uma língua inteligível aos olhos dos primeiros representantes da cultura ocidental a pisarem no Novo Mundo, favoreceu a colonização à medida que o Catolicismo romano pôde compilar e difundir sua gramática44, prosseguindo com o ideal de catequese e salvação das almas nativas. Historicamente os povos de língua Tupi, guardadas as devidas exceções, estiveram mais expostos ao fenômeno da ocidentalização no decorrer do Quinhentos e parte do Seiscentos. Os Tapuias, pelo contrário, emergiam como um substrato a se afastar cada vez mais da cristandade pelo obstáculo que se constituía o seu disciplinamento aos moldes do que se fazia na costa com a parceria da Igreja Católica Romana. Razão pela qual, durante os tempos coloniais, eram vistos como uma “unidade histórica e cultural” que era antagônica não apenas ao mundo cristão, mas, também, aos povos do litoral45. Esse antagonismo abria a possibilidade dos tapuias serem chamados de bárbaros, gentios ou até mesmo de gentios bárbaros – denominações que aparecem com freqüência tanto nas crônicas como na documentação burocrática colonial, indicando uma das classificações em que esses índios estavam enquadrados. O fato de não estarem tão próximos da cristandade quanto os Tupi, destarte, não tirava as chances de serem envolvidos pela catequese. Sendo bárbaros, ou designados como tal, eram passíveis também de serem integrados à Igreja de Roma, desde que esta última empreendesse estratégias convenientes e que atendessem aos desígnios da colonização, mesmo sendo consciente das dificuldades decorrentes da diversidade lingüística dos tapuias. Devemos atentar, junto com Pedro Puntoni, para o fato de que que a barbaria se tratava de uma noção duplamente construída, decorrente da dualidade que estamos discorrendo. Ao passo que os Tupi eram aceitos como elementos legítimos do Império Português, pela sua aparente integração à cultura ocidental, os tapuias, por outro lado, estavam comprometidamente inscritos como integrantes da barbárie. Essa representação, que evidenciava o etnocentrismo do Ocidente, estava carregada de preconceitos que paulatinamente imprimiam aos tapuias uma imagem negativa e eivada de signos pejorativos, como o da antropofagia, o da selvageria e da ferocidade46. O entendimento desse antagonismo entre os Tupi e os tapuias, discutido por Pedro Puntoni, parte de três elementos: a) o fato de que essa bipolaridade refletia com precisão o destino do projeto colonizador, já que aos Tupi era destinada a cristandade, quando aldeados por agentes da Igreja Católica e aos tapuias a escravidão, pois alguns grupos indígenas hostis 97

poderiam ser cativados em observância aos princípios da “guerra justa”47; b) as alianças dos Janduí com os holandeses e a “conversão de alguns à fé reformada”, em meados do século XVII, o que fazia com que os tapuias passassem do estatuto de bárbaro para o de infiel; c) a situação geográfica dos índios não-Tupi, que se localizavam no sertão.48 Elementos que levam-nos a concordar com a idéia de que o termo tapuias traduz-se, efetivamente, como um “marcador étnico genérico”, que servia como instrumento da dominação colonial e distribuía os povos surbordinados (ou potencialmente subordináveis) pelos europeus em categorias naturalizadas e estanques, a ponto de não contabilizar a sua extrema diversidade lingüística, sobretudo no sertão49. “Tapuia”, portanto, não se traduz como um etnônimo50 e sim na qualidade de uma categoria colonial, generalizante, onde estava oculta uma miríade de grupos indígenas que entraram em contato com os colonizadores à medida que a ocidentalização se alastrava pelos territórios nativos afastados do litoral. Os discursos coloniais, assim, nos fazem perceber uma determinada associação entre os tapuias e o sertão, como se essas duas categorias estivessem a tal ponto entrelaçadas que seria mesmo dificultoso separá-las. Nesse sentido, a análise procedida por Maria Elisa Mäder, tomando como ponto de partida os textos mais antigos escritos sobre a América Portuguesa, evidencia uma clara oposição entre a região colonial e o sertão, como se a conquista tivesse se processado sobre espaços cheios e vazios, respectivamente. A região colonial seria o espaço cheio, preenchido pela colonização, onde a ordem havia se estabelecido graças à presença de duas instâncias de poder, a Igreja e o Estado. O sertão, por sua vez, seria o território do vazio, onde reinava o desconhecido e imperava a barbárie e a selvageria, porquanto ausente dos súditos do rei51. Mediante a compreensão dessa oposição binária, anuímos à asserção de Cristina Pompa quando enuncia que a noção de “tapuia” foi construída anexada à de sertão, como espaço vazio, interior, desabitado (de súditos do rei), selvagem, afastado da costa52.

2.3. Aliados infernais: os Tarairiu As noções de índios selvagens e ferozes não são prerrogativas, apenas, dos discursos de origem lusitana ou luso-brasílica. Os relatos produzidos pelos holandeses, durante o período em que estiveram à frente de grande parte das capitanias setentrionais, também mencionaram a selvageria e a ferocidade dos tapuias. As características dos índios que

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habitavam a vastidão do interior eram as mesmas, todavia, a intenção se mostrava diversa: por mais ferozes que aparentassem ser, os tapuias eram colocados no mesmo plano que os holandeses, já que as alianças firmadas com estes últimos lhe garantiram a condição de força militar contra possíveis tentativas portuguesas de retomada dos territórios das capitanias coloniais. Daí a razão para que os cronistas holandeses chamassem os tapuias de seus aliados infernais, unindo, numa só expressão, a cumplicidade de ordem militar e a percepção da natureza guerreira e violenta desses índios53. De acordo com Cristina Pompa, os discursos coloniais ligados aos neerlandeses diferenciam-se dos de origem ibérica pelo fato de primarem por um certo “esforço de objetividade”, indicando quais as fontes de onde retiram as informações sobre os grupos indígenas, seus costumes e relações com os rivais e aliados.54 Seria muito ingênuo de nossa parte, todavia, acreditar que esses discursos foram produzidos de maneira incólume: do contrário, também foram “filtrados” pelo horizonte cultural holandês, de maneira que as descrições sobre os tapuias incidiram sobre aspectos que os seus autores consideravam importantes para virem a público e, portanto, nortearem as políticas de alianças com os diversos grupos indígenas espalhados pelo sertão. Embora carregados das concepções de mundo dos autores, em grande medida tributárias da cultura ocidental, os discursos produzidos no decorrer do período holandês realmente demonstraram ser diferentes dos de origem portuguesa ou luso-brasílica, escritos no decorrer do século XVI e nas primeiras décadas do século XVII. Embora, em alguns momentos, nomeassem os nativos do sertão de tapuias, efetivamente não os consideraram enquanto uma população amorfa, genérica e homogênea: enxergaram, por trás dessa denominação universalizante – a de tapuias –, a vasta diversidade cultural dos índios espacialmente localizados no sertão: Kariri, Kaririwasy, Cereryjouw e, dentre outros, os Tarairiu. Os neerlandeses estiveram, particularmente, mais próximos dos Tarairiu chefiados pelo principal Janduí, com os quais mantiveram as “alianças infernais” que lhes permitiram, especialmente com relação à Capitania do Rio Grande, assegurar o domínio territorial e econômico. Em investigação acerca da importância desses “aliados infernais” para a Companhia das Índias Ocidentais, Ernst van den Boogart afirmou que muitos empregados desta última tiveram a oportunidade de observar ou estar junto dos Tarairiu, entretanto, por curtos períodos de tempo. Poucos estiveram durante muitos meses junto desses índios no sertão, observando o seu comportamento e descrevendo, em anotações que foram posteriormente publicadas, os seus costumes. São conhecidas as estadias de Jacob Rabe, Roeloff Baro e Pieter Persijn55, 99

sucessiva e cronologicamente situadas na década de 40 e 50 do século XVII, em companhia das tribos lideradas pelo rei56 Janduí, na condição de emissários das autoridades coloniais holandesas junto aos Tarairiu e também intérpretes. Dois desses mensageiros produziram relatos sobre esses índios, um deles sendo publicado – o de Roeloff Baro – e o outro – o de Jacob Rabe – tendo servido de base para as crônicas posteriores de Barléus, Marcgrave e Nieuhof. Ernst van den Boogart, discutindo essas fontes de informação sobre os Tarairiu, classifica os discursos coloniais do período holandês em dois grupos. O primeiro é formado por relatos que tentam descrever o modo de vida desses indígenas, embora sua intenção central não fosse essa. Trata-se de documentos administrativos ou relatórios onde emergem pequenos detalhes acerca dos Tarairiu e de suas práticas culturais, como os relatos de uma negociação de Arciszewski no Forte Ceulen (1634), de uma expedição ao engenho Cunhaú na presença de Joris Gardtzman e de viagens esporádicas de pequenos grupos tarairiu ao Recife, na época de Nassau. A exceção, certamente, é o texto de Elias Herckmans, incluso na “Descrição Geral da Capitania da Paraíba”, de 163957, que, além de prestar contas às autoridades da Companhia das Índias Ocidentais dos seus feitos na Paraíba, apresentou descrição detalhada sobre o modo de vida dos Tarairiu. Herckmans esteve nas terras da Paraíba entre os anos de 1635 e 1639, como autoridade oficial instituída pela Companhia das Índias Ocidentais para administrar o território, ocupando, assim, o cargo de terceiro “governador” holandês daquela capitania. Era gestor, também, dos negócios do açúcar na capitania e na vida pessoal dedicou-se à poesia e à dramaturgia, sendo suas principais obras o “Elogio da Navegação” (Amsterdã, 1634) e o “Elogio da Calvície ou Louvor dos Calvos” (1641)58. Na sua “Descrição Geral da Capitania da Paraíba”, onde trata de assuntos ligados à geografia e às potencialidades econômicas das terras banhadas pelo rio que dava nome à região, Herckmans incluiu uma “Breve descrição da vida dos tapuias”. Referia-se, naquele momento, aos tapuias como sendo vizinhos dos brasilianos59, habitantes do litoral da Paraíba, com os quais mantinham guerras. Para ele, os tapuias eram um povo que habitava sobre os montes e nos lugares mais afastados das capitanias, nos limites da ocupação pelos brancos, fossem portugueses ou neerlandeses. Referiu-se a alguns deles como sendo habitantes transversalmente a Pernambuco, os Kariri, chefiados pelo rei Kerioukeiou, além dos Kaririwasys, chefiados por Karupoto e dos Cereryjouws. Afirmou, todavia, que os tapuias com quem os holandeses mantinham um contato mais particular eram os da nação “Tarairyou”, chefiados, uma parte, por “Janduwy” e outra por “Caracará”60. 100

A narração de Elias Herckmans sobre a vida cotidiana dos Tarairiu, que afirma ter observado de perto, inclui aspectos como a sua localização geográfica, situada a oeste do rio Grande e do Cunhaú; o seu nomadismo, incluindo a migração anual ao litoral para a busca do caju; a robustez do corpo e a maneira como se apresentavam para os demais; a distinção existente entre a figura do rei e os demais índios; a utilização de armas com grande potencial destrutivo; as cerimônias coletivas de casamento e de danças, bem como os ritos de passagem e, dentre outros, a prática de comer a carne dos parentes mortos61. Segundo Cristina Pompa, a descrição de Herckman constitui o modelo que servirá, com maiores ou menores acréscimos, de base para a produção de novos discursos sobre os Tarairiu, desde Wagener até Nieuhof62. O segundo grupo de fontes de informação acerca desses índios que habitavam o sertão da capitania do Rio Grande corresponde aos textos escritos por pessoas interessadas no contato com os Tarairiu durante o governo de Maurício de Nassau. Trata-se de escritos baseados na observação pessoal dos seus autores aos indígenas, entretanto, em alguns casos, sem deixar de lado a veemente descrição de hábitos e costumes considerados exóticos para os europeus. Conforme Ernst van den Boogart, podem ser incluídos neste segundo grupo os relatos produzidos por Jacob Rabe, Roeloff Baro, Vicent Joachim Soler e Zacharias Wagener.63 Jacob Rabe, o mesmo sobre o qual já tratamos anteriormente, compôs um relato informando a sua vivência no sertão do Rio Grande durante quatro anos64, incluindo o registro da vida cotidiana dos Tarairiu liderados pelo rei Janduí, que foi presenteado a Maurício de Nassau. Infelizmente o documento original não mais existe, entretanto, conhecemos o texto escrito por Rabe através dos livros de Gaspar Barléus e de Jorge Marcgrave, que se apropriaram do relato nas suas obras sobre a América holandesa. Barléus, historiador e filólogo, nasceu na Antuérpia e compôs, a pedido de Nassau, uma narrativa sobre as obras da Companhia das Índias Ocidentais, com ênfase para o período em que este último governou. Intitulada “História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil [ e noutras partes sob o govêrno do ilustríssimo João Maurício Conde de Nassau ], foi editada em 1647, contendo a descrição do modo de vida dos tapuias através do que ficara registrado por Jacob Rabe65. O naturalista alemão Jorge Marcgrave, por sua vez, fazia parte da comitiva de Nassau, tendo estado, inclusive, no Forte Ceulen realizando experimentos meteorológicos.66 Diferentemente de Barléus, que nunca esteve na América, Marcgrave acompanhou de perto as ações de Nassau no Recife e em Olinda, bem como suas viagens para supervisionar outros pontos da colônia neerlandesa nos trópicos . Na capitania do Rio Grande, por exemplo, deve ter observado os instantes em que o Conde de Nassau 101

recebeu a visita do rei Janduí no Forte Ceulen. Sua narrativa sobre os tapuias, todavia, é de segunda mão, como mesmo informa em sua “História Natural do Brasil”, publicada em 1648, onde também reproduz um resumo da descrição de Elias Herckmans. 67 Para Ernst Boogart, que procedeu a uma análise comparativa entre o relato de Rabe – por meio da sua transcrição nas obras de Barléus e Marcgrave – e o de Herckmans, este último se distancia sobremaneira do primeiro pelo fato de estar eivado de elementos fantásticos, como que fornecendo, ao leitor, uma visão exótica dos Tarairiu. Jacob Rabe, tendo em vista a sua permanência duradoura no sertão, representou os Tarairiu como uma sociedade com suas próprias regras. Sendo o único de poucos que conseguiram aprender algo da língua tarairiu, também foi capaz de dar evidência a aspectos das idéias e das crenças sobrenaturais desses índios68 – o que não quer dizer que a crônica de Rabe fosse isenta e desobrigada. Pelo contrário: dada sua posição de emissário e “embaixador” da Companhia das Índias Ocidentais junto aos “aliados infernais” do sertão, sua narrativa aproximava-se dos interesses econômicos dos neerlandeses na América, reconhecendo o papel das alianças entre os grupos indígenas nativos como importante sustentáculo na defesa dos rincões das capitanias sob seu domínio. O relato de Rabe, como os demais procedentes do período holandês, era fruto da sua visão de mundo, do lugar de onde produzia a narrativa e, ainda mais, da instituição a cujos prescritos estava ligado. Trata-se, por isso, de uma representação69 do período holandês sobre os Tarairiu do sertão da Capitania do Rio Grande. A busca de dados sobre essas representações dos Tarairiu nas fontes emanadas do período holandês (ou escritas sobre ele) nos levam a um conjunto de dez textos70, produzidos por Gerbrantsz Hulck (1635)71, Joannes de Laet (1636)72, Elias Herckmans73, Zacharias Wagener (1641)74, Gaspar Barléus (1647)75, Jorge Marcgrave (1648)76, Willem Piso (1648), Pierre Moureau (1651), Roeloff Baro (1651)77 e Joan Nieuhof (1682)78. Ao examinar o papel desses cronistas do século XVII quanto a sua percepção da alteridade indígena na América, a comparação dos relatos feita por Ricardo Pinto de Medeiros nos conduz a características comumente apontadas acerca dos Tarairiu: o nomadismo, com referência à descidas ao litoral na época da safra do caju; a prática da caça e da coleta do mel; o endocanibalismo; as corridas de toras; a divisão do grupo em duas metades; a ingestão de bebida preparada com sementes seguida de transe por parte dos feiticeiros; os rituais de iniciação das crianças de 07 a 08 anos de idade; os rituais de casamento; as práticas mágicas em relação à cura de doenças com a fumaça do tabaco; a fumigação das sementes e do campo antes do plantio; o uso de propulsores, arcos, flechas e tacape; a adoração à Ursa Maior ou Setentrião através de festa; a agricultura do milho, fumo, legumes, abóboras em forma de bilha e mandioca; a técnica de assar com brasas enterradas; escarificações com pente de dentes de peixe ao amanhecer com o intuito de se tornarem fortes;

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o uso do estojo peniano; a depilação de todo o corpo; o uso de cabelo comprido entre os homens e mulheres.79

Elementos como esses serviram de base para que os pesquisadores do século XX, na tentativa de construírem uma etnografia retrospectiva, pudessem afirmar que os nativos chefiados pelo rei Janduí, figura fartamente citada nas crônicas neerlandesas do Seiscentos, formassem o grupo indígena Tarairiu. O primeiro esboço etnográfico dos Tarairiu foi feito por Thomaz Pompeu Sobrinho, que, partindo do relato de Herckmans, afirmou serem os tapuias citados nas fontes holandesas divididos em dois grupos, os Kariri e os Tarairiu. Estes habitavam os taboleiros do atual estado do Rio Grande do Norte, encaminhando-se para o litoral durante a época da safra do caju, dividindo-se, por sua vez, em dois subgrupos: um chefiado pelo rei Janduí (daí o fato dos Tarairiu, em algumas ocasiões, serem chamados de Janduí) e outro por Caracará80. Alguns estudiosos, partindo das descrições dos cronistas acima citadas, chegaram a classificar os Tarairiu e incluí-los no tronco lingüístico Jê81. Todavia, o mais recente estudo lingüístico sobre os nativos, de autoria de Greg Urban, considera o Tarairiu como uma língua isolada82. De onde teria se originado a palavra tarairiu para denominar os índios submetidos ao rei Janduí? Benjamin Teensma, em uma releitura da crônica deixada por Roeloff Baro, afirmou que esse nome, dado pelos holandeses aos nativos que habitavam o interior da capitania, derivava de um peixe, o taraíra, cujos cardumes existiam em grande quantidade nas lagoas formadas nos rios durante a estação das cheias e que eram consumidos pelos indígenas83. A raiz etimológica da palavra é Tupi: “taraíra”, assim como “tareíra” e “trahíra” são formas alteradas (corruptelas) de “tarahiba”, que vem de tara-guira ou tar-a-guira, significando “o que bambaleia, ou se contorce. É o nome do peixe d’água doce que vive mergulhado na vasa (Erythrinus Tareíra)”84. A significância do termo procede, considerando que Baro, como veremos posteriormente, habitou em sua juventude no seio de aldeias situadas no litoral e utilizou-se, em seu relato, de uma série de termos grafados em Tupi – o que confirma a assertiva de Cristina Pompa ao tratar dos discursos coloniais sobre o período holandês. Para a autora, os holandeses fizeram uso de um olhar “tupinizante” sobre os tapuias, isto é, referiram-se a estes últimos por meio de um esquema de palavras, expressões e significados apreendidos em seus contatos com os índios que habitavam a costa.85 Devemos anotar, entrementes, que o termo em questão foi grafado de maneiras diversas pelos cronistas. Tararyuck por Laet (1636), Tarairyou por Herckmans (1639) e Tararijou por Nieuhof (1682), o que indica diferentes percepções acerca da nominação dos 103

índios dos espaços sertanejos, decorrentes da maneira como os autores dos relatos ouviam a língua Tupi e reproduziam, através da escrita, os seus fonemas. Indica, por outro lado, o quão pode ser perigoso, para os estudiosos do presente, supor que a palavra tarairiu possa ser um etnônimo86. Só para que possamos ter uma idéia desse perigo, os próprios Tarairiu costumavam autodenominar-se de Otshicayaynoe87. Talvez incorrêssemos no mesmo reducionismo utilizado em favor do termo tapuias para designar, de maneira genérica, todos os índios que habitavam o sertão, eram inimigos dos Tupi e falavam a língua travada. Tarairiu, portanto, menos que ser um etnônimo, se constitui enquanto uma categoria colonial da qual lançaram mão os holandeses, durante o intervalo de tempo em que se apoderaram das fontes produtoras do açúcar no norte da América Portuguesa, para reportar-se aos índios que habitavam o sertão da capitania do Rio Grande e territórios limítrofes, com os quais mantiveram alianças de natureza militar. Índios cujo soberano, na maioria das vezes em que foram citados nas crônicas, era o rei Janduí, razão pela qual os seus liderados eram também chamados com esse nome88. É bastante provável que a palavra “janduí” fosse uma espécie de atributo simbólico dado ao principal do grupo (e não o nome do rei), pelo qual eram chamados todos os índios que ocupassem esse lugar de destaque, tal como ocorria, guardadas as devidas proporções, entre as sociedades nativas da América andina89 – por mais que os discursos holandeses do período falassem na longevidade dos tapuias, chegando até a 150 ou 160 anos90. É curioso atentarmos que somente os discursos coloniais do período holandês apontam a denominação de Tarairiu. A documentação burocrática oficial trocada entre as autoridades coloniais e o Reino no período pós-expulsão dos holandeses não se reportam esse termo. Falam dos tapuias e/ou aludem aos nomes dos seus numerosos subgrupos, a exemplo dos Janduí, Kanindé, Xucuru, Pega, Jenipapo, Kamaçu e Tucuriju91. Um exemplo disso é a recomendação que o Conselho Ultramarino deu ao rei D. Pedro II, datada de 10 de dezembro de 1687, a respeito do cuidado e vigilância que deveria ter com o “Gentio Tapuya da Nação Jandoim”, rebelado na então Capitania do Rio Grande92. Oito anos mais tarde (1695), no momento em que foi retificada a “paz” entre o Capitão Mor do Rio Grande, Bernardo Vieira de Melo e alguns dos índios do sertão, estes foram qualificados como “tapuyos Janduinz da Rybeira do Assu”93. Todavia, percebemos nessas fontes epistolográficas e em seus anexos uma certa primazia dada aos Janduí em relação aos outros grupos indígenas: referem-se à nação Janduí (Janduin ou Jandoim, dependendo da variação do termo) e a outros grupos ou nações, estabelecendo seu vínculo de pertencimento. 104

Essa afirmação pode ser confirmada ao atentarmos para o trecho inicial da cópia das capitulações que fizeram entre si o Governador Geral do Brasil, Antonio Luís Gonçalves da Câmara e Kanindé, rei dos Janduís, em 1692: Em os sinco de abril deste presente anno, chegaram a esta Cidade da Bahya joseph de Abreu vidal, Tio do Canindé Rey dos Janduins, Mayoral de tres Aldeas sugeitas ao mesmo Rey; e Miguel Pereira Guarejú Pequeno, Mayoral de tres aldeias sugeitas tambem ao mesmo Caninde; e com elles o Capitão João Paes Floriam Portuguêz, em nome de seu sogro putativo, chamado Neongugê; Mayoral da sua Aldea sucurú da mesma nação Janduim, e cunhado reciproco do dito Rey Canindê, a cuja obediência, e poder absoluto está sugeita toda a nação Janduim (...)94(grifos nossos).

Como podemos observar no texto acima, era Kanindé que comandava os índios Janduí quando das “pazes” firmadas com a Coroa, ao qual estavam subordinados outros maiorais, que, por sua vez, lideravam suas aldeias. A observação do olhar europeu sobre as sociedades nativas do sertão através desses “acordos” de fim de guerra95, adverte-nos, mais uma vez, para o escorregadio perigo de creditar aos vários nomes de grupos indígenas – e às conexões entre eles – citados nos documentos oficiais o status de etnônimos. Afinal de contas, trata-se da representação que os colonos faziam da extrema variedade dos índios do sertão, motivada pela sua maneira de enxergar o mundo e, particularmente, de ler e compreender a organização das sociedades ocidentais. Representação que se fazia necessária, tendo em vista que a construção das alianças entre os índios “mansos” e os “hostis” estava no bojo da política colonial de subordinação das populações autóctones – idéia que é confirmada por John Monteiro em análise a respeito das identidades indígenas coloniais. Segundo o autor, levando-se em consideração as terras baixas da América do Sul, “o mosaico etno-histórico do mapa pós-contato contrasta com um panorama pré-colombiano que mais se assemelha a um caleidoscópio”. Citando a resenha de Eduardo Viveiros de Castro ao livro “História dos Índios no Brasil”, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, afirmou que a atribuição de etnônimos era “fruto de uma incompreensão total da dinâmica étnica e política do socius ameríndio”, incompreensão essa fundamentada num conceito “substantivista e ‘nacional-territorialista’”, longe da “natureza relativa e relacional das categorias étnicas, políticas e sociais indígenas”96

Em outras palavras, as diversas classificações em que os europeus distribuíram os grupos indígenas que iam entrando em contato, gradativamente, com a ocidentalização, são o reflexo da sua cosmogonia sócio-espacial. A idéia de que os Estados modernos, governados 105

de forma absoluta por um rei e dispondo de um território com limites bem definidos no mapa, certamente perpassou o entendimento construído, na América, sobre as sociedades indígenas. Vistas pela lente da cultura ocidental, essas sociedades foram agrupadas, muitas vezes, em nações – onde o indivíduo que exercia a função de chefia temporal era chamado de rei – que se organizavam a partir de um determinado recorte espacial. Tanto as fontes portuguesas quanto as de origem holandesa, desprezando parcial ou totalmente a dinâmica interna das sociedades nativos do Novo Mundo, indicam o esforço laborioso dos europeus em incluírem os indígenas em um esquema classificatório que estivesse de acordo com as instituições ocidentais. A viagem de Roeloff Baro ao sertão da Capitania do Rio Grande, em 1647, é um interessante ponto de partida para a compreensão desse pensamento.

2.4. Rumo ao País dos Tapuias De acordo com José Antonio Gonsalves de Mello, no transcorrer dos anos de dominação holandesa nas terras da América “uma das preocupações mais constantes de seu governo [ holandês ] foi a de atrair e conservar a amizade dos brasilianos – assim chamados os Tupis – e dos tapuias”.97 Tratava-se de uma estratégia para a continuidade da política de alianças firmada desde as primícias da década de 1630 com os índios que encontravam-se no litoral e, de quebra, com aqueles que habitavam o sertão. Com o concurso destes últimos, especialmente, a Companhia das Índias Ocidentais contava para a salvaguarda da fronteira situada a oeste das áreas povoadas com colonos holandeses, no litoral e adjacências. Salvaguarda contra ameaças como tribos hostis e, mais ainda, portugueses ou luso-brasílicos insatisfeitos com as autoridades neerlandesas e suas decisões no Novo Mundo. No fim da década de 1640, todavia, os pilares que sustentavam a extensão do Império Holandês nos trópicos começam a apresentar sinais de fragilidade. Concorreram, para isto, o fim da União das Coroas Ibéricas, com a restauração do trono português (1640) e o início do movimento de insubordinação dos luso-brasílicos contra o monopólio da Companhia das Índias Ocidentais, lembrado na historiografia como Insurreição Pernambucana (1645). Nesse cenário de convulsões e alvoroços aconteceram os conhecidos massacres de Cunhaú e Uruaçu, já mencionados anteriormente, perpetrados sob o comando de Jacob Rabe. Dentre os mortos na chacina do Porto de Uruaçu estava o francês João Lostão Navarro, que há vários anos mantinha um porto de pescaria na “Enseada de Tagoatinga”, como se depreende da

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observação no mapa de Marcgrave que será comentado posteriormente. Além disso, era pai de dona Beatriz Lostão Casa Mayor, que casara com Joris Gardtzman, comandante do Castelo Ceulen. A morte do francês Navarro não agradou ao marido de dona Beatriz Lostão, que arquitetou uma emboscada para matar Jacob Rabe, a qual aconteceu em 04 de abril de 1646, após a realização de uma festa no sítio de um colono neerlandês chamado Dick Muller.98 A morte de Rabe estremeceu as relações de aliança entre neerlandeses e nativos. O rei Janduí e os principais a ele congregados, ao saberem do ocorrido e do ardil do comandante do Forte Ceulen, enviaram do sertão um grupo de indígenas ao litoral para tratarem da situação a seu modo. Queriam a todo custo matar Gardtzman para justiçar Rabe, ato que nos leva a compreender a afirmação de Pierre Moureau sobre os Tarairiu ao tratar da fatídica morte: “Gostavam dele [ de Jacob Rabe ] mais que de cem outros; apesar disso agradava-lhes ser sempre amigos dos holandeses, mas faziam questão de obter Gastsman para matá-lo.”99 Gardtzman, entretanto, não foi entregue aos Tarairiu, já que se tratava de um oficial superior e, portanto, passível de ser submetido a julgamento segundo o que estava previsto nos códigos neerlandeses da época. Após ser preso e julgado junto com o alferes Bolan – com quem compartilhou o plano de matarem Rabe e dividirem o seu rico cabedal – foi demitido do seu cargo, teve seus soldos e bens confiscados, além de ter sido proscrito para a Holanda como uma pessoa indigna100. A delegação dos Tarairiu que tinham ido ao litoral justiçar Rabe – e apenas puderam assistir a prisão de Gardtzman –, voltou descontente para o interior, dizendo, ao partir, que “os holandeses se arrependeriam”101, tão grande era a sua insatisfação. A morte de Rabe e o encarceramento de Gardtzman motivaram alguns tapuias e brasilianos dissidentes de Janduí a saírem das fileiras neerlandesas e militar ao lado dos portugueses. Indo ao interior do Ceará, esses índios insurgentes massacraram todos os holandeses aí presentes e chegaram a enviar pequenos presentes para o rei Janduí, a fim de convencê-lo a passar-se para o “lado” português. O rei Janduí respondeu que preferia “guerreá-los a consentir e aprovar sua má ação [ dos índios revoltados ] no Ceará”.102 Mesmo contrariado com a morte de Rabe, o principal Janduí ainda mantinha sua fidelidade – todavia, abalada – aos neerlandeses. Para estes a situação apresentava-se melindrosa, já que da utilização dos Tarairiu como ponto de apoio na defesa da fronteira do sertão dependia a continuidade do domínio na Capitania do Rio Grande – “absolutamente necessário” até que a Holanda enviasse a devida assistência para a sua colônia na América. O cronista Joan

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Nieuhof, que escreveu trinta anos à frente da morte de Rabe, realçou acerca dessa necessidade de controle que O Rio Grande era, portanto, a única região de onde se recebiam quantidades ponderáveis de farinha e gado que minoravam em parte a escassez de gêneros reinante no Recife, cujo estado sanitário só devido à orientação prudente do Conselho podia ser mantido em situação passável, enquanto não chegavam os socorros provenientes da Metrópole.103

Estamos diante, portanto, das razões mesmas que desembocaram na tomada das possessões portuguesas na porção norte da América: a necessidade do controle das fontes produtoras para salvar os Países Baixos da ruína econômica em que cairia, fatalmente, com o bloqueio de comércio continental imposto pela Espanha. Evaldo Cabral de Mello, analisando o contexto da dominação neerlandesa, nos dá a medida de como essa situação de dependência econômica do comércio era patente, ao classificar de “guerras do açúcar” as pelejas holandesas na América104. Com relação aos fatos de que estamos tratando – os desdobramentos da morte de Jacob Rabe – não apenas o açúcar importava para os neerlandeses. No caso específico do Rio Grande, também a produção de farinha e o gado com seus derivados, que serviam para abastecer Recife, numa época em que já pipocavam com mais freqüência focos de resistência contra a presença de um tentáculo do Império Holandês na América. A atitude do rei Janduí em reprovar o massacre cometido por alguns dos “seus” – desafetos dos neerlandeses por terem acabado prematuramente com a vida de Rabe – no interior do Ceará levou o Conselho do Recife a aproveitar a oportunidade e propor uma recomposição das alianças firmadas desde o distante ano de 1631105. Reconhecendo a “boa vontade” de Janduí, a Companhia das Índias Ocidentais nomeou Roeloff Baro para ocupar a posição antes preenchida por Rabe e ordenou sua ida ao sertão, onde deveria agradecer-lhe [ ao rei Janduí ] em seu nome a amizade que lhes dispensava [ aos holandeses ] e, em testemunho da sua, presenteá-los de sua parte com machados, machadinhas, facas, espelhos, pentes e objetos semelhantes, ao mesmo tempo que deveria demonstrar-lhe os embustes e infidelidades dos portugueses, convidando-os a não os abandonar.106

Antes que mergulhemos no itinerário dessa viagem e nas suas representações acerca dos nativos do sertão, é preciso que estejamos atentos à personalidade do nosso viajante – Roeloff Baro – e às condições de que dispunha para a produção textual do seu relato.

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2.4.1. Escritos e pós-escritos Roeloff Baro veio para a América portuguesa a bordo de um navio holandês em 1617, que aportou em uma praia do atual litoral do Rio de Janeiro, onde quase todos os tripulantes foram mortos por índios Tupi aliados dos portugueses. Somente escaparam com vida o grumete Baro, que contava com sete anos de idade à época e o capitão Dierick Ruiters. Este foi enviado para a sede do Governo-Geral, Salvador, onde foi interrogado. Posteriormente conseguiu escapar das autoridades portuguesas e regressou à Holanda, retornando ao Novo Mundo em 1624, quando da tomada de Salvador pelos neerlandeses, ocasião em que orientou e guiou as tropas responsáveis pela ação militar. O pequeno Baro foi enviado para uma aldeia Tupi no litoral, provavelmente na porção norte da colônia, a julgar pelo fato do capitão Ruiters ter sido enviado para Salvador. Nessa aldeia, com os anos, deve ter aprendido o Tupi, a língua geral e, também, algumas noções de português, dado o convívio cotidiano com os índios, com os quais também pescava, caçava, praticava a agricultura e brincava. Conheceu o modo de vida Tupi de perto, praticando seus hábitos e incorporando-os à sua personalidade durante o resto da vida107. É possível que Baro tenha sabido da investida neerlandesa contra a Bahia de Todos os Santos em 1624, porém, somente com o apoderamento da Capitania de Pernambuco, em 1630, tomou uma atitude decisiva, que mudaria sua vida dali em diante. Secretamente dirigiu-se à sede da Companhia das Índias Ocidentais, em Pernambuco, onde se apresentou às autoridades holandesas como aliado. A companhia soube incorporar Baro às suas fileiras, já que se tratava de um exemplo singular de holandês há anos adaptado ao viver nos trópicos e profundo conhecedor dos falares dos brasilianos.108 A primeira missão conhecida de Baro deu-se em 1643, quando, em companhia de três tapuias, devassou o sertão da Capitania da Paraíba, onde estabeleceu contato com os Waripeba e os Karipató, que enviaram representantes para visitar Maurício de Nassau, retornando para suas aldeias com presentes. Face ao sucesso de Baro, o conde de Nassau o contratou com ordenado anual, com a obrigação de “dedicar-se ao descobrimento de terras”109, razão pela qual foi promovido ao status de alferes. Um ano depois (1644), Roeloff Baro juntou às suas forças de batalha a cifra de cem tapuias, chefiando uma expedição110 que colocou por terra os Palmares Grandes, fazendo tombar cem negros.111 Nesse mesmo ano, graças ao pecúlio acumulado, viajou à Holanda, onde casou com Lobberich Wijbrants, cerimônia que teve lugar em Amsterdã no dia 15 de outubro. No retorno à América holandesa, sem a esposa, comprou uma fazenda de gado no lugar Jacaré Mirim, situado no litoral da Capitania do Rio Grande, onde ficou residindo, já 109

que a Companhia das Índias Ocidentais lhe prescrevera ordens de “localizar minas de prata no curso superior do [ rio ] Potengi”.112 É nesse momento histórico que encontramos Baro sendo nomeado pela Companhia das Índias Ocidentais para desempenhar as funções de articulador da aliança entre os neerlandeses e os Tarairiu. Sua primeira viagem oficial onde tratou das alianças com o rei Janduí se deu entre maio e julho de 1646, com o objetivo de tranqüilizar os índios que estavam enfurecidos desde o assassinato de Rabe. Conduziu para o sertão, junto com essa difícil tarefa, vinho, cachaça e quinquilharias, como era de praxe.113 Tendo regressado à costa, sua segunda viagem iniciou em 3 de abril e foi concluída em 14 de julho do ano de 1647, com êxitos e malogros devido ao inverno que encharcava os campos da capitania. O relatório dos acontecimentos dessa missão de Baro junto aos Tarairiu foi levado ao Recife, sede da Companhia das Índias Ocidentais em território americano, onde foi consultado e traduzido para o francês pelo historiador Pierre Moureau, não restando nenhum indício de existência do original em holandês. A publicação do relato de Baro se deu na França em 1651 e em Amsterdã um ano após, como anexo do livro História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses, de Pierre Moureau.114 A primeira tradução para o português foi feita pelo Major Mário Barreto, encartando o Boletim do Estado Maior do Exército em seu volume XXII (1923). Segunda tradução – do francês para o português – feita por Lêda Boechat Rodrigues nos anos de 1950 e publicada em 1979115, junto à qual figuraram anotações de Claude Barthomy Morisot, erudito e estudioso de gabinete que compilou informações extraídas de outras fontes e comentou aspectos da tradução de Moureau a respeito da viagem de Baro.116 Essas sucessivas traduções – do neerlandês para o francês e deste para o português –, certamente, contribuíram para que o relato que hoje conhecemos não seja exatamente igual ao que foi produzido por Roeloff Baro há mais de trezentos e cinqüenta anos. Considerando que no processo de condução de um texto para outra língua alguns vocábulos acabam se perdendo ou sendo adulterados, além do que o holandês que se falava e escrevia no século XVII não é mais o de hoje. Estamos diante, portanto, de uma problemática que circunda a fonte histórica em exame, a da originalidade do documento. Não se trata mais do texto escrito no século XVII por Baro, por conseguinte, temos que utilizar as informações ali contidas como sendo fruto das representações que os seus tradutores fizeram ao transpor o conteúdo de um idioma para outro. Benjamin Teensma, analisando a Relação da viagem ao país dos tapuias à luz das suas condições de produção, dos referenciais de mundo do autor e, ainda, da forma como foi transposta de uma língua para outra, concluiu que a tradução feita por Pierre Moureau ainda 110

no século XVII não é fidedigna, já que houve dificuldade em ler a grafia manuscrita de Baro, o que levou a nomes de lugares e pessoas terem sido erroneamente decifrados e reproduzidos. Lembrou o caso dos relatos de Herckmans, originalmente em holandês, e o de Rabe, em alemão, que foram traduzidos, na Holanda, para o latim, bem como o do próprio Baro, também em neerlandês e que foi transposto para o francês por Moureau. Os três textos foram traduzidos, todavia, sem que os autores que os produziram tivessem controle sobre esses processos de transcrição de uma língua para outra. Logo, segundo o pensamento de Benjamin Teensma, Nessas fontes, (...) encontram-se repetidamente os topônimos e antropônimos exóticos em variantes severamente mutiladas. Essas deturpações tipográficas nunca podem ser aceitas cegamente; sempre é preciso compenetrar-se da intenção dos autores, e sempre é preciso que a lógica intrínseca dos relatórios sirva de pauta. Deve adotar-se constantemente o axioma de que as tais mutilações ofereçam algum paralelismo visual com as formas das palavras, tais como escritas em manuscrito nos idiomas originários.117

As considerações acerca do diário de Baro, que procedem de uma crítica externa e interna ao documento, auxiliam os historiadores do presente a rever posições antes imaginadas como seguras face ao que se conhecia. Teensma, em sua análise, afirmou a propósito que até o final do século XX os historiadores não tinham conseguido atentar para esses problemas de ortografia, levando-os a interpretações baseadas no que os tradutores apresentavam como sendo a transposição correta das palavras.118 É possível isolarmos, em uma tabela, algumas dessas adulterações feitas por Moureau sobre o texto de Baro, que, inclusive, continuaram na tradução para a língua portuguesa feita por Lêda Boechat Rodrigues119: A leitura do diário da viagem de Roeloff Baro que fizemos, tendo como parâmetros a releitura da tradução feita por Benjamin Teensma nos leva a reconhecer espaços que a partir do século XVIII seriam incorporados ao território da Ribeira do Seridó: a Serra de Santana, o rio Acauã e o rio Picuí. Evidência de que os topônimos podem nos reconduzir ao passado, por intermédio dos escritos deixados pelos viajantes, fornecendo um índice das ações e intenções do homem sobre o meio ambiente. E também de que podem nos proporcionar o conhecimento, no nível das representações, sobre as “marcas difusas que nativos e europeus imprimiram na paisagem”, isto é, sobre a maneira como dois mundos distintos construíram e vivenciaram os seus territórios.120

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Tabela 1 Correspondências entre os vocábulos apontados por Moureau e Baro com possível localização atual Baro segundo Pierre Moureau Baro segundo releitura de Teensma Localização ou significado atual Corpamba (Ipe)cacuanha Ipepaconha Corraueara Carandaí (por via de carranday) Harhara e Preciava Carcará Houcha Taúba (por via de taoeba) Divindade/espírito Incareningi Jacaré-Mirim Ceará-Mirim (?) Itaquerra Picuí (por via de Piekoewy) Rio Picuí Matiapoa, Montagina, Turracoa e Serra de Mac(k)aguá Serra de Santana Vvarhauaa Montagne des Minas Serra de Mac(k)aguá ou Acauã Serra de Santana Roulox Baro Roeloff Baro Rodolfo Baro Vitapitanga Tapuia (=Vice- Paiaku (cacique dos) Capitán Tapuia) Vvahu e Vvuvvug Acauã (variante do termo acima) Rio Acauã Vvajapeba, Vvarrivvare, Luis Martim Soares Caravata Portugais (=CapitánGeral Português) fonte: TEENSMA, Benjamin Nicolau. O diário de Rodolfo Baro (1647) como monumento aos índios Tarairiú do Rio Grande do Norte, p. 86-93.

Territórios esses que estavam em constante atrito, já que a fronteira, para os nativos, estava sinalizada pelos limites do uso que faziam dos recursos da natureza. Do lado dos europeus, a medida de como iam ocupando o espaço e reproduzindo nele suas instituições era a própria fronteira, esta se dilatando, portanto, até onde o corpo dos súditos do monarca estava121. A narrativa de Baro, dessa forma, nos propicia uma percepção sobre os contornos da fronteira da ocidentalização holandesa e, de quebra, sobre a geografia que ia se desenhando, paulatinamente, pelo interior da capitania. 2.4.2. Territórios e territorialidades Abril de 1647, Ribeira do Potengi. Chovia forte, a ponto das terras do litoral e das ajdacências encontrarem-se embebidas pelo aguaceiro que caía e que se acumulava nos rios. O inverno incidia com força total sobre a Capitania do Rio Grande e essa situação fez com que Roeloff Baro não cumprisse imediatamente, como queria, a ordem recebida da Companhia das Índias Ocidentais de ir a Janduí e renegociar as alianças. A expedição era pequena numericamente, composta do próprio Baro, do ajudante polonês João Strass, de um brasiliano e três tapuias, acompanhados de quatro cães para garantir a caça necessária à alimentação. Durante mais de quinze dias o grupo tentou iniciar o itinerário que levaria até os domínios do rei Janduí – por diversas vezes executado, em anos anteriores, pelo falecido Jacob Rabe – porém, o excessivo transbordamento das águas os reteve nas margens, quase 112

sempre retornando à Ribeira do Ceará-Mirim, lugar de residência de Baro. A sua admiração era tanta com a invernada que, quando as águas dos leitos dos rios baixaram um pouco, em 17 de abril, chegaram até as margens “do Camaragibe, que parecia um mar e tinha tal correnteza que era impossível atravessá-lo, o que nos obrigou a arrepiar caminho e a voltar, ainda uma vez”.122 Três dias depois, em 21 de abril, aos expedicionários se juntaram mais dois brasilianos que Baro tomou de uma aldeia nas proximidades de onde morava – ocasião em que conseguiram cruzar o leito do Camaragibe, afluente do rio Potengi. Do outro lado do rio encontraram dez tapuias, recém-saídos de uma travessia, a nado, do leito caudaloso do Potengi. Sob o comando de um murotij123, esses tapuias tinham sido enviados pelo rei Janduí com a função de encurtar o tempo da viagem de Baro, já que os portugueses haviam feito contato com aquele principal, oferecendo-lhe presentes e pedindo ajuda na luta contra os neerlandeses. O envio dos índios do sertão ao litoral confirmava as notícias que chegavam ao Conselho do Recife, que mencionavam a boa vontade de Janduí em permanecer ao lado dos holandeses, mesmo depois da trágica morte de Jacob Rabe. Os tapuias, hábeis conhecedores dos caminhos e dos atalhos para se transitar por entre os cajuzais, guiaram Baro e os seus companheiros por um trajeto menos ensopado de água, factível de ser cruzado em segurança. Em 23 de abril cruzaram o rio Potengi, perto de sua foz, de onde avistaram o “castelo do Senhor de Keulen”; um dia depois estiveram na casa de Schouten e daí atravessaram o rio Pitimboa (atual Pitimbu); em 25 de abril passaram pelo Pirausie (atual Pirangi) e em 26 transpuseram o rio Monpabu (atual Trairi).124 Seguindo, deste ponto em diante, o “Caminho de Gardtzman”125, dirigiram-se para oeste e depois para norte, até atingir as cabeceiras do rio Monpabu126, onde descansaram por alguns dias. Continuando na marcha em direção ao noroeste, o grupo “alcançou, a 13 de Maio, ao pé duma montanha, um afluente meridional do Potengi”.127 Deixando a maioria dos integrantes da expedição, viajou dois dias depois secundado apenas por João Strass e dois índios. Em 19 de maio o grupo chegou a um dos contrafortes da Serra de Macaguá (Serra Montagina, pelo texto de Baro). Esses lugares não eram estranhos para os neerlandeses. Com a vinda de Maurício de Nassau para assumir a governança civil e militar da colônia holandesa na América, em 1637, os trópicos conheceram uma situação inusitada: ao aportar em Pernambuco, a comitiva do conde não trazia um exército, como seria de praxe, mas, “uma verdadeira missão científica que ainda hoje desperta as atenções dos estudiosos daquele período”.128 Junto a Nassau vieram o latinista e poeta Franciscus Plante, o médico e naturalista Willem Piso, o astrônomo e naturalista Jorge Marcgrave, os pintores Frans Post e Albert Eckhout e o médico Willem 113

van Milaenen. Além destes, o humanista Elias Herckmans, os cartógrafos Cornelis Bastianszoon Golijath e Johannes Vingboons, o desenhista Gaspar Schmalkalden, o pintor Zacharias Wagener e o arquiteto Pieter Post, que se integraram em datas posteriores à missão nassoviana.129 Homens cujo trabalho nas mais diferentes áreas do conhecimento apresentou resultados em mapas, livros, quadros a óleo, gravuras e uma massa de conhecimento científico sobre os trópicos que se tornou o primeiro conjunto uniforme de informações geográficas, botânicas, zoológicas e étnicas sobre a América que mereciam certa credibilidade na Europa da Idade Moderna, apesar de suas motivações comerciais130 (grifo nosso).

O conhecimento geográfico produzido pelos encarregados de tal ofício, logo, era de importância excepcional para os holandeses. Isto porque a empresa colonizadora dependia da maior ou menor percepção acerca dos pequenos núcleos urbanos do litoral e sua estrutura de defesa militar, bem como das áreas produtoras de açúcar e de seus escoadouros, para que os lucros da Companhia das Índias Ocidentais fossem garantidos.131 Um exemplo dessa percepção encontra-se na gravura incluída no livro de Johannes de Laet, intitulada “Afbeeldinghe van T’Fort op Rio Grande ende Belegeringue” (Planta do Forte do Rio Grande e arredores). A imagem (Figura 13), que nos dá uma visão da conquista holandesa do Forte dos Reis Magos em 1633, diferencia-se claramente das representações geográficas que ainda perduravam no século XVI, eivadas de elementos decorativos e fantásticos. Aproximase de uma representação que pretende ser científica e o mais próximo da exatidão, considerando que é a observação do cartógrafo, in loco, que permitirá a transposição da paisagem para o plano bidimensional. A gravura abaixo, de autoria de Izaak Commelyn nos permite visualizar o litoral da Capitania do Rio Grande no nível da desembocadura do rio Potengi, com ênfase para o Fort Tres Reys ou Fort Ceulen, como sugere a inscrição aposta ao mapa. A Cidade do Natal e o caminho que ligava esta ao forte, em cujas dunas próximas estavam instaladas baterias neerlandesas; outras dunas, maiores que as anteriores, situadas a oeste da fortificação citada; lagoas, portos de pescaria, afluentes do rio Potengi e os acampamentos militares dos holandeses. Eram essas as referências espaciais que compunham a representação gráfica do mapa e que, por conseguinte, dotavam-no de especial interesse para os holandeses: por meio dele, os leitores do livro de Johannes de Laet publicado em 1637 poderiam percorrer os mesmos caminhos das tropas militares que se apossaram da Cidade do Natal e do Forte dos

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Reis Magos em 1633; conhecer a costa e suas reentrâncias, o rio Potengi e seus afluentes próximos à foz, além das dunas que circundavam a fortificação.

Figura 13 Afbeeldinghe van T’Fort op Rio Grande ende Belegeringue (Planta do Forte do Rio Grande e arredores), de Izaak Commelyn (ca. 1633)

Tudo isso através de signos representados pictoricamente na gravura (edificações, linhas curvas e retas, polígonos, montanhas), reflexo de um movimento que tomou corpo durante o século XVII, alastrando-se pelo seguinte: o de uniformização da representação cartográfica, que assinalava o realce que ganhavam produtores de mapas que traçavam seus planos a partir da observação in situ da paisagem desejada. Coincidentemente, a tentativa de padronização da linguagem usada nos mapas iniciou-se na Holanda e na Itália desde meados do Quinhentos, materializando-se ao longo dos séculos XVII e XVIII, “com a consolidação de convenções e códigos de representação cartográfica e a interiorização terrestre para além da faixa litorânea”.132 Entretanto, a viagem de Roeloff Baro que estamos comentando não ficou circunscrita apenas ao litoral, ampliando-se para o interior da capitania com o intuito de encontrar o rei 115

Janduí em seus domínios. O mapa elaborado por Jorge Marcgrave (1643) perfaz parte desses caminhos, sendo a representação cartográfica do período holandês que mais se aproxima do itinerário por onde Baro e seus companheiros passaram em 1647 (Figura 14). Intitulado “Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande”, constitui-se enquanto parte de um conjunto de quatro mapas que Maurício de Nassau mandou elaborar por Marcgrave contendo informações sobre as capitanias que estavam sob o domínio holandês.133 Embora, do ponto de vista técnico, possa ser considerada uma carta corográfica134, a classificação em que Isa Adonias lhe situa é a de “mapa de notícias”.135

Figura 14 Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande, de Jorge Marcgrave (1643)

Trata-se de um trabalho que apresenta o território das Capitanias da Paraíba e Rio Grande que era de conhecimento dos holandeses à época. Evidencia os montes, veredas, rios, lagoas, portos, cidades, engenhos e sítios, revelando um detalhamento dos contornos do litoral e, portanto, precisão técnico-científica à medida que esses signos da paisagem aparecem representados a partir de convenções. É um mapa, portanto, que dava condições à Companhia das Índias Ocidentais de montar estratégias ligadas ao aproveitamento 116

econômico das capitanias em foco, fosse através da produção do açúcar, fosse por meio de outras atividades econômicas como a criação de gado ou a extração de sal.136 Em sua composição figuram as ribeiras por onde Roeloff Baro e seu grupo passaram quando se destinavam ao interior da capitania: Ceará-Mirim (indicado no mapa como Ciaramirí), Potengi (Potií ou Potijí, também chamado de Rio grande), Pitimbu (Apetimbu), Pirangi (Piranhi) e Trairí (Tareirí).137 Na representação dessas bacias hidrográficas figuram também diversos caminhos interligando o alto curso de vários rios até sua desembocadura (ver Figura 15). Provavelmente uma dessas veredas foi usada pela expedição de Baro para penetrar no sertão, acompanhada dos tapuias enviados pelo rei Janduí.

Figura 15 Detalhe de Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande, de Jorge Marcgrave (1643), com ênfase nas ribeiras do Ceará-Mirim, Potengi, Pitimbu, Pirangi e Trairi

O alto curso do rio Trairi que aparece no mapa de Marcgrave, todavia, não corresponde, exatamente, às suas nascenças. Estas estão situadas muitas léguas pela amplitude do interior da capitania, o que denota a parcialidade do conhecimento neerlandês sobre o sertão no ano em que a carta foi elaborada (1643). Conhecimento este que chegava às autoridades coloniais holandesas por meio das narrativas dos viajantes, a exemplo da de Jacob Rabe, que foi presenteada a Nassau e serviu de base, posteriormente, para obras como as do próprio Marcgrave e Barléus. Essa percepção acerca dos territórios habitados pelos Tarairiu, assim, eram dispostas em textos que mediam as distâncias entre os rios, as serras, os vales e os aglomerados populacionais, além de referirem-se às planícies habitadas pelos 117

índios utilizando, quase sempre, terminologia Tupi. Do ponto de vista cartográfico, o sertão era ainda uma incógnita, o que não quer dizer que fosse uma realidade espacial insuscetível a ser territorializada. Os mapas dos holandeses, porém, não o deixaram tão aparente. Dessa forma, a expressão “país dos tapuias”, usada por Roeloff Baro em seu diário de viagem, nos dá a medida da maneira pela qual o sertão habitado pelos Tarairiu era enxergado pelos holandeses: uma territorialidade à parte, um vasto espaço que, mesmo compondo a Capitania do Rio Grande, transparecia ter linhas de demarcação, regras, pessoas e poderes próprios. Nesse país a autoridade máxima não era o Príncipe de Orange, tampouco a própria Companhia das Índias Ocidentais, mas, o rei Janduí, figura citada com freqüência nas crônicas neerlandesas e portuguesas do século XVII, em alguns casos chamado de Nhanduí. Desse rei partiam as prescrições religiosas, as normas de como se portar e até as alianças feitas com outras tribos indígenas, visando a sobrevivência do grupo.138 Para que possamos estreitar nosso olhar sobre esse país, é necessário que retomemos, daqui em diante, a trajetória vivenciada por Roeloff Baro e seus companheiros. A 19 de maio de 1647 o grupo de Baro havia chegado a um dos contrafortes da Serra de Macaguá, que aparece no seu relato de viagem através de denominativos como Matiapoa, Montagina, Turracoa e Vvarhauaa, além de Montagnes des Minas – fruto da tradução equivocada de Pierre Moureau sobre o texto original.139 Os estudos de Olavo de Medeiros Filho acerca do período holandês, que tomaram como ponto de partida traduções como a de Moureau, dão outro rumo para o destino da viagem de Baro. O itinerário da viagem seria mais ou menos o mesmo que estivemos acompanhando, até agora, saindo do Incareninji [ Jacaré Mirim ] e atravessando os rios Camaragibe, Potengi, Pitimboa e Piransie. Daí em diante, a reconstituição geográfica que Olavo de Medeiros Filho fez da trajetória de Baro e seus companheiros segue um rumo diverso: os viajantes teriam ido do rio Pirangi ao sítio de João Lostão Navarro, na Enseada de Tagoatinga e daí cruzado as lagoas de Ipuxi (hoje, Lagoa do Bonfim) e Papari, até entestar com a margem esquerda do rio Trairi; desse ponto, contornada “a atual Lagoa de Papari, pelo seu lado oriental” e a de Guaraíra, os viajores teriam chegado à barra do Cunhaú e atingido o engenho de mesmo nome seguindo o leito do rio. Do engenho Cunhaú – mais precisamente da atual Ilha do Maranhão – teriam atingido o rio Guaju, nos limites entre as Capitanias do Rio Grande e Paraíba e daí singrado por um caminho que corresponderia, nos dias atuais, a territórios dos municípios de Nova Cruz, Passa e Fica, São José de Campestre, Santa Cruz, Lajes Pintadas, São Tomé, após o que teriam chegado à Ribeira do Açu.140 Nesta teriam estado na principal aldeia do rei Janduí, que ocupava área existente ao norte da atual cidade de Açu, num lugar chamado pela tradição oral 118

de Fura-Boca141, de onde retornaram para o litoral. Para Benjamin Teensma, essa vereda enviesada descrita por Olavo de Medeiros Filho se constitui enquanto uma interpretação equivocada do caminho que Roeloff Baro e seus companheiros devem ter trilhado naquele distante 1647, já que se utilizou dos nomes adulterados por Pierre Moureau e traduzidos para a língua portuguesa como prováveis descritores de uma memória toponímica. Por meio da exegese que procedeu no texto de Baro e através da restauração dos topônimos e antropônimos mais a observação minuciosa de uma carta geográfica atual do Rio Grande do Norte, Teensma concluiu que o destino da viagem daquele embaixador neerlandês junto aos Tarairiu foi a Serra de Macaguá – também chamada de Serra da Acauã.142 Nos dias de hoje, essa elevação é conhecida como Serra de Santana, em cujo território estão encravados os municípios de Cerro Corá, Lagoa Nova, Tenente Laurentino Cruz e Florânia. Duas razões podem ser apontadas como indicadoras da presença de Roeloff Baro na Macaguá que, segundo Teensma, corresponde à atual Serra de Santana. Quando chegou em um dos flancos da serra, no dia 19 de maio supra, deparou-se com uma aldeia semiabandonada, que havia sido habitada por índios Tupi – brasilianos, para usar a terminologia do relato – e aonde só restavam um ancião, duas velhas e o principal Diego. Conquanto o clima serrano possa ser mais ameno que nos vales formados pelos rios intermitentes do interior, essa informação poderia nos parecer estranha, já que, historicamente, conhecemos os Tupi como habitantes das regiões litorâneas e sublitorâneas e nutrindo uma certa hostilidade para com os tapuias. Entretanto, o contexto em que se deu a ida de Baro ao sertão era outro. Experimentava-se, na Capitania do Rio Grande, um clima de rebuliço provocado pelas notícias sobrevindas de Pernambuco acerca da “insurreição” contra os holandeses, que pouco a pouco pressionavam os Potiguara e os obrigavam a tomar partido: continuar ao lado dos holandeses ou aderir aos portugueses, como haviam feito algumas de suas facções, sob a liderança de Antonio Filipe Camarão. Outros preferiram retirar-se para o sertão, onde se colocaram sob a proteção do rei Janduí, “obtendo dele a permissão de construir novas aldeias e de cultivar algumas roças” em cima de determinadas partes do maciço de Macaguá.143 Foi com estes brasilianos que Baro travou contatos em diversos momentos de sua estadia no sertão. É possível, ainda, que essas migrações dos Tupi para o interior não fossem um acontecimento apenas do século XVII, dentro da conjuntura da ocidentalização holandesa.144 A outra razão que nos leva a concordar com a proposição de Benjamin Teensma diz respeito à maneira pela qual a serra foi territorializada por diferentes grupos indígenas nos anos posteriores ao período holandês. Como discutiremos no capítulo posterior, os requerimentos de concessão de sesmaria dos anos de 1670 em diante, dirigidos por colonos ao 119

governo da Capitania do Rio Grande, apontariam alguns dos vales circundantes do planalto já referido como sendo habitados pelos índios Janduí e Canindé, do grupo Tarairiu. Além disso, a tradição oral aponta a Serra de Santana como o último refúgio dos tapuias quando foram acossados pelas tropas coloniais durante as Guerras dos Bárbaros, no final do século XVII.145 Utilizando a carta de Marcgrave, o relato de Roeloff Baro e a interpretação feita sobre este último por Benjamin Teensma, elaboramos um mapa demonstrando, aproximadamente, o itinerário da expedição de 1647 ao sertão da Capitania do Rio Grande. Nessa territorialização da viagem a que nos propomos, tomamos por base um mapa do estado do Rio Grande do Norte,146 onde foi possível perceber a localização dos cursos d’água e da atual Serra de Santana (Figura 16). Essa viagem de Baro, todavia, não nos revelou apenas os contornos dos territórios nativos no sertão do Rio Grande, dando-nos a conhecer, também, um pouco das populações autóctones que aí viviam e do seu dia-a-dia.

2.5 O início do fim: Baro e os Tarairiu Retomemos o relato da viagem cujo itinerário estamos perseguindo. Em 22 de maio de 1647 a expedição de Baro desceu a Serra de Macaguá, caminhando por entre “pântanos, matos, rochas e espinheiros”147, até encontrar, na tarde desse mesmo dia, quatro guerreiros tarairiu montados a cavalo, na desembocadura do rio Picuí, à espera dos viajantes. Os guerreiros montados conduziram Baro e seus companheiros até o acampamento do rei Janduí, que ficava localizado às margens da Lagoa de Macaguá.148 Ali encontraram apenas mulheres e crianças, já que os homens haviam partido em campanha de guerra, dias antes, com o objetivo de repelir as forças portuguesas e seus aliados Paiaku, o que conseguiram, indo deixá-los além do rio Paraíba. A 26 do mesmo mês Janduí chegou ao acampamento com seus homens, dando as alvíssaras a Baro e a seus liderados. O embaixador neerlandês, por sua vez, entregou ao régulo uma carta enviada pelo Conselho do Recife e anunciou que deixara com o murotij um rol de presentes para selar a aliança entre os nativos e os holandeses.

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Figura 16 Provável itinerário de Roeloff Baro do litoral ao sertão da Capitania do Rio Grande (1647)

A chegada de Baro foi saudada com lutas na areia entre os rapazes tarairiu, após um jantar com o rei Janduí a 27 do mesmo mês e com o correr a árvore, praticado no dia seguinte. Essa corrida aparece representada em um desenho do livro de Jorge Marcgrave, aludindo aos percursos feitos pelos Tarairiu com troncos às costas.

Fig. 17 Desenho incluído no livro de Jorge Marcgrave

Uma dessas corridas foi presenciada por Roeloff Baro quando os índios comandados pelo rei Janduí iniciaram sua jornada anual rumo ao platô de Macaguá, em 28 de maio daquele ano. Os homens correram pela planície, em “velocidade inigualável” atrás de ratos capturados com antecedência, conduzindo pesados troncos de árvores – corrida que durou uma hora e da qual chegou a participar o “ancião Janduí”149 quando estavam a mais de uma légua de distância do rio Picuí. Durante a gradativa subida da serra, os Tarairiu correram a árvore diversas vezes. Numa delas, no dia 29 de maio, grande foi o espanto de João Strass e Baro quando, após terem feito uma hora de caminho quando os rapazes que corriam das árvores, das quais acima falamos, passaram por nós, correndo tão depressa que a terra parecia tremer sob seus pés e não pararam de correr até que chegaram ao rio, que era o lugar onde deviam tomar fôlego para, imediatamente, irem à caça dos ratos e à cata de mel silvestre.150

Através dessa prática de correr com os troncos nas costas, referida também por Herckmans, Barléus, Hulck e pelo próprio Marcgrave151, os jovens índios podiam demonstrar sua destreza, força física e agilidade para as futuras companheiras, considerando que o deslocamento periódico da lagoa para a serra era marcado por dois ritos de passagem: o casamento coletivo e a admissão das crianças como guerreiras da tribo (o “batismo”, como 122

aparece no relato).152 Ritos que tiveram lugar numa das chãs da Serra de Macaguá, no começo do mês de julho, após Baro ter vivenciado, durante mais de um mês, o cotidiano dos Tarairiu. No “batismo” dos pequenos índios, um feiticeiro – em transe provocado pela ingestão de bebida preparada com sementes de ipepaconha torradas – furava o lábio inferior e suas orelhas com um “espeto de pau pontudo, metendo nos furos pedras brancas”, seguindose a sua condução para a sombra de uma ramada, “onde receberam a bênção do Diabo, que estava no caramanchel”153. Já discorremos, anteriormente, sobre a natureza do diário de Baro e o quanto sua estrutura narrativa é diferente da dos outros cronistas holandeses. Benjamin Teensma, a esse respeito, afirmou que, no relato, a sua “psique índia (...) é muito mais humana do que nos textos mais distanciados de seus colegas europeus Herckmans e Rabe”, considerando que o autor manteve íntimas relações de convivência com os Tupi durante sua juventude.154 Cristina Pompa, trilhando a mesma senda, enuncia que as observações de Baro são “despojadas de exotismo, monstruosidade ou gosto pelas citações eruditas”, estando “clara uma certa simpatia para com os “Tapuias”, que são tratados de igual para igual e de quem são admiradas a força e a habilidade guerreiras”.155 Não sejamos ingênuos, todavia, a crer que o relato produzido por Roeloff Baro acerca de sua visita ao País dos Tapuias fosse totalmente isento. Embora pudesse se diferenciar dos relatos coetâneos por tratar do cotidiano dos nativos com mais naturalidade, ainda assim, os códigos de compreensão da alteridade indígena estavam fortemente eivados da cosmogonia ocidental. Um exemplo disso é a denominação de “feiticeiro” aplicada por Baro ao membro do grupo que tinha os requisitos necessários para estreitar a comunicação entre o mundo natural e o sobrenatural, através de transe provocado pela deglutição de bebida à base das sementes de ipepaconha. Da mesma forma, o rito de aceitação dos pequenos índios é chamado de “batismo” e a divindade que os abençoa é o “diabo” ou “houcha”. Nesse último caso, mediante a releitura do diário de Baro feita por Benjamin Teensma, o “diabo” designava uma das divindades reverenciadas pelos Tarairiu, chamada de Taúba, que ora se escondia dentro de um cabaço cheio de caroços e pedrinhas, ora aparecia personificado em um índio no meio dos demais. A aparição de Taúba dentro do cabaço – que era “símbolo do poder espiritual e secular de Janduí” – se dava quando os “feiticeiros” o invocavam, geralmente após ingerirem a bebida de ipepaconha diluída em água ou sorverem o fumo do tabaco. De dentro do cabaço o espírito Taúba aconselhava os índios acerca de assuntos das mais diversas naturezas e estabelecia vaticínios sobre as condições de sobrevivência do grupo frente ao uso dos

123

recursos naturais. Estava presente, também, quando as roças do platô eram abençoadas, nas solenidades de “batismo” das crianças e nos casamentos coletivos.156 Baro presenciou, também, um desses rituais de “casamento”, no início do mês de julho de 1647, após o “batismo” dos jovens índios. Os índios e índias desejosos de tornaremse companheiros dirigiram-se para frente de uma ramada preparada especialmente para o ritual, onde tiveram o lábio inferior e as faces perfurados por dois “feiticeiros”. Em seguida, tendo sido colocadas pedras brancas pontudas nos buracos abertos com espetos de madeira pontiagudos, adentraram para o caramanchel coberto de folhas, onde se consumou o sacrifício “com o sangue que lhes escorria do rosto”, tendo sido os “nubentes” perfumados com o fumo de um cachimbo expirado por um dos “feiticeiros”. Sucederam-se cantos e danças pela noite adentro, regadas, apenas, a milho e água salobra, de quais participaram, como convidados, os brasilianos que habitavam na serra.157 Algumas das informações presentes nesses rituais, sobretudo a inserção de pedras nos rostos e lábios inferiores, aparecem também na iconografia holandesa do período sobre os nativos que habitavam o sertão. As pinturas de Albert Eckhout, membro da comitiva de Maurício de Nassau, sintetizam alguns dos elementos das descrições de aparência física dos Tarairiu presentes nos diversos relatos de origem neerlandesa, como o de Baro.158 Enquanto seu colega Frans Post esteve encarregado de registrar, principalmente, as paisagens da colônia holandesa, a Eckhout foi confiada a missão de retratar as diversas gentes que habitavam esse território. Carla Mary Oliveira classifica suas pinturas como “etnográficas”, considerando que revelam, por meio do óleo afixado nas telas, um olhar (europeu e ocidentalizante, diga-se de passagem) sobre as diversas alteridades encontradas em solo americano: índios Tupi e tarairiu, mamelucos e negros.159 Dentre suas obras “etnográficas”, a tela Homem Tapuia faz sobressaírem-se as características físicas dos Tarairiu apontadas pelas crônicas neerlandesas, onde podemos observar, inclusive, as pedras encaixadas nos orifícios perfurados em seus rostos:

124

Fig. 18 Homem Tapuia (1641)

Um exame mais detido das telas de Albert Eckhout nos revela que se trata de imagens com esquemas pictográficos ligados ao Renascimento europeu, a exemplo da tentativa de equilibrar as figuras representadas em primeiro plano, contrastando com o horizonte esfumaçado típico da pintura holandesa do século XVII. Além disso, suas obras se caracterizam por apresentar a figura humana em pé, tendo ao fundo a paisagem e, em destaque, elementos da flora e da fauna brasileiras. Obedecem a um só esquema estrutural em que as verticais são representadas pelas figuras e pelas árvores em oposição a uma linha horizontal baixa, geralmente a um terço da altura do quadro. Os personagens geralmente figuram sozinhos em meio à abundante vegetação que caracteriza a flora regional.160

125

O Homem Tapuia e sua versão feminina, a Mulher Tapuia, foram representados, de forma idêntica a Eckhout, nos livros de Zacharias Wagener, Jorge Marcgrave, Joan Nieuhof e ainda em no códice “Animaux et Oiseaux”, elaborado na Alemanha entre 1652 e 1685. Evidência de que, assim como as crônicas, as imagens construídas pelos pintores da corte de Nassau circulavam entre si, servindo de modelos uns para os outros, bem como na Europa. O maior ponto de dissenso, entre os pesquisadores que se debruçaram sobre essas representações dos nativos repousa sobre as obras de Eckhout e Wagener: quem teria desenhado primeiro os Tarairiu? Cristina Pompa, partindo de Paul Ehrenreich, afirma que os desenhos ou pelo menos os esboços de Zacharias Wagener deveriam estar prontos antes de 1641, o que teria levado Albert Eckhout a produzir suas telas, entre 1641 e 1643, a partir das gravuras que posteriormente comporiam o Thierbuch.161 Enrico Schaeffer162 e Yobenj Chicangana-Bayona163, por outro lado, afirmam que Wagener é que teria se servido dos originais de Eckhout para compor as gravuras de seu livro de animais. Não nos interessa desvendar a anterioridade de Albert sobre Wagener ou vice-versa, mas, atentar para o fato de que esses desenhos, mais os incluídos nos livros de Marcgrave, Nieuhof e no códice “Animaux et Oiseaux” (ver Figuras 19, 20, 21 e 22) são alegorias construídas pelo olhar ocidental sobre os povos nativos da América. Em se tratando dos Tarairiu, essas imagens, observados os seus detalhes, ainda guardam muito dos estereótipos que cercavam o termo genérico “tapuia”: a selvageria, a ferocidade, a rudeza, a antropofagia, a barbárie. Afinal de contas, não podemos nos esquecer de que os próprios holandeses, conquanto creditassem aos Tarairiu a missão de protegê-los contra sublevações inimigas, não deixavam de considerá-los seus “aliados infernais”, numa clara alusão ao seu comportamento guerreiro. O rei Janduí, constante interlocutor de Roeloff Baro em sua viagem ao País dos Tapuias em 1647, representa exemplo patente de como a guerra fazia parte do estilo de vida dos índios do sertão. Suas ações, durante o período holandês, demonstram que, por trás do chefe guerreiro que liderava os Tarairiu e outros grupos aparentados, estava um hábil líder político, capaz de manejar, a seu favor, as diferenças entre as nações que disputavam a hegemonia das capitanias setentrionais. Guerreou contra os Paiaku e seus aliados lusobrasílicos na Paraíba, mesmo quando estes últimos sinalizavam com ricos presentes em busca de uma aliança contra os neerlandeses; confiou uma carta (senão escrita por ele, por algum Tarairiu que apreendera os meandros da escrita, talvez com Jacob Rabe) a Baro, na primeira viagem deste ao sertão (1646), solicitando da direção da Companhia das Índias Ocidentais, no Recife, um partido de terçados e de espadas; reclamou junto a Baro, na viagem de 1647, 126

Figura 19 Omem Tapuÿa, de Zacharias Wagener

Figura 20 Casal de tapuias tarairiu, de Jorge Marcgrave (incluso na edição brasileira de 1942)

127

Figura 21 Casal de tapuias tarairiu, de Joan Nieuhof (incluso na edição brasileira de 1942)

Figura 22 Códice “Animaux et Oiseaux”, Prancha 12

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da qualidade dos presentes oferecidos pelos holandeses em relação aos que os portugueses os tinham enviado; bradou veementemente contra as autoridades neerlandesas da Capitania do Rio Grande quando soube da morte de Jacob Rabe, exigindo a cabeça de Gardtzman. Agiu, pois, seguindo as circunstâncias que se apresentavam e em favor da sobrevivência do seu grupo, o que nos leva a crer que o chefe Janduí e seus índios não baixaram simplesmente a cabeça para os neerlandeses como aliados, mas, conquistaram certa posição de destaque no jogo de poder – mesmo que fosse através do medo e terror que despertavam nos moradores do litoral, no decorrer de suas idas sazonais em busca do caju. Esses índios tarairiu, através de indícios contidos no texto de Roeloff Baro, andavam a cavalo e alguns provavelmente sabiam ler e escrever, graças à presença cotidiana de Jacob Rabe durante quatro anos junto a seus acampamentos – sendo tentador pensar, também, na influência dos índios levados para a Holanda e que retornaram à América letrados e professando a fé reformada, servindo de intérpretes entre os nativos do sertão e os neerlandeses. Não desprezemos, também, as pontas de ferro que aparecem na lança do “Omem Tapuÿa” de Wagner (Figura 19) e as alpargatas que o guerreiro retratado por Eckhout (Figura 18) usa.164 Elementos denunciadores da adoção, por parte dos nativos liderados por Janduí, de hábitos culturais e artefatos ocidentais, o que não quer dizer que tivessem abandonado seus rituais e crenças ou ainda que fossem meros capachos da Companhia das Índias Ocidentais, como pensara a historiografia clássica do Rio Grande do Norte. Essa aculturação era sinal indicativo da mestiçagem que caracterizou os diferentes grupos sociais imersos na teia da conquista, nos possibilitando renegar, seja no caso dos neerlandeses, seja no caso dos Tarairiu, a possibilidade de existência de uma pureza original. Tanto uns como outros experimentaram, pela via do contato e até mesmo das alianças tecidas, experiências de trocas culturais. Os holandeses, nesse período e no território da Capitania do Rio Grande, compartilharam dos saberes e dos viveres dos indígenas do litoral e do interior, enquanto que estes também apreenderam e incorporaram elementos da cultura material e imaterial provinda dos Países Baixos. Segundo Mariana Françozo, o período em que parte da América ficou sob dominação neerlandesa foi de intensa circulação de pessoas, representações e saberes ligando diferentes partes do globo. Enquanto os holandeses vinham para o Brasil na busca de lucros com a empresa açucareira – trazendo consigo poloneses, ingleses e alemães –, índios e negros foram levados para os Países Baixos, negros foram trazidos da África para o Novo Mundo e viceversa.

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Processo que gerou “alianças políticas e matrimoniais, entre grupos indígenas, negros, holandeses e portugueses”, resultando em mestiçagem, em novas formas de sociabilidade entre pessoas, em novas categorias. Como mostra Ann Stoler (2002), a mestiçagem no mundo colonial embaralhava as classificações e categorias até então conhecidas: surgiam desta forma pessoas que estavam circulando entre grupos, fazendo a mediação entre posições distintas.165

Jacob Rabe, Roeloff Baro e Pieter Persijn se enquadram no perfil apontado acima, de pessoas que circulavam entre diferentes grupos, tornando as fronteiras entre as culturas mais fluidas. Estiveram no sertão, nessa ordem, um sucedendo ao outro como embaixadores da Companhia das Índias Ocidentais encarregados de assegurar as alianças militares junto ao rei Janduí. Acabaram, dadas as circunstâncias de permanência junto aos acampamentos tarairiu, fazendo uso de costumes nativos, além de propiciarem uma melhor comunicação dos índios com as autoridades holandesas no litoral: atuaram, portanto, como agentes mediadores entre a cultura ocidental e a cultura nativa.166 Porém, a realidade não é tão unívoca quanto possamos imaginar. Barléus assinala que em 1644, no momento da partida de Maurício de Nassau para os Países Baixos, o rei dos tapuias João Wy ou Janduí [ lhe ] enviara (...) três filhos seus, com uma comitiva de vinte da mesma nação, perguntando-lhe as causas da sua partida, rogando-lhe com encarecimento mais diuturna permanência e prometendo-lhe com liberalidade mantimento bastante para ele e seus domésticos. Dois dos bárbaros foram para a Holanda com Maurício afim de verem terras, astros, povos ignotos. Os demais, honrados com presentes insignificantes, quais são facas, machadinhas, espelhinhos, mimos agradáveis aos selvagens, voltaram para a sua pátria e para junto do seu rei.167

É preciso lembrarmos, também, dos Tupi que foram levados para a Holanda por Boudewijn Hendricksz em 1625 e que lá freqüentaram os meios universitários e de negócios, tendo aprendido a falar holandês e a fé reformada.168 Mariana Françozo, oportunamente, sustenta que essa ida dos índios à Holanda era importante, do ponto de vista estratégico, tanto para eles quanto para os holandeses. Estes últimos, por meio da educação formal e religiosa impingida aos nativos do Novo Mundo, estariam habilitando intérpretes e informantes para auxiliar nas tentativas de invasão dos domínios ibéricos, planejadas pela Companhia das Índias Ocidentais e que tiveram êxito em 1630. Os nativos, por sua vez, “souberam tirar proveito desta experiência manejando seus conhecimentos das duas línguas e das culturas em contato para lutar por seus próprios interesses quando de volta ao Novo Mundo”.169

130

Afora as oportunidades políticas e militares que desfrutaram nos Países Baixos, a autora sugere, partindo do pensamento de Marcus Meuwese, que esses índios tornaram-se “mediadores culturais, isto é, pessoas que dominavam os códigos simbólicos das culturas em questão e que assim conseguiam transitar entre elas, levando e trazendo informações, pedidos e negociações de conflitos”.170 Exemplar dessa situação são as histórias de vida de Pedro Poti e Antonio Paraupaba,171 componentes do grupo de nativos levados por Hendricksz para a Holanda e que, no regresso ao Brasil, desempenharam o importante papel de intérpretes junto aos Tupi e Tarairiu, tendo sido designados, oficialmente, “regedores” dos índios da Paraíba e Rio Grande, respectivamente.172 Roeloff Baro, como afirmado acima, desempenhou também o papel de tradutor do mundo ocidental-neerlandês para os nativos que caçavam, pescavam e colhiam mel silvestre nos campos e montanhas do sertão da Capitania do Rio Grande. Conheceu o dia-a-dia dos Tarairiu e alguns de seus ritos de passagem, compartilhou da maneira como os índios se alimentavam e subiu a Serra de Macaguá com eles, mas, as notícias que vinham do litoral não eram nada animadoras para os neerlandeses. A 7 de julho Baro deixava a Serra de Macaguá com destino ao litoral, onde se apresentou, uma semana depois, ao comandante interino do Forte Ceulen, Cornélio Bayaert. Em seguida retornou a sua casa, na Ribeira do Ceará-Mirim, não vivendo muito depois disso para assistir a perda da hegemonia neerlandesa da sua colônia americana. Em agosto de 1648 Baro pediu demissão do serviço militar e morreu meses depois, estando sepultado, provavelmente, em algum ponto da ribeira do Potengi, próximo à costa.173 Pouco mais de cinco anos e face às constantes pressões dos insurretos pernambucanos e à situação política que se desenhava na Europa, os holandeses abandonaram as capitanias do norte, que foram restituídas ao domínio lusitano.174 Nesse ínterim, os Tarairiu chefiados pelo rei Janduí foram visitados por Pieter Persijn, que manifestara interesse convicto em buscar minerais pelo sertão e posteriormente trocara cavalos selvagens capturados pelos índios por machadinhas, facas e tesouras de aço. Ainda em dezembro de 1653, um mês antes da retirada das tropas da Companhia das Índias Ocidentais do Recife, os Tarairiu demonstraram sua lealdade para com os holandeses, prometendo parar de saquear as roças dos colonos que moravam no litoral e supri-los de mandioca. A anistia exigida para os índios aliados dos neerlandeses – dentre os quais, seguramente, estavam os Tarairiu – como condição do afastamento da citada companhia do Brasil em 1654, segundo Ernst van den Boogart, fracassou.175 As hostilidades entre os Tarairiu e os colonos luso-brasílicos se prolongariam

131

dos anos 60 do século XVII em diante, quando a Monarquia católica lusitana retoma o projeto de colonização das suas possessões na América, como observaremos no próximo capítulo.

132

Notas 1

No Período Colonial, o nível hierárquico mais alto a ser alcançado por uma aglomeração populacional era o de cidade, que, assim como a vila, possuía poder político local, senado da câmara (com sua casa e cadeia) e pelourinho na praça principal. A particularidade que envolvia a constituição das cidades é que, com fundamento no direito romano, estas somente poderiam ser “fundadas” em “terras próprias alodiais, isto é, terras que só estavam subordinadas ao rei”, diferentemente das vilas, cujo privilégio de “fundação” estava descentralizado na figura dos donatários das capitanias ou dos governadores-gerais. Esse é um precedente que corrobora a hipótese de Natal já ter nascido com o título de “cidade” em 1599 (já que, nessa época, a Capitania do Rio Grande já havia sido devolvida à Coroa), mesmo sem ter sua estrutura urbana formada (TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Os nomes da cidade no Brasil Colonial: considerações a partir da Capitania do Rio Grande do Norte. Mercator – Revista de Geografia da UFC, ano 2, n. 3, p. 56).

2

GOMES DE BRITO, Bernardo. História trágico-marítima compilada por Bernardo Gomes de Brito com outras notícias de naufrágios (1905) apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra Natalense, p. 31. 3

RELAÇÃO DAS CAPITANIAS DO BRASIL (manuscrito anônimo, 1605-7) apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 58.

4

CORRESPONDÊNCIA DE DOM DIOGO DE MENEZES (1608) apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 59.

5

Vizinho é termo usado correntemente no Período Colonial para designar os naturais ou residentes nas vilas e cidades (VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 409). 6

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Na “Relação das Praças Fortes do Brasil” (1609) de Diogo de Campos Moreno apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 59. No Livro que dá Razão do Estado do Brasil (1612), do mesmo Diogo de Campos Moreno, consta a descrição da mesma povoação, situada a meia légua da fortaleza e onde estão “pobremente acomodados” até vinte e cinco moradores brancos (CAMPOS MORENO, Diogo de. Livro que dá Razão ao Estado do Brasil apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 60). Essa descrição de 1612 faz alusão e está baseada em mapa da costa da capitania elaborado pelo mesmo autor, datado de 1609, que incluímos no Capítulo 1 (Figura 10). 7

Aluara sobre a repartição que Vossa Magestade manda fazer das terras da Capitania do Ryo Grande no Estado do Brazil para Vossa Magestade ver todo e vae por duas vias (1614). In: FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. I, p. 1-71. Essa constatação já havia sido feita por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op.cit., p. 61, ao analisar as sesmarias doadas no Rio Grande no período de 1600 a 1614, insculpidas nos autos da citada repartição. 8

Trata-se de Gaspar Paraupaba, André Francisco e, dentre outros índios, Pedro Poti, levados em 1625 para a Holanda (GERRITSZ, Hessel. Jornaux et Nouvelles tirées de la bouche de Marins Hollandais et Portugais de la Navigation aux Antilles et sur lês Cotes du Brésil – Manuscrito de Hessel Gerritsz apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 63). 9

VERDONCK, Adriano. Descrição das Capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. Memória apresentada ao Conselho Político por Adriano Verdonck em 20 de maio de 1630 apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 64. 10

Apesar dessa morosidade que caracterizou o desenvolvimento – no que se refere às estruturas urbanas – de Natal, Rubenilson Teixeira e Ângela Ferreira sublinham a importância capital que teve a sua “fundação” para a efetivação do projeto de conquista do território da Capitania do Rio Grande. Dentre as várias classificações a que se poderia fazer tomando como referência a Cidade do Natal, os autores a enquadram no perfil de cidade de conquista e de fronteira, por representar um marco que impulsiona o domínio dos territórios adjacentes ao Rio Grande, especialmente os situados em direção ao extremo norte (TEIXEIRA, Rubenilson Brazão; FERREIRA, Angela Lúcia. Cidade e território: mudanças e permanências no papel funcional da cidade potiguar. Revista electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, v. 10, n. 218).

133

11

A análise procedida por Fátima Martins Lopes sobre o Translado do Auto de Repartição das Terras do Rio Grande indica que, das 186 datas concedidas pelo Governo da Capitania do Rio Grande no período que vai de 1600 a 1614, cerca de 73% (136) das que indicaram a localização espacial encontravam-se fora dos limites da Cidade do Natal, enquanto apenas 20% (38), em números redondos, ficavam situadas no perímetro urbano (destas, apenas 13 eram habitadas). Todavia, das 136 datas de terra rurais apenas 58 possuíam atividades econômicas em funcionamento: “7 produziam cana de açúcar; 30 tinham roças de alimento; em 21 criava-se gado vacum e/ou cavalar e 18 tinham rede de pescaria de mar”. Informação que nos dá idéia das atividades que se praticavam no litoral da capitania para a sobrevivência, muitas vezes, como ressaltou Fátima Lopes, subsistindo a complementação da pecuária, pequena agricultura e pescaria na mesma propriedade (LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na Capitania do Rio Grande do Norte, p. 467).

12

Com relação à presença de corsários na capitania do Rio Grande durante o período colonial, observar o Capítulo 1. 13

Hoje, Reino dos Países Baixos, mais conhecido como Holanda – denominação de uma de suas províncias. País formado por planícies e que situa-se no oeste da Europa. À época da anexação das terras do Novo Mundo, chamado de Províncias Unidas dos Países Baixos (englobava, além da Holanda, a atual Bélgica e Luxemburgo). Nesse texto, o termo Holanda será utilizado como sinônimo de Países Baixos e vice-versa.

14

MELLO, José Antonio Gonsalves de. O domínio holandês na Bahia e no Nordeste. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira, v. I: A Época Colonial, t. 1, do descobrimento à expansão territorial, p. 235-6.

15

NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII), p. 42-3.

16

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Op. cit., p. 235.

17

Id.

18

Id., p. 236.

19

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, p. 30-5.

20

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Id., p. 236.

21

Sobre o assunto, conferir MELLO, José Antonio Gonsalves de. Id., p. 251-3.

22

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil, p. 197-8. 23

Apud LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 54.

24

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Os holandeses na Capitania do Rio Grande, p. 7-8.

25

LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 94.

26

POMBO, Rocha. Historia do Estado do Rio Grande do Norte, p. 106.

27

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 65.

28

CASCUDO, Luís da Câmara. Os holandeses no Rio Grande do Norte, p. 52.

29

Id., p. 50.

30

Ver, no ensejo, MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte, p. 41: “Não é preciso relembrar (...) o princípio de um domínio no qual a Capitania só conheceu violência, extorsão, vilipêndio e rapinagem, como atestam as atrocidades de Cunhaú, Ferreiro Torto, Uruaçu, Extremoz, Guaraíras...”. Além deste, consultar GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio

134

Grande, p. 7-122; SUASSUNA, Luiz Eduardo B.; MARIZ, Marlene da Silva. História do Rio Grande do Norte colonial (1597/1822), p. 78-96; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Os holandeses na Capitania do Rio Grande, especialmente p. 105-26. Dos autores aqui citados, talvez Olavo de Medeiros Filho seja uma exceção já que, apesar de corroborar essa visão eivada de fatalismo sobre o Rio Grande holandês, também aponta a presença da corte de Maurício de Nassau na capitania, bem como a produção de relatos acerca do modo de vida e imagens dos Tarairiu por emissários dos neerlandeses enviados ao sertão. 31

Acerca das representações do massacre na capela do Engenho Cunhaú, ainda presente no culto aos mártires no Rio Grande do Norte, consultar OLIVEIRA, Luiz Antônio de. O martírio encenado: memória, narrativa e teatralização do passado no litoral sul do Rio Grande do Norte.

32

Sobre o assunto, verificar PEREIRA, Francisco de Assis. Protomártires do Brasil: Cunhaú e Uruaçu-RN. Acreditamos, junto com o pensamento de Walner Spencer, que o discurso valorativo em torno de Cunhaú – inclusive como patrimônio cultural, já que as ruínas do engenho e capela são tombados em nível nacional pelo IPHAN – tem como base a idéia de uma civilização cristã-católica indefesa face à selvageria dos indígenas e à insolência dos calvinistas (SPENCER, Walner Barros. Ecos de silêncio! A memória indígena recusada, p. 5081). É forçoso atentarmos, neste momento, que à lembrança do martírio desses cristãos, mortos pelos índios comandados por Jacob Rabe, não se faz justa menção, também, aos milhares de nativos mortos violentamente durante as Guerras dos Bárbaros no sertão da capitania do Rio Grande.

33

POMBO, Rocha. História do Brasil apud LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 50.

34

Este raciocínio está baseado em NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII), p. 34-5. 35

Contudo, examinando as questões que envolveram a catequização dos indígenas dentro dos preceitos da fé retormada no período em exame, Francisco Leonardo Schalkwijk constatou que o governo colonial holandês sediado em Pernambuco deu apoio ao trabalho missionário desempenhado pelos ministros que se dedicavam à evangelização dos nativos – apoio que, na opinião do autor, não era dado sem uma contrapartida política, a de usar esses mesmos índios catequizados como instrumento de defesa contra os portugueses. Francisco Schalkwijk também comenta, a propósito, que era a Companhia das Índias Ocidentais a instituição responsável pelo pagamento dos salários eclesiásticos na colônia holandesa da América (SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Índios evangélicos no Brasil holandês, p. 4).

36

O termo principal era utilizado, na documentação colonial, sobretudo de origem jesuítica, para designar as lideranças entre os nativos.

37

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil – História da Província de Santa Cruz [1576], p. 122.

38

CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil [15--], p. 101-6.

39

É bom lembrarmos que, entre os estudos de história indígena contemporâneos, gira uma problemática em torno das denominações dadas aos nativos pelos colonizadores, sobretudo na vastidão do norte da América portuguesa. Problema que advém desde a denominação de “índio”, por exemplo, foi imposta por Colombo quando de sua chegada ao continente americano aos nativos, pensando ter chegado às Índias. Ricardo Pinto de Medeiros, ao tratar do tema, nos diz que “em primeiro lugar é preciso ressaltar que em geral, e principalmente no período colonial, não se tratam de autodenominações [ dos povos indígenas ] e sim de nomes a eles atribuídos. Em segundo, há uma grande variação na grafia do nome desses povos, o que dificulta a análise” MEDEIROS, Ricardo Pinto de. A redescoberta dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial, p. 17. No caso dos Tupi, trata-se de uma autodenominação.

40

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720, p. 34; MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Op. cit., p. 15.

41

PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 43.

42

ANCHIETA, José de apud PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 44.

135

43

SOUZA, Gabriel Soares de apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 65.

44

A respeito da Gramática Tupi, é interessante notarmos que a mesma foi uma adequação feita pelos jesuítas – especificamente pelo Padre José de Anchieta – dos sons ouvidos de alguns grupos Tupi aos esquemas conceituais fonéticos próprios do Português e do Latim. De acordo com a Página do Idioma Tupi Antigo “O Tupi antigo como toda língua indígena não era uma língua que possuía escrita. O sistema de escrita que herdamos foi criado pelo padre José de Anchieta em 1595 na sua ‘Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil’. O alfabeto aí proposto foi usado pelos jesuítas no ensino do Tupi para os portugueses e outros jesuítas para fins de catequese e foi aperfeiçoado através dos tempos, por muitos lingüistas. Como os jesuítas baseavam-se no sistema fonético do latim e do português, eles ignoravam a pronúncia correta dos sons, baseando-se tão somente em sua percepção auditiva. Com isso não nos foi possível obter com precisão o sistema fonológico da língua [ Tupi ]”. In: Generalidades. Disponível em Acesso em: 20 de abr. 2002.

45

PUNTONI, Pedro. Tupi ou não Tupi? Uma contribuição ao estudo da etnohistória dos povos indígenas no Brasil Colônia. Ethnos – Revista brasileira de etnohistória, ano 2, n. 2.

46

Id. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720, p. 50.

47

A respeito da política indigenista, em especial, sobre a prática da “guerra justa”, observar PERRONEMOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI ao XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil; DOMINGUES, Ângela. Os conceitos de guerra justa e os ameríndios do norte do Brasil. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. 48

PUNTONI, Pedro. Id., p. 46-8. Essa dualidade Tupi/tapuia também pode ser perquirida pela observação do espaço de habitação (litoral e mata tropical/interior e caatinga), da língua (homogeneidade/diversidade) e pela forma do contato (imposição de um contato direto e sistemático/quase ausência inicial de contato) (DANTAS, Beatriz Góis; SAMPAIO, José Augusto de Laranjeiras; CARVALHO, Maria do Rosário Gonçalves de. Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil, p. 431).

49

O termo “marcador étnico genérico” foi tomado de empréstimo de MONTEIRO, John. Entre o etnocídio e a etnogênese: identidades indígenas coloniais. In: Id. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo, p. 56-7. Marcos Galindo, em exame minucioso do universo das populações nativas do sertão do norte da América Portuguesa, também encontra a associação dos tapuias com a barbárie, na pena dos cronistas e missionários. A posição do autor, todavia, ao referir-se a um “genérico tapuia”, é a de que a oposição binária Tupi versus tapuia, não se trata de uma classificação à risca e sim de uma concordância de valores expressos sobre a alteridade que estava do outro lado do Atlântico, baseada em “observações genéricas sorvidas ao sabor da intuição do senso comum colonial” (LIMA, Marcos Galindo. O governo das almas: a expansão colonial no país dos Tapuias – 1651-1798, p. 43). 50

Cristina Pompa, ao estudar a experiência missionária em contato com os nativos do sertão da América Portuguesa, prefere tratá-los como “Tapuias”, aspeando o termo, justamente por considerá-lo uma categorização expressa nos discursos coloniais e não um etnônimo (POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial, p. 23). 51

MÄDER, Maria Elisa. apud POMPA, Cristina. Op. cit., p. 227.

52

POMPA, Cristina. Op.cit., p. 229.

53

Id., p. 228.

54

Id., p. 231.

55

BOOGART, Ernst van den. Infernal allies: The Dutch West India Company and the Tarairiu – 1631-1654. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de; GALINDO, Marcos; ELIAS, Juliana Lopes. Índios do Nordeste: temas e problemas, v. 2, p. 112-3.

136

56

“Rei”, termo correntemente utilizado nas crônicas de procedência holandesa, indicava a função de liderança dos grupos indígenas. Similar ao termo “principal”, utilizado pelos jesuítas.

57

BOOGART, Ernst van den. Op. cit., p. 113. O autor, todavia, levanta a hipótese do texto de Elias Herckmans não ser um trabalho original, podendo ter sido uma reatualização das informações de Gerbrantsz Hulck, publicadas em 1635, cuja expedição ao Novo Mundo datava do ano anterior (1634). Ou, ainda, poderia ter sido fruto da observação in loco da vida cotidiana dos Tarairiu.

58

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nota biográfica de Elias Herckmans. In: Id. (ed.). Fontes para a história do Brasil holandês, v. 2: a administração da conquista, p. 135.

59

Brasiliano é termo corrente, nas crônicas do Período Colonial, para designar os Tupi, habitantes da costa.

60

HERCKMANS, Elias. Descrição geral da Capitania da Paraíba. In: MELLO, José Antônio Gonsalves de (ed.). Fontes para a história do Brasil holandês, v. 2: a administração da conquista, p. 211-35.

61

HERCKMANS, Elias. Op. cit., p. 211-35.

62

POMPA, Cristina. Op.cit., p. 244.

63

BOOGART, Ernst van den. Op. cit, p. 114-5. As informações prestadas por Vicent Joachim Soler e Zacharias Wagener, em comparação às de Rabe e Baro, são de caráter superficial em relação aos liderados do rei Janduí. Soler era monge agostiniano em Valência, tendo-se convertido, posteriormente, à religião reformada de orientação calvinista, inclusive atuando como pastor. Sua visão sobre os Tarairiu, conforme a análise de Boogart, caracterizava-os como definitivamente selvagens e submetidos ao poder de Satanás, pelo que os considerava o mais baixo degrau da humanidade – representação, sem dúvida, decorrente do lugar social de onde o autor escrevia, a igreja (Id, p. 117-8). Zacharias Wagener, por sua vez, era natural de Dresden (Alemanha) e, de simples soldado da Companhia das Índias Ocidentais, ascendeu ao posto de escrivão doméstico de Maurício de Nassau. Esteve na América Holandesa no período de 1634 a 1641, quando elaborou aquarelas coloridas com paisagens, animais e tipos humanos, dentre os quais imagens dos tapuias, sobre os quais comentaremos adiante (SCHAEFFER, Enrico. Zacharias Wagener (1614-1668): o homem e sua obra. In: WAGENER, Zacharias. Zoobiblion – Livro de animais do Brasil, p. 17-27). Embora Boogart o classifique como produtor de relato sobre os Tarairiu a partir de observação in loco, a opinião de Cristina Pompa é diversa, presumindo que possa, o seu texto, tratar-se de uma apropriação dos escritos de Herckmans, dada a similaridade e, ainda, o fato do próprio Wagener afirmar que suas fontes de informação são indiretas (POMPA, Cristina. Op. cit., p. 249).

64

A grafia do nome deste emissário neerlandês junto aos Tarairiu também é diversa dentre os cronistas do período. Barléus o chamou de “João Rabi” (BARLÉUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, p. 269), Marcgrave e Nieuhof de “Jacob Rabbi” (MARCGRAVE, Jorge. História natural do Brasil, p. 279; NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, p. 268), Moureau e Baro de “Jacó Rabbi” (MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses & Relação da viagem ao País dos Tapuias, p. 63; 99). 65

BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 260-9.

66

Hélio Galvão, ao descrever a presença de Marcgrave no Forte Ceulen, afirmou que o naturalista esteve no território da Capitania do Rio Grande quatro vezes entre 1639 e 1642, quando realizou vários experimentos de meteorologia tomando como base a parte mais alta da fortificação. Na última vez que esteve no forte, em 14 de abril de 1642, observou um eclipse lunar (GALVÃO, Hélio. Op. cit., p. 212).

67

MARCGRAVE, Jorge. Op. cit., p. 279-82.

68

BOOGART, Ernst van den. Op.cit., p. 116.

69

Partindo das reflexões de Roger Chartier, compreendemos representação como sendo uma matriz de discursos e de práticas diferenciadas pela qual se efetiva a construção do mundo social. Construção essa que se dá em um “campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação” (CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações, p. 17) e que revela uma determinada

137

percepção do social nunca neutra, mas, sempre eivada dos valores e concepções de mundo do(s) indivíduo(s) que a produz. Tomamos, assim, as crônicas e a iconografia holandesa, dentre outras (luso-brasílicas ou francesas, por exemplo), como uma representação da realidade que guarda características e influências dos seus autores, das instituições e da época aos quais estão vinculadas. Um interessante estudo acerca das representações sobre o período holandês – da lavra do cronista Joan Nieuhof, para sermos mais precisos – é o de BRANCO, Patrícia Martins Castelo. O universo imaginário dos holandeses no Brasil seiscentista – um estudo da narrativa do viajante Joan Nieuhof. 70

A maioria desses textos foi condensada por Olavo de Medeiros Filho em obras que tiveram como temática central a retomada da história indígena do sertão do Rio Grande do Norte, centrada nos Tarairiu (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Os tarairiús, extintos tapuias do Nordeste; Id. Índios do Açu e Seridó).

71

HULCK, Gerbrantsz. Uma breve descrição dos TAPUIAS no BRASIL, da sua vida, batismo, matrimônio e feitos milagrosos. In: SCHALKWIJK, Frans Leonardo. Tapuias no Rio Grande do Norte no tempo dos flamengos. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v. 58.

72

LAET, Joannes de. Historia ou annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes desde o seu começo até ao fim do anno de 1636. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, v. 30; 33; 38; 4142.

73

HERCKMANS, Elias. Op. cit.

74

WAGENER, Zacharias. Op. cit..

75

BARLÉUS, Gaspar. Op. cit.

76

MARCGRAVE, Jorge. Op. cit.

77

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit.

78

NIEUHOF, Joan. Op.cit.

79

MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Op. cit., p. 65. Outras descrições dos Tarairiu, levando em conta as informações oriundas dos cronistas coloniais e da historiografia, podem ser encontradas em MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 33-75; LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na Capitania do Rio Grande do Norte, p.109-16.

80

POMPA, Cristina. Op. cit., p. 236.

81

Referimo-nos aos estudos de Estevão Pinto (Os indígenas do Nordeste, 1935) e John Hemming (Red Gold, 1978). Discordam dessa opinião, apesar de enxergarem similitudes entre os índios chefiados pelo rei Janduí e os Jê, Robert Lowie (1946) e David Maybury-Lewis (1965), apud POMPA, Cristina. Op. cit., p. 236-39, onde a autora faz uma discussão sobre as aproximações e distanciamentos entre os Tarairiu e os Jê.

82

URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil, p. 99. Fazendo uma exegese do panorama das línguas nativas no Brasil, o autor considera a existência de quatro grandes grupos lingüísticos: Jê, Tupi, Karib e Arawak, além de famílias menores (como a Pano, a Guaykuru, a Nambikwara, a Chapkura, a Mura e a Katukina, localizadas ao sul do Amazonas, além das Puinave e Yanomami, ao norte). Os Jê seriam um ramo relativamente recente, que teria se separado há 3 mil anos ou mais de um antigo tronco, o Macro-Jê, cuja localização espacial estava concentrada na parte oriental e central do Planalto Brasileiro. Fariam parte do tronco lingüístico Macro-Jê as línguas Kamakã, Maxakali, Botocudo, Pataxó, Puri, Kariri, Ofaié, Jeikó, Rikbaktsá, Guató e quiçá Bororo e Fulniô (Op.cit., p. 87102).

83

TEENSMA, Benjamin Nicolau. O diário de Rodolfo Baro (1647) como monumento aos índios Tarairiú do Rio Grande do Norte. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de; GALINDO, Marcos; ELIAS, Juliana Lopes. Índios do Nordeste: temas e problemas, v. 2, p. 87.

84

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na geografia nacional, p. 325.

138

85

POMPA, Cristina. Op. cit., p. 230.

86

Este nosso pensamento parte do raciocínio emprendido por Luiz Sávio de Almeida. Comentando artigos escritos por professores holandeses acerca da visão dos cronistas do período (neerlandês) sobre os nativos subordinados ao rei Janduí, levanta a hipótese do termo tarairiu ser uma “estereotipação colonial extensível aos índios do período” [ do século XVII ]. Afirmação que encontra sustentação pelo fato de não se conhecer, com profundidade, a identidade étnica desses índios e, tão somente, as representações dos cronistas do período holandês (ALMEIDA, Luiz Sávio de; GALINDO, Marcos; ELIAS, Juliana Lopes. Índios do Nordeste: temas e problemas, v. 2, p. 16).

87

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 24.

88

Corroborando essa informação, as anotações de Claude Morisot apensas ao diário de Roeloff Baro afirmam que os grupos indígenas com os quais os holandeses travaram contatos tomam os nomes dos seus chefes (MORISOT apud MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 120).

89

Entre as culturas nativas andinas, o personagem mais importante da sociedade era o Inca, imperador, chefe político e religioso, que era também proprietário das terras do Império. Esse título se estendia aos membros de suas famílias e às linhagens aparentadas. Os súditos do Inca eram, também, chamados de incas (PEREGALLI, Enrique. A América que os europeus encontraram, p. 49-68).

90

Herckmans, a propósito, comentou em seu relato que os tapuias atingiam a “uma idade muito avançada, alguns contam 150, 160 até 200 anos, de sorte que já não podem andar e devem ser carregados em redes” (HERCKMANS, Elias. Op. cit., p. 225). Barléus, por seu turno, comentou que os escritos de Jacob Rabe davam conta que, enquanto este esteve no sertão junto com os Tarairiu, o rei Janduí já dobrara os cem anos de idade (BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 269). Conforme Olavo de Medeiros Filho, as informações de que dispomos sobre o rei Janduí o colocam como tuxaua em diversos contextos, dependendo da época: “Janduí, já vivo e dando nome à sua tribo (Janduís) em 1545, ainda era vivo em 1654, quando ocorreu a expulsão dos Holandeses! Ele morreu combatendo outros Tapuias, desta vez, a serviço dos Portugueses... Em 1545, estava ao lado dos Portugueses; em 1579, encontrava-se aliado aos Franceses; em 1613, com os Portugueses; em 1630, com os Holandeses; em 1654, novamente com os Portugueses...” (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Carta endereçada a Helder Macedo. Natal, 07 mar. 1997. Manuscrita). 91

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Os holandeses na Capitania do Rio Grande, p. 49-62.

92

AHU – Rio Grande do Norte, Cx. 1, D. 24.

93

AHU – Rio Grande do Norte, Cx. 1, D. 40 e 42. Marlene da Silva Mariz, em levantamento de documentos para a história indígena nos manuscritos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, cita requerimentos, cartas dos oficiais da Câmara do Natal, bando e carta do Governo da Capitania da Paraíba dos anos de 1689, 1700, 1702, 1708, 1712, 1713 e 1721 cujos textos fazem remissão, também, aos Janduí (MARIZ, Marlene da Silva. Repertório de Documentos para a História Indígena existentes no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte).

94

Transcrito por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 132-5.

95

Referimo-nos aos anos últimos das Guerras dos Bárbaros na Capitania do Rio Grande, tema sobre o qual discorreremos posteriormente.

96

MONTEIRO, John. Entre o etnocídio e a etnogênese: identidades indígenas coloniais. In: Id. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo, p. 57.

97

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil, p. 200. 98

O sítio de Dick Muller era conhecido como “Portinho”. A forma como os portugueses o tratavam era Rodrigo Moleiro, que com o tempo passou a designar o seu local de moradia. A memória local deu nova forma ao nome,

139

que passou a ser Rego Moleiro, ainda hoje topônimo que designa uma região de São Gonçalo do Amarante, vizinha a Natal (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 94). 99

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 64. Joan Nieuhof, escrevendo sobre o assunto, afirmou que o Conselho do Recife “chocou-se profundamente com essa vilania, porque Jacob Rabbi era casado com uma brasileira [ Potiguara ] e gozava de grande estima entre os tapuias” (NIEUHOF, Joan. Op. cit., p. 277).

100

Anos depois, Joris Gardtzman recebeu clemência e voltou à América holandesa, tendo permanecido até a retirada dos seus compatriotas em 1654. Morreu pouco tempo depois, na Ilha de Martinica, vitimado de doença. MEDEIROS FILHO, Olavo de. No rastro dos flamengos, p. 63-4. 101

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 64.

102

Id., p. 66.

103

NIEUHOF, Joan. Op. cit., p. 283.

104

“As guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar e isto não apenas no sentido, que é o geralmente posto em relevo, de guerras pelo açúcar, vale dizer, pelo controle das suas fontes brasileiras de produção, mas também no sentido (...) de guerras sustentadas pelo açúcar, ou antes, pelo sistema econômico e social que se desenvolvera no Nordeste [ sic ] com o fim de produzi-lo e exportá-lo para o mercado europeu.” (MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654, p. 14). 105

Essas alianças foram firmadas quando o índio Maximiliano dirigiu-se do sertão das capitanias setentrionais ao Conselho de Guerra do Recife, em 02 de outubro de 1631, oferecendo o apoio dos reis Jandovi (Janduí) e Oquenou (Oquenaçu) contra a resistência portuguesa, principalmente, nas praças e fortes do litoral. Posteriormente o “tapuya” Maximiliano acompanhou uma expedição holandesa ao Rio Grande, junto com os índios levados anos antes da Baía da Traição para os Países Baixos por Hendricksz, ocasião em que foi oficializado o pacto com os Tarairiu liderados por Janduí (LAET, Joannes de. Op. cit., Livro 8º, p. 215-5). 106

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 66.

107

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 83-4.

108

Id., p. 84-5.

109

BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 259-60.

110

Olavo de Medeiros Filho, analisando a viagem de Roeloff Baro aos Karipató e Waipeba, acredita que fossem desses dois grupos o contingente usado de índios na expedição que arruinou os Palmares Grandes (MEDEIROS FILHO, Olavo de. No rastro dos flamengos, p. 32).

111

BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 304-5.

112

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 86.

113

Id., p. 89.

114

RODRIGUES, José Honório. Nota introdutória. In: MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 7-10.

115

RODRIGUES, Lêda Boechat. Nota da tradutora. In: MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 13-4. 116

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op.cit., p. 89.

117

Id., p. 90.

140

118

O autor refere-se aos comentários feitos por Olavo de Medeiros Filho ao texto de Roeloff Baro, baseados na tradução de Lêda Boechat Rodrigues do francês para o português (MEDEIROS FILHO, Olavo de. A viagem de Roulox Baro ao país dos tapuias (1647). In: Id. No rastro dos flamengos, p. 73-86, além de referências a esse mesmo itinerário presentes nos livros Índios do Açu e Seridó (1984) e Os holandeses na Capitania do Rio Grande (1998)). 119

Os problemas de tradução, embora sejam comuns, não passaram desapercebidos aos olhares de Lêda Boechat Rodrigues. Esta, em nota introdutória aos textos de Moureau e Baro, afirmou que os textos impressos de ambos vinham com muitas deformações no tocante a nomes próprios e geográficos. Nesses casos, “sempre que perfeitamente identificados, foram corrigidos (...). Quando não se trata de simples deformação, mas de erro do autor, dou o nome certo no texto traduzido, e registro, em nota, como aparece no original”. 120

HOLZER, Werther. Memórias de viajantes: paisagens e lugares de um novo mundo. GEOgraphia, ano II, n. 3, p. 121.

121

A respeito do tema, consultar PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. Disponível em . Acesso em: 22 jun. 2006. 122

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 92.

123

O termo “murotij” ou “muroti” não designa um nome, como pode parecer do texto de Roeloff Baro traduzido por Pierre Moureau, mas, uma função simbólica, atribuída ao filho do rei, ao “príncipe” (TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op.cit., p. 99). 124

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 93.

125

Segundo as anotações de Claude Morisot, “Do dito forte [ Ceulen ] até a morada de Janduí, há um caminho que foi feito outrora por um tenente-coronel holandês, chamado Garstman, e que conserva, ainda hoje, o seu nome” (MORISOT, Claude Barthomy. Notas do senhor Morisot sobre a viagem de Roulox Baro ao país dos tapuiass apud MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 113). 126 A nascente do rio Trairi (no texto de Baro, Monpabu) fica na Serra do Doutor, que ocupa terras dos municípios de Campo Redondo e Coronel Ezequiel. O rio segue, daí em diante, pelo território de Santa Cruz, banhando, em seguida, vários municípios do estado do Rio Grande do Norte. Em seu itinerário nas proximidades do litoral, o rio forma as lagoas de Nísia Floresta e Papeba, “desaguando no oceano através da lagoa de Guaraíra” (FELIPE, José Lacerda Alves; CARVALHO, Edilson Alves de. Atlas Escolar do Rio Grande do Norte, p. 33-4). Benjamin Teensma considerou que esse trecho atingido pela expedição de Baro ficava nas cercanias da atual cidade de Santa Cruz (TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 92). 127

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 91-2. Baseado na leitura de MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 96. 128

SILVA, Leonardo Dantas. A revelação do Brasil por João Maurício de Nassau. In: ANDRADE, Manuel Correia de (org.). Tempo dos flamengos e outros tempos, p. 89. 129

SILVA, Leonardo Dantas. Op. cit., p. 89-90.

130

OLIVEIRA, Carla Mary S. Frans Post e as imagens do Brasil holandês: o olhar que registra ou o traço que interpreta?, p. 1.

131

Além dos nomes acima mencionados, Carla Mary Oliveira refere-se às pessoas de Claes Visscher, Hessel Gerritz e Izaak Commelyn como cartógrafos auxiliares que prestaram serviços nas tropas holandesas (OLIVEIRA, Carla Mary S. Op. cit., p. 3). Maria Dulce de Faria, por sua vez, ao discorrer sobre a cartografia produzida no período holandês, cita os nomes de Pierre Gondreville, Hendrik van Berchem, Tobias Commersteijn, Pieter van Bueren, Sicke de Groot, Sems, Andrea Drewisch e David van Orliens na categoria de engenheiros e arquitetos ligados aos neerlandeses (FARIA, Maria Dulce de. A representação cartográfica no Brasil Colonial na Coleção da Biblioteca Nacional. Projeto Cartografia Histórica (Biblioteca Nacional), p. 6).

141

132

BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Decifrando mapas: sobre o conceito de “território” e suas vinculações com a Geografia. Anais do Museu Paulista, v. 12, n. 12, p. 202. 133

Os outros três mapas de Marcgrave são “Praefecturae Paranambucae pars Borealis, uma um Praefecturae de Itâmmaracâ”, “Praefecturae Paranambucae pars Meridionalis” e “Praefecturae de Ciriii, vel Seregippe del Rey, cum Itâpuáma”. Foram ilustrados em 1645 por Frans Post e integraram a primeira edição do livro de Gaspar Barléus, em latim, no ano de 1647, em tom monocromático. Posteriormente encartaram, também, a edição alemã (1659) do citado livro. As encadernações originais da edição princeps da obra de Barléus foram elaboradas em pergaminho e as ilustrações feitas através de gravações em cobre, subsistindo, ainda, “cópias com gravações em ouro e outras aquareladas” (SILVA, Leonardo Dantas. Op. cit., p. 93-4). 134

Para BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Op. cit., p. 195, carta corográfica é a que descreve um país, lugar ou região. Por se tratar de um mapa das capitanias da Paraíba e Rio Grande, consideramos que se trata de uma representação da corografia desses dois territórios.

135

Isa Adonias classifica os mapas produzidos no período holandês em quatro tipologias: cartas hidrográficas, que apresentam o resultado de levantamentos da costa; cartas topográficas, que representam levantamentos feitos em terra; plantas de cidade e desenhos de engenharia, especificamente referindo-se a uma série de cartas que representam Recife e a Cidade Maurícia; mapas de notícias (new maps), compostas de “um misto de cenários cartográficos e reportagens de longo texto, na mesma folha, registrando etapas da conquista holandesa em vários lugares do Nordeste (sic). Tais mapas destinavam-se a manter o público informado sobre as ações da Companhia das Índias Ocidentais, criada em 1621 para agir na costa oeste da África, em toda a América e no Pacífico” (apud FARIA, Maria Dulce de. A representação cartográfica no Brasil Colonial na Coleção da Biblioteca Nacional. Projeto Cartografia Histórica (Biblioteca Nacional), p. 7). 136

Para confirmar essa assertiva, o mapa apresenta como elementos iconográficos de destaque apenas os brasões das Capitanias da Paraíba e do Rio Grande, representados por vários pães de açúcar produzidos nos engenhos de cana e por uma ema, respectivamente. Além disso, apresenta na parte superior uma cena local pintada posteriormente à construção da carta por Frans Post. Na descrição do escudo da “província do Rio Grande tinha por armas um rio, em cujas margens pisava uma ema, por ser ali maior a bundância [ sic ] dessa ave.” (BARLÉUS, Gaspar. Op.cit., p. 104). Luís da Câmara Cascudo discorda da explicação de Barléus, propondo que a ema simbolize o rei Janduí: “Janduí é nome Tupi, corrução de NHANDU-Í, ema-pequena, e por autonomásia, o corredor, o que corre muito. Daí o lema, VELOCITER [ lema do brasão da capitania ]. E parece nada mais lógico que a Ema, NHANDU-Í, estar no escudo da terra cujo sertão se governava pelo devoto Janduí. JANDUÍ é a Ema do brasão holandês no Rio Grande do Norte” (CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 86).

137

No mapa de Marcgrave, alguns trechos do curso do Tareirí aparecem como trecho de Mopebi, indicando a maneira pela qual o rio foi tratado no relato de viagem de Roeloff Baro (Monpabu). A foz desse rio que aparece no citado mapa aponta o local onde o francês João Lostão Navarro mantinha seu porto de pescaria, na Enseada de Tagoatinga – hoje, Barra de Tabatinga, fazendo parte do território municipal de Nísia Floresta. 138

A opinião acerca dessa territorialidade nativa – o “país dos tapuias” – não se referia, somente, ao contexto da dominação holandesa nos trópicos. Confirmando essa idéia, James Albuquerque propõe, ao fazer uma releitura do texto de Baro, que a expressão em tela seja “interpretada como uma tentativa exagerada do cronista estrangeiro fazer crer numa fragilidade exagerada do domínio português na região, na medida em que um país autônomo sobrevivia a ele” (ALBUQUERQUE, James Emanuel de. Relação da viagem ao país dos tapuias: uma leitura, p. 32).

139

Procedendo a uma releitura da “Relação da viagem ao país dos tapuias”, James Albuquerque confirma o melindre em que estamos também imersos, já que, como ele, utilizamo-nos desse texto como fonte para o período holandês. Segundo o autor, a limitação de analisar esse relato se dá pelo fato de “estarmos trabalhando com uma tradução para o Português, realizada nos anos cinqüenta do século passado, com base em uma versão em francês de um texto redigido originalmente em flamengo, sendo estes dois últimos idiomas em suas versões correntes no século dezessete.” (ALBUQUERQUE, James Emanuel de. Op. cit., p. 27). É preciso atentar, também, para o fato já assinalado de que as referências a nomes de lugares e denominações indígenas usadas por Roeloff Baro são em Tupi, devido a sua vivência em aldeias com integrantes dessa tradição lingüística, desde jovem. É possível, assim, que erros de interpretação de Baro estejam presentes em seu discurso, sobretudo no

142

que se refere às “declarações atribuídas aos agentes que falavam a língua dos tapuias”, “Não apenas pelo sempre presente risco do erro humano, mas pela eventual necessidade da utilização de intérpretes” (Id., p. 29). 140

MEDEIROS FILHO, Olavo de. No rastro dos flamengos, p. 76-9.

141

O autor baseou-se, para fazer essa afirmação, em carta de Maria Carolina Lins Wanderley (Sinhazinha), publicada no livro “Família Wanderley”, de Walter Wanderley, onde também aparece a informação baseada na tradição oral, de que “o local em que os janduís praticavam as suas corridas dos troncos, [ era] correspondente à parte dos fundos do prédio da atual matriz do Açu” (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 16).

142

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 87.

143

Id., p. 90-1.

144

Fruto de pesquisas recentes, executadas por Luiz Dutra de Souza Neto e Daniel Bertrand (SOUZA NETO, Luiz Dutra de; BERTRAND, Daniel. Mapeamento dos sítios arqueológicos do município de Florânia/RN. Mneme – Revista de Humanidades, 37p.), foram localizados sete sítios arqueológicos de origem presumivelmente pré-histórica com vestígios líticos e cerâmicos classificados como pertencentes à Tradição Tupiguarani, situados nas proximidades de ocorrências de indícios deixados por grupos humanos de caçadorescoletores. Esses sete sítios estão encravados na Serra da Tapuia – mais conhecida como Serra do Cajueiro pelos moradores de Florânia – que faz parte do conjunto de elevações da Serra de Santana. Caracterizam-se pelo diferente padrão de assentamento em relação a outros da Tradição Tupiguarani que já foram objeto de pesquisa no Rio Grande do Norte e em outros estados brasileiros, apresentando, através da coleta de superfície efetuada por Luiz Dutra de Souza Neto e Daniel Bertrand, fragmentos cerâmicos simples, com decoração corrugada e pintada. Para os autores, o clima ameno proporcionado pelas altitudes de 700 a 750 metros acima do nível do mar e a generosa fertilidade do solo serrano teriam sido fatores de atração desses grupos humanos para o maciço, em cronologia que somente o avanço das pesquisas irá determinar. 145

Quem primeiro nos alertou para o fato da Serra de Santana ter servido de esconderijo para os remanescentes das batalhas travadas nas Guerras dos Bárbaros foi o Monsenhor Ausônio Tércio de Araújo, conhecedor da história e da cultura da região do Seridó norte-rio-grandense, durante a Campanha da Fraternidade 2002, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) cuja tema era “Fraternidade e povos indígenas” e lema “Por uma terra sem males”. Posteriormente, quando lecionamos no Campus de Caicó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tivemos essa informação confirmada por meio de alunos dos municípios cujo território está encaixado na Serra de Santana – a exemplo de Lagoa Nova, Florânia, Cerro Corá e Tenente Laurentino Cruz – que eram unânimes, também, em referir-se ao achado casual de “cacos de cerâmica” nas terras agricultáveis do platô e à existência de diversas furnas com pinturas rupestres na região. Entretanto, reiteramos que a possibilidade da Serra de Santana ter servido de refúgio para os remanescentes das guerras está baseada, atualmente, na tradição oral. 146

Trata-se do Mapa Geológico do Estado do Rio Grande do Norte (1998), de onde extraímos as camadas que diziam respeito à ocorrências minerais, cidades, lagos, ilhas e açudes, permanecendo, apenas, a malha hidrográfica. Desta, fizemos a exclusão dos gráficos que representavam cursos d’água que não aparecem no relato de Roeloff Baro. 147

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 97.

148

Segundo Benjamin Teensma, a Lagoa de Macaguá era um pequeno lago pantanoso formado no vale do rio Acauã, entre a desembocadura do rio Picuí e a garganta da Gargalheira, onde eram abundantes as taraíras (Op. cit., p. 86). Essa garganta foi o lugar escolhido, na contemporaneidade, para a construção do Açude Público Marechal Dutra – conhecido popularmente como Gargalheiras – que fica encravado no território do município de Acari. 149

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 99.

150

Id., p. 100.

143

151

HERCKMANS, Elias. Op. cit., p. 217; BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 261; HULCK, Gerbrantsz. Op. cit., p. 323; MARCGRAVE, Jorge. Op. cit., p. 280. 152

TEENSMA, Benjamin. Op. cit., p. 93-4.

153

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 105.

154

TEENSMA, Benjamin. Op.cit., p. 84.

155

POMPA, Cristina. Op. cit., p. 250-1.

156

TEENSMA, Benjamin. Op. cit., p. 94.

157

MOUREAU, Pierre & BARO, Roulox [ Roeloff Baro ]. Op. cit., p. 105-6.

158

Para um aprofundamento acerca das pinturas “etnográficas” de Eckhout, consultar CHICANGANABAYONA, Yobenj Aucardo. Aliados na guerra: os índios do Brasil holandês nas telas de Albert Eckhout (1641-1643); OLIVEIRA, Carla Mary S. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: documento ou invenção do Novo Mundo? Portuguese Studies Review, v. 1, n. 14. 159

OLIVEIRA, Carla Mary S. Um olhar sobre o colonizado: imagens do Nordeste seiscentista, por Albert Eckhout. Par’a’iwa, ano 1, n. 0. 160

XXIV BIENAL DE SÃO PAULO. Núcleo Educação. Eckhout e o canibalismo, Tarsila e a Antropologia.

161

POMPA, Cristina. Op. cit., p. 249.

162

SCHAEFFER, Enrico. Op. cit., p. 25.

163

CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Aliados na guerra: os índios do Brasil holandês nas telas de Albert Eckhout (1641-1643), p. 11. 164

Observação da lavra de POMPA, Cristina. Op.cit., p. 255.

165

FRANÇOZO, Mariana. Os índios no Brasil holandês, ou repensando algumas categorias, p. 11.

166

Estamos tomando o conceito de agentes mediadores (ou mediadores culturais) a partir da problematização levantada em ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales y agentes mediadores, p. 9-10. 167

BARLÉUS, Gaspar. Op. cit., p. 329.

168

MELLO, José Antonio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil, p. 198.

169

FRANÇOZO, Mariana. Op. cit., p. 7.

170

Id., p. 8. Reflexão que se assemelha à desenvolvida em ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (Coords.). Op. cit., p. 9-10. 171

As primeiras remissões à figura do índio Antonio Paraupaba aparecem após o ano de 1631, indicando que foi educado na Holanda, tendo viajado, provavelmente, junto com a frota de Boudewijn Hendricksz em 1625 (HULSMAN, Lodewijk. Antonio Paraupaba e a aliança potiguar-holandêsa, p. 1). 172

POMPA, Cristina. Op. cit., p. 207-9, que inclui uma interessante análise das cartas de Pedro Poti e Antonio Paraupaba. 173

TEENSMA, Benjamin Nicolau. Op. cit., p. 95-6.

144

174

ROSÁRIO, Adalgisa Maria Vieira do. O Brasil filipino no período holandês, p.120-2.

175

BOOGART, Ernst van den. Op. cit., p. 112.

145

3 DO TEMPO DO GENTIO AO TEMPO DA FÉ: produção do território da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

Após a rendição dos holandeses em 1654 e a restauração da supremacia lusitana na Capitania do Rio Grande, o movimento de ocidentalização ibérica foi retomado. Cumpria, às autoridades luso-brasílicas situadas nas capitanias do norte, a expansão das frentes de conquista para além do litoral, em direção ao interior: junto com os colonos marcharam as cabeças de gado, indispensáveis ao estabelecimento da pecuária, que contribuiria para a fixação de núcleos de povoamento pelo sertão. Durante a segunda metade do século XVII o que observamos, portanto, é o processo de apropriação dos campos e vales do sertão, com a finalidade de montar currais para o criatório e erguer casas para morada. Em outras palavras, vale dizer, a constituição gradativa de um território colonial, que pouco a pouco vai se sobrepondo aos territórios habitados pelos Tarairiu – sobreposição que, com o passar dos anos, no instante em que as diferenças entre o mundo ocidental e o nativo são avivadas, levam aos sangrentos conflitos que os textos do período chamaram de “Guerra dos Bárbaros”. Essa territorialização movida após o período holandês no sertão da Capitania do Rio Grande, desse modo, não foi de todo pacífica, conduzindo-se por meio da imposição do modo de vida ocidental aos Tarairiu. A estes, na iminência de não aceitarem as regras do jogo colonial, restavam penalidades como a escravização e até mesmo a morte em batalhas cruentas amparadas pelo estatuto legal da “guerra justa”. Percebemos com mais acuidade o choque entre as duas territorialidades – nativa e ocidental – através dos documentos que registram os pedidos de terras às autoridades constituídas nas Capitanias da Paraíba e Rio Grande, com o propósito de se criar gado nas ribeiras do Piranhas, Espinharas, Acauã e Sabugi. Passados os anos cataclísmicos das guerras de despovoamento na Capitania do Rio Grande a ocidentalização consolidou-se através do estabelecimento de um dos níveis da administração portuguesa: a freguesia. Referimo-nos à Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, oficialmente criada em 1748 e que comportava territórios das Capitanias da Paraíba e Rio Grande.1 Território construído por sobre o habitat dos Tarairiu, onde, não

obstante a depopulação ocorrida nas guerras de conquista, os índios sobreviveram em meio ao mundo colonial que pouco a pouco delineava as suas fronteiras. Cumpre-nos, em primeiro lugar, observar atentamente a produção desse território, para, posteriormente, transitar pelas histórias de vida dos índios que aí viveram. Iniciemos o trajeto conhecendo as ribeiras do Espinharas, Piranhas, Acauã e Sabugi por meio das requisições de sesmaria feitas nas três últimas décadas do século XVII, momento em que o choque entre os dois mundos, o indígena e o ocidental, chega ao seu clímax. A incompatibilidade entre curraleiros e nativos, entrementes, fará com que o sertão do Rio Grande tenha seus chãos embebidos do sangue de índios, brancos, negros e mestiços envolvidos nas Guerras dos Bárbaros. Nesses anos, notadamente no período posterior à presença holandesa, em decorrência da concessão de sesmarias pelos capitães-mores do Rio Grande na tentativa de reocupar a capitania, o sertão passou a compor os interesses dos colonos que tinham a pretensão de espraiar suas reses ou cultivar lavouras para subsistência nos solos da hinterlândia. Essas sesmarias, herança da legislação metropolitana adaptada à condição da colônia2, permitiam que homens de boa sorte, fidalgos ou ex-combatentes nas guerras contra os holandeses ou mesmo contra o gentio bárbaro, pudessem ter acesso às vastas extensões de terra, “que eram concedidas com limites e extensão incertos”3. A doação de uma sesmaria – ou data de sesmaria, expressão similar correntemente utilizada nos documentos coloniais – significava o instrumento jurídico mediante o qual estava legalizado o domínio sobre um determinado território durante os séculos XVI, XVII e XVIII4. Tal doação era outorgada pelo próprio Governo-Geral estabelecido na colônia, entretanto, a prática passou a ser exercida, também, pelos capitães-mores ou até mesmo pelo Senado da Câmara, quando se tratava, especificamente, de chãos situados dentro ou nas cercanias do espaço urbano5. Nesse sentido, utilizaremos sesmarias oriundas de três instâncias: uma concedida pelo Governador-Geral do Estado do Brasil, com assento na Bahia, e as transmitidas pelos capitães-mores das Capitanias do Rio Grande e Paraíba. Trata-se de documentos contendo o requerimento da concessão da terra e a sua doação pela autoridade colonial constituída, cujos textos apontam para territórios que, posteriormente, comporiam a extensão da Freguesia do Seridó. Embora se tratem de documentos com chancela do Estado, suas entrelinhas podem nos revelar importantes aspectos da percepção dos sesmeiros sobre a natureza, sobre as populações indígenas que aí habitavam e sobre o território colonial que ia se delineando sobre as paisagens habitadas pelos nativos. Em 1769, por exemplo, ao se reunirem no sítio Passagem, da Ribeira do Acauã com a finalidade de o demarcarem, seus moradores juntaram 146

ao processo antigos documentos para atestar sua legítima posse. E mais: referiram-se aos Albuquerque Câmara – de quem falaremos posteriormente – como sendo os primeiros possuidores das terras que naquela época ocupavam, “por datas que tirarão no tempo do Gentio”6. É em busca desse tempo que rumaremos agora.

3.1 O “tempo do gentio” 3.1.1 Espinharas e Sabugi Penosa é a tarefa de definir, através de palavras, símbolos ou representações cartográficas, os limites que existiam entre as vizinhas Capitanias do Rio Grande e da Paraíba durante os tempos coloniais. Mesmo que a divisão procedida durante o reinado de Dom João III tenha retalhado em quadriláteros as possessões da metrópole na América Portuguesa – ou que essa seja a idéia que nos é passada pelo mapa de Luís Teixeira, de que falamos no capítulo anterior (Figura 06) –, na prática, as linhas de demarcação eram confusas. Esse embaraço, inclusive, refletia-se no momento em que as autoridades coloniais viam-se na obrigação de manifestar preferência pelo sertão da Paraíba ou do Rio Grande – tomando essas duas unidades administrativas como exemplos – no momento de doar as glebas para os que as quisessem nos espaços de fronteira. Assim sendo, esse esforço de compreender o sertão do Rio Grande no período pós-dominação holandesa tem seu prelúdio na Bahia de Todos os Santos, de onde foi cartografado um dos primeiros domínios sobre solos que viriam a receber, após o ano de 1748, a bênção de Santa Ana. Na Cidade do Salvador, no princípio de fevereiro de 1670, compareceram treze criadores de gado interessados em aproveitar-se de terras devolutas no sertão da Capitania da Paraíba do Norte. Ao que tudo indica, alguns deles já estavam com gados situados nos pastos do rio São Francisco, de onde poderia ser mais cômodo o transporte de seus animais em direção à Capitania da Paraíba. Referimo-nos, aqui, aos Oliveira Lêdo, família baiana cujos sertanistas estiveram envolvidos no empreendimento colonizador da Paraíba, especialmente a Teodósio de Oliveira Ledo. Este transpôs o sertão do São Francisco e seguiu rumo à Paraíba, onde combateu grupos de índios tapuias levantados, estando envolvido na instituição do Aldeamento de Nossa Senhora do Pilar e, cada vez mais próximo das fronteiras com o Rio Grande, na edificação do Arraial das Piranhas7 (1696), razão pelo que foi condecorado com a patente de Capitão-Mor de Piranhas e Piancó8.

147

Naquele longínquo 1670, Teodósio de Oliveira era um dos solicitantes de terra, junto com seu tio, Capitão Antonio de Oliveira Lêdo e os parentes Custódio de Oliveira Lêdo, Antonio Pereira de Oliveira, Gonçalo de Oliveira Pereira e Gaspar de Oliveira. Completavam o séqüito dos suplicantes o Capitão Francisco de Abreu de Lima e o Alferes João de Freitas da Cunha, além de José de Abreu, Luís de Noronha, Antonio Martins Pereira, Estevão de Abreu e Lima e Sebastião da Costa9. Pediam ao Capitão General de mar-e-terra do Estado do Brasil, Alexandre de Souza Freire, “doze legoas de terras de largo, começando em o Rio xamado das Espinharas que começarão fronteiras a Serra da Burburema, ficando seis legoas pr. cada Banda do Rio, e di comprido sincoenta”10. Embora o texto do requerimento fizesse menção ao território da Paraíba, o rio Espinharas adentrava na Capitania do Rio Grande, despejando suas águas no Piranhas – a sesmaria, portanto, tinha seus contornos passando pela jurisdição das duas capitanias referidas, como se pode apreender da reconstituição que fizemos dessa cartografia na Figura 23. Provavelmente Teodósio de Oliveira Ledo e seus colegas de petição não conheciam, ainda, o sertão da Paraíba e do Rio Grande, especialmente no trecho cortado pelo rio das Espinharas. Todavia, o fato de traçarem uma descrição geográfica dessa região da distante Bahia – embora pudessem estar com seus gados pastando no São Francisco – indica que já deviam circular, pelo menos no norte da América Portuguesa, determinadas notícias a respeito do sertão do Rio Grande ou da Paraíba, ao menos informando das terras desapossadas de brancos e repletas de índios11. Não é de estranhar que o pedido formulado pelos criadores baianos e seus parceiros deixe transparecer um sertão inculto, silvestre e desaproveitado, com terras somente “povoadas de indios”, as quais tinham sido descobertas “com grande dispêndios de Suas Fazendas e risco de suas vidas pr. serem de Tapuios, q. nunca tiverão conhecimento de Brancos”12. Águas, campos e matas compunham a paisagem desse sertão, imaginada pelo olhar dos sesmeiros e materializada em três lugares: a cordilheira da Borborema, o rio das Espinharas e o corpo dos índios. No primeiro, privado de moradores e imerso na solitude – como remete a sua etimologia13 –, os colonizadores puderam ter visão conspectiva dos vales e boqueirões situados no sertão, cortados pelos rios, protegidos por elevadas serras e dotados de pastagens aprazíveis às suas “criaçons de gados, e cavalgaduras, e suas criaçons”14. Espinharas, por sua vez, não nominava apenas o rio, mas, as regiões mais próximas e que se encontravam atravessadas pelo leito do curso d’água, as ribeiras.

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Figura 23 Rota das sesmarias na Ribeira das Espinharas

A Ribeira das Espinharas foi, desse modo, terreno onde se produziram percursos que originaram os caminhos do gado e do povo, comumente usando-se do leito dos rios como guia; se fincaram os mourões dos currais para a guarda dos rebanhos e ferra dos bezerros a cada ano, mesmo quando as investidas dos autóctones fizeram os vaqueiros quase perderem o ferro15. Os índios, em algumas ocasiões tão hostis quanto a natureza que se apresentava ao colonizador, embora pudessem ser percebidos como parte da paisagem, tiveram seus corpos objetificados como empecilho ao enraizamento da pecuária nas ribeiras do sertão – daí um dos motivos pelos quais intensas guerras de despovoamento (nativo) foram travadas pela Coroa Portuguesa entre o fim do século XVII e início do século XVIII. A sesmaria foi oficialmente doada em 04 de fevereiro de 1670 e dela não temos notícia da confirmação régia. As suas terras, que se sucediam desde as fraldas da Serra do Teixeira até a desembocadura do Espinharas no rio Piranhas16, foram sendo ocupadas gradativamente, seja na Paraíba, seja no Rio Grande. Foge ao nosso conhecimento, entretanto, a maneira pela qual a vasta data de terra foi repartida entre os treze peticionários. O que sabemos é que “Coube a João de Freitas da Cunha o trecho correspondente ao futuro município”17 de Serra Negra do Norte, que nos dias atuais situa-se na extremidade oeste da região do Seridó norte-rio-grandense. E mais: “Falecendo o sesmeiro [ João de Freitas da Cunha ], herdou-a seu irmão Domingos Freitas da Cunha que a vendeu por 600$000 a Manoel Barbosa de Freitas, situando este uma fazenda no local. Doou-a ao sobrinho Manoel Pereira Monteiro, fundador da povoação, grande lavrador e fazendeiro”18. A povoação referida na citação anterior é uma fazenda de criar gados, edificada por Manuel Pereira Monteiro às margens do Espinharas, nas adjacências de elevações rochosas que, vistas da serra da Borborema ou de quaisquer cumes na ribeira, tinham seu contorno e vegetação enegrecidos. Daí chamarem-se Serras Negras19 ou Serra Negra, topônimo comum nas sesmarias do século XVIII20. A chegada de Manuel Pereira Monteiro data de fins de 1728, quando construiu seus currais e levantou a casa da fazenda, aproveitando-se dos recursos naturais da Ribeira das Espinharas, sendo “coberta de palha, construída de pau a pique e barro amassado”21. Em 1730 mais duas léguas de terra, ao longo do rio Espinharas, seriam adicionadas à Fazenda da Serra Negra, decorrentes da compra que Manuel Pereira Monteiro fez a Teodósio de Oliveira Ledo e sua esposa, Dona Cosma Tavares Leitão, de parte da grande sesmaria de 167022. Essas duas léguas correspondiam ao Arapuá, lugar cujo nome vem do tupi ira-poã, “o mel redondo, ou ninho de abelhas arredondado”23. Em 1735 o patriarca dos Pereira Monteiro e sua esposa, Tereza Tavares de Jesus, fizeram doação de meia légua de terra para a ereção de 150

um templo na fazenda, cujo orago escolhido foi a Virgem Maria com o título de Nossa Senhora do Ó. Quando erigido, o templo passou a pertencer ao campo de atuação da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, da qual falaremos posteriormente, que abarcava grande parte do sertão da Paraíba e Rio Grande. Entre os anos 70 e 80 do Setecentos o templo foi transposto para o lugar onde encontra-se nos dias atuais, no centro da cidade de Serra Negra do Norte24, propínqua ao rio por onde chegaram os sertanistas baianos ainda no século XVII. Na Ribeira do Sabugi, situada nas proximidades do Espinharas, os pedidos de terra mais antigos que conhecemos se dão em meio à convulsão das batalhas entre os tapuias levantados e as tropas coloniais enviadas em seu encalço. Assim, em 1686 o governo da Capitania do Rio Grande concedeu sesmaria de sete léguas em quadro ao alferes Pascoal Rodrigues do Vale e a Francisco Barbosa, José Barbosa Diniz e Antonio Martins do Vale pelo rio Sabugi acima, incluindo-se seu afluente, o Quixeré, e mais os poços Corô, Porô, Quiriquá e Piracó. Essa data tinha o seu início medido uma légua abaixo da Serra do Sabugi – hoje, conhecida como Serra do Mulungu, contígua à cidade de São João do Sabugi-RN25. Nas proximidades da fazenda estabelecida nessa sesmaria, em maio de 1688, quarenta soldados do alferes Pascoal Rodrigues enfrentaram tapuias insubordinados com a expansão do criatório naquela localidade26. Assim como na Ribeira do Acauã, como veremos posteriormente, no caso do Sabugi temos a presença de um dos sesmeiros lutando à frente das tropas organizadas para deter o avanço dos tapuias e, assim, proteger a sua propriedade. Ainda no mesmo ano (1688), no mês de novembro, os índios Panati foram combatidos na Serra do Sabugi pelas tropas do coronel Antonio de Albuquerque da Câmara e do capitão Manuel de Amorim27. Por trás dessa serra, um ano depois (1689), o capitão-mor do Rio Grande estaria concedendo oito léguas ao capitão Diogo Pereira Malheiro e a Jerônimo César de Melo, especificamente no Poço Totoró28. Essas duas glebas, a de 1686 e a de 1689, foram entradas tímidas pelo sertão do Sabugi, que somente no decorrer do século XVIII se veria marcado por muitas fazendas de gado. Dessa ribeira direcionemos nosso olhar para o rio onde o Espinharas despejava suas águas, o Piranhas. 3.1.2 Piranhas A procedência do nome Piranhas vem do tupi pir-ãi, “o que corta a pele; nome de um peixe voraz (Pygocentrus) da fauna fluvial do Brasil; a tesoura, a tenaz”29. Cardumes desse peixe teleósteo deveriam abundar nas águas do rio – que posteriormente levaria seu nome – quando os primeiros colonos bateram a vista em seu leito, que, nos dias atuais, nasce na Serra 151

do Bongá, em território do município paraibano de São José de Espinharas. Após receber os afluentes Piancó e Peixe, ainda na Paraíba, adentra no Rio Grande do Norte pelo município de Jardim de Piranhas, onde passa “a receber as águas de todos os rios que formam a bacia hidrográfica da região do Seridó”30; após passar pelo lugar Estreito (em Jucurutu)31 e ter seu líquido represado pela Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, recebe o nome de Piranhas-Açu, lançando suas águas no Atlântico nas imediações da cidade de Macau. Os dentes numerosos e cortantes, aliados à voracidade carnívora do peixe nominador do rio, ainda estariam imprimindo medo aos moradores da ribeira em pleno século XIX. É o caso de Manuel de Souza, que morreu com 20 anos de idade vítima de uma dentada de piranha em 183532 e ainda de Raimundo Alves dos Santos, de 35 anos, cuja causa-mortis registrada no seu assento de enterro trazia “uma dentada de piranha debaixo do braço esquerdo”33. As sesmarias de que dispomos – oriundas da Bahia, Rio Grande e Paraíba – não mencionam pedidos de terras nesse rio, pelo menos, no século XVII. Segundo a tradição oral dos ribeirinhos do Piranhas, coletada entre os anos de 1950 e 1970 pelo historiador Sinval Costa, a ocupação colonial desse rio, na parte jurisdicionada pela Capitania do Rio Grande, foi feita por um “moço baiano”, solteiro, que valeu-se da aliança com as tribos indígenas locais para garantir a efetividade do empreendimento pecuarístico. Tal ocupação foi feita a partir de uma sesmaria no rio Piranhas, requerida ao Governo-Geral da Bahia pelo referido “moço baiano”, mais duas outras datas, adjacentes, que igualmente foram pedidas às autoridades coloniais situadas na sede do Estado do Brasil. Segundo a tradição oral, essas três datas de terra teriam sido as primeiras a serem “requeridas” no território posteriormente ocupado pela Freguesia de Santa Ana do Seridó, quiçá antes da ocupação da Ribeira das Espinharas pelos Oliveira Lêdo – daí serem conhecidas, na tradição oral, como o “Datão” das Piranhas. Uma dessas datas pertencendo ao sesmeiro baiano e mais duas, uma concedida à índia Inês, que casou com Paulo Ferreira Coelho, negro forro do “moço baiano” e outra concedida a uma filha do chefe indígena do Pericô.34 Esse tipo de ocupação é, no mínimo, peculiar, assemelhando-se às “alianças introdutórias” assinaladas por Marcos Galindo Lima para o processo histórico de penetração da pecuária no rio São Francisco. Essas alianças, “características da primeira fase do processo local, (...) eram contraditórias, por longo termo, com o projeto ocidental”35, já que se constituem enquanto uma situação na qual os índios permitem o assentamento dos colonos e de seus currais. Cedendo espaço para que o gado pastasse em seu habitat, os índios ofereciam proteção aos vaqueiros contra os nativos hostis e em “troca recebiam resgates e se protegiam contra a exposição direta à ação colonial”36. É preciso pontuar, todavia, que situações como 152

esta podem ser vistas como inerentes à própria lógica guerreira nativa, na qual se mantinham arranjos entre tribos aliadas e inimigas com a finalidade de garantir a sobrevivência do grupo. De outra parte, também não devemos nos esquecer de que esses pactos – certamente não escritos, mas, garantidos pela força da palavra – eram transitórios, somente mantendo-se até que fosse imprescindível o apoio dos “anfitriões nativos para dar sustentação e seguridade aos currais; uma vez estabilizada a expansão elas [ as alianças ] perdem sua função estratégica”37. Desse ponto em diante os nativos passavam, gradativamente, da condição de associados para a de servos, escravos e inimigos – salvo exceções em que os índios eram mantidos como aliados estratégicos no combate às tribos hostis. No sertão da Capitania do Rio Grande, portanto, essas “alianças introdutórias” também foram comuns, sobretudo nos trinta anos após o período holandês, em que foram concedidas datas de terras em diversas ribeiras. Fátima Martins Lopes, citando o relato do capitão Gregório Varela de Berredo Pereira (1690), assinala como esses pactos também se fizeram presentes na ribeira do Açu: (...) há dez anos, pouco mais ou menos, que se começaram a descobrir estes campos [ do Açu ], o qual é todo habitado de Tapuias Bárbaros, que se não pode contar a imensidade que há deste gentio, com diversas nações todas bárbaras e agrestes. No princípio que este sertão se começou a descobrir foram para ele alguns vaqueiros com gado, de que fabricaram alguns currais, e estavam vivendo, com os Tapuias com muita paz e amizade pelo interesse que tinham de lhe darem ferramentas de machados e foices, que é o que eles necessitam para cortarem as árvores donde estão as abelheiras para tirarem o mel de pau, seu quotidiano sustento38 (grifos nossos).

Pelo fragmento acima, percebemos que a relação entre os colonos brancos que incursionaram pelo sertão na segunda metade do século XVII não era de “inimizade imediata”39, até mesmo porque necessitavam do concurso dos indígenas para sua sobrevivência. Certamente, nesses primeiros tempos junto aos diversos grupos tarairiu espraiados nas ribeiras sertanejas, esses colonos – vaqueiros, em sua maioria – devem ter convivido com e como os índios, apreendendo suas técnicas de sobrevivência no ambiente da caatinga e aprendendo a guiarem-se pelos labirintos desconhecidos das matas espinhosas e ressequidas onde as temidas onças miavam e vários tipos de abelhas bezoavam. Como afirmamos acima, essas relações de comensalidade40 não duraram por muito tempo: perdendo sua utilidade estratégica, alguns dos grupos indígenas tiveram a sua barbárie realçada e foram amplamente combatidos na medida em que, de aliados, haviam-se tornado estorvos à ocidentalização.

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Momento em que o sertão das capitanias do Norte foi banhado com sangue nativo nas Guerras dos Bárbaros, cujas pelejas mais encarniçadas e lembradas pelos documentos coloniais aconteceram dos anos de 1680 em diante. É justamente nessa década onde, estremecidas as “alianças introdutórias”, uma carta de Joseph Lopes Ulhoa, remetida do Rio Grande a El-rei em 1688, propunha ser “quazi impossivel" uma “sanguinolenta guerra contra estes Tapuyos”, dado o seu modo de vida e sua agilidade em movimentar-se pelos campos da ribeira do Açu. Caracterizando esses índios, Joseph Lopes Ulhoa afirmou que “Estes Tapuyos a que chamão Janduins são mto diferentes dos outros, porque não tem Aldeaz, nem parte serta em q~ vivão, e sempre andão volantes, sustentandosse alguas veses dos frutos da terra, e Cassa q~ matão, e outras de algum gado q~ lhe dão os vaqueiros, e elles lhe furtão”. Assim, considerava que a melhor forma de mitigar os efeitos dos assaltos dos Janduí seria utilizar, em segredo, a figura de “alguns vaqueiros moradorez naquelle sertão com os quaes estez Tapuyos comem, e bebem, e a quem chamão compadrez” como intermediadores dos conflitos.41 O excerto do texto de Ulhoa, além de corroborar a presença dos vaqueiros junto aos nativos, caracteriza-os como sendo inconstantes e móveis pelo sertão, além de valerem-se da coleta de frutos e da caça – quando não do gado – como principais formas de alimento. É ainda o genérico colonial de tapuia que lhes denomina, entretanto, o colono afirma que se chamam de “Janduins”, certamente, uma alusão ao nome do seu rei, como observamos nas crônicas de procedência neerlandesa analisadas no capítulo anterior. A documentação burocrática trocada entre a metrópole e as autoridades coloniais, no decurso das Guerras dos Bárbaros, alude constantemente aos Canindé, Pega e, dentre outros grupos indígenas, os Janduí, em alguns momentos destacando os laços de parentesco ou aproximação tribal com estes últimos. Trata-se dos mesmos Tarairiu que foram observados e descritos por Jacob Rabe e Roeloff Baro na primeira metade do século XVII. Regressando ao “Datão” das Piranhas, o seu início, segundo Sinval Costa – baseado no testemunho dos ribeirinhos que lhe forneceram as informações passadas pela tradição oral – ficava no lugar Carnaúba Enterrada (hoje, território do município de Macau), nas proximidades da desembocadura do rio, indo até os “providos do alto Piancó” (ver Figura 24). Considerando que os espinhaços dos rios eram usados como eixos de orientação geográfica nas sesmarias, o tamanho desse “datão” seria deveras grande, vez que o rio Piranhas tem uma extensão de quase duzentos quilômetros, somente no território que hoje corresponde ao Rio Grande do Norte. Tempos de muitas terras, de grandes propriedades firmadas nas esteiras dos rios e que somente teriam o seu termo através dos efeitos da Carta Régia de 7 de dezembro de 1698, que “limitou a concessão da sesmaria, reduzindo-a três léguas de comprimento por uma 154

de largo”, dando prazo de um ano para solicitar a El-rei a confirmação da data e mais a missão de demarcar e povoar a terra “dentro de um qüinqüênio sob pena de comisso”42. No caso do “Datão” das Piranhas, a tradição oral relembra que a ocupação pecuarística em tamanha gleba não foi de todo vitoriosa, pelo menos, no que diz respeito ao título da propriedade do “moço baiano”. Imaginamos que os terraços fluviais do Piranhas não foram totalmente preenchidos com o gado, já que “as terras foram divididas com posseiros”43, ensejando, posteriormente, novas solicitações de sesmaria. Uma evidência disto é que, a partir da década de 1690, Pascácio de Oliveira Lêdo – certamente parente próximo de Teodósio de Oliveira Lêdo, sertanista baiano oriundo do rio São Francisco e do qual falamos no tópico anterior – e Sebastião da Costa passaram a ocupar o poço e riacho Adequê, que deságua no Piranhas pela sua margem direita. Aos dois foi concedida sesmaria em 1695, pelo Governo da Capitania da Paraíba, confirmando a posse da qual já vinham desfrutando no Adequê. De alguma forma a sesmaria não ficou inscrita nos livros de registro da Capitania da Paraíba, sendo conhecida apenas por uma nota do escrivão Diogo Pereira de Mendonça, aludindo à concessão da data, mais a memória dos descendentes daqueles dois sesmeiros, que até a década de 30 do século XVIII encontravam-se ocupando a região com a pastorícia. A fim de evitar contendas, Felipe Rodrigues (filho de Pascácio de Oliveira Lêdo) e os herdeiros de Sebastião da Costa requereram oficialmente a confirmação da sesmaria ocupada há cerca de cinqüenta anos, em 173944. No caso da data concedida à índia Inês, o topônimo ainda se acha em uso nos dias atuais, designando o nome de sítio e riacho homônimos, este último, correndo em territórios dos municípios de Caicó e Jucurutu, desaguando no rio Piranhas (ver detalhe na Figura 20). Essa data não é referenciada apenas pela memória coletiva, mas, também, na documentação das sesmarias da Paraíba e do Rio Grande. Evidência é a sesmaria requerida pelo comissário Teodósio Alves de Figueiredo em 1742 no sertão das Piranhas, mais especificamente em campos situados nas proximidades do Olho d’Água da Anta Morta, que confrontavam com a Serra da Formiga e entestavam com “as terras da índia Inês Ferreira”45.

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Figura 24 Prováveis limites do Datão das Piranhas, com ênfase para a propriedade do Riacho da Inês

Essas terras pedidas pelo comissário Teodósio Figueiredo, sobre o qual falaremos ainda neste capítulo, se destinavam a plantar milho, roças e legumes, caracterizando os solos de chãs de serras, como a da Formiga – que, hoje, localiza-se nas adjacências do sítio Inês. Novas datas de terra foram requeridas aos governos das Capitanias da Paraíba e do Rio Grande em 1759, 1767, 1778, 1781 e 1783. No pedido de 1759, feito por Simão da Fonseca Pita à Capitania da Paraíba, ainda se fazia menção às “terras da índia Ignez Ferreira”, o que pode indicar que ela ainda estivesse viva naquele ano. Nos pedidos posteriores as referências parecem indicar que a índia não mais existia, subsistindo o seu nominativo na propriedade (Saco da Ignez, Ignez, terra da Ignez)46. Examinamos as demarcações de terra procedidas no sítio Inês no decorrer do século XIX, na esperança de encontrarmos, em anexo – como era de praxe – sesmarias ou escrituras que pudessem esclarecer mais detalhes acerca da índia Inês, entretanto, a busca foi infrutífera47. Examinemos, agora, as incursões dos sesmeiros nas terras banhadas pelo rio Acauã. 3.1.3 Acauã No sertão, escutar o gemido da acauã (Herpetotheres cachinnans) é pensar em mau presságio. Quem escuta o estridente acauã, acauã, acauã... – ruído onomatopéico que dá nome ao pássaro –, no campo ou na cidade, logo pensa num vaticínio malevolente. Quem de longe vê resplandecer sua plumagem amarelo-creme, o dorso escuro e a cauda manchada de branco, costuma dizer que a acauã é agourenta. E mais: além de “mensageira do alémtúmulo” era “respeitada pelos indígenas pela sua inimizade aos ofídios”, daí se dizer que é hábil predadora de cobras48. Essa ave falconiforme já intitulava uma determinada ribeira do sertão do Rio Grande, quando a corrida para o interior em busca de pasto para criar gado já tendia a avolumar, nos idos dos anos 70 do Seiscentos. A evidência é o pedido de data de sesmaria formulado por dona Teodósia Leite de Oliveira, Teodósia dos Prazeres e Manuel Gonçalves Diniz, moradores nas Capitanias do Rio Grande e na de Pernambuco, dirigido a Antonio Vaz Gondim, capitão-mor que assistia na Fortaleza dos Santos Reis. A rogativa, feita em março de 1676, solicitava terras onde os peticionários e seus herdeiros ascendentes e descendentes pudessem acomodar seus gados vacuns e cavalares – já que não as tinham –, considerando que “de prezente tem descoberto no Sertão desta capitania terras devollutas em hum Rio que se chama acauham, que nunqua forão povoados nem aproveitadas por estarem em poder do gentil bravo”49. 157

Como na grande sesmaria da Ribeira das Espinharas (1670), o panorama do sertão que é montado remete a um lugar vazio, não fosse a presença incômoda dos nativos para atravancar maiores aspirações a ver tais terras sendo lavadas pelo mijo do gado50. Isto significa dizer que os nativos, embora pudessem ser encarados como parte da natureza, representavam um elemento obstaculizador à efetiva conquista da capitania. Como se os colonos percebessem o sertão do Rio Grande, num primeiro olhar, como um espaço acetinado – percepção essa que era desconstruída ao passo em que a presença indígena se mostrava como um impedimento para a conquista. A propósito, Fátima Martins Lopes, ao efetuar uma análise dos requerimentos de concessão de terra no sertão do Rio Grande no mesmo período, faz alusão à idéia de um “sertão ‘vazio’, que, no entanto, era ‘ocupado’ por índios”. Em outras palavras, o sertão apresentava-se vazio de súditos do rei, já que os índios ainda não estavam sendo considerados debaixo da condição de vassalos e, desse modo, não poderiam ter o direito à posse das terras – ironicamente, as mesmas em que habitavam há milênios51. Em 23 de março do mesmo ano a sesmaria foi posta à disposição de dona Teodósia Leite e seus companheiros de petição, através de ato assinado pelo capitão-mor do Rio Grande na Cidade do Natal. Tratava-se de quinze léguas de terra em quadra, que iniciavam na foz do rio Acauã e, ao que tudo indica, se estendiam às suas nascenças. As datas posteriores, inclusive do início do século XVIII, nos mostrarão que o lugar onde o Acauã derramava suas águas era o rio Piranhas! Para entender melhor essa afirmação, é necessário que molhemos nossos pés na geografia que preconiza o caminho das águas das chuvas pelos arroios, córregos e rios em direção ao Piranhas e daí ao Atlântico. Na contemporaneidade, o lugar Baixa da Negra (município de Nova Palmeira-PB) é considerado o ponto onde nasce o rio Acauã, cujo curso superior corresponde ao rio Picuí (antigo rio Quinturaré), que entra no estado do Rio Grande do Norte e, após ser penetrado pelos rios Totoró, Mulungu e Carnaúba, despeja suas águas no rio Seridó, de onde este último segue em direção ao Piranhas52. O rio Seridó, por outro lado, nasce no município paraibano de Cubati, entrando no sertão norte-rio-grandense pelo território de Parelhas, onde é represado pela Barragem do Boqueirão; daí em diante seu leito banha as terras de Jardim do Seridó (onde recebe o Rio Acauã), São José do Seridó, Caicó e São Fernando, onde desemboca no Piranhas, “cerca de quatro léguas ao norte da cidade”53 sede desta última municipalidade54 (ver Figura 25 para compreensão da geografia atual dos rios Acauã, Seridó e Piranhas).

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Figura 25 Geografia atual dos rios Acauã, Seridó e Piranhas

A leitura dos pedidos de concessão de sesmarias do fim do século XVII, contudo, indica que a percepção dos colonos dessa época era diferente em relação aos caminhos percorridos pelas águas das suas nascentes até os desembocadouros. Não queremos sustentar que os leitos passassem por trajetórias diferentes das que conhecemos, mas, que o entendimento a respeito do espaço percorrido pelo curso d’água era divergente. Assim, durante o período assinalado acima, o atual rio Seridó era considerado um afluente do Acauã; este, por sua vez, ao receber as águas do Seridó, corria ribeira abaixo até desaguar no Piranhas55 (ver Figura 26). Sendo o Acauã o rio que banhava grande parte das terras divisadas do alto da serra da Borborema, naturalmente a ribeira ficaria sendo conhecida como Ribeira do Acauã – apesar de que alguns documentos oficiais do século XVII e do XVIII façam referência, também, à palavra Seridó como denominadora de um lugar no sertão do Rio Grande56. O porquê da mudança definitiva de Acauã para Seridó em relação ao designativo da região é assunto ainda nebuloso, motivo para outra investigação. Passados três anos, a sede de pastos para soltar os rebanhos de gado vacum ensejaria novo pedido de sesmaria na Ribeira do Acauã. Desta vez os interessados eram membros da família Albuquerque da Câmara, cujo ancestral mais antigo na capitania, Jerônimo de Albuquerque Maranhão, teve intenso envolvimento nos acontecimentos que deslancharam a colonização da costa do Rio Grande, com a construção da Fortaleza dos Santos Reis e delimitação da área da Cidade do Natal57. Estamos nos referindo aos irmãos Antonio, Lopo e Pedro de Albuquerque da Câmara, além do cunhado de ambos, Luiz de Souza Furna, que solicitaram terras na Ribeira do Acauã em 167958. Diferentemente da data anterior, as terras requeridas não iniciavam no encontro do Acauã com o Piranhas, mas, tinham seu princípio na chamada Serra do Trapuá, hoje conhecida como Serra do Chapéu, que localiza-se a cerca de dez quilômetros ao sul da cidade norte-rio-grandense de Currais Novos59. A serra era o ponto de referência donde partia a medição da maior parte das terras da sesmaria, quinze léguas que acompanhavam o leito do Acauã. As outras cinco léguas restantes tinham início na mesma Serra do Trapuá em direção ao Potim Açu – semelhante denominação para o rio Potengi – estendendo-se até o território do atual município norte-rio-grandense de Cerro Corá60.

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Figura 26 Geografia dos rios Acauã, Seridó e Piranhas na segunda metade do século XVII

Da mesma maneira que nos outros textos que comentamos, o da Data nº 39 traz a referência expressa a um dos muitos perigos, além das feras, que as escarpas do sertão escondem. Informação que fica bastante clara quando os Albuquerque Câmara anunciam que se em algum tempo se ajam dadas as ditas terras de novo lhas dêm a elles suplicantes por devolutas como estam e per nam estarem povoadas nem aver quem athé este tempo prezente (...) povoarem (...) no sertão ou por temerem o gentio brabo e elles ditos suplicantes as querem povoar com todo o (...) e dispendio e receberem mersê61. (grifos nossos)

O temor das tribos nativas é discurso recorrente nos pedidos por terras para criar gados e cultivar lavouras nos espaços mais recônditos do Rio Grande. No caso dos Albuquerque Câmara, a distância que separava a sede da capitania – a Cidade do Natal – do terreno requerido era de cinqüenta a sessenta léguas, o que permitiu que sua localização ficasse mais caracterizada que um mero sertão. A Ribeira do Acauã era uma faixa de terra que ficava encravada numa cartografia simbólica, sem marcos definidos e cujos confins somente poderiam ser percebidos se pudéssemos ter notícia dos lugares onde as populações nativas habitavam: o “Sertam dos Tapuias ou dos Indios Canindez”, como aparece no texto da sesmaria acima citada. Quase três meses passados da doação de data de terra aos Albuquerque Câmara e novamente o Capitão-Mor do Rio Grande se via às voltas com mais um rogo de colonos em favor de campos na Ribeira do Acauã onde fosse possível criar gados e, com isso, sustentar suas famílias. Referimo-nos às pessoas do Tenente de Cavalos Antonio Gonçalves Cabral, Antonio de Azevêdo Cabral, Pascoal Pereira de Lima, Antonio Moreira e Antonio da Fonseca, moradores na capitania, que requeriam no mês de fevereiro de 1680 trechos da ribeira considerados devolutos e desaproveitados. Esses segmentos territoriais ficavam nas testadas das sesmarias anteriores de Luiz de Souza Furna e companheiros e de Simão de Góis e colegas de petição, sendo vinte léguas de terras, com os fundos cabíveis, “correndo pêra parte que milhor lhes estiver”, desde que medino sohmente as terras que tyverem pastos e agoas para poderem criar gados, deixando se atraz todas as que não servirem como tambem lhes fazer mercê comçeder as sobras que na dita data ouver e assim mais as sobras das datas de Luiz de Souza furma e seus Companheiros e de Simão de gois e seus Companheiros62

Observando o texto do requerimento supra, podemos perceber o quanto os solos banhados pelo Acauã eram cobiçados por colonos ávidos por instalar-se no sertão com seus 162

rebanhos e, talvez, famílias. Não podemos nos esquecer que os pedidos pelos quais estamos passeando nesse texto são os que chegaram até a contemporaneidade ilesos, já que sesmarias são referidas pela historiografia e mesmo em outras datas, mas, seu registro oficial não mais existe63. Além do que, no caso das datas de terra anotadas e conservadas nos arquivos públicos, trata-se de registro oficial – incluindo petição, informação do provedor real, concessão e confirmação régia –, condição para que o instrumento jurídico da sesmaria se concretizasse. Longe de passar pelo rebuscado caminho da burocracia colonial até conseguir uma sesmaria, muitos colonos simplesmente passaram a ocupar porções de terras vazias ou desaproveitadas, que por vezes faziam parte de grandes propriedades com concessão oficial e que não tinham sido devidamente povoadas. Tornaram-se posseiros, senhores de pequenos ou médios domínios dedicados à pastorícia e à lavoura de subsistência, alguns dos quais, em anos posteriores ao assenhoreamento, acabavam sendo regulamentados pela concessão de data de sesmaria64. Uma dessas sesmarias que não ficou registrada nos livros competentes da Capitania do Rio Grande foi requerida pelos irmãos Antonio, Lôpo e Pedro de Albuquerque da Câmara, mais o cunhado Luiz de Souza Furna, desta vez em 1684. A carta de data com a concessão chegou até nós graças a um dos antigos proprietários da fazenda Ingá (hoje, em território municipal de Acari-RN), situada na Ribeira do Acauã65. Naqueles anos 80 do século XVII os irmãos Albuquerque Câmara e o cunhado Souza Furna vinham povoando com gado o “certão de Acauhão, onde habita a nação do Tapuya Caninde, e Jandui, confrontadas com a serra trapua”66, porém, tais boiadas não estavam acomodadas com fartura e agrado. Se antes a paisagem sertaneja tinha estado verde pela pujança das árvores, arbustos e cipós, o panasco e o mimoso tinham secado, deixando o gado quase exaurido pela falta de uma forrageira de fácil acesso como o capim. Além disso, tinham arrebentado no ano anterior (1683), nas ribeiras do sertão do Rio Grande, as Guerras dos Bárbaros, referidas anteriormente. No decurso dessas guerras duas pequenas fortificações foram erguidas no solo do sertão do Rio Grande, com o objetivo de proteger dos ataques dos indígenas os colonos e as tropas militares enviadas em socorro destes. Uma na confluência do Rio das Espinharas com o Piranhas, entre os atuais municípios de Serra Negra do Norte e Jardim de Piranhas, onde ficou hospedado Domingos Jorge Velho e seu séqüito67. A outra, conhecida como Casa-forte do Cuó (já edificada em 1683), ficava localizada às margens do então rio Acauã (hoje, Seridó), em terras que hoje pertencem ao município de Caicó68. Pelas Figuras 27 e 28 podemos observar os alicerces do que, provavelmente, foi essa casa-forte69:

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Figura 27 Detalhe dos prováveis alicerces da Casa-forte do Cuó Crédito: Helder Macedo

Figura 28 Detalhe dos prováveis alicerces da Casa-forte do Cuó Crédito: Helder Macedo

Na Casa-forte do Cuó ficaram abrigadas sucessivos terços militares70 enviados pela Coroa para o combate aos índios revoltados, como as do coronel Antonio de Albuquerque da Câmara a partir de 1687 (co-proprietário da data de sesmaria da Ribeira do Acauã) e posteriormente do Mestre-de-campo do Terço dos Paulistas, Domingos Jorge Velho71. Também as tropas do coronel Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque e do capitão-mor Afonso de Albuquerque Maranhão estiveram alojadas na mesma casa-forte72. Não é coincidência, portanto, que dentre os comandantes de terços enviados para combater os tapuias revoltados contra a penetração luso-brasílica estivessem, justamente, co-proprietários da sesmaria da ribeira do Acauã. Nessa ribeira foram registrados dois grandes massacres cometidos contra os nativos no decurso dessas guerras. O primeiro, ocorrido na Serra da Rajada, que se localiza 164

entre os municípios de Acari, Carnaúba dos Dantas, Jardim do Seridó e Parelhas, no período de 26 a 30 de outubro de 1689. O resultado foi a morte de mil e quinhentos indígenas e prisão de trezentos, além da morte de trinta homens das tropas de Domingos Jorge Velho. Os sobreviventes do combate dispersaram-se, indo parar no lugar chamado por eles de Queicar xuc, que significa Saco do Xiquexique. O outro combate ocorreu na Serra da Acauã, situada entre os municípios de Acari e Currais Novos, em 04 de outubro de 1690, no qual foram presos mais de mil índios, havendo mortos em grande quantidade73. Em meio a esse clima ressequido e de instabilidade, os Albuquerque Câmara tinham descoberto, à custa de muito trabalho e de dispêndio na luta contra os indígenas, “algumas partes e paragens, onde há alguns posos de agoa de que não tem certesa se são duraveis pela sabida falta que dellas há no dito certão por não haverem rios correntes, por secarem logo com os verões como he notorio"74. Em tempos de estiagem, portanto, achar qualquer local que pudesse recolher o precioso líquido caído das chuvas no inverno significava ter um reservatório certo para o futuro. Tanques cavados na rocha pela ação das torrentes, cavidades situadas no despejo de cachoeiras, remansos, lagoas e olhos d’água são exemplos desses locais privilegiados para o homem e os animais quando a seca atingia o sertão. Em se tratando do pedido formulado em 1684, os sesmeiros solicitavam às autoridades coloniais doze léguas de terra na Ribeira do Acauã em solos anexos aos seus domínios anteriores, quer fossem por estar devolutos, quer por constituírem-se sobras. Visualizemos, na Figura 29, uma representação cartográfica dos pedidos de terra no Acauã até o fim do século XVII, onde está incluída a concessão de uma data no Quinturaré a André Vieira de Melo e outros heréus no ano de 169675: Parece até mesmo um grito de angústia o insistente pedido a el-Rei, por meio do capitão-mor do Rio Grande, de chãos no sertão do Rio Grande para o alojamento dos rebanhos, como se depreende do texto da sesmaria: portanto pedem elles suplicantes a Vossa Mercê lhes conceda de novo se necessário, em nome de Sua Magde. que Deos goarde ou por sobras ou por devolutas quando asim se julgue, porque de toda sorte lhes vem a pertencer por haver, tempos tem povoado este dito certão e vão povoando com quantidade de gados e hão de hir metendo muyto mais achando agoas, e outro si pedem em nome do dito Snr. que as ditas doze legoas as posao tomar como melhor lhe parecer, e como der e ainda sobradas com todos os mais logradouros até intestarem por qualquer das partes como os que tiverem povoado assim na jurisdição e repartição desta Capitania com a da Parahyba, pela falta de agoas e como já concedido lhes tem na data de terras de que estão de pose, ficando-lhe sempre de dentro as tais confrontaçoens para nellas se inteirarem, e outro si as agoas já descobertas, e as mais que se forem descobrindo que em tal caso lhes pertencer por devoluptas e desaproveitadas com os mais pastos e logradouros76 (grifos nossos)

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166 Figura 29 Prováveis rotas dos sesmeiros na Ribeira do Acauã

Percebemos, dessa forma, que a carência de águas no sertão era um dos fortes argumentos para justificar a concessão das terras, bem como o fato dos sesmeiros já virem povoando esses chãos com gados77, o que significava que novas pastagens – de preferência, com aguadas – deveriam ser buscadas. Essas aguadas tiveram seus nomes incluídos no documento em que a família Albuquerque Câmara requereu as sobras no rio Acauã, ribeira cujos próprios lugares tinham denominações na língua do “gentio”: Quacari, Quinobico, Quimtorore, Norbico Amoreona, Coxi, Asinu, Poro, Quindureré, Quindé, Arari, Ditre, Echotanquiri, Araridu (serra), Papuiuré, Ticoigi e Tipui. Mais que as próprias condições de lugar inóspito, impenetrável e seco, o sertão apresentava outra barreira a ser transposta, a das línguas dos nativos: os dezessete pontos anotados na sesmaria conservavam os nomes com que os índios os chamavam, donde podemos pressupor, confirmando o que já foi dito atrás, que, até certo ponto houve convivência de todo não tempestuosa entre os dois mundos, o ocidental e o nativo – pelo menos, no período anterior à chegada das bandeiras paulistas. Pouco a pouco, entretanto, esse sertão começava a ser traduzido, considerando que algumas das aguadas já tinham suas versões na língua portuguesa: Ditre significava serra vermelha; Papuiuré, água de cágados; Ticoigi, água de pombas e Echotanquiri era a versão tapuia do vocábulo tupi jucurutu. A maioria dos termos listados no parágrafo anterior, à exceção dos que têm equivalentes na língua portuguesa, nos soam um pouco estranho. Decerto faziam parte da grande quantidade de línguas faladas pelos índios do sertão, nos escapando seu significado real78. Coligindo as informações oriundas dos pedidos de terra situados diacronicamente entre 1670 e 1696, elaboramos um mapa que representa as diversas vias de penetração nos territórios nativos pela extensão da pecuária (Figura 30). Vias estas por onde a ocidentalização solidificou-se à medida que os colonos passaram a residir nas ribeiras, a praticar suas atividades econômicas e a cultuar o seu deus – na tentativa de destronar as populações indígenas, seu modus vivendi e suas divindades.

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Figura 30 Prováveis rotas dos sesmeiros nas Ribeiras das Espinharas, Piranhas, Acauã, Sabugi (século XVII)

3.1.4. Espinharas, Sabugi, Piranhas, Acauã Pouco a pouco, do ano de 1700 em diante, a resistência indígena cessaria, em partes, no sertão do Rio Grande, não prosseguindo em função de milhares de mortes em massacres pungentes, da assinatura de diversos tratados de pazes com a Coroa Portuguesa e mesmo da reduzida quantidade de índios, muitos dos quais aldeados em missões sob o auspício de religiosos de diversas ordens79. Possivelmente ranchos e outras edificações devem ter surgido no derredor da antiga Casa-forte do Cuó e da Capela da Senhora Santana, construída ao seu lado. A acumulação de casas de morada umas próximas a outras, nas adjacências de uma capela, ensejou a fundação de um arraial em 1700, em atendimento aos desejos dos vereadores do Natal. Segundo Augusto Tavares de Lira, o Senado da Câmara da Cidade do Natal, em 28 de agosto de 1692, havia se dirigido a el-Rei, reclamando medidas de defesa para a capitania. Dentre estas, Pela grande extensão dos sertões considerava conveniente que Sua Majestade mandasse fundar quatro arraiais nos lugares Jaguaribe, Açu, Acauã e Curimataú, sendo mantidos e sustentados pela gente do Arco Verde e do Camarão, que existia de Pernambuco ao Ceará, ficando sob direção do referido mestre-de-campo, e só assim, flanqueando cada arraial pela sua parte a campanha, ver-se-iam povoar os sertões, recuperando desta sorte as perdas que tinham tido os dízimos reais80 (grifo nosso).

O Acauã a que os homens bons da Câmara da Cidade do Natal se referiam era o pequeno arraial que surgiria no fim do século XVII, no derredor da Casa-forte do Cuó e da Capela da Senhora Santana – arraial que seria elevado a povoação em 1735. Um terreno plano nas proximidades do Acauã também faria surgir pequenos ranchos a partir dos anos 20 do século XVIII, cujo sítio ficaria sendo chamado de Acari em função da grande porção desses peixes locariídeos encontrados nos poços do rio e onde seria erguida, entre 1737-1738, uma capela dedicada a Nossa Senhora da Guia81. Antes disso, fiéis já se aglomeravam em torno de capelas surgidas na Ribeira do Piranhas, dedicada a Nossa Senhora dos Aflitos (já de pé em 171082) e na Ribeira das Espinharas, em honra a Nossa Senhora do Ó (cujo patrimônio inicial foi doado em 173583). No mapa traçado na Figura 31 podemos observar a localização dessas manchas populacionais com suas respectivas capelas até o final dos anos 40 do século XVIII. Essas manchas populacionais, onde conviviam índios, brancos, negros escravos e mestiços, estavam subordinadas, desde o ano de 1721, à Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso, do Piancó, de que falaremos nas páginas subseqüentes. O florescimento desses aglomerados de pessoas, ao passo em que as fazendas de criar gado também se multiplicavam até mesmo nas áreas mais distantes, alterou profundamente o ecossistema do sertão – sobre o 169

qual se arquitetou, paulatinamente, uma nova paisagem. São as palavras de um geógrafo do século XX que afirmam, a propósito e em tom de ligação afetiva com a terra, que as novas famílias, buscando outras fazendas, as heranças, e as partilhas, o alargamento das roças, o fogo para eliminar os espinhos, o aumento dos rebanhos, significaram uma expansão biológica em meio físico estático. Como consequência, a terra seca foi sofrendo um desgaste no seu potencial de recursos naturais: o pé do homem, o boi, o machado e o fogo abriram a brecha para a diminuição da flora, da fauna e do solo com o apressamento da erosão84.

Os lenhos seriam desmatados para transformarem-se em lenha, caibros e ribas para a edificação de casas, a princípio de taipa e depois de alvenaria; do barro retirado da terra se fariam telhas e tijolos; tatus, rolinhas, ribaçãs, capivaras e outros animais seriam largamente consumidos como caça pelas populações que se instalaram nas ribeiras; com a vinda da seca, os rios seriam represados em barragens de pedra-e-cal, na tentativa de armazenamento da água quando a invernada sobreviesse. A sensação de maravilhamento que aparecia nas sesmarias do século XVII, manifestada pelo temor aos nativos, pouco a pouco ia dando lugar a um conhecimento intuitivo e imediato do sertão, possibilitado pela vivência dos colonos nesse espaço85. Como se o ignoto, impenetrável e inóspito de outrora já oferecesse mais possibilidades de conhecimento, seja dos animais que o habitavam, seja das plantas que compunham suas ribeiras, o que nos leva a pensar em sensações de deslumbramento face a um espaço despovoado – mas, não ausente – de índios. Evidência desse deslumbramento é o fato de que, avançando pelo século XVIII, os pedidos de terra cresceram vertiginosamente em número nas ribeiras do Espinharas, Piranhas, Acauã, Sabugi e Seridó86. Valhacoutos e esconderijos de índios resistentes ainda se faziam presentes em meio às sesmarias que iam sendo povoadas com o rastro do gado e do homem branco, indicando que o expurgo pretendido pela Coroa Portuguesa não tinha sido total, dele escapando sobejos nos altos das serras e em outras paragens de difícil acesso87. Se a natureza era enigmática e nebulosa nos textos das sesmarias do século XVII, onde se mencionava o sertão, vasto por suas extremas ocupadas pelo gentio bravo, nas primeiras décadas do século XVIII as serras, rios e matas tornar-se-iam perceptíveis pela sua incorporação à paisagem colonial que ia se construindo por sobre as antigas territorialidades nativas. As evidências da emersão dessa paisagem colonial irão revelar-se quando os percursos feitos pelos diferentes grupos sociais nas ribeiras acima mencionadas instituirão determinadas demarcações, que podemos visibilizar nas cartografias político-administrativas (os arraiais, povoados e posteriormente vilas) e eclesiásticas (as freguesias). 170

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Figura 31 Manchas populacionais (povoações) da Ribeira do Seridó até a década de 1740

Exemplar, nesse sentido, é a demarcação feita pelo vigário Manuel Machado Freire, em visita ao Piancó no dia 15 de abril de 1748, quando estabeleceu os limites da nova freguesia então criada, a da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, ligados às ribeiras do Espinharas, Seridó e seus afluentes.88 Seridó, Piranhas, Acauã, Espinharas e Sabugi: rios cujo entorno foi concentrando a população colonial a partir do século XVIII e que estavam, portanto, inclusos nessa cartografia da fé – a da Freguesia de Santa Ana do Seridó.

3.2 O tempo da fé: cartografias da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana “O século XVIII é a época do povoamento do interior norte-riograndense”89. Com essa afirmação o historiador Luís da Câmara Cascudo sintetiza o período em que o sertão do Rio Grande, decorrido o processo depopulativo de grande parte dos nativos, passou a ser efetivamente ocupado pela população branca – e, por conseguinte, negra e mestiça –, impulsionada pela pecuária. Lado a lado aos colonos, aos currais e ao gado, a fé e a religiosidade também imprimiam seus sentidos nos caminhos de penetração da pastorícia no sertão, ocupando espaços outrora apadroados pelas divindades índias e demarcando territórios através da edificação de templos cristãos com oragos dedicados à Virgem Maria ou a santos do panteão católico romano. Esse pensamento pode ser confirmado se observarmos o surgimento dos primeiros povoados do sertão do Rio Grande, cujas histórias comumente remetem a um voto, a uma promessa. Essas histórias, revestidas de contornos míticos, encontram uma de suas representantes mais conhecidas na “lenda do vaqueiro”, ainda hoje contada e imortalizada na voz popular dos habitantes da cidade de Caicó, que tomamos emprestado de uma versão escrita, datada de 1922: Quando o sertão era virgem, a tribu dos Caicós, celebre pela sua ferocidade, julgava-se invencível, porque Tupan vivia alí, encarnado num touro bravio que habitava um intrincado mufumbal, existente no local onde está, hoje, situada a cidade do Caicó. Destroçada a tribu, permaneceu intacto o misterioso mufumbal, morada de um Deus, mesmo selvagem. Certo dia, um vaqueiro inexperto, penetrando no mufumbal, viu-se, de repente, atacado pelo touro sagrado, que iria, indubitavelmente, mata-lo. Rapidamente inspirado, o vaqueiro fez o voto a N. S. Sant’Ana de construir ali uma capela, si o livrasse de tamanho perigo. Como por encanto, o touro desapareceu. O vaqueiro destruiu a mata e iniciou, logo, a construção da capela90.

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Longe de representar apenas uma narrativa de caráter maravilhoso, essa lenda evoca a colonização branca no sertão do Rio Grande, que somente foi possível após a submissão dos grupos indígenas que habitavam esse espaço. Dos elementos apontados pela lenda, destacamse o vaqueiro, a água e a capela, que podem ser lidos como “trabalho, vida e religiosidade, respectivamente”, cuja mestiçagem aponta para uma das possíveis identidades dos moradores de Caicó91. Mas, não foi apenas na Ribeira do Seridó – especificamente nos campos do futuro Arraial do Caicó – que a cristandade se personificou por meio de uma crença. Também nas Ribeiras do Espinharas, do Piranhas e do Acauã, a crença num ente sagrado feminino daria a possibilidade para a ereção de um templo e conseqüente surgimento de um povoado. Nossa Senhora dos Aflitos e Nossa Senhora da Guia seriam, respectivamente, as escolhidas, por meio do investimento que as populações dessas ribeiras fizeram, para que a crença se imortalizasse e sua tradição fosse inventada92. Seridó, Piranhas, Espinharas, Acauã. Uma dessas manchas populacionais, que pouco a pouco ia aumentando em termos demográficos, dada a antiguidade de seu templo, foi escolhida para sediar uma cartografia da fé. As autoridades coloniais, mormente as eclesiásticas, manifestaram preferência pela Povoação do Caicó para servir de sede para uma freguesia93, que seria intitulada de Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (criada em 1747 e instalada um ano depois), para cujo concurso contaram com a contigüidade dos espaços marcados pela pecuária nas Capitanias do Rio Grande e Paraíba. Para compreender como se deu a produção do território dessa freguesia comecemos visibilizando os alicerces onde se construiu essa cartografia da fé. A excelência do ambiente do sertão do Rio Grande, notadamente das Ribeiras das Espinharas, do Piranhas, do Sabugi e do Acauã, aliada à necessidade de campos para refrigerar e acomodar os rebanhos de gado vacum, já havia chamado a atenção de colonos desde, pelo menos, os anos de 1670, conforme vimos no início deste capítulo. As sesmarias doadas nessas ribeiras, principalmente, a duas grandes famílias – a dos Oliveira Lêdo e a dos Albuquerque da Câmara –, em seus textos de solicitação, remeteram a um sertão hostil, inóspito, ermo e ignoto, paradoxalmente recheado de “tapuias” ou de índios Janduí e Canindé. Provavelmente a relação dos sesmeiros recém-chegados ou de seus curraleiros e prepostos com os grupos indígenas não foi de instantânea indisposição, como indicado anteriormente, malgrado a constante remissão ao “gentio bravo” nos textos dos pedidos de concessão de datas e sesmarias. Todavia, essa relação de convivência estaria abalada, vez que a interiorização da pecuária na Capitania do Rio Grande implicou no confronto entre dois mundos diferentes, o 173

ocidental e o nativo. Não tardaram a surgir conflitos entre os curraleiros e os índios, tendo como cerne as questões que envolviam a ocupação das reservas naturais com o gado. Conflitos esses que já aconteciam no Recôncavo da Bahia de Todos os Santos desde, pelo menos, os anos 50 do século XVII e caminhavam pari passu com o movimento das trilhas do gado rumando em busca do sertão das Capitanias do Norte. Trata-se das Guerras dos Bárbaros. Cessados, em parte, os conflitos e aldeada grande parcela da população indígena em missões religiosas, foi celebrado no ano de 1695 um tratado de paz entre Bernardo Vieira de Melo, capitão-mor do Rio Grande, e Taiá Açu, principal dos Janduí. Essa convenção primava pela paz ditada entre luso-brasílicos e índios, embora os conflitos tenham perdurado até a segunda década do século XVIII em outras ribeiras do Rio Grande94. Coincidentemente, no mesmo ano de 1695, foi construída nas proximidades da Casa-forte do Cuó um templo, intitulado na documentação da época de “Capela da Senhora Santana do Vale do Acauã”. Seu objetivo era dar assistência religiosa à região e foi bento um ano depois por intermédio do frei Antonio João do Amor Divino, paroquiano de Olinda. A ereção de uma capela dedicada à Senhora Santa Ana fez com que as populações que já freqüentavam o local durante os perigos da guerra pudessem fixar-se de forma definitiva na ribeira, formando um arraial. A “fundação”95 do “Arraial do Caicó” se deu no ano de 1700, por Manuel de Souza Forte, fazendeiro na região, e pode ser compreendida como a resposta aos anseios do Senado da Câmara da Cidade do Natal em favor do povoamento do sertão com os vassalos do Rei de Portugal – referimo-nos, aqui, à missiva de 1692, comentada anteriormente, que pedia a el-rei a fundação de arraiais para dinamizar o povoamento do sertão. Vinte e seis anos depois de instituído o arraial, a administração militar96 passou a preencher o espaço ocupado pelos moradores nos arredores da Capela da Senhora Santana. Data do ano de 1726 o início, até onde se pôde precisar, do funcionamento de Companhias de Ordenanças na Ribeira do Seridó, cuja sede deveria ficar no Arraial do Caicó97. Essas companhias eram o reflexo da administração colonial nos rincões da capitania e “funcionavam como fonte de recrutamento para suprimento das fileiras da tropa regular e miliciana”98 e seus corpos, instituídos pelo Regimento Geral das Ordenanças de 1570, eram formados pelo “engajamento obrigatório de todos os moradores de um termo (jurisdição administrativa) com idade entre 18 e 60 anos, com exceção dos eclesiásticos e dos fidalgos”99. O Regimento de Ordenanças da Ribeira do Seridó teria o seu primeiro coronel na pessoa de João Gonçalves Melo – soldado desde 1726 e sargento-mor desde 1741 – nomeado através de

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carta-patente de 23 de junho de 1749, emitida pelo capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques100. O arraial que sediava o Regimento de Ordenanças da Ribeira do Seridó foi elevado ao status de “Povoação do Caicó”101 em 07 de julho de 1735, numa cerimônia de instalação da qual nos chegou o relato oficial. O ato solene ocorreu na fazenda Penedo às sete horas da manhã, iniciando com a alocução do coronel de cavalaria Manuel de Souza Forte, proferindo as palavras indicadas nas Ordenações Filipinas e ordenando a fixação do pelourinho, “para serem applicados castigos aos criminozos, aos escravos, aos ladrões e aos filhos desobedientes aos paes”102. Vivas foram irrompidas ao Rei de Portugal, Dom João V; ao Vice-Rei do Brasil, Conde de Sabugosa; ao Governador da Capitania do Rio Grande, João Teive Barreto de Menezes e ao próprio coronel Manuel de Souza Forte. Seguiu-se a celebração da Santa Missa na “Praça da Capella e da Caza da Supplicação”, pelo padre Messias José Pereira, natural de Goiana103, e bênção da imagem de “Sant’Anna”, ofertada pelo cearense Luís da Fonte Rangel, seguida do “beijo”104. Lavrada a ata, três vias foram confeccionadas, sendo uma destinada ao Governador da Capitania do Rio Grande e duas ao Vice-Rei do Brasil, para que uma cópia fosse remetida ao Rei de Portugal105.

3.2.1 Desenhos, mapas e manchas Duas cartografias tinham sido traçadas para o sertão do Rio Grande. A das ribeiras, que considerava como seu contorno a região cortada pelo rio Seridó e pelos riachos que para este afluíam, apropriando-se, portanto, da toponímia desses cursos d’água para designar o espaço de instalação das fazendas de criar gado. Essas fazendas possuíam um símbolo que as distinguia, o ferro de marcar, que era aposto no corpo das reses objetivando a sua vinculação a um proprietário e, por conseguinte, a uma propriedade rural. Além do ferro de marcar do fazendeiro, havia outra insígnia que era aplicada no couro do animal, a da ribeira. Tratava-se de uma marca comum a todos os fazendeiros da região. No caso da Ribeira do Seridó, o ferro da ribeira que era utilizado junto com o do colono era representada por um “S”. Não há certeza, ainda, sobre o significado exato dessa letra: se remetia ao nome do rio que cortava a região (Seridó) ou se dizia respeito à Santa Ana, cujo templo erguido no distante 1695 a tornou patrona da ribeira106. A outra cartografia era a da povoação107, tímida mancha urbana surgida a partir do Arraial do Caicó e às margens do rio Seridó, cujas edificações dos moradores iam sendo construídas no largo da Capela da Senhora Santa Ana ou nas proximidades. No povoado as 175

Companhias de Ordenanças da ribeira assumiam a função de administração civil, disciplinando o povo e conclamando a todos para a observância das normas de conduta social, até mesmo as previstas na legislação. De outro lado, os sacerdotes que celebravam missas na Capela da Senhora Santa Ana convocavam os fiéis para o respeito, o recato, a observância dos costumes pios da religião. Ambos, as ordenanças e os sacerdotes, representavam as duas instituições máximas na colônia portuguesa da América, o Estado e a Igreja. Na falta de uma dessas autoridades na povoação, a representação do Rei e do Papa não emudecia por completo, já que dois marcos simbólicos impingiam a ordem, fomentando, inclusive, as constantes relações de poder entre a Coroa e seus súditos: a capela e o pelourinho108. Nos anos 40 do século XVIII, na Ribeira do Seridó e seus afluentes, o painel que se apresentava era o de um território pontilhado por fazendas de criar gados e cuja concentração de pessoas se acumulava em quatro manchas populacionais, surgidas nos arredores de templos católicos situados nos terraços fluviais dos rios Seridó, Piranhas, Espinharas e Acauã (ver Figura 27). Os anos de 1695, 1710, 1735 e 1738 correspondem, respectivamente, aos marcos de edificação dessas capelas, dedicadas a Santa Ana, Nossa Senhora dos Aflitos, Nossa Senhora do Ó e Nossa Senhora da Guia. Decerto a guarda das chaves e mesmo a manutenção desses templos ficava a cargo das famílias tradicionais que moravam nas proximidades e que detinham sob seu manto fazendas de gado, lavouras e escravos. Do ponto de vista da assistência espiritual, na falta de um sacerdote residente, esta era feita através das desobrigas, jornadas em que os padres, acompanhados ou não de um sacristão, percorriam as fazendas e povoados no intuito de levar os sacramentos aos lugares mais ermos e distantes. Em ocasiões como estas, casavam-se várias pessoas de uma vez só, aproveitando a presença do presbítero, quando ocorria também batizados e crismas109. Em se tratando da hierarquia da Igreja Católica Romana na América Portuguesa, a Capela da Senhora Santa Ana era subordinada ao Bispado110 de Olinda, sobretudo, pelo fato de ter sido um frei da “Capela de Olinda” o intermediador de sua construção. Confirmando nossa assertiva, encontramos Francisco dos Santos Rocha, em 1699, escrevendo da Casa-forte do Cuó e solicitando a el-rei, por meio do Vice-Rei do Brasil, que fossem concedidos perdão de presos; indulgências para a Capela da Senhora Santana, através dos missionários de Olinda e o aval para que a mesma capela pudesse comandar os batizados e atos da religião pelos curas do Piancó, “dignados a entrar-se nos sertoens”111. Piancó designava a ribeira de mesmo nome, tributária da Ribeira do Piranhas, no território da Capitania da Paraíba. No Piancó funcionava, desde a última década do século XVII, o Arraial das Piranhas112. Neste encontravam-se reduzidos113 os índios Pega por 176

intermédio do capitão-mor das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo – o mesmo que era co-proprietário da sesmaria do rio Espinharas, requerida no “tempo do gentio”. Posteriormente, em 1701, foi erigido um pequeno templo no arraial, de qual não se tem mais vestígios. Sucedeu-se a construção de novo templo, a Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso114, iniciada em 1719 e concluída em 1721. A conclusão dessa matriz gerou a Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó115. Embora não saibamos com exatidão os seus marcos delimitatórios e tampouco conheçamos seu ato de criação, supomos que deveria abarcar as Ribeiras das Piranhas e de Piancó com seus afluentes – incluindo a do Seridó –, dados os limites entre as Capitanias do Rio Grande e Paraíba serem tênues o bastante para que as possessões de uma avançassem sobre a outra e vice-versa. Uma possível representação dessa freguesia, baseada nos dados da historiografia regional, encontra-se na Figura 32. Numa época onde a demarcação das capitanias era vaga e a vastidão da Freguesia do Piancó reinava sobre a quantidade reduzida de ministros eclesiásticos, tornou-se interesse da Igreja Católica a racionalização do seu território. Essa preocupação tornou-se mais evidente quando Dom Frei Luís de Santa Teresa, Bispo de Pernambuco, baixou ato em Olinda no dia 20 de fevereiro de 1747, ordenando ao padre Manuel Machado Freire que, em visita aos Curatos116 do Icó e do Piancó, os dividisse da melhor forma possível, a fim de criar novas freguesias. O discurso do Bispo de Pernambuco é bastante notório ao referir-se à atenção com seu aprisco, quando declara que Por termos cabal noticia do copioso povo que nos Sertões do Nosso Bispado há, e que cada vez cresce mais em numero, principalmente nos Districtos do Icó, e Piancó, e incumbir ao Nosso Pastoral officio acodir com o Pasto Espiritual a tantas Ovelhas Nossas; e vermos que a providencia mais efficaes que lhe podemos dar, é a divisão das Igrejas e multiplicidade dos Parochos para que mais prontamente se acuda com os Sacramentos e fiquem mais bem assistidos os Parochianos (grifos nossos)117.

Em atenção à ordem de Dom Luís, o padre Manuel Machado Freire, “Visitador Geral dos sertões da parte do Norte”, estando no Piancó, desmembrou da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso uma nova freguesia, com título e invocação a “Santa Anna”. Era 15 de abril de 1748. Nascia, naquele momento, a Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, com sede na Povoação do Caicó, cujos limites também foram deliberados pelo visitador. A forma como os contornos foram traçados demonstra que o sertão já tinha seus caminhos, rios, serras e vales parcialmente conhecidos.

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Figura 32 Prováveis limites da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó - 1721

A demarcação feita por esse vigário quando visitou o Piancó baseava-se no curso natural dos rios, agregando duas ribeiras: a das Espinharas, das suas nascentes até a foz – de onde uma linha imaginária era percorrida até atingir os limites da Freguesia de São João Batista do Açu – e a “Ribeira do Seridó, suas vertentes e todas as mais que d’esta parte correm para o dito Rio de Piranhas”118. Esse texto nos permite ter a visibilidade da “primeira delimitação do espaço que viria a ser conhecido como Seridó”, que não mais se representa apenas pelo curso d’água homônimo: “Agora, é uma malha de rios: Acauã, Seridó, Espinharas e Piranhas. Estende-se seu espaço de abrangência, um território que deveria acomodar um domínio institucional, um locus esquadrinhado para que o poder se exerça”, como apregoou Muirakytan Macêdo119. Passados três meses da visita do padre Manuel Machado Freire ao Piancó, homens, mulheres e crianças aglomeravam-se na pequena Povoação do Caicó, notadamente numa área plana e ladeada por serrotes e cordões de pedra, próxima a um poço d’água no leito do rio Seridó – conhecido, nos dias atuais, como Poço de Sant’Ana. Provavelmente era manhã quando o padre Francisco Alves Maia, perante a multidão presente na planície, abençoou uma cruz, símbolo do martírio de Cristo, para que servisse de marco do local onde deveria ser “fundada e erecta a Matriz com a invocação de Senhora Sant’Ana, por ser este o lugar mais cômodo e para onde podia concorrer o povo com conveniencia comum para todos”120. Um lugar cômodo e conveniente para todos, já que a pequenina capela de que dispunha o povoado, erguida há pouco mais de meio século – no fenecimento das batalhas sangrentas entre os nativos e as tropas coloniais –, ficava encravada num alto, em terreno acidentado e lastrado de serrotes de pedra, aonde se chegava após a passagem do leito do rio Seridó. Espaço que, decerto, dificultava o acesso aos fiéis, especialmente os de avançada idade. Imaginamos que as paredes dessa capela – também dedicada à Senhora Santa Ana – não fossem mais capazes de reunir, sob o mesmo teto, os moradores da povoação e dos arredores, cujas cifras aumentavam ao passo que também se avultava o número de fazendas de gado na Ribeira do Seridó e, por conseguinte, da presença de famílias com seus agregados. Era necessário, naquele momento, que um novo templo – maior e situado em terreno de melhor acesso – pudesse suprir as necessidades espirituais dos moradores do Caicó e das fazendas situadas à pequena distância. Com a instalação da freguesia, a outrora Capela da Senhora Santa Ana, contígua à antiga Casa-forte do Cuó, ficou reduzida eclesiasticamente à condição de Capela de Nossa Senhora do Rosário121. A determinação de um local para a construção desse templo somente foi possível naquele momento graças à doação de uma faixa de terras pelo tenente José Gomes Pereira e 179

sua esposa, dona Ana Maria da Assunção, onde deveria ser levantada a matriz e a casa do “Reverendo Pároco e seus sucessores”122. Corria o ano de 1748 e a cerimônia presidida pelo padre Francisco Alves Maia naquele distante 26 de julho – dia dedicado, no calendário da Igreja Católica, à Santa Ana – consubstanciava a instalação da freguesia mater do Seridó123. Somente entendemos com clareza o surgimento dessa freguesia se a enxergarmos como sendo parte integrante de um movimento mais amplo, o de conquista do sertão da Capitania do Rio Grande, possibilitado pelo alargamento da fronteira da pecuária, à medida que o Rei de Portugal - através do capitão-mor - doava porções de terra para serem ocupadas pelo gado, por lavouras e pelos cristãos. Custa-nos estabelecer, por outro lado, e com exatidão, os limites desta freguesia. A aproximação que fazemos de como seriam os seus contornos, tal como procedemos com a Freguesia do Piancó (Figura 28), é resultante da representação que fazemos dos territórios apadroados por Santa Ana, no século XVIII, a partir dos dados oferecidos pela historiografia regional e por documentos manuscritos e impressos da época. Antes que possamos visualizar este mapa que traçamos da Freguesia de Santa Ana, é necessário registrar que outros historiadores, muito antes de nós, já haviam se dado conta desse recorte espacial – e, mais que isso, da imbricação das cartografias da freguesia com a da Vila do Príncipe, bem como sua importância para o processo de regionalização do Seridó. Um dos primeiros – senão o primeiro – foi Nestor Lima, que, em 1930, ao reconstituir aspectos históricos e geográficos dos municípios do Rio Grande do Norte, dedicou sua atenção a Caicó. Município que considerou como o mais antigo e importante da “zona seridóense" (sic), compreendendo, outrora, “toda a fertil região da ‘Ribeira do Seridó’”, diminuindo seu território com a criação dos municípios de Acari, Jardim do Seridó e Serra Negra do Norte124. Essa preponderância de Caicó em relação às outras municipalidades da região também encontrou seu eco na obra de José Augusto Bezerra de Medeiros. Este, em 1940, ao tratar do povoamento da “zona do Seridó”, afirmou que o município de Caicó compreendia, além dos seus limites, os das circunscrições de “Acary, Jardim do Seridó, Serra Negra, Curraes Novos, Flores, Parelhas, Jacurutú”, que do primeiro se desmembraram125. Em 1954 o autor empreendeu uma discussão acerca dos limites do Seridó, entrando no mérito da confusão que havia, nos tempos coloniais, entre as capitanias da Paraíba e do Rio Grande. Lembrou, a propósito, do papel do padre Francisco de Brito Guerra, na década de 1830 – além de vigário da Freguesia de Santa Ana, na época, ocupava o cargo de deputado

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geral do Império representando a Província do Rio Grande do Norte – como figura que contribuiu, com sua força política, para a manutenção dos territórios da Vila do Príncipe126. Seis anos mais tarde, numa conferência pronunciada por ocasião de sua posse como sócio efetivo da Sociedade Brasileira de Geografia (1960), José Augusto tornou a tratar da importância de Caicó como pilar da construção da história territorial do Seridó. Considerando a emancipação administrativa do Seridó em 1788 – ano da criação do município da Vila Nova do Príncipe, posteriormente chamado de Caicó –, afirmou que Com o desenvolvimento crescente do Seridó, do ponto-de-vista demográfico, político, social, econômico, surgidos vários núcleos de população mais ou menos densa, outros municípios foram-se destacando e desmembrando, a princípio o Acari, depois o Jardim do Seridó e Serra Negra, no período monárquico, Currais Novos, Flores, hoje Florânia, Parelhas, Jucurutu, São João do Sabugi, Ouro Branco, São Vicente, Cruzeta, Cerro Corá, Carnaúba dos Dantas, São Fernando, Jardim de Piranhas, após a proclamação da República, em um total de dezesseis127.

Caicó como núcleo do povoamento do sertão e centro irradiador da cristandade. Essa qualidade também foi objeto da descrição que Eymard L’Eraistre Monteiro fez em 1945, a propósito da composição de “subsídios para a história completa do município”, subtítulo de sua obra. Ao tratar da freguesia, como Nestor Lima, utilizou-se dos documentos contidos no primeiro Livro de Tombo. Após citar o termo do visitador Manuel Machado Freire, que criou o Curato de Santa Ana do Seridó, afirmou que esta freguesia “compreendia desde as atuais Freguesias de Patos e Cuité, na Paraíba, assim como as de Acarí e Jardim que depois se desmembraram”128 – primando, portanto, pela abastança territorial da Freguesia de Santa Ana. Abastança que também seria referida por outro sacerdote que exerceu seu ministério em Caicó, José Adelino Dantas. Este, tratando das mesmas questões de limites com a Paraíba referidas por José Augusto em 1954, afirmou que “O território compreendido nessa nova paróquia [ a de Santa Ana do Seridó ] era muito vasto. Além de tôda a região do Seridó propriamente dito, incluiam-se os territórios das futuras freguesias de Patos, de Santa Luzia, capela de Pedra Lavrada, Picuí e Cuité”129. Mesmo sem descrever com precisão até onde ia as terras abençoadas por Santa Ana, José Adelino Dantas cravou, em sua versão da história do Seridó, uma definição do território da freguesia que mais se parece com a que traçamos. Os historiadores acima examinados, contudo, apenas representaram a Freguesia de Santa Ana por meio dos limites geográficos presentes no seu Livro de Tombo mais antigo ou dos desmembramentos territoriais que esta sofreu ao longo do tempo – sempre, diga-se de passagem, reservando ao município de Caicó um lugar de relevo por estar no centro da irradiação do povoamento branco e católico. O primeiro trabalho de cunho historiográfico que 181

conhecemos a fugir da descrição dos limites da freguesia apenas na forma textual e situar os contornos da administração eclesiástica de forma gráfica, num plano, foi o de Maria Regina Mendonça Furtado Mattos. Trata-se da dissertação elaborada pela autora para obtenção do grau de Mestre em História na Universidade Federal Fluminense (1985), trabalho monumental do ponto de vista da quantidade de fontes analisadas, onde estudou os fatores responsáveis pela interrupção do desenvolvimento sócio-econômico da Vila do Príncipe, no período de 1850 a 1890, que acarretou a caracterização desse lugar como portador de população extremamente pobre130. Abordando a área estudada do ponto de vista da geografia e do seu processo histórico de construção, Maria Regina Mendonça Furtado Mattos traçou, num plano, uma representação que intitulou “Mapa II: O Sertão do Seridó no século XVIII”, como podemos ver na Figura 33. Essa carta geográfica traçada pela autora sobre o “Mapa Phytogeographico das Províncias da Parahyba e do Rio Grande” (1899), embora não tenha se referido diretamente à Freguesia de Santa Ana, guarda, aproximadamente, as linhas do seu perímetro definidas no ato de criação do visitador Manuel Machado Freire. Alocando, no mapa, os lugares Caicó, Acari, Cuité e Patos, a historiadora inscreveu o Sertão do Seridó como estando situado na fronteira entre as duas antigas Capitanias da Paraíba e Rio Grande, realidade já configurada desde a criação da freguesia de que estamos falando, em 1748. A representação cartográfica do Sertão do Seridó incluída no estudo de Maria Regina Mendonça Furtado Mattos certamente inspirou o historiador Muirakytan Kennedy de Macêdo a construir, também, o seu mapa da Freguesia de Santa Ana. Na dissertação de mestrado em Ciências Sociais (1998), ao estudar a formação da imagem identitária do Seridó amparado no discurso regionalista, o autor fez uma análise sobre o espaço seridoense entre os séculos XVII e XIX. Seguindo os vestígios deixados por documentos citados pela historiografia regional – a mesma que sondamos há pouco, acrescida de outros autores –, propôs uma arguta e penetrante “construção cartográfica do Seridó”, onde expôs a maneira como foi definida a demarcação do Seridó do ponto de vista físico131. Como resultado dessa investigação, apresenta um mapa contendo os “Limites da Freguesia da Gloriosa Senhora Santana” (Figura 34).

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Figura 33 O Sertão do Seridó no século XVIII

Figura 34 Limites da Freguesia da Gloriosa Senhora Santana

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Seu esboço de como a Freguesia de Santa Ana se apresentaria no plano cartográfico assemelha-se ao que Maria Regina Mendonça Furtado Mattos produzira anteriormente, entretanto, diferencia-se por um melhor refinamento estético. Mais que isso: a sua representação da freguesia está baseada na malha hidrográfica das ribeiras do Piranhas, Espinharas, Seridó e Acauã – por onde o visitador Manuel Machado Freire, no longevo 1747, imaginara que deveria se espraiar o território de Santa Ana. A base cartográfica escolhida por Muirakytan Macêdo para a composição do seu recorte da Freguesia de Santa Ana, dessa forma, foi um mapa hidrográfico do Rio Grande do Norte oriundo do antigo Instituto de Desenvolvimento Econômico – IDEC132. Em 2002, quando produzimos uma monografia de graduação em História acerca da presença indígena no Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX, em contraposição à idéia de desaparecimento dos nativos propugnada pela historiografia regional, o recorte geo-histórico escolhido foi o da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. Antes de procedermos à análise dos registros de batizados, casamentos e enterros envolvendo índios, historicizamos a construção territorial da freguesia e também elaboramos a nossa representação cartográfica dos seus limites. Essa representação, construída com base nos documentos do Livro de Tombo – transcritos por Eymard Monteiro – e nas descrições da freguesia que conseguimos para os séculos XVIII e XIX, resultou em um mapa mostrando os domínios da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó até o ano de 1788, quando atingiu o máximo de extensão territorial, situando suas capelas, povoações e vila133. Voltaremos, adiante, a comentar este mapa e a atualização que fizemos, por ora, apresentando sua versão de 2002 (Figura 35). Dois anos depois, ao perscrutar, em sua tese de doutoramento em Ciências Sociais (2004) acerca da geografia da resistência dos habitantes do Seridó, Ione Rodrigues Diniz Morais também tracejou um panorama geo-histórico da região. Partindo de documentos manuscritos – sobretudo de origem paroquial e judiciária – e de informações fornecidas pela historiografia regional, a autora construiu uma série cartográfica que vai desde o mapa da Freguesia do Bom Sucesso até o da de Santa Ana, bem como os que retratam o desmembramento desta última134. Ione Morais construiu essa série de mapas tomando como base a Malha Municipal Digital do Brasil (1997), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstrando o esmero e a aspiração ao exato de uma geógrafa. Apresentamos abaixo, na Figura 36, o mapa que a autora traçou da freguesia.

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Figura 35 Freguesia de Santa Ana até 1788

Figura 36 Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Anna do Seridó – 1748

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Esse mapa guarda certa semelhança com o que elaboramos em 2002, entretanto, não temos a intenção, hoje, de traçar limites rigorosamente pontuais, em um ponto, para uma freguesia do século XVIII da qual nem mesmo possuímos um mapa da época em que foi oficialmente criada. Além de não possuirmos tal instrumento – que, em existindo, seria de fundamental importância para compreendermos o que os cartógrafos ou os sacerdotes dos anos de 1740 pensavam a respeito da geografia da Paraíba e Rio Grande –, sabemos da incapacidade que temos de reproduzir a realidade, deveras a do passado. Quando muito, especialmente no caso dos acontecimentos situados cronologicamente antes de nós, podemos reconstruir pequenos e delicados fios da trama de uma frágil urdidura que é o passado. Foi pensando dessa maneira que reelaboramos o mapa da Freguesia de Santa Ana de 2002, da forma abaixo (Figura 37). Esse mapa que construímos, que teve como referencial um outro da lavra do Instituto do Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA) e Secretaria de Estado do Planejamento e Finanças (SEPLAN) produzido em 1997, segue a orientação preconizada por Muirakytan Macêdo de tomar como premissa a malha hidrográfica das ribeiras do Piranhas, Espinharas, Seridó e Acauã, a qual, de acordo com a documentação que criou a freguesia, constitui a área de controle espiritual onde estariam situados os fregueses de Santa Ana. Dentro da trama hidrográfica apresentada no mapa, foi feito um destaque (traço mais espesso) para o rio Seridó, que, no ato de criação da freguesia, agregouse ao nome da mulher que foi avó de Jesus e é venerada como padroeira dos pastores e vaqueiros, segundo a tradição popular. Nos terraços fluviais dos cursos d’água situamos com números os locais onde surgiram os aglomerados populacionais a partir da perda de intensidade das Guerras dos Bárbaros, com as respectivas datas de ereção dos templos: 1 – a Vila Nova do Príncipe, criada em 1788 a partir da Povoação do Seridó/Caicó e que era a sede da freguesia, contando com dois templos, a Capela de Nossa Senhora do Rosário do Penedo (1695) e a Matriz da Senhora Santa Ana do Seridó (1748); 2 – a Povoação de Nossa Senhora dos Aflitos do Jardim das Piranhas (1710); 3 – a Povoação da Nossa Senhora do Ó da Serra Negra, cujo primeiro templo foi erguido em 1735 e transferido para o local onde encontra-se até hoje em 1774; 4 – a Povoação de Nossa Senhora da Guia do Acari (1738); 5 – a Povoação de Santa Luzia do Sabugi (1756); 6 – a Povoação de Nossa Senhora da Guia dos Patos (1772); 7 – a Povoação de Nossa Senhora da Luz da Pedra Lavrada (aproximadamente década de 1770); 8 – a Povoação de Nossa Senhora das Mercês da Serra do Cuité (1801).

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Figura 37 Provável área de abrangência da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó até 1788

Em relação ao mapa que elaboramos em 2002 (Figura 31) deixamos de juntar a Ermida de Sant’Ana do Pé da Serra (hoje, em Santana do Matos-RN) e a capela de Sant’Ana do Campo Grande (hoje, município de Augusto Severo-RN) por se tratar de uma informação prestada por Aires do Casal (1817) que pode ser duvidosa, sobre a qual teceremos nosso ponto de vista posteriormente. Acrescemos, ainda, que a delimitação da área da freguesia não tem seus contornos definidos com uma linha, vez que, como afirmamos acima, é bastante perigoso, na falta de um mapa oficial desse curato, delinearmos uma representação com limites exatos. Optamos, então, por propor a visibilização do território abençoado por Santa Ana por meio de uma mancha135, que cobre a malha hidrográfica já mencionada e mais os seus espaços adjacentes. A composição dessa nódoa seguiu como ponto de partida as fontes manuscritas da Paróquia de Santa Ana, da Comarca de Caicó e do Laboratório de Documentação Histórica, bem como os relatos de diferentes épocas sobre a freguesia e a historiografia regional. Trata-se de mais uma representação cartográfica sobre a área de abrangência da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó – assim como as que foram produzidas por Maria Regina Mendonça Furtado Mattos, Muirakytan Kennedy de Macêdo e Ione Rodrigues Diniz Morais. O mapa que pretendíamos montar do perímetro da freguesia era mais arrojado que este da Figura 32. Estava em nossos planos elaborar uma representação cartográfica fruto da comparação entre o conjunto hidrográfico apontado no ato que criou a freguesia (1748) e os sítios, fazendas e povoações por onde os sacerdotes a esta ligados passaram, realizando desobrigas, casamentos e batizados. Seria um mapa onde poderíamos visibilizar os limites efetivos do território protegido pelo manto de Santa Ana, por cujos caminhos seus curas, párocos, pró-párocos, coadjutores, vigários, vice-vigários e capelães andaram, levando consigo o auxílio espiritual aos fregueses. Essa tarefa, porém, demonstrou-se hercúlea para nós neste momento, por razões de ordem documental (os assentos de morte, casamento e batizado iniciam, respectivamente, em 1788, 1789 e 1803, quarenta anos depois, no mínimo, da criação da freguesia) e prática (o exíguo tempo para realização da pesquisa de campo e construção do mapa). Satisfaçamo-nos, por enquanto, com os relatos daqueles que, em algum momento, olharam atentamente para esse sertão abençoado por Santa Ana.

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3.2.2 Santa Ana: estrutura da freguesia e produção do território A primeira descrição que conhecemos da Freguesia de Santa Ana após sua criação é de 1756, incluída na “Relação de toda a extenção desta Capitania do Rio Grande do Rio Grande do Norte e suas divisas, freguesias, povoações, rios, assim navegáveis como inavegáveis que nela se contém”, quando foi feita citação à “Freguesia da Gloriosa Santana”, que tinha matriz e cura no lugar chamado Caicó, na Ribeira do Seridó; contava, à época, com duas povoações, uma no Caicó e outra no Acari, esta, também com capela. Em seus domínios corria um único rio, chamado “Siridó”136. Uma exposição de 1775, escrita pelo “Governador e Capitão General de Pernambuco e Anexas”, José César de Menezes, detalhava ainda mais a “Freguesia de Santa Anna do Caicó”: compreendia toda a Ribeira do Seridó e parte da jurisdição da Vila do Pombal, da Ribeira do Piancó. Contava com 7 capelas filiais, 70 fazendas, 200 fogos137 e 3.174 pessoas de desobriga138. Aos sete templos, filiais da Matriz do Seridó – ou Matriz de Santa Ana do Seridó, sede da freguesia – corresponderiam as capelas do Jardim das Piranhas, do Acari, da Serra Negra, da Fazenda Penedo, dos Patos, de Santa Luzia e da Pedra Lavrada. Salta aos nossos olhos, observando o relato do capitão-general César de Menezes, um problema muito comum na América Portuguesa, o da sobreposição de cartografias. Neste caso, estamos nos referindo ao território da Freguesia de Santa Ana do Seridó, que, embora tivesse sua sede no Caicó, da Capitania do Rio Grande, também tinha sob seu manto parte do vasto território da Capitania da Paraíba139. Estabelecida como a jurisdição mínima da esfera eclesiástica na América Portuguesa, a freguesia – hoje equivalente à paróquia – tinha seus domínios territoriais muitas vezes confundidos com a esfera civil, judiciária, militar e fazendária. Na cartografia da fé, portanto, imiscuíam-se termos (judiciários), sítios, fazendas, povoações e vilas, instâncias onde a burocracia estatal estava mais ou menos infiltrada, dependendo do grau de penetração das instituições ibéricas140 ou mesmo de como os limites estavam organizados. Essa confusão entre os diversos níveis da administração portuguesa – civil, fazendária, religiosa, por exemplo – se fez sentir na exposição do capitão-general César de Menezes, que comentamos há pouco. Ao descrever a Capitania do Rio Grande, o relato dá conta da existência de cinco ribeiras, a do Norte, a do Açu, a do Apodi, a do Seridó – “que he no Certão da Capitania”141 – e a do Sul. Com relação à Ribeira do Seridó, apenas uma freguesia estava a ela vinculada, a de Santa Ana do Caicó. Projetando-se sobre a Capitania da Paraíba, César de Menezes aponta a presença de três ribeiras cujos territórios faziam parte, pela demarcação de 1748, dos limites da Freguesia do Seridó: a das Piranhas, a das Espinharas e a 189

do Sabugi142. Os dízimos reais143 dessas três ribeiras, portanto, ficavam a cargo da Paraíba, quando, originalmente, deveriam ser recolhidos pela Freguesia de Santa Ana. Outro detalhe a ser considerado no mesmo relato diz respeito ao recenseamento da população. Como o Rio Grande pertenceu até 1818, do ponto de vista jurídico, à Comarca da Paraíba144, a contagem das almas do “Seridó” aparece, na descrição de César de Menezes, vinculada à essa comarca145. Dois anos depois do relatório de César de Menezes, o estado de falta de exatidão das fronteiras da administração civil, eclesiástica e fazendária permanecia. De Olinda, em 19 de fevereiro de 1777, Dom Tomás da Encarnação Costa e Lima – Bispo de Pernambuco – remetia carta a el-rei Dom José I, anexando relação de todas as freguesias, capelas, ermidas e oratórios do bispado, acrescida do número de padres seculares que prestavam seus serviços nesses territórios. Nessa relação a “Freguezia de S.ª Anna do Siridó” aparece classificada como um curato amovível, vinculada à Capitania da Paraíba. À época tinha como cura o padre Pedro Bezerra, 7 capelas, 2 sacerdotes, 533 fogos e 2.699 pessoas de desobriga146. Isso demonstra como o funcionamento da administração na América Portuguesa, em suas diversas esferas de atuação, mostrou-se complexo e contraditório à medida que ia sendo instituído pela sociedade colonial147. Voltando à Freguesia do Seridó, esta tinha a sua sede na Matriz da Senhora Santa Ana, localizada próxima ao leito do Rio Seridó. Os habitantes da freguesia dependiam essencialmente desse curso d’água para o cultivo de pequenos gêneros, além do que utilizavam o líquido precioso para o consumo humano e o sustento do gado. O relato de Manuel Aires do Casal (1817), ao descrever a Vila Nova do Príncipe, dá conta da estreita relação que havia entre os fregueses de Santa Ana e o Rio Seridó148. Como que por simbiose, os “seus habitantes, de várias compleições, bebem o rio, em cujas margens cultivam feijão, hortaliças, milho e tabaco”. O sacerdote cita como existentes no termo da freguesia a Ermida de Sant’Ana do Pé da Serra149, a de Sant’Ana do Campo Grande150 e a de Santa Luzia151, propondo a emancipação eclesiástica das mesmas152 pelo fato do “aumento, que a agricultura tem dado à população”153. É possível, todavia, que a ermida e a capela de Sant’Ana, descritas por Aires de Casal, não entrassem dentro da área de abrangência da Freguesia do Seridó, vez que não encontramos menção a esses templos em nenhum dos documentos do século XVIII que foram analisados – podendo tratar-se, nesse caso, da visão que o sacerdote tinha acerca dos templos religiosos da Província do Rio Grande e das suas relações hierárquicas. É dessa mesma década – a dos anos 10 do século XIX – o primeiro mapa oficial, de que temos conhecimento, que exibe o interior do Rio Grande do Norte154 e a localização da 190

sede da Freguesia de Santa Ana. Trata-se do “Mappa topographico da capitania do Rio Grande do Norte”, datado de 1811 e elaborado em Recife a pedido do governador da capitania, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque155 (Figura 38). Desenhado por “Montenegro”, o mapa – que ainda representa a capitania de maneira invertida – indica a “Villa do Principe” como sendo localizada na confluência dos rios “Seridó” com o “Caranha” [ Acauã ], além de apresentar, também, as Serras de “S.ta Anna” e do “Coité”, como podemos perceber na figura. Esse trabalho pormenorizado demonstra a necessidade de se conhecer os territórios dominados em sua integridade, considerando que, longe de apresentar elementos figurativos, diferencia-se por traçar o relevo da capitania, suas bacias hidrográficas, cidade, vilas, matrizes, freguesias, capelas, povoações e portos. Tudo isto através de códigos de representação que aparecem na legenda sob a forma de “sinais”, dando a entender, para o observador, onde estavam instaladas as estruturas de poder no litoral e no sertão do Rio Grande do Norte.

Figura 38 Mappa topographico da capitania do Rio Grande do Norte - 1811

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As narrativas que vimos até agora dão conta, parcialmente, da estrutura da Freguesia de Santa Ana do Seridó, que se assemelha à de uma freguesia portuguesa do século XVIII. Esta tinha seus setores fundamentais representados e visibilizados no próprio desenho dos templos cristãos, que tinham seu território demarcado da seguinte forma: 1) o coro e a capelamor, partes em que o sacro era mais evidente, indo desde o arco até o altar e capela-mor, sob responsabilidade do pároco; 2) do arco para baixo até o adro (ou átrio), ou seja, a nave, cujos pontos de sustentação eram “o campanário com os seus sinos que eram o símbolo da solaridade comunitária e o adro onde normalmente se reuniam os fregueses para tratar de assuntos comunitários”; 3) um número variável de confrarias e irmandades, que combinavam elementos das duas partes anteriores, transfigurando-se em minúsculas freguesias, em microcosmos da religiosidade popular, muitas vezes; confrarias essas que mantinham altares colaterais ou mesmo capelas subsidiárias156. Essa similaridade com o modelo de freguesia portuguesa no Setecentos pode ser evidenciada se olharmos de perto os livros de assento da Freguesia de Santa Ana. Como era de praxe na América Portuguesa, a freguesia serviu de instrumento da burocracia colonial, como conseqüência dos laços do Padroado. Além da função de cuidar das almas e da consciência cristã de seus fregueses, deveria cumprir outra tarefa, a de fornecer ao Reino listas de seus súditos, de forma que o controle populacional pudesse ser exercido com mais acuidade. Livros próprios para assentos de batizados, casamentos e mortes eram comuns nas freguesias, especialmente após a edição da primeira legislação eclesiástica colonial, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707157. Tais registros davam condições aos curas de conhecer os suspiros de vida e de morte de seus fregueses e, de quebra, às autoridades coloniais, de estar por dentro do crescimento do contingente populacional de determinado território da América Portuguesa, como veremos no capítulo subseqüente. Outro ponto fulcral de aproximação do modelo metropolitano de freguesia com a realidade da metrópole remete à presença das confrarias ou irmandades, associações de leigos que costumavam zelar por devoções particulares e também pela manutenção de determinados altares dentro dos templos cristãos. No decorrer do século XVIII, na Freguesia de Santa Ana, identificamos, a partir do estudo de Olavo de Medeiros Filho procedido em inventários postmortem do período, a presença das irmandades de Santa Ana (fundada em 1754), do Santíssimo Sacramento158 (1756), de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1775)159 e das Almas160 (1791), sitas na Matriz do Seridó, além da Irmandade do Senhor do Bom Jesus, da Capela do Acari161. Outra irmandade que tinha sua sede na Ribeira do Acauã era a de Nossa Senhora da Guia, a qual tinha como patrimônio terras doadas no Poço e Cacimba do 192

Saco por Manuel Esteves de Andrade, que, em 1769, eram administradas pelo capitão Antonio Garcia de Sá Barroso162. Os inventários procedidos após a morte dos colonos e, por vezes, seus testamentos, nos fornecem – na falta dos documentos da própria confraria – alguns indicativos da relação desses fregueses com o seu santo protetor. Assim, quando José Gomes Nobre faleceu em 1764, na fazenda dos Currais Novos da Ribeira do Seridó, onde morava, estava em débito com o Senhor Bom Jesus da Capela do Acari. Devia a quantia de 2$560 de “entrada” na irmandade e mais um boi, no valor de 2$400163. Também estava em débito com o Senhor Bom Jesus o coronel Caetano Dantas Corrêa, morador na fazenda dos Picos de Cima, da Ribeira do Acauã, quando faleceu em 1797: além de 3$840, havia tomado emprestado, “a juros” o valor de R$ 194$445 à irmandade164. Percebemos, assim, que essas agremiações auxiliavam os seus devotos nas questões religiosas e, também, nas temporais165. Frente ao exposto nas páginas que nos antecederam, a produção do território da Freguesia de Santa Ana deu-se a partir dos últimos anos do século XVII, avançando pelos anos de 1700, época em que a pastorícia começou a exercer uma posição social e cultural na América Portuguesa, consolidando a obra da conquista166. O surgimento das freguesias no século XVIII, por conseguinte, acompanhava o ritmo do povoamento e o território que abrangiam possuía “uma forte homogeneidade econômica e social”167. Assim, a instalação de um cruzeiro no dia de Santa Ana de 1748, na Povoação do Caicó, significava mais que a delimitação de um território da cristandade: era a própria reafirmação de posse da terra pela Coroa Portuguesa, amalgamada com a Igreja Católica pelos liames do Padroado Régio. Do ponto de vista da população nativa, à medida que a ocidentalização se complexificava na Ribeira do Seridó, via implantação de determinadas cartografias de poder – o arraial, a povoação, a freguesia, a vila –, o número de índios ia diminuindo nas estatísticas oficiais dos assentos. Isso não quer dizer que tenham desaparecido por completo, como ficou prescrito na historiografia regional. Penetrando nas folhas do livro de assento de enterros mais antigos da freguesia, que vai de 1788 a 1811, constatamos que 2,66% de um total de 976 defuntos falecidos no período era composto de índios. Número diminuto em relação aos demais grupos sociais que habitavam a freguesia, o que indica que não podemos fechar os olhos à crueldade dos massacres cometidos contra os grupos indígenas durante a resistência dos séculos XVII e XVIII. Essa mesma cifra nos mostra que os nativos não foram totalmente nulificados, convivendo com brancos, negros e mestiços durante o Setecentos e primeiras décadas do século XIX, seja nas fazendas de gado, seja nas manchas urbanas que paulatinamente surgiam no sertão, como analisaremos no capítulo posterior. 193

A partir de 1788 o território da Freguesia do Seridó passaria por diversas fragmentações, tendo perdido partes de seus domínios territoriais devido à criação de novos curatos. Situação que se sucederia tendo em vista uma questão de ordem crucial: “um território demasiadamente extenso para o eficiente desempenho dos serviços religiosos”168. Inicialmente, de seu território, originou-se a Freguesia de Nossa Senhora da Guia dos Patos, na Ribeira das Espinharas, por ato de Dom Diogo de Jesus Jardim, Bispo de Pernambuco, de 10 de julho de 1788169. Em 1801 seria a vez da Serra do Cuité e limítrofes transformarem-se em freguesia, com o título e invocação a Nossa Senhora das Mercês, através de Edital do Visitador João Feio de Brito Tavares, em nome do Bispo de Pernambuco, Dom José Joaquim da Cunha e Azevêdo Coutinho, datado de 12 de agosto daquele ano170. No ano de 1835, por seu turno, desmembrou-se da freguesia mater do Caicó a de Nossa Senhora da Guia, do Acari, na Ribeira do Acauã, institucionalizada pela Lei Provincial nº 15, de 13 de março de 1835171. Importante anotarmos que, tendo a Igreja Católica papel crucial na organização do território colonial, a redução das terras sob jurisdição da Gloriosa Senhora Santa Ana não representava apenas a diminuição da freguesia, mas, a reorganização territorial das Capitanias do Norte – sobretudo a do Rio Grande e a da Paraíba. Assim, nas palavras de Ione Morais, “A fragmentação da Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Anna implicou em um rearranjo da estrutura regional, com implicação na identificação de localidades. Ao vincular os nomes dos lugares aos das freguesias, a Igreja Católica semeava vestígios de identidade entre os homens e o espaço”172. Embora fragmentada, a Freguesia de Santa Ana concorreu para a construção dos contornos territoriais que, no futuro, iriam imprimir os sentidos de uma região chamada de Seridó. Isto porque particularmente no período colonial, a administração eclesiástica precedeu em muito as estruturas administrativas civis. Assim, tendo em vista as necessidades da catequese – pilar da colonização lusa – criar-se-iam, de forma precoce, as estruturas da paróquia e, somente bem mais tarde, chegariam os forais estruturadores das câmaras e vilas. Decorria, desta forma, com naturalidade que o poder público recorresse aos párocos para obter informações e serviços de que necessitava, compondo-se, assim, a estrutura básica do padroado. Desta forma, a administração pública, de cunho civil, confundia-se claramente com a estrutura administrativa da Igreja, onde a área de atuação dos párocos era bastante bem definida, impondo-se que as áreas de administração religiosa, fossem tomadas como unidades básicas da administração pública173.

Na Ribeira do Seridó essa situação não foi diferente. A demarcação da Freguesia de Santa Ana serviu de base para os limites territoriais da primeira unidade administrativa municipal da ribeira, a Vila Nova do Príncipe. Esta foi criada por Alvará de 31 de julho de 194

1788, expedido pelo capitão-mor de Pernambuco, Dom Tomás José de Melo, por intermédio do ouvidor geral da Comarca da Paraíba, desembargador Antonio Filipe Soares de Andrade Brederodes174. A vila foi estabelecida sobre dois contornos, o da Freguesia de Santa Ana e o da Povoação do Seridó, abrangendo, portanto, glebas da Capitania do Rio Grande e da Paraíba. Por causa disso, querelas incessantes entre as autoridades políticas da Paraíba e do Rio Grande teriam lugar desde o final do Antigo Regime, prosseguindo pelas Cortes Imperiais, em torno da posse da Ribeira do Seridó. Analisamos, até aqui, o processo de transformação das paisagens habitadas pelos nativos num território colonial demarcado pela cartografia da fé. As questões territoriais envolvendo a indefinição dos limites das duas capitanias citadas, advindas da expansão da fronteira pecuarística e da instalação de uma freguesia católica no sertão do Rio Grande, perdurariam até os anos 30 do século XIX. Nesse momento, a Ribeira do Seridó e de seus afluentes encontrava-se sob a proteção, na sua banda ocidental, da Senhora Santa Ana e, na oriental, da Virgem da Guia – oragos que representavam as duas maiores freguesias da porção centro-sul da Capitania do Rio Grande. Índios, brancos, negros e mestiços seriam as personagens que conviveriam nesse território marcado pela (sempre presente) superposição de cartografias de poder. Nas páginas que se seguem estaremos, ainda, com as atenções voltadas para a Freguesia de Santa Ana, desta vez, estreitando nosso olhar para os remanescentes indígenas que nesse território construíram suas histórias durante o século XVIII e início do posterior, na intenção de compreendermos como a ocidentalização transformou suas vidas.

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Notas 1

Freguesia de onde foi territorializada, nos séculos posteriores, a atual região do Seridó, como discutiremos adiante. 2

Sobre a instituição do regime de sesmarias na América Portuguesa, as adaptações da legislação metropolitana na colônia e a presença constante dos posseiros, verificar LIMA, Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas. Especificamente para o Rio Grande do Norte, ver MONTEIRO, Denise Mattos. Terra e trabalho em perspectiva histórica: um exemplo do sertão nordestino (Portalegre-RN). Caderno de História, v. 6, n. 1, p. 5-41.

3

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (org.). História econômica do Período Colonial, p. 123. 4

Nesse meio-tempo também se verificou, amplamente, o simples apossamento de terras devolutas ou incultas por posseiros, sem passar pelo crivo da intricada burocracia colonial (SILVA, Lígia Osório. A “questão da terra” e a formação da sociedade nacional no Brasil. in II Congresso Brasileiro de História Econômica / 3ª Conferência Internacional de História das Empresas. Anais..., v. I, p. 36). 5

LIMA, Ruy Cirne. Op. cit., p. 42.

6

IHGRN, Caixa Sesmarias – Demarcação de Terra (1615 a 1807). Demarcação do Sítio da Passagem, Acari (1772); IHGRN, Documentos avulsos, Livro do Escrivão Freitas. Demarcação do Sítio da Passagem (1769). 7

Hoje, município de Pombal-PB.

8

SEIXAS, Wilson. O velho Arraial de Piranhas (Pombal) no centenário de sua elevação à cidade, p. 19-24.

9

GGB, Traslado da Data da ribeira das Espinharas aos Oliveiras em 1670 a qual não é comfirmada nem demarcada. 10

GGB, Traslado da Data da ribeira das Espinharas aos Oliveiras em 1670 a qual não é comfirmada nem demarcada. 11

Documentos do antigo Cartório de Notas de Pombal-PB dão conta dos contatos mais antigos, até onde se tem conhecimento, de índios e brancos no sertão do Rio Grande. O primeiro desses textos, que foi copiado em 15 de janeiro de 1650 de um original relata a primeira visita os portugueses ao “territorio interiorano inclusivi o Valle Sirido//”, em 1545. Se por um lado esse documento rompe com os conhecimentos de que dispomos sobre a história da Capitania do Rio Grande – até mesmo pela longevidade onde está situado –, levando-nos à desconfiar do seu teor, por outro, os topônimos aqui citados nos são bastante conhecidos. A começar pelo nome Seridó, seguido do Boqueirão do Cuó, riacho de Carnaúbas, Queiquó e Piancó, que ainda persistem na região. Acreditamos, junto com o historiador Olavo de Medeiros Filho, que o Boqueirão do Cuó seja o atual Boqueirão, nominador de acidente geográfico e barragem no município de Parelhas-RN (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 141). O riacho de Carnaúbas poderia ser o rio Carnaúba (em Carnaúba dos DantasRN) ou os riachos de mesmo nome que existem nos municípios de Serra Negra do Norte, Caicó e Parelhas (CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte, p. 80). O Queiquó deve se tratar do atual rio Seridó, que anteriormente também foi chamado de Acauã, cuja nomenclatura discutiremos adiante e Piancó o designativo do rio de mesmo nome, que corta o estado da Paraíba. Toponímia à parte, o que nos interessa saber é que o escrito aludido menciona em tão distante época a presença de “tapuyos jundoins” no interior (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Quando o Sertão se descobre: os documentos pombalenses e a redescoberta da História do Seridó Colonial. O Galo – Jornal cultural, ano 11, n. 4, p. 19; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a história do Rio Grande do Norte, p. 86). Um outro documento do Cartório de Pombal relata, por seu turno, a demarcação do riacho de Carnaúbas, em 1613, que acreditamos tratar-se do atual rio Carnaúba, em Carnaúba dos Dantas-RN, pela presença de topônimos regionais (Quinturaré, Bico da Arara, Serra do Piauí, Rio Acauã, Marimbondo, Rajada, Sítio Acari, Ermo, Boqueirão do Picuí) localizados espacialmente da mesma forma que nos dias atuais. Possuíam terras no riacho de Carnaúbas, à época, além de Cosme Francisco de Bourbon (português), Luís Gomes, os reis Janduí, Canindé e Pecarroy,

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principais dos grupos Janduí, Canindé e Pega, respectivamente. Aparecem, ainda, como possuidores de terra, os negros Firmino, Antonio, Roberto e Jerela, escravos do capitão-mor de Ordenanças Filipinas Antonio de Melo Castro Ribeiro. Observando os relatos de 1545 e 1613, nos questionamos sobre quais as razões da presença de portugueses junto aos nativos no sertão em época tão pretérita, até mesmo pelo fato da historiografia regional nunca ter se referido a tal. Decerto não se tratava de uma ocupação sistemática, e poderíamos arriscar que essas incursões se deram na tentativa de encontrar metais preciosos para saciar a fome metalista da Coroa Portuguesa. Essa documentação aqui citada foi copiada de um antigo livro existente no Cartório de Pombal-PB pelo historiador paraibano Irineu Ferreira Pinto e chegou às mãos do bispo dom José Adelino Dantas, em cujo acervo encontramos tais cópias. O mais provável é que tais documentos estivessem transcritos no 1° Livro de Notas de Pombal, que ia de 1712 a 1719 (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Op. cit., p. 20; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 87-90). 12

GGB, Traslado da Data da ribeira das Espinharas aos Oliveiras em 1670 a qual não é comfirmada nem demarcada. 13

CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte, p. 71-2.

14

GGB, Traslado da Data da ribeira das Espinharas aos Oliveiras em 1670 a qual não é comfirmada nem demarcada. 15

Perder o ferro é expressão popular utilizada no sertão para demonstrar a situação de “dizimação completa do rebanho, dele não restando nenhuma cabeça - semente - com que se possa recomeçar a criação” (FARIA, Oswaldo Lamartine de; AZEVÊDO, Guilherme de. Vocabulário do criatório norte-rio-grandense, p. 75).

16

LAMARTINE, Juvenal Lamartine. Velhos costumes do meu sertão, p. 13 refere-se a esses limites, fornecendo a data de 1673. Poderia tratar-se da mesma sesmaria de que estamos falando ou de outra, requerida pelos irmãos Oliveira Lêdo mais Manuel Barbosa de Freitas. Ele remete, ainda, citando Vergniaud Monteiro, ao fato de que Sebastião de Oliveira Lêdo, familiar de Teodósio de Oliveira Lêdo, teria desbravado “o Rio das Espinharas, começando o serviço das cabeceiras, vindo até as ‘Extremas’, possivelmente onde hoje é a povoação de Barra de São Pedro”(MONTEIRO, Vergniaud Lamartine Monteiro. Monografia de Serra Negra do Norte apud LAMARTINE, Juvenal. Op. cit., p. 17). 17

CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 257.

18

Id.

19

Serras Negras, segundo MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 34, é denominação homônima, no Período Colonial, para a atual Serra de Santana – em cuja chã situa-se, dentre outros, o município de Lagoa Nova –, que também aparece em documentos coetâneos como Serras Azuis.

20

CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 258. DANTAS, Manoel. Homens d’Outrora, p. 98-9, expõe uma origem outra para o topônimo Serra Negra. Viria de uma escrava que foi enforcada em ato de suicídio: “A serra ficou então mal-assombrada: uns ouviam, nas noites enluaradas, em dias de sexta-feira, gritos lancinantes junto à árvore do enforcamento; outros afirmavam que, às vezes, pousava na árvore um grande pássaro, de azas brancas, a cabeça com uma forma humana, brilhando como um resplendor.” Juvenal Lamartine, por sua vez, afirmava que a origem do nome da montanha vinha de uma “escrava negra do velho Manoel Pereira Monteiro, o do Século XVIII, devorada por uma onça quando apanhava lenha na serra” (apud CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 258).

21

MONTEIRO, Vergniaud Lamartine Monteiro. Monografia de Serra Negra do Norte apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó, p. 264.

22

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 3, Divisão dos Sítios Arapuá e Conceição (1851) [ contém Escritura de venda do sítio Irapuá que fazem Teodósio de Oliveira Lêdo e esposa dona Cosma Tavares Leitão a Manoel Pereira Monteiro ].

23

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na geografia nacional, p. 199. Arapuá é uma abelha negra (Trigona spinipes F.) que é lembrada no imaginário popular do sertão por ter costume de atacar os cabelos das pessoas... Se no

197

começo do século XVIII sua presença era constante nas espécies arbóreas da flora da Ribeira das Espinharas, a ponto de dar nome a um determinado lugar, a realidade não era mais a mesma nos anos 60 do século XX. Em um levantamento das abelhas silvestres do Seridó feito em 1963, a arapuá era uma espécie rara na fauna apícola do município de Serra Negra do Norte, denotando o desequilíbrio ecológico derivado de vários fatores que fez “minguar as condições de sobrevivência” dos meliponíneos no sertão (LAMARTINE, Oswaldo. Sertões do Seridó, p. 108). 24

CASCUDO, Luís da Câmara, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó, p. 264.

25

CRG, Sesmaria nº 65 (1686).

26

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 12.

27

Id., p. 13.

28

CRG, Sesmaria nº 49 (1689).

29

SAMPAIO, Teodoro. Op. cit., p. 302.

30

FELIPE, José Lacerda Alves; CARVALHO, Edilson Alves de. Atlas escolar do Rio Grande do Norte, p. 32.

31

CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte, p. 115.

32

FGSSAS, LE nº 02, p. 131.

33

FGSSAS, LE nº 02, p. 144.

34

COSTA, Sinval. Carta endereçada a Helder Macedo. Recife, 18 out. 2005. Manuscrita. As afirmativas do autor são baseadas na coleta de dados com moradores da ribeira do Piranhas, especialmente com os irmãos Francisco e Pedro Simão de Araújo, proprietários da fazenda Tapera (no município de Jucurutu-RN), guardiões das tradições locais. 35

LIMA, Marcos Galindo. O governo das almas: a expansão colonial no país dos Tapuia – 1651-1798, p. 109.

36

Id., p. 108.

37

Id., p. 109.

38

PEREIRA, Gregório Varela Berredo. Breve compêndio do que vai obrando neste governo de Pernambuco o Senhor Governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (1690) apud LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na Capitania do Rio Grande do Norte, p. 106-7.

39

LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 107.

40

Estamos baseando esse raciocínio na afirmação de Marcos Galindo Lima, para quem “As alianças introdutórias foram regidas por acordos de natureza comensalística”. E, ainda: ‘Logicamente esta relação não exista no processo colonial cujo princípio básico é o da dominação de um sobre o outro. Usamos o termo para qualificar um resultado colonial, onde o estatuto da associação previa uma proteção mútua entre colonizador e colonizado, regido por uma especial manifestação de compadrio.” (LIMA, Marcos Galindo. Op. cit., p. 107-8).

41

AHU – Rio Grande do Norte, Cx. 1, D. 28.

42

Apud CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 24.

43

COSTA, Sinval. Carta endereçada a Helder Macedo. Recife, 18 out. 2005. Manuscrita.

44

CPB, Sesmaria nº 260 (1739).

198

45

CPB, Sesmaria nº 303 (1742).

46

CPB, Sesmarias nº 488 (1759), 749 (1778) e 792 (1781); CRG, Sesmarias nº 478 (1767), 483 (1767) e 518 (1783). Um desses sesmeiros, o capitão Manuel Antonio das Neves, requereu a data da Serra da Formiga – que “com risco de sua vida e dispendio de suas fazenda descobriu” –, contígua ao Saco da Inês em 1767. Residia no seu sítio São José, onde criava gados, utilizando as terras agricultáveis da serra para plantar lavouras. No seu inventário, processado em 1787, ao lado das terras do criatório constava uma data de terras na Serra da Formiga e Inês, com três léguas de comprido e uma de largo, avaliada por 200$000 (CA, IPM, Maço 01, Processo nº 04, Inventário de Manuel Antonio das Neves – 1787).

47

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 3, Divisão do sítio Inês de Dentro. Requerente: Manuel Batista dos Santos (1830); LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 3, Linha divisória entre o capitão Manuel Batista dos Santos e o sítio Caridade. Requerente: Manuel Batista e outros (1855); LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 3, Demarcação requerida por Francisco do Rêgo Toscano em uma data limitando-se com a Inês (1855).

48

O vocábulo acauã procede do tupi aça-uára, “o comedor de cabeças” [ de cobra ]; é o mesmo que macaguá em guarani, vindo de mocãguá, “comedor de cabeça de cobra” (SAMPAIO, Teodoro. Op. cit., p. 190-1; 274).

49

CRG, Sesmaria nº 30 (1676).

50

Detalhe a ser anotado é que a sesmaria das Espinharas (1670) foi solicitada na Bahia de Todos os Santos, especificamente na Cidade do Salvador, enquanto a Data nº 30 teve seu pedido formulado na Fortaleza dos Santos Reis, localizada no litoral norte da própria Capitania do Rio Grande. Essa informação nos leva a deduzir que a representação mental sobre o sertão era mais ou menos correlata nas sedes das capitanias do Norte.

51

LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 106.

52

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 35.

53

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 105.

54

FELIPE, José Lacerda Alves; CARVALHO, Edilson Alves de. Op. cit., p. 34.

55

A primeira proposição que conhecemos a respeito dessa inversão do entendimento hidrográfico dos rios Seridó e Acauã foi formulada por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó (1984), baseado no exame das sesmarias dos séculos XVII e XVIII cujos territórios correspondem, atualmente, à região do Seridó potiguar ou paraibano. Essa assertiva foi posteriormente reproduzida em MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense (2002).

56

E, de modo ambíguo, à “serra da Cahã do rio Sirido” (1699), à “capela da Srª Santanna do Cahã sirido” (1699) (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Op. cit., p. 20-2). Provavelmente por essa época já havia hesitação em se denominar a região de Acauã ou Seridó.

57

A respeito da conquista do litoral e do envolvimento de Jerônimo de Albuquerque vide o Capítulo 1 desta dissertação. Jerônimo foi casado com dona Catarina Feijó e, dentre outros filhos, proveio Matias de Albuquerque Maranhão. Senhor, como seu pai, do Engenho Cunhaú, era “Fidalgo Cavalleiro da Casa Real” e “Commendador da Commenda de São Vicente da Figueira, na Ordem de Cristo”. Foi casado com dona Isabel da Câmara, de qual consórcio: Antonio de Albuquerque Maranhão (nos documentos da Capitania do Rio Grande, Antonio de Albuquerque da Câmara), Fidalgo da Casa Real e Comendador-Mestre de Campo de Infantaria; Jerônimo de Albuquerque, religioso da Companhia de Jesus; Lopo de Albuquerque da Câmara; Pedro de Albuquerque da Câmara; Afonso de Albuquerque Maranhão; dona Catarina Simôa de Albuquerque, que casou com Luiz de Souza Furna (FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana - v. I, p. 9; 11-2).

58

CRG, Sesmaria nº 39 (1679).

59

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 32. Trapuá, trapiá ou tapiá. Ambos as palavras designam uma árvore frutífera da caatinga (Gallesia scorododendron, Cas.) bastante rara nos tempos de hoje, que pode chegar até dez metros de altura e cuja casca, amarga, possui propriedades febrífugas. Seu étimo

199

provém de tapy-á. “a glande, o grão, o testículo” ou tapí-á, os grãos de entrepernas, os testículos” (SAMPAIO, Teodoro. Op. cit., p. 332), já que a forma de seus carpos lembra a das gônadas masculinas. 60

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 106, considera Potim Açu o mesmo rio Potengi. A crer-se em ambas as denominações como oriundas do Tupi, sua opinião, de fato, procede. Potim vem de pó-tĩ, “as mãos pontiagudas: o camarão, o crustáceo” (SAMPAIO, Teodoro. Op. cit., p. 307, grifos nossos); açu, por sua vez, significa “grande, considerável” (Id., p. 191). Assim, potim + açu (= camarão grande) seria o mesmo que Potengi, que, em tupi, quer dizer “rio dos camarões” (CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 17). Esse rio, que nasce na Serra de Santana, deságua no Atlântico nas proximidades de Natal. 61

CRG, Sesmaria nº 39 (1679).

62

CRG, Sesmaria nº 44.

63

LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 101, a propósito, cita o caso de uma sesmaria concedida em 1682 pelo Governador Geral do Brasil, Roque da Costa Barreto, tendo como beneficiários José Peixoto Viegas, Antonio de Albuquerque da Câmara, Manuel da Silva Vieira e mais trinta e dois colonos, na região limítrofe à Ribeira do Açu, da qual não dispomos de registro. 64

LIMA, Ruy Cirne. Op. cit., p. 49-59.

65

Trata-se de Caetano Dantas Corrêa, que, em 1772, requereu a demarcação do sítio Ingá. Para justificar a legalidade da posse da propriedade, fez anexar ao processo as sesmarias de onde as terras se originaram, bem como as escrituras de transmissão através de venda – documentos que principiaram com a sesmaria de “sobras” de 1684 e iam até 1760, ano em que Diogo Velho Cardoso vendera o Ingá a Caetano Dantas Corrêa.

66

CRG, Carta de data e Sesmaria concedida a Antonio de Albuquerque da Camara, Luiz de Souza Furna, Lopo de Albuquerque da Camara e Pedro de Albuquerque da Camara, de sobras no Rio Acauhã (1684).

67

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 121-2; Id. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 122-4.

68

SOARES, Antonio. Dicionário Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, v. I, p. 91, porém, afirma que a Casa-forte do Cuó localizava-se no Açu, pelo fato de haver nesse município uma serra com esse nome, opinião compartilhada por LIRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 112. No entanto, havia realmente urna outra casa forte às margens do rio Açu, onde ficaram acomodadas as tropas de Manuel de Abreu Soares (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 118-9).

69

Consultar, a respeito do tema, MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Contribuição ao estudo da CasaForte do Cuó. Mneme – Revista de Humanidades.

70

Embora pensemos que as Guerras dos Bárbaros pudessem ser confrontos envolvendo índios contra brancos, devemos ter o cuidado de lembrar que os terços militares formados no Período Colonial abrangiam indivíduos procedentes de diversos grupos sociais, como negros, mestiços e até mesmo índios. O próprio Domingos Jorge Velho, líder mais conhecido do Terço dos Paulistas, era mestiço (PIRES, Maria Idalina da Cruz. Resistência indígena no Nordeste Colonial: a Guerra dos Bárbaros. Nordeste indígena, n. 1, p. 69-70).

71

Baseado na documentação do antigo Senado da Câmara do Natal e em deduções históricas a partir do teor desses mesmos documentos, o historiador Olavo de Medeiros Filho situou os alicerces da Casa-forte do Cuó nas proximidades do atual bairro Penedo, na cidade de Caicó, além de ter atribuído ao coronel Antonio de Albuquerque da Câmara a iniciativa de sua construção. Segundo ele, “Antonio de Albuquerque da Câmara tratou de construir uma casa-forte, para servir de aquartelamento às tropas sob o seu comando. Escolheu um ponto muito adequado, capaz de controlar o trânsito que ocorresse nos rios Acauã (hoje o trecho é considerado, como sendo o Seridó), Quipauá (atualmente Barra Nova), e Sabugi. Tal ponto estratégico corresponde ao Sítio do Penedo, vizinho à atual cidade caicoense, à margem esquerda do rio Seridó. Pertinho da casa-forte edificada, ficava o atual Poço de Santana, manancial inesgotável dágua, fator indispensável à sobrevivência do Corpo de Ordenanças. Em torno à casa-forte ficaram acampadas, certamente em choupanas de palha, as tropas empregadas no combate ao gentio tapuia levantado” (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Verdadeira origem da cidade de Caicó. O Poti).

200

72

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 114.

73

Id., p. 127.

74

CRG, Carta de data e Sesmaria concedida a Antonio de Albuquerque da Camara, Luiz de Souza Furna, Lopo de Albuquerque da Camara e Pedro de Albuquerque da Camara, de sobras no Rio Acauhã (1684).

75

CRG, Sesmaria nº 53 (1696). Trata-se de sesmaria concedida no Quinturaré, antigo nome do rio Picuí, que faz parte das cabeceiras da Ribeira do Acauã.

76

CRG, Carta de data e Sesmaria concedida a Antonio de Albuquerque da Camara, Luiz de Souza Furna, Lopo de Albuquerque da Camara e Pedro de Albuquerque da Camara, de sobras no Rio Acauhã (1684).

77

É bem possível, também, que os Albuquerque Câmara já estivessem de posse (informal) das terras da Ribeira do Acauã antes do ano de 1679, quando requereram a primeira data.

78

Ousamos aventar possíveis sentidos para duas dessas palavras, considerando a proximidade grafológica com nomes de lugares que perduram nos dias de hoje, situados na bacia hidrográfica do rio Acauã. O vocábulo Acari – que hoje designa cidade e município banhado pelo rio Acauã – poderia ser uma corruptela de Quacari, já que corresponde a um “peixe d’água doce, cascudo e reoncador (Loricaria plecostemus)”, que possui variações como cari, “guacari, cuacari” (grifos nossos) 78, muito embora proceda do Tupi. Da mesma forma, a palavra Quinturaré (rio que banha a cidade de Picuí-PB, nas cabeceiras do Acauã) poderia ser uma corruptela de Quindureré ou mesmo de Quimtorore, que constam no documento supra (MELO, Protásio Pinheiro de. Contribuição indígena à fala norte-rio-grandense, p. 5). 79

A respeito das missões de aldeamento que estiveram envolvidas, direta ou indiretamente com as Guerras dos Bárbaros, consultar LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 129-56.

80

LIRA, Augusto Tavares de. Op. cit., p. 116.

81 Traslado da petição e provisão para a erecção da Capella de N. S. da Guia deste logar do Acari (1737); Provisão para se erigir a capella de N. S. da Guia na forma declarada a favor do sargento-mór Mel. Esteves de Andrade (1738). Documentos transcritos do Livro de Tombo nº 1, fls. 3v a 5 e citados por LIMA, Nestor. Municípios do Rio Grande do Norte: Acari, Angicos e Apodi, p. 16-21. O citado livro de tombo, nos dias atuais, encontra-se desaparecido. 82

DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo, p. 29-30. Este autor, baseado em um tijolo encontrado quando foi demolida uma parede da antiga igreja de Nossa Senhora dos Aflitos, em 1956, com a inscrição 20 DE JL DE 170X, aventa a possibilidade de, já em 1710, existir um agrupamento populacional na Ribeira das Piranhas, com capela servindo aos ofícios religiosos. 83

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó, p. 264.

84

DUQUE, José Guimarães. O Nordeste e as lavouras xerófilas, p. 9.

85

Essa discussão tomou por base a discussão acerca do maravilhamento dos europeus com o Novo Mundo, presente em GREENBLATT, Stephen. Posessões Maravilhosas. Infelizmente não dispomos de relatos deixados pelos colonos que estiveram no sertão do Rio Grande na época das sesmarias que analisamos (segunda metade do século XVII), mas, tão somente, os textos dos pedidos de concessão. A existência de narrativas, decerto, nos proporcionaria uma melhor visão acerca do maravilhamento, positivo ou negativo, dos conquistadores com relação ao sertão. 86

Uma investigação mais profunda das sesmarias requeridas no Sertão do Seridó a partir do século XVIII pode ser encontrada em MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Sangue da terra: história da família seridoense colonial, especialmente o Capítulo 1.

87

Essa presença indígena era referenciada, sobretudo, nos nomes que o gentio dava aos lugares (rios, riachos, serras, pedras, poços), mas, também na própria existência deles em contato com os colonos ou ainda

201

escondendo-se no cimo das serras. Como se depreende de uma sesmaria concedida em 1706 ao padre Manuel de Jesus Borges e ao capitão-mor Afonso de Albuquerque Maranhão, em que afirmavam que “tem noticia serta de Alguns esconderijos e valhacoutos do gentio tapuya Canindé da nasão Janduin aonde se escondem coando se lhes faz guerra e se livram das nossas armas os cujos esconderijos ficão nos sopés das serrs e nas chans dellas de hua a outra banda que ficão nas nascensas e cabeseiras dos rios (...): Pituassu e acaoam e entre o dito rio acaoam o Rio Caramataû” (CRG, Sesmaria nº 69 – 1706). 88

MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Caicó: subsidios para a história completa do município, p. 40.

89

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 107.

90

DANTAS, Manoel. Op. cit., p. 97. Essa e mais duas outras versões da lenda integram MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Op. cit., p. 12-9.

91

DANTAS, Eugênia Maria. Retalhos da Cidade: revisitando Caicó, p. 29. Consultar o item “Fragmentos” desse trabalho para uma leitura simbólica e imagética das diversas versões que conformam o processo histórico de formação territorial e política da cidade de Caicó-RN.

92

Estamos utilizando a noção de tradição inventada na acepção de Hobsbawm, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: Id; RANGER, Terence. A invenção das tradições, p. 9, para quem ela pressupõe “(...) um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”.

93

Freguesia é terminologia colonial para designar a paróquia. Segundo VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 294, é “a célula básica da Igreja, assentada na atividade dos párocos em contato com suas ovelhas, mas que exigia o dispêndio da construção e manutenção das igrejas matrizes e do pagamento de uma espécie de salário aos sacerdotes, a côngrua, de modo a torná-los independentes dos fiéis. Até o final do século XVII, não chegavam a 150 as paróquias no Brasil e, ainda em 1820, mal excediam 600, o que significava, na prática, que um pároco devia atender, em média, a mais de seis mil almas espalhadas por extensões enormes ou inacessíveis”. Ver, a respeito de como surgiram, historicamente, as freguesias de Portugal e como se deu sua instalação na América Portuguesa, CASCUDO, Luís da Câmara. Uma história da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte, p. 203-15. 94

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 125.

95

Utilizamos o termo “fundação” da forma como se encontra na ata de instalação da Povoação de Caicó (1735), que comentaremos adiante.

96

No decurso do século XVIII as tropas que haviam na colônia portuguesa na América estavam organizadas em três “linhas” ou níveis: as tropas de 1ª Linha, de caráter regular (pagas); as de 2ª Linha, de caráter auxiliar, denominadas de Milícias após 1796 e as de 3ª Linha, ou Ordenanças (PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha. Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX). Maria de Fátima Silva Gouvêa encara a esfera militar da administração portuguesa como sendo a “espinha dorsal” da colônia. “Ela era encabeçada pelo governador-geral, depois vice-rei, e pelos capitães-donatários. A seguir, vinham as tropas de linha, as milícias e os corpos de ordenança. Além das tarefas militares, prestavam inúmeros serviços à Coroa, desde a cobrança de impostos até a manutenção de caminhos” (apud VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 17). 97

O historiador Olavo de Medeiros Filho, nesse sentido, afirma que “na ribeira do Seridó (Caicó) já funcionavam os corpos de ordenanças desde, pelo menos, o ano de 1726, o que aponta a presença de um arraial e de seus moradores, muito antes da fundação da freguesia”. Essa constatação decorre do fato de se saber que “o Terço dos Paulistas permaneceu no sertão até o ano de 1725. É de supor-se que, com a sua saída, tenha sido o mesmo substituído por uma companhia de ordenanças, composta de moradores locais, na qual tenha ingressado na qualidade de soldado, no ano de 1726, a pessoa de João Gonçalves de Melo” (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 143-4).

98

LEONZO, Nanci. Instituições Militares. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). O Império LusoBrasileiro - 1750-1822, p. 326.

202

99

PUNTONI, Pedro. A arte da Guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militar na expansão da fronteira da América Portuguesa, 1550-1600, p. 190. 100

Registo de uma carta patente do posto de Coronel da Ribeira do Apody, digo, da Ribeira do Ciridó passada a João glz. de Mello em 23 de junho de 1749. Transcrito e citado por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 145-6. 101

Os documentos do período 1735-1788 trazem duas denominações para a povoação instalada em 1735, oscilando entre Povoação do Caicó/Caycó/Cayquó/Queiquó (os mais antigos) e Povoação do Seridó (à medida que se aproxima o ano da criação da Vila Nova do Príncipe, 1788). 102

PMC, Livro nº 02 (1734-1804). Acta da installação da Povoação do Caicó. Transcrita e datilografada por CAMBOIM, Clementino. Alguns ramos genealógicos que precederam ou se entroncaram em alguns famílias do Nordeste brasileiro, p. 15-6. Essa ata também foi publicada por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 149-50. 103

O templo referido é a Capela da Senhora Santa Ana, edificada há quase meio século atrás (1695). A respeito da Casa da Suplicação, custa-nos entender a sua inserção em tal contexto, vez que, conforme Maria de Fátima Silva Gouvêa, a referida Casa, junto com o Desembargo do Paço eram sediados em Lisboa e constituíam-se nas instâncias máximas do aparelho judiciário do Império Português (apud VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 18).

104

O “beijo” se constitui num ritual católico em que os fiéis literalmente beijam a imagem de um santo ou do crucifixo, e em seguida ofertam donativos para a igreja. No caso específico da cerimônia de instalação da Povoação do Caicó, após a missa “o povo beijou reverentemente o símbolo da nossa fé, offertando donativos tão proprios de sollenidades taes”. 105

A transformação de arraial em povoado indica que esse pequeno núcleo populacional estava se tornando visível perante os olhos da burocracia colonial, embora a administração civil somente pudesse ser exercida de fato na vila – patamar que a Povoação do Caicó somente alcançaria em 1788. Sobre o assunto, ver VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 17.

106

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte, p. 41-52. A respeito da definição da ribeira, cita o autor, na página 43, o verbete do Diccionario de vocábulos brasileiros, de Henrique de Beaurepaire Rohan (1889), que disserta: “RIBEIRA - Províncias do Norte - Distrito rural que compreende um certo número de fazendas de criar gados. Cada ribeira se distingue das outras pelo nome do rio que a banha; e tem, além, um ferro comum a todas as fazendas do distrito, afora aquele que pertence a cada proprietário”. Sobre a prática da ferra do gado, ocasião em que há “festa no sertão”, conferir SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., p. 130. 107

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz Morais. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência, p. 77-8, discorrendo sobre a cartografia da povoação, afirma que “Na evolução política do Caicó, chama atenção o fato de que alguns elementos como o coronel de cavalaria, a igreja e o pelourinho, identificados pela historiografia como inerentes à formação de uma vila, já se fizeram presentes no ato de instalação da povoação, forma primeira de institucionalização de um espaço político-administrativo. É como se esta já tivesse nascido com ares de vila, expressos em algumas atribuições que passou a desempenhar no que se refere à organização e ao disciplinamento social.”

108

Para maiores detalhes a respeito das relações de poder construídas em torno da capela ou do cruzeiro e do pelourinho, marcos da presença do Estado e da Igreja nas concentrações populacionais da Ribeira do Seridó, verificar MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense, p. 70-76. 109

LAMARTINE, Juvenal. Op. cit., p. 55-7.

110

Termo que equivale, nos dias de hoje, à diocese.

203

111

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Quando o sertão se descobre: os documentos pombalenses e a redescoberta da história do Seridó Colonial. O Galo – Jornal cultural, ano 11, n. 4, p. 21-2. 112

Esse arraial, depois conhecido como Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso ou de Piranhas, foi elevado à vila, com o nome de Pombal (numa homenagem ao Marquês de Pombal) em 1766 (PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a História da Paraíba, v. 1, p. 164).

113

A redução, segundo MEDEIROS, Ricardo Pinto de. A redescoberta dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no Período Colonial, p. 150, “é o processo através do qual os povos indígenas aceitam viver em contato com os portugueses, sob a vassalagem do rei de Portugal. Esta pode se dar de forma pacífica, através dos convencimento; ou violenta, como resultado de um acordo de pazes”. 114

Os conflitos entre os dois mundos, o nativo e o europeu, se refletiram até mesmo na denominação dos lugares que iam sendo ocupados pela pecuária e pelos fiéis da cristandade. Vitimado por um ataque de dois mil indígenas, um sacerdote da Ordem de Santo Antonio, presente no arraial citado, “implorou a proteção de N. S. do Bom Sucesso, prometendo erigir uma igreja, com instalações modernas e mais adequadas às suas finalidades, do que a primitiva capelinha tosca, de taipa e palha, se triunfasse sobre seus inimigos. Vitorioso, cumpriu o voto. Desde então [ 1719 ], o Arraial de Piranhas passou a ter a denominação de povoação de N. Senhora do Bom Sucesso, em homenagem à futura Padroeira da cidade de Pombal”, como atesta SEIXAS, Wilson. Op. cit., p. 31-2. 115

SEIXAS, Wilson. Op. cit., p. 19-47. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó, p. 5, todavia, discorda dessa data, afirmando que somente em 1731 a Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso fora constituída em freguesia.

116

Termo comumente usado nos documentos coloniais para designar a freguesia.

117

FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Copia fiel do Edital do Rmo Vizor Manoel Machado Freire, pelo qual se dividiu esta Freguesia de Santa Ana do Seridó, da, de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó ou Pombal em 15 de abril de 1748. 118 FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Copia fiel do Edital do Rmo Vizor Manoel Machado Freire, pelo qual se dividiu esta Freguesia de Santa Ana do Seridó, da, de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó ou Pombal em 15 de abril de 1748. 119

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense, p. 67-8. 120

FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Copia do termo de designação do lugar que foi achado mais cômodo para a ereção da nova Matriz da Senhora Santa Anna, em 26 de julho de 1748. 121

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 143. Esse templo ainda existia no ano de 1788. Em 03 de dezembro faleceu e no dia posterior foi sepultado na citada Capela de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Príncipe o cadáver da jovem Ludovina Corrêa (FGSSAS, LE nº 01 - 1788-1811, p. 8v). Doze anos depois (1800), o índio Antonio Carlos – casado com a crioula Rosa Maria – seria sepultado no sítio determinado para a Capela do Rosário (FGSSAS, LE nº 01 - 1788-1811, p. 68v). Não se tratava mais da capela próxima da antiga casa-forte, mas, de um outro templo (o atual Santuário de Nossa Senhora do Rosário, em Caicó-RN), cuja edificação estava em andamento. Segundo MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 115, o desaparecimento da velha capela da Fazenda Penedo se deu entre os anos de 1789 e 1800, por razões que ainda não se pôde determinar. 122

A condição reclamada pelo casal para a residência do padre nas terras doadas era a de que o ministro da igreja não deveria nelas criar gado “vacum e cavalar”, mas, tão somente “algumas cabras para o seu passar” (FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Copia do termo de designação do lugar que foi achado mais cômodo para a ereção da nova Matriz da Senhora Santa Anna, em 26 de julho de 1748). 123

Naquele dia iniciaram, também, os trabalhos de construção do templo dedicado à patrona da freguesia, que já se encontrava concluído, pelo menos, na década de 1780: “Em 1785 ela já existia como se conclue de um documento de doação de umas terras a Sant’Ana, desta época, que diz assim: ‘Saibam quantos este publico

204

instrumento de escritura de doação virem que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e oitenta e cinco, aos 23 dias do mês de Agosto do dito ano... naquele lugar da Povoação de Caicó, possuem (os doadores) um sitio de terras de criar gados, onde se acha erecta a Matriz da Senhora Santa Ana da Freguesia do Caicó...’ ” (MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Op. cit., p. 35). 124

LIMA, Nestor. Municípios do Rio Grande do Norte: Baixa Verde, Caicó, Canguaretama, e Caraúbas, p. 27. No conjunto de informações acerca de Caicó, o autor tratou dos documentos presentes no Livro de Tombo nº 1 da Freguesia de Santa Ana, comentando desde a criação desta até uma demarcação de suas terras ocorrida em 1823, citando, também, as irmandades sediadas em seu território. 125

AUGUSTO, José. Famílias seridoenses, p. 13-4.

126

MEDEIROS, José Augusto Bezerra de. Seridó, p. 61-74.

127

AUGUSTO, José. A região do Seridó, p. 14-5.

128

MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Op. cit., p. 41.

129

DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo, p. 154.

130

MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – um estudo de caso da pobreza. 131

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: espaço e história no regionalismo seridoense, p. 54-69. 132

Id., p. 27.

133

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX, p. 96. 134

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência, p. 75.

135

A idéia de representar a Freguesia do Seridó através de uma mancha – denotando o seu caráter de volatilidade – e não mais através de linhas ou contornos fixos é de autoria do Professor Muirakytan Macêdo, que a expôs em uma dos encontros da Base de Pesquisa “Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura”, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, da qual fazemos parte.

136

Publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (1953), v. 12, p. 14 e citada por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Caicó, cem anos atrás, p. 41. Trata-se da descrição do ouvidor da Paraíba e Rio Grande, Domingos Monteiro da Rocha, que foi apresentada oficialmente em 27 de junho de 1757 e encontra-se na Biblioteca nacional (Lata 5-6, Documentos da Paraíba), segundo LIRA, Augusto Tavares de. Op. cit., p. 1468. 137

A palavra fogo era uma terminologia colonial para expressar o lar, a residência cristã. Segundo SMITH, Robert. A presença da componente populacional indígena na Demografia Histórica da Capitania de Pernambuco e suas Anexas na segunda metade do século XVIII, p. 2, o fogo era “a base das informações que dariam origem aos mapas consolidados [ da população do século XVIII ]”. E continua, a respeito do citado termo: “grupamento doméstico, unidade familiar de produção, o domicílio – a partir do qual eram elaboradas as listas nominais”. 138

MENEZES, José César de. Idéa da População da Capitania de Pernambuco, e das suas annexas, extenção de suas Costas, Rios, e Povoações notaveis, Agricultura, numero dos Engenhos, Contractos, e Rendimentos Reaes, augmento que estes tem tido &ª &ª desde o anno de 1774 em que tomou posse do Governo das mesmas Capitanias o Governador e Capitam General José Cezar de Menezes, p. 13.

139

O ocaso dessa cartografia – onde o território de uma capitania ficou submetido à jurisdição de outra do ponto de vista eclesiástico – geraria insatisfação dos moradores da Capitania da Paraíba e conflitos litigiosos a ponto de chegarem à Corte Imperial, durante o decurso dos anos 20 e 30 do século XIX. O motivo da discórdia girava em

205

torno da posse do território da Freguesia de Santa Ana do Seridó, que os habitantes da então Província da Paraíba reclamavam para seu domínio. Esses problemas, entretanto, foram solucionados quando o Padre Francisco de Brito Guerra, vigário da Freguesia do Seridó e Deputado Geral do Império, editou decreto que delimitou os limites do município da Vila Nova do Príncipe em 1831. A respeito do assunto, consultar o trabalho pioneiro de AUGUSTO, José. Seridó, notadamente o Capítulo II, “Limites do Seridó com o estado da Paraíba”, já mencionado no corpo deste capítulo. Discussões mais recentes sobre esse tema podem ser vistas em MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense, p. 65-81 e MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. cit., p. 92-103. 140

VAINFAS, Ronaldo (dir.). Op. cit. , p. 17-9.

141

MENEZES, José César de. Idéa da População da Capitania de Pernambuco..., p. 10.

142

Id., p. 19.

143

Para ABREU, José Capistrano de. Capítulos de História Colonial, p. 131, depois da instalação do Arcebispado da Bahia (1676) foram criadas freguesias no sertão de enormes proporções territoriais, chegando a cem léguas ou mais de extensão. Nessas freguesias era cobrado o imposto civil-eclesiástico do dízimo. Usando suas palavras, “Os dizimeiros que o arrematavam, depois de ter feito a experiência, preferiram deixar a outros o trabalho da arrecadação: um dos fazendeiros ou qualquer pessoa capaz do interior em seu nome ia pelos vizinhos recolher os bezerros dizimados, pois a paga realizava-se em gênero; depois de alguns anos, três ou quatro, conforme a convenção, prestava contas: cabia-lhe pelo trabalho um quarto do gado, exatamente como aos vaqueiros”. 144

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. cit., p. 92.

145

MENEZES, José César de. Idéa da População da Capitania de Pernambuco..., p. 103 e seguintes.

146

AHU – Pernambuco, Caixa nº 65.

147

VAINFAS, Ronaldo (dir.). Op. cit., p. 19.

148

Manuel Antonio Dantas Corrêa, proprietário da Fazenda Cajueiro, na Ribeira do Acauã, escreveu uma crônica em 1847 onde descreve semelhante relação simbiótica entre os rios e os moradores da Ribeira do Seridó quando das agruras e dissabores da secas. Nesse texto, chega a tratar o rio Acauã como um novo Nilo, dando o seu pendor para as vazantes (CORRÊA, Manuel Antonio Dantas Corrêa. Sem título. In GUERRA, Phelipe; GUERRA, Theophilo. Seccas contra a secca, p. 9-16). 149

Território atual do município de Santana do Matos-RN.

150

Território atual do município de Augusto Severo-RN.

151

Município homônimo, na Paraíba.

152

O relato de espaço da Corografia Brasílica (1817), de fato, dispõe a Ermida de Sant’Ana (da Povoação de Sant’Ana do Pé da Serra) e a Capela de Sant’Ana (do Campo Grande) como sendo integrantes da Freguesia do Seridó. Todavia, dada sua localização, é mais provável que pertencessem à Freguesia de São João Batista do Açu e, como se localizam numa área fronteiriça, estavam sujeitas à confusão de limites. 153

CASAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica ou relação histórico-geográfica do reino do Brasil, p. 281. 154

Um mapa anterior, a “Carta topográfica aonde se compreendem as Capitanias de que se compõem ao presente o Governo de Pernambuco; oferecida ao Ilmo Sr. Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, de 1766, que exibe os territórios da Capitania de Pernambuco e suas anexas, ainda representa o sertão do Rio Grande sem muitos detalhes (citado em LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, p. 640-1). O “Rio grande” (Potengi), por exemplo, foi desenhado no mapa como se suas nascenças estivessem no extremo oeste da capitania (quando, na verdade, encontram-se na Serra de Santana).

206

155

BN, BND, Cartografia ARC.022,14,004.

156

JOHNSON JR, Harold B. Para um modelo estrutural da freguesia portuguesa do século XVIII, p. 5-7.

157

Essas constituições fixavam o ordenamento jurídico do Cristianismo no além-mar e tinham suas raízes no Concílio de Trento (1545-63), que determinou a formalização da prática dos registros de batizados, comunhões, crismas, casamentos, mortes ou enterros em livros separados (PRIORE, Mary Lucy Murray del. Brasil Colonial: um caso de famílias no feminino plural. Cadernos de Pesquisa, n. 91, p. 71). Ver, a respeito dessas Constituições Primeiras e sua observância no Pernambuco colonial FRANÇA, Anna Laura Teixeira de. Santas normas: o comportamento do clero pernambucano sob à vigilância das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – 1707. 158

Sobre as escrituras do patrimônio da Irmandade do Santíssimo Sacramento, examinar DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo, p. 43-50.

159

A respeito da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do Caicó, verificar DANTAS, José Adelino. Op. cit., p. 57-62 e, mais recentemente, a dissertação de mestrado de BORGES, Cláudia Cristina do Lago. Cativos do Sertão: um estudo da escravidão no Seridó, Rio Grande do Norte, especialmente o terceiro capítulo. 160

Sobre a Irmandade das Almas, consultar DANTAS, José Adelino. Op. cit., p. 51-6.

161

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos Inventários do Seridó, p. 96.

162

IHGRN, Caixa Sesmarias – Demarcação de Terra (1615 a 1807). Registro do auto de demarcação de meia légua de comprido e uma de largo no Poço e Cacimba do Saco, da Ribeira do Seridó, de N. S. da Guia da Capela do Acarî (1769).

163

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 01 – 1737/1774, Inventário de José Gomes Nobre – 1764.

164

CA, IPM, Maço 01, Processo nº 01, Inventário de Caetano Dantas Corrêa – 1798. Além disso, o coronel dos Picos de Cima ainda era devedor, quando de sua passagem para o além, de 18$000 à Irmandade do Santíssimo Sacramento e 1$280 de “Annais da Senhora San Anna” (anuidade da confraria), ambas da Matriz do Seridó. 165

Algumas dessas irmandades sobreviveram até o século XX. Nestor Lima, tratando do município de Caicó nos anos de 1930, assinalou a presença, ainda, das confrarias das Almas, do Rosário, de Santa Ana e do Santíssimo Sacramento (LIMA, Nestor. Municípios do Rio Grande do Norte: Baixa Verde, Caicó, Canguaretama, e Caraúbas, p. 40). Em 1990, num balanço das irmandades que haviam nas paróquias da Diocese de Caicó, apenas a Irmandade de Santa Ana não foi contabilizada (DIOCESE de Caicó: meio século de fé, p. 30). Em relação a Acari, Nestor Lima registrou, no fim da década de 1920, as irmandades de Nossa Senhora da Guia, Santíssimo Sacramento e São Gonçalo Garcia (LIMA, Nestor. Municípios do Rio Grande do Norte: Acari, Angicos e Apodi, p. 18), das quais, nenhuma estava ativa em 1990 (DIOCESE de Caicó: meio século de fé, p. 33). 166

LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, alimentos e sistemas agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal et l’Europe Atlantique, le Brésil et l’Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, v. 34, p. 5. 167

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; LINHARES, Maria Yedda L. Região e história agrária. Estudos históricos, v. 8, n. 15, p. 4. 168

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. cit., p. 79.

169

FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Cópia fiel da Provizão do Senhor Bispo Dom Diôgo de Jesus Jardim, pela qual se dividiu a Freguesia dos Patos desta do Seridó em 10 de julho de 1788. 170

FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Cópia do Edital de Divizão da Nova Freguesia de Nossa Senhora das Mercês da Serra Cuité, feita pelo Reverendo Vizitador João Feyo, em 12 de agosto de 1801.

207

171

FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Lei nº 15, de 13 de março de 1835. No decorrer do século XIX, a Freguesia de Santa Ana sofreria mais duas fragmentações, originando as de Nossa Senhora do Ó, da Serra Negra (1858) e a de São Miguel (1874), do Jucurutu (CASCUDO, Luís da Câmara. Uma história da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte, p. 213-4). 172

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. cit., p. 81-2. Essa relação de pertença (se é que assim podemos chamar) dos fiéis com a freguesia à qual faziam parte pode ser melhor compreendida se voltarmos nossos olhos para o território – já fragmentado após 1788 – de Santa Ana do Seridó. Face à criação do Curato dos Patos, os moradores da fazenda Espírito Santo remeteram pedido formal ao Bispado de Olinda, em 1790, solicitando que fossem declarados “fregueses da Freguezia da Vila Nova do Príncipe, d’onde sempre foram” e não do termo de Nossa Senhora da Guia dos Patos (FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Copia dos moradores da Fazenda do Espírito Santo e da Informação do Visitador e despacho do Senhor Bispo Dom Diôgo mandando que a dita Fazenda, ficasse pertencendo a Freguesia de Sant’Anna do Seridó, em 28 de setembro de 1790). Dez anos mais tarde, novo requerimento chegava no Bispado de Olinda, desta feita, oriundo dos moradores da fazenda do Desterro, porém, com o mesmo expediente que trataram os residentes da fazenda Espírito Santo, “em razão do vexame grande que padecem pelo longe da distância que media de suas moradas a sua Matriz dos patos, principalmente no tempo do inverno por haverem varios Rios, e estes soberbos que impedem o comunicarem-se e poder o seu Reverendo Parocho acodir aos Infermos com o Pasto Espiritual, e sepultá-los, quando falecem”. Tal qual a rogativa do pedido feito em 1790, o bispo a atendeu nos termos solicitados (FGSSAS, Livro de Tombo nº 1 (1748-1906). Cópia do Requerimento dos moradores da Fazenda do Desterrro, da Informação do Parocho desta Freguesia, e do Despacho do R.do Vizitador João Feio, mandando ditos moradores pertencer para esta Freguesia, em 21 de junho de mil e oitocentos (1800)).

173

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; LINHARES, Maria Yedda L. Op. cit., p. 4.

174

AUGUSTO, José. Seridó, p. 11-2.

208

4 VIDAS TRANSFORMADAS: índios e mestiços frente à ocidentalização Desaparecimento. Essa palavra resume a sensação que nos fica quando adentramos pela história do Seridó gravada nas páginas da historiografia regional, sobretudo nos trechos em que remete aos índios1. De maneira geral os nativos são alvo da atenção desses historiadores durante o período imediatamente anterior à chegada dos conquistadores lusobrasílicos e, com ênfase maior, durante as guerras de conquista destes últimos com vistas à ocupação do território por intermédio da pecuária. Efetivado o empreendimento da conquista após as guerras e levantadas fazendas com seus currais nas ribeiras – que seriam germes de povoações, freguesias e vilas denominadoras do espaço com o decurso do tempo –, parece que as populações indígenas não mais se faziam presentes: teriam sido exterminadas completamente durante as guerras, fugido para outras capitanias, retornado à vida errante ou mesmo se integrado à sociedade colonial. Em sendo verdadeira esta última alternativa, a historiografia regional acima mencionada não parece ter tido interesse em relatar o quanto os índios participaram do cotidiano dos moradores da Ribeira do Seridó. É possível pensar, desse modo, numa marginalização historiográfica2 dos índios nas obras que descreveram a cultura, a história e o cotidiano do Seridó nos séculos XVIII e XIX3. Não sejamos, contudo, tão unilaterais com esses historiadores que nos precederam, afinal de contas as suas obras são, antes de mais nada, fruto do seu tempo e das condições – sociais, afetivas, político-institucionais e culturais – em que viveram. Devemos nos perguntar, por exemplo, quais as fontes que tiveram acesso quando compuseram as suas versões da história da região, que são, em grande parcela, resultantes do tipo de documentação utilizada pelo historiador, mas, também, da forma de abordagem. Tomemos o exemplo de José Adelino Dantas (1910-1983), que tinha formação em Filosofia e Teologia e exerceu o sacerdócio, chegando a ser bispo da Diocese de Caicó. Dada sua formação e a instituição a que estava ligado, seus escritos sobre o Seridó demonstram um certo tom de conservadorismo, afeição às raízes e valorização do patriarcalismo e das tradições, especialmente as ligadas aos conquistadores brancos. Valendo-se da sua posição dentro da estrutura hierárquica da Igreja, visitou os arquivos das paróquias de Caicó, Acari, Jardim do Seridó, Currais Novos (no Rio

Grande do Norte), Pombal, Cuité (Paraíba), Goiana e Igaraçu (Pernambuco), além do Seminário de Olinda e dos acervos dos cartórios de Caicó, Acari e Pombal, mais o do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Cartas, tradição oral (sem mencionar os nomes dos narradores) e um tijolo (a partir do qual levantou evidências da construção do templo de Nossa Senhora dos Aflitos, já em 1710) também foram utilizados como fontes na reconstrução dos “homens e fatos do Seridó antigo” – título de sua obra (1962), que reúne crônicas publicadas entre 1952 e 1958 no periódico “A Folha”, de Caicó. Por mais que essas crônicas ressaltem a soberania do homem “branco” e católico na região do Seridó, em dados momentos o autor não deixou de referir-se aos índios que, nas fontes consultadas, apareciam ao lado dos demais fregueses de Santa Ana. Tratando dos livros de assento de enterro mais antigos da Freguesia de Santa Ana, afirmou que: Nêsses três livros de óbitos da paróquia de Caicó, que resistem ainda ao tempo, estão lançados mais de dois mil têrmos. São duas mil e muitas criaturas, moços e velhos; sacerdotes, comandantes superiores, capitães-móres, patriarcas e matriárcas; brancos, pretos e índios; plantadores de currais, de fazêndas, de matrizes, de capelas, de cidades, de vilas e de povoações, escravos e senhores, todo um cortêjo imobilizado pela morte, mas que a mão do padre escriba arrancou do esquecimento e fixou para perpetuidade (grifo nosso)4.

Em outro trecho do livro, José Adelino Dantas transcreve o assento do enterro do índio Antonio Carlos, da forma seguinte: “— Aos vinte e hum de Novembro de mil oito centos falleceo de vida prezente Antonio Carlos cazado que foi com Roza Maria, esta criôla e aquelle indio com a idade de cincoenta annos pouco mais ou menos, foi unicamente confeçado por morrer quasi de repente está sepultado no sitio determinado para a capella da Senhora do Rozario, encomendado por mim, de que para constar fis este assento em que me assigno. O Cura José Gonçalves de Medeiros” (grifo nosso)5

Em ambas as passagens, todavia, a intenção do historiador não era a de estudar a presença indígena. No primeiro caso, estava discutindo um possível “fundador” para Caicó, quando se utilizou do livro de óbitos aludido como fonte. No segundo, discorrendo sobre o lugar de ereção da Matriz de Santa Ana, empregou o assento de morte do índio Antonio Carlos para justificar a não existência, até o ano de 1800, da atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Caicó (naquele momento, o índio foi sepultado “no sitio determinado para a capella da Senhora do Rozario). Mesmo assim, não podemos tirar-lhe o mérito, já que não

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deixou de remeter à presença de índios no território da Freguesia de Santa Ana, mesmo quando isso lhe parecia necessário para justificar outros assuntos6. Posteriormente José Adelino Dantas voltou aos mesmos livros de assento de enterro, com o intuito de descortinar o que os registros apontavam como causas das mortes dos fregueses de Santa Ana. Nesse estudo sobre a mortalidade no Seridó, o autor encontrou anotadas as mortes de 18 índios, para o período que cobre os três primeiros códices de assentos de enterros (1788-1838)7. Vê-se, pelo exposto, que mais uma vez a questão indígena não era o interesse do historiador – e sim a mortalidade entre os fregueses de Santa Ana –, porém, isso não o impediu de mencionar o índice acima. Reiteramos, desse modo, a afirmação feita anteriormente de que a tipologia documental utilizada pelo pesquisador influi decisivamente na maior ou menor remissão aos índios durante os tempos coloniais, mas, também, a forma de abordar o processo histórico e os sujeitos que dele participam. Não fosse isso, as obras de José Augusto Bezerra de Medeiros8 e de Olavo de Medeiros Filho9 também trariam, pelo menos, a indicação de que, dentre os fregueses de Santa Ana, havia índios. E não o fizeram, embora tenham utilizado dos mesmos documentos paroquiais que José Adelino Dantas referentes ao século XVIII e XIX. O caso de Olavo de Medeiros Filho deve ser visto com ressalvas, já que, além de um livro tratando do passado indígena do sertão da Capitania do Rio Grande publicado em 198410, sua derradeira obra versando sobre a região do Seridó (2002) fez alusão a mapas populacionais produzidos pelo Padre Francisco de Brito Guerra que apresentavam dados relativos a nascimentos, casamentos e mortes dos “indios domesticos da Paroquia da Villa do Principe" nos anos de 1809 e 181111. Com isso não estamos questionando a importância da monumental obra de Olavo de Medeiros Filho, mas, apenas deixando claro que, mesmo conhecendo profundamente o acervo da Freguesia de Santa Ana e seus assentos de índios – como mesmo nos relatou em vida12 – não utilizou tais informações quando estruturou Velhas famílias do Seridó (1981) e Velhos inventários do Seridó (1983), livros que trataram das famílias e da vida cotidiana dos habitantes da Freguesia de Santa Ana. Situação como a relatada acima não aconteceu em outra publicação de caráter genealógico. Trata-se do livro Os Álvares do Seridó e suas ramificações (1999), de autoria do historiador Sinval Costa. Este, empreendendo pesquisa de campo nos principais acervos judiciais, eclesiásticos e civis da região do Seridó, compôs uma obra onde emergem as origens mestiças dos seus habitantes. O autor não pensou duas vezes ao incluir histórias de índios, de caboclos e de negros nas suas referências aos titulares dos Alves (corruptela do

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termo “Álvares”), família que foi seu objeto de estudo. Além disso, num anexo do livro incluiu lista de alguns assentamentos de casamentos envolvendo índios, negros e pardos ocorridos no Seridó antigo13. Na sua obra podemos perceber, com clareza, a valorização dos diversos grupos sociais como formadores das parentelas que conviveram no território da Freguesia de Santa Ana. As pesquisas acima comentadas, desse modo, nos influenciaram plenamente no sentido de desencavar as histórias vividas pelos índios que subsistiram das guerras de conquista, as quais mancharam os tabuleiros e serras das ribeiras do sertão da Capitania do Rio Grande com o sangue de seus ancestrais. Levaram-nos a questionar um pretenso desaparecimento prorrompido por alguns dos homens que dedicaram o seu tempo a escrever a história e que, em seus textos, salientaram a extrema superioridade da cultura ocidental. Conduziram nossas vistas aos mesmos livros que já haviam sido examinados por José Adelino Dantas, Olavo de Medeiros Filho e Sinval Costa: amarelecidos pelo tempo, carcomidos pelas traças e repletos de escritas que às vezes mais parecem garatujas e arabescos, difíceis até mesmo de serem decifradas. Esses livros nos conduziram às histórias de vida das populações indígenas que habitaram na Freguesia do Seridó nos tempos coloniais, a seguir desentranhadas e discutidas.

4.1 Cifras demográficas: os índios fregueses de Santa Ana Para que pudéssemos estudar essas histórias com base nos registros eclesiásticos já referidos, tomamos inspiração no instrumental teórico-metodológico da Demografia histórica14. Herdeira da Demografia francesa, sua metodologia evoluiu fundindo as técnicas de estudo serial da população aos estudos de História social e cultural, procurando enxergar nas estatísticas os personagens que atuaram no cotidiano público e privado, antes imersos, apenas, na teia da análise quantitativa15. Dispúnhamos de duas opções para analisar a documentação eclesiástica da Freguesia de Santa Ana: o método inglês das contagens globais e o método francês da reconstituição de famílias. O primeiro agrega os dados dos registros paroquiais de forma anônima, sem se preocupar com a identidade das pessoas e gera longas séries estatísticas em curto prazo de tempo. O segundo, por sua vez, se presta mais ao estudo das micro-realidades, já que, sem deixar de lado a estatística, anota a maior quantidade de dados possível dos assentos, de modo que haja condições posteriores de se remontar a

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estrutura e a dinâmica de uma ou mais famílias16. Optamos por utilizar a metodologia da reconstituição de famílias, partindo da premissa de que seria mais factível, dessa maneira, localizar a maior quantidade possível de informações sobre os índios. O manancial de documentos da Freguesia de Santa Ana encontra-se desfalcado em relação aos primeiros livros de assento, falta que já tinha sido percebida pela tríade de historiadores comentada anteriormente17. Os livros de casamentos e de enterros iniciam em 1788, coincidentemente, ano em que a Povoação do Seridó foi alçada ao status de Vila Nova do Príncipe. Os livros de batizados começam seus registros apenas em 1803. São mais de quarenta anos de silêncio, portanto, que nos deixam sem material para que possamos montar um arcabouço das populações que habitavam na Freguesia de Santa Ana na primeira metade do século XVIII. Admitida esta lacuna, decidimos fazer a análise dos livros de assento mais antigos da freguesia, nas suas três categorias (batizados, casamentos e enterros), a fim de perceber como os índios aparecerem em seus registros. Montamos fichas de coleta de dados para cada um dos registros dos livros mais antigos (batizados, de 1803 a 1806; casamentos, de 1788 a 1809; enterros, de 1788 a 1811), partindo do modelo proposto por Fleury-Henry18 e adaptados à realidade da Freguesia de Santa Ana. Essas fichas foram decodificadas em campos, dispostos em bancos de dados que permitiram, pela indexação dos registros, que analisássemos com maior rapidez determinados aspectos dos assentos, através de um mecanismo de filtragem que gera automaticamente relatórios com critérios pré-estabelecidos19. Coletamos, ainda, as informações referentes a índios e seus parentes nos livros de casamento de 1809 a 1821 e de enterros de 1812 a 1838 e de 1838 a 1857, para cruzar com as informações dos três primeiros códices, objeto da análise quantitativa. Os registros contidos nesses livros de assento nos dão a conhecer alguns dos ritos de passagem de cabras, brancos, negros (do Gentio da Costa, de Angola, da Guiné, de Arda), pretos forros, pardos, crioulos, índios, mamelucos, mestiços. Palavras que, longe de demonstrar uma referência expressa a grupos étnicos, nos soam mais como categorias coloniais criadas pelo aparelho de registro da Igreja Católica para classificar os seus fregueses. Um sério problema que enfrentamos, nesse sentido, diz respeito à forma de identificar os índios dentre os mais registros. Na maioria das vezes, os indivíduos assentados nos livros vêm designados como índios logo após o seu nome. Ocorrem casos, todavia, de registros de pessoas que não vêm com esse indicativo, todavia, tem um pai ou mãe (ou, ainda, ambos) que são designados índios. Outra situação que se coloca é a de índios que vêm com o

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seu designativo – índio – aposto ao nome na primeira vez que aparecem assentados no livro e, em outras passagens deste, aparecem sem diferenciação. Contratempo que resolvemos ao considerar como índios todos os indivíduos mencionados nos casos acima, os quais aparecem inscritos nos livros de assento da freguesia20. Os ritos de passagem acima assinalados – o batizado, o casamento e a morte/enterro – nos dão a possibilidade, ainda que partindo de um pequeno universo amostral, de conhecer a população indígena que habitava no território da Freguesia de Santa Ana. O primeiro deles é o do batizado

4.1.1 Nascidos, batizados, expostos O cotidiano das populações que viviam na América Portuguesa era permeado pela esfera da religiosidade. Assim como os sinos das capelas erguidas nos povoados mais longínquos ditavam os momentos de maior atenção à fé – missas, ofícios, batizados, por exemplo –, o tempo cristão preenchia a vida das pessoas integradas ao mundo colonial, desde o momento do nascimento até a morte. Tempo cercado de pequenos ritos que marcavam as etapas do evolver dos indivíduos na sua vida privada: o batismo, o casamento e a morte21. Não bastava nascer para tornar-se aceito na sociedade colonial. Era necessário nascer para a Igreja, através da imposição dos santos óleos na cerimônia batismal22. Tratando sobre o tema, Sheila de Castro Faria afirmou que o batismo, no âmbito da Igreja, era o “momento mais expressivo em termos de significado ritual”, ultrapassando, na prática, o limite da religiosidade e “firmando-se como um importante instrumento de solidariedade e de relações sociais, através do compadrio”23. Era momento importante, também, pois havia um risco tremendo do recém-nascido morrer pagão se não fosse batizado a tempo. O número de batismos de índios na Freguesia de Santa Ana foi muito reduzido em relação ao dos outros grupos com os quais conviviam. A Tabela 2 demonstra que pouco mais de 1% da população de catecúmenos da freguesia era de origem indígena: Tabela 02 Batizados da Freguesia de Santa Ana por origem social (1803-1806) Brancos Negros Pardos Índios Quantidade % Quantidade % Quantidade % Quantidade % 502

73,28

111

16,20

64

9,34

8

1,16

fonte: FGSSAS, LB nº 01 (universo amostral: 685 registros)

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Devemos notar que essa estatística é apenas uma amostragem, cobrindo três anos. Precisaríamos das séries estatísticas dos livros de batizados anteriores ou posteriores para ter uma idéia precisa sobre a população indígena em um recorte cronológico maior. Devemos esclarecer que nem sempre as atas de batizados relatavam se o batizando pertencia a determinado grupo social. Sendo assim, nos 73,28% de brancos estão incluídos 62,04% de indivíduos cujo designativo não veio aposto ao nome, mas, que deduzimos serem de origem branca pelo fato desta ser a cor preponderante entre a população da freguesia, não sendo necessária sua presença no assento24. Somente 11,24% dos batizandos vinham expressamente diferenciados pela aposição do termo “branco”25. Voltando nossas atenções para a Freguesia de Santa Ana, observemos o registro do batizado da índia Maria, que aconteceu em 15 de março de 1806, sendo ela filha legítima de Francisco Gomes, índio e de Joana, parda, escrava de Maria Pais do Nascimento26. A ata de batismo omite o local do recebimento dos santos óleos, mas este deve ter ocorrido por ocasião de uma desobriga realizada na Ribeira do Acauã, onde residiam o padre Manuel Gomes de Azevêdo (na Povoação do Acari), o capitão-mor Francisco Gomes da Silva (na fazenda das Flores) e Antonio José de Barros (na fazenda Várzea, próxima do rio Picuí, nas nascenças do Acauã), ambos filhos de Maria Pais. A matrona, natural da Freguesia de Santo Antão da Mata e já viúva de Teobaldo Gomes da Silva possivelmente residia com um de seus filhos nas fazendas ou povoação citadas, marginando o Acauã. O índio Francisco Gomes adotara o sobrenome do esposo da senhora da qual era fâmulo27 e seu casamento com a parda Joana ocorrera antes, em 19 de julho de 1801, na fazenda Olho d’Água28. Dos oito batismos de índios localizados entre 1803 e 1806, seis trazem indicações de onde foram celebrados, sendo um na Serra das Queimadas, um na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos do Jardim das Piranhas, outro na Capela de Nossa Senhora da Guia do Acari e três na Matriz da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, doravante chamada Matriz do Seridó. A naturalidade dos pais dos catecúmenos nos mostra que houve migrações para a Freguesia de Santa Ana oriundas de outras regiões do Rio Grande e até de outras capitanias como Paraíba e Ceará. É o que podemos notar observando a história dos índios Miguel Corrêa e Teresa de Jesus, naturais, respectivamente, da Vila de Arez e do Açu, que batizaram o seu filho Lino, índio, na Capela do Jardim das Piranhas em 180429. E, ainda, do casal Francisco José, índio, e Leandra Corrêa, naturais da Vila de Portalegre, que assistiram o batizado de sua filha Josefa, índia, na Matriz do Seridó em 180630, cujas causas da migração ainda não conseguimos desvendar.

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Nas oito atas de batismo em estudo, das seis que apontam a legitimidade dos batizandos cinco aparecem como sendo fruto de relações lícitas e apenas uma, a da índia Joaquina, cita-a como sendo filha natural de outra índia, de nome Ana Joaquina31. À primeira vista o número não parece surpreender muito, já que estamos trabalhando com registros ínfimos do ponto de vista numérico. Posteriormente discutiremos, todavia, que a legitimidade não foi a tônica nas uniões mistas envolvendo índios, já que os livros de assento deixam escapar, vez ou outra, referências a relacionamentos ou situações ilícitas do ponto de vista da Igreja Católica. Uma dessas situações era a do abandono de crianças, em especial nas áreas urbanas, seja em casas de particulares, seja nas “rodas” de instituições eclesiásticas, como a Santa Casa de Misericórdia. Enjeitados, expostos, largados. Era assim a forma pela qual essas crianças abandonadas eram tratadas no discurso colonial. Filhos indesejáveis por razões sociais, suas mães tiveram um destino cruel, pois, ao não reconhecerem o pecado do abandono e se redimirem fatalmente seriam aceitas, novamente, na comunidade cristã – ou, no caso de guardarem seu segredo, padeceriam o restante de suas vidas com remorso frente ao ato cometido. Por outro lado, a criação de instâncias próprias para cuidar dos expostos nos principais centros urbanos da colônia portuguesa na América demonstrava ser uma espécie de válvula de escape a bem da moral pública, já que muitos dos enjeitados eram produtos de relações ilícitas32. Nos registros da Freguesia de Santa Ana de que dispomos encontramos casos que nos chamaram atenção, como o da pequena Rita. Exposta na casa da índia Rosa, moradora no Acari, não viveria muito para contar sua história. Viria a falecer no dia 1º de setembro de 1788, com apenas três meses33. Quatro anos depois a situação se inverte: é uma índia, de nome Teresa, com mais ou menos seis anos, que faleceu prematuramente em 22 de dezembro de 1792 e foi sepultada na Matriz do Seridó. Havia sido exposta na casa de Maria Gonçalves de Jesus, moradora no sítio da Suçuarana34.Outro índio também teve o destino traçado como o de Teresa. Trata-se de Francisco, que foi largado na fazenda Sabugi, em casa do capitão Manuel Gonçalves Melo. Deixou de existir em 1806, quando tinha então 23 anos, sendo seu corpo enterrado, também, na Matriz do Seridó35. A despeito de todas as dificuldades que um exposto poderia passar durante a criação com os filhos legítimos dos pais onde foi largado, não deveríamos ter, em tese, notícias de suas sobrevivências na idade adulta – ainda mais se tratando dos índios enjeitados, esmagados pela carga de discriminação infligida pelo restante da sociedade colonial. Contrariando essa

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idéia em 1799 a Capela do Acari assistiria o casamento de Serafim de Souza, natural de Mamanguape e da índia Josefa Maria dos Santos. Esta, exposta na casa de Joana Dantas Corrêa, viúva de Antonio Dantas Corrêa, seu parente em segundo grau36, pertencentes à família Dantas Corrêa. Para o período que vai de 1788 a 1811, de 979 mortes registradas na freguesia apenas 513 trazem a informação sobre a legitimidade ou não do defunto. Tomando como base esta última cifra, temos que a proporção de expostos era de 5,65%, conforme demonstra a Tabela 3. Tabela 03 Legitimidade entre os defuntos da Freguesia de Santa Ana (1788-1811) Legítimos Naturais Expostos ou largados Quantidade % Quantidade % Quantidade % 423 82,45 61 11,80 29 5,65 fonte: FGSSAS, LE nº 01 (universo amostral: 513 registros)

Esse percentual de expostos excede em pouco às estatísticas apontadas para outras freguesias coloniais que também tinham área de abrangência preponderantemente rural. Nestas o número de enjeitados era bem menor que nas freguesias urbanas37. A equivalência do número de expostos entre a Freguesia de Santa Ana e outras freguesias rurais, bem como a diferença de índices com relação às urbanas encontra-se anotada na Tabela 4.

Urbanas

Rurais

Tabela 04 Proporção do número de expostos em freguesias urbanas e rurais da América Portuguesa Freguesia Nº de expostos Cronologia (%) Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó 5,65 1788-1811 Guaratiba, Irajá, Jacarepaguá e 3,3 Inhaúma (Rio de Janeiro)* Ubatuba (litoral paulista) 0,6 Sorocaba (São Paulo)** 4,1 1679-1845 Sé e São José (Rio de Janeiro)* 21,3 Sé (São Paulo) *** 15 1741-1755 Vila de Curitiba (Paraná) entre 4,1 e 14,9 1731-1798 Vila Rica (Minas Gerais) 11 1818 fonte: FGSSAS, LE nº 01 e FARIA, Sheila de Castro. A colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial p. 69 (* população livre; ** média; *** média geral)

Passado o tempo do nascer e do ser batizado, os sinos das capelas anunciam um novo degrau a ser galgado para se atingir a plenitude cristã, aquele do casamento. Direcionemos

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nosso exame para as uniões consensuais e casamentos, envolvendo índios, que aconteceram na Freguesia de Santa Ana entre o fim do século XVIII e início do século XIX.

4.1.2 Unidos, casados O livro de assentos de casamento que vai de 1788 a 1809 encerra, em suas páginas, 537 uniões matrimoniais realizadas na Freguesia de Santa Ana, das quais 91,79% foram celebradas envolvendo pessoas de um mesmo grupo social, enquanto em 8,21% dos casos tivemos o envolvimento de indivíduos de grupos diferentes. Partindo do número total de registros, constatamos que quase 2,5% dos consórcios envolviam índios (ver Tabela 5). Tabela 05 Casamentos da Freguesia de Santa Ana (1788-1809) Origem social Quantidade de registros % Envolvendo brancos* 463 86,21 Envolvendo índios 12 2,42 Envolvendo negros 81 15,08 Envolvendo pardos 23 4,28 Envolvendo mestiço** 01 0,18 fonte: FGSSAS, LC nº 01 (*incluídos os indivíduos sem designativo de distinção social; ** mestiço de pardo e de negro)

Os 27 casamentos que o livro de consórcio citado na tabela acima, mais o posterior (de 1809 a 1821) nos mostram foram celebrados nos templos existentes, à época, na freguesia: dez na Matriz do Seridó, seis na Capela do Acari, cinco na Capela dos Currais Novos e um na Capela do Jardim das Piranhas. Os demais foram feitos nas fazendas Jucurutu, Olho d’Água e Mulungu, além de um na Serra do Grajaú. Encontramos lavrados nesses livros de assento, pelo menos dois tipos de ajuntamento de pessoas: os casamentos, com ratificação da Igreja Católica, e as uniões consensuais, consideradas ilegítimas, de onde surgiam os chamados “filhos naturais”. O exame desses livros em um intervalo de meio século (1788 a 1838)38 nos permitiu reconstituir cerca de 60 famílias nucleares39 com participação indígena, das quais apenas 27 eram fruto das bênçãos nupciais transmitidas pelos curas da freguesia, o restante sendo conseqüência, provavelmente, de uniões informais. Não devemos jogar fora, porém, a hipótese de que essas outras uniões estivessem registradas nos livros de casamento anteriores a 1788, hoje desaparecidos40. Assim, em março de 1790 os índios Ludovico de Azevêdo e Maria da Conceição compareceram à Matriz do Seridó para dar sepultura ao seu filho, o índio Francisco. Detalhe:

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o pequeno índio, falecido quando tinha apenas três dias, era filho natural de Ludovico e Maria, moradores na vizinha Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso41. Os registros não contam se Ludovico e Maria casaram posteriormente. Mas, mostram-nos que, para além de todas as imposições da Igreja Católica Romana no sentido de que todos os habitantes do Novo Mundo prestassem juramento nupcial sob as bênçãos divinas, as coisas pareciam não acontecer exatamente como preceituavam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. Estas constituições fixavam o ordenamento jurídico do Cristianismo nas possessões lusitanas na América, vigorando até o ano de 1917 – quando da publicação do Código de Direito Canônico. Elas têm suas raízes no Concílio de Trento (1545-1563), que determinou a formalização da prática dos registros de batizados, comunhões, crismas, casamentos, mortes ou enterros em livros separados e ainda a supervalorização da família institucionalmente constituída através do casamento em detrimento de conversações ilícitas, adultérios, concubinatos, amasiamentos e “demais formas de convivência sexual e conjugal que não o sagrado matrimônio”42. Todavia, as injunções do Padroado Régio contribuíram para que a Igreja fizesse vênia às estruturas de poder coloniais, permitindo que parentes bastante chegados se consorciassem (tios com sobrinhas, por exemplo), atitude que asseverava a garantia do poder das famílias de elite. Entre os pobres, nesse sentido, (...) o arranjo afetivo mais comum era o concubinato. Os casamentos em geral não eram legalizados, mas permitiam criar os filhos com alguma segurança e dividir as dificuldades materiais da vida. A Igreja tinha atitudes ambíguas diante da realidade colonial de africanos arrancados às famílias em sua terra natal, índias vivendo como amantes de brancos e poucas mulheres brancas disponíveis para o casamento”43 (grifos nossos).

Similar à história de Ludovico e Maria é a dos índios Brás Martinho e Ana Maria Gonçalves, cuja união (consensual) gerou o índio João, falecido com quatro meses em 1798, o qual foi sepultado na Capela do Jardim das Piranhas44. Porém, nos assentos da freguesia também constam os nomes de índios filhos do que hoje chamaríamos de “mães solteiras”. Joaquina, batizada em 1805; Félix, falecido em 1797 com seis anos e Alexandre, falecido em 1802 com 16 anos45, ambos índios, foram filhos naturais que só conheceram as mães, Ana Joaquina, Fabiana e Joana da Rocha, respectivamente. Talvez nunca saibamos os nomes de seus pais, já que as genitoras índias não os declararam nas atas de batizado e enterro, razão

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pela qual acreditamos poderem ser Joaquina, Félix e Alexandre rebentos de relacionamentos proibidos ou impossíveis para a época. Uma minúcia deve ser anotada: na ata do óbito do índio Alexandre consta a referência de que o mesmo era “moço” do capitão-mor Cipriano Lopes Galvão. O termo “moço” designava criados livres que mantinham laços de dependência com fazendeiros – a exemplo dos fâmulos – tornando-se seus filhos de criação. Cipriano Lopes Galvão, no ano da morte do índio (1802) era capitão-mor do Regimento de Cavalaria das Ordenanças da Vila Nova do Príncipe, patente máxima das tropas de 3ª linha existentes no Período Colonial e residia na fazenda Totoró46. É bastante provável que Alexandre e sua mãe, a índia Joana da Rocha, residissem no Totoró como agregados da casa de fazenda do capitão-mor Galvão – como era mais conhecido Cipriano Lopes Galvão. Se uniões informais eram presentes entre os índios de que estamos falando, também alguns dos que receberam o sacramento do matrimônio provinham dessas mesmas uniões. Assim foi com o índio José Roberto de Castro, filho natural da índia Josefa Maria da Conceição, que casou em 1813 na Capela do Acari com a preta Maria Manuela do Rosário, filha natural de Joana Francisca de Vasconcelos, também preta47. Dos 27 casamentos celebrados na Freguesia de Santa Ana entre 1788 e 1821 envolvendo indígenas, a taxa de ilegitimidade dos noivos era de 22,22% para os homens e de 18,51% para as mulheres, conforme explana a Tabela 6. Tabela 06 Legitimidade dos noivos nos casamentos envolvendo índios na Freguesia de Santa Ana (1788-1821) Legítimos Naturais Expostos Viúvos Inespecificado* Nº

%



%



%



%



Noivos 12 44,44 6 22,22 5 18,51 4 Noivas 11 40,74 5 18,51 01 3,70 4 14,81 6 fonte: FGSSAS, LC nº 01 e 02 (*condição de legitimidade não vem expressa nas atas de assento)

% 14,81 22,22

Dentre outros casos de uniões legalizadas pela Igreja Católica encontra-se um que ocorreu na Capela dos Currais Novos em 1814. No dia 02 de julho desse ano recebiam as bênçãos nupciais o pardo Manuel Vicente – escravo de Bernardino de Freitas Leitão – e a índia Damiana Tavares48. Manhã do dia 13 de novembro do mesmo ano, no mesmo templo. Foram abençoados pelo matrimônio o índio Manuel Acioli do Nascimento e Joaquina Maria da Conceição, cabra49. Uniões como estas demonstram que as Constituições de 1707, embora instituíssem, em seu cânon, a família abençoada no matrimônio católico como a forma legal e

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pia do viver em comum sob o mesmo teto, permitia, por outro lado, que os noivos escolhessem seus parceiros dentro do mesmo grupo social50. Isto aconteceu com freqüência no Seridó, onde foram comuns as uniões entre índios, negros e pardos. Das 60 uniões envolvendo indígenas que conseguimos reconstituir a partir dos livros de assentos pesquisados, 53 traziam o designativo de distinção social de, pelo menos, um dos membros do casal51. Destas a maior proporção ficou com índios ou índias que casavam com pessoas cuja origem social não veio aposta ao seu registro na ata do casamento52 (45,28%), conforme demonstra a Tabela 7. Tabela 07 Uniões mistas na Freguesia de Santa Ana envolvendo índios (1788-1838) Grupos sociais Quantidade % índio + inespecificado 24 45,28 índio + índio 14 26,41 índio + negro 10 18,86 índio + pardo 05 9,43 fonte: FGSSAS, LC nº 01 e 02; LE nº 01 e 02; LB nº 01. (Na categoria índio + negro registramos, de acordo com a terminologia utilizada nos livros, os seguintes quantitativos: 5 uniões de preto + índio; 2 de cabra + índio; 2 de crioulo + índio; 1 de Angola + índio).

Outro aspecto que merece consideração é que das 53 uniões anteriormente citadas 17, no caso dos homens e 15, no das mulheres, indicam a naturalidade. A grande maioria das índias ou das pessoas que a elas se uniram eram naturais da Freguesia de Santa Ana, havendo índios nascidos em freguesias do Rio Grande, da Paraíba e até em vilas do Ceará, o que denota, mesmo com números ínfimos, que as migrações entre as capitanias eram freqüentes53. É interessante notar que as regiões de procedência dentro da Capitania do Rio Grande eram lugares onde havia presença indígena desde, pelo menos, a época dos aldeamentos missionários. Assim era com Extremoz, Portalegre e Arez (antigas missões de aldeamento) e com Açu e Goianinha, também territórios tradicionais indígenas, como demonstrado na Tabela 8:

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Tabela 08 Naturalidade dos índios e de seus consortes (1788-1838) Lugar de procedência Noivos

Noivas

Índio Inespec. Pardo Negro Índia Inespec. Parda Negra Acaraú 1 Baía da Traição 1 Freguesia da Paraíba 1 Freguesia de Extremoz 1 1 Freguesia de Santa Ana 4 1 1 3 2 1 2 Goianinha 1 Mamanguape 1 Portalegre 2 2 2 Vila da Princesa 1 1 Vila de Arês 1 Vila Mecejana 1 Vila Viçosa 1 14 2 1 7 5 1 2 Subtotal 17 15 Total fonte: FGSSAS, LC nº 01 e 02; LE nº 01 e 02; LB nº 01 (Capitania do Rio Grande: Santa Ana do Seridó, Extremoz, Vila da Princesa, Portalegre, Arês e Goianinha; Capitania da Paraíba: Paraíba, Baía da Traição, Mamanguape; Capitania do Ceará: Acaraú, Vila Mecejana, Vila Viçosa)

Poderíamos nos perguntar onde famílias como a do pardo Manuel Vicente e da índia Damiana Tavares, atrás referidos, moravam. Os assentos não trazem com freqüência essa informação e tampouco fazem referência ao tipo de casa onde residiam. É possível que habitassem nas proximidades da fazenda dos Currais Novos, já que contraíram matrimônio na Capela de Santa Ana daquele lugar. É preciso, contudo, termos ciência de que nem sempre morar, com o sentido que hoje emprestamos ao termo, era tão fácil para os índios desse período. Se o preto fôrro João Dias e a índia Damásia eram moradores no Quinquê em 179054 o mesmo não acontecera com o índio Filipe, falecido em 1805 e sepultado na Capela do Acari55. Era assistente em casa de Domingos Álvares dos Santos, na fazenda Umari. O termo assistente, bem como morador, nos tempos coloniais, se referia a “pessoas de condição social inferior, quase sempre habitando em terras ou casas ‘de favor’ ou pagando certa quantia ou, ainda, prestando serviço aos proprietários (...)”. Estes eram chamados de vizinhos e correspondiam a “o morador considerado apto a receber privilégios, além de ser capaz de exercer certos cargos de administração”56. Nos assentos da Freguesia de Santa Ana não encontramos o uso do termo vizinho, apenas de morador – indistintamente para índios ou outras pessoas – e assistente, para índios ou pessoas expressamente pobres. Acreditamos que o termo morador, nesta freguesia, designasse as pessoas que tinham residência fixa em determinado lugar, podendo servir, também, para indicar agregados de uma fazenda, enquanto assistente deveria se referir, manifestamente, a indivíduos de baixa posição social, que

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ocupavam casas ou terras de terceiros em troca de favores. Era na categoria de assistentes que alguns dos índios da freguesia estavam incluídos, o que denota que faziam parte de uma população marginal, mendigando terras ou casas para morar. Não devemos rejeitar a hipótese de que a palavra morador – nos assentos de João dos Santos e Damásia, por exemplo – tenha sido usada com o sentido de agregado. Em 1790 se dava sepultura, na Capela do Acari, à Damiana Maria, casada com João dos Santos, ambos índios. O assento traz uma informação peculiar, pois trata Damiana e João como “índios vagabundos e assistentes no riacho do Boi”57. Já não bastasse a condição de assistentes, receberam a alcunha de vagabundos, o que concorre para que possamos pensar que ainda fossem multívagos, andando pelo sertão na busca por um local que os pudesse acomodar. Em 1813, por exemplo, o índio João Rodrigues faleceu quando “vinha de viagem”, estando na fazenda Bestas Bravas58. O registro da morte do índio Inácio, que faleceu na fazenda do Quixeré em 1790, anota que o mesmo “vinha na companhia de Antonio da Cruz”59. Não era, portanto, morador fixo no Quixeré, pelo que se depreende do registro. Em conseqüência da vida errante e de favores para morar junto às fazendas vinha a pobreza. Que índios como João dos Santos, Filipe e Damiana Maria conviviam em condições precárias não há incerteza. A pobreza aparece patente em outros assentos da Freguesia de Santa Ana. O mesmo Filipe, referido há pouco, teve o seu funeral feito “de graça, por ser notoriamente pobre”60, assim como o do índio Miguel em 180661, o da mameluca Rosa Maria no mesmo ano62 e o da índia Luísa em 180763, a qual era assistente na casa de Antonio José Rodrigues Paiva. Mais taxativa ainda é a anotação do óbito de Ana Francisca Xavier, que era casada com o índio Caetano Barbosa e foi sepultada na Matriz do Seridó em 1815: seu funeral foi “grátis pela sua pobreza”64. Não devemos absolutizar, contudo, a idéia de que todos os índios desse período viviam em condições de penúria, como discutiremos adiante, tendo como fio condutor histórias como a dos índios Tomé Gonçalves e Mateus de Abreu. Por enquanto, debrucemos nosso olhar para os ritos envolvendo a morte no território da Freguesia de Santa Ana.

4.1.3 Mortos, enterrados Manuel Gonçalves Rabelo, em 1762, afirmou que no seu “juízo perfeito entendimento que Nosso Senhor me deu temendo me a morte e desejando por minha alma no caminho da salvação por não saber o que Nosso Senhor quer fazer de mim e quando servido me levar para

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si faço este meu testamento”65. A escrita desse freguês de Santa Ana, no seu testamento escrito no sítio da Batalha, Ribeira das Piranhas, expressa o temor que a morte insinuava nas pessoas durante os tempos coloniais. Entendida como uma passagem obrigatória para a eternidade, intermediada ou não pelo purgatório, era necessário que se pagasse um preço – um tanto alto para alguns – para ultrapassá-la: o perdão dos devedores, o reconhecimento de filhos tidos em uniões ilícitas, a alforria de escravos, o pagamento de taxas a irmandades e confrarias, o pagamento do próprio funeral e de missas post-mortem e, por outro lado, a encomendação da alma ao Pai Eterno, aos anjos e suas potestades, e, ainda, a uma miríade de santos. Esse era o preço para se ter uma “boa morte” e poder gozar das benesses no paraíso celestial. Morte que devia ser mediada por uma boa relação na terra com os homens e uma melhor ainda com os santos no céu66. Em seu estudo sobre as atitudes diante da morte no Seridó, Maria da Conceição Guilherme Coêlho nos fala de similar ansiedade frente à partida para outro mundo. Para a autora, Na sociedade colonial seridoense, assim como em toda a sociedade colonial brasileira, no período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, o medo da morte é uma constante e a passagem para uma vida no além gera um sentimento de pavor no homem sertanejo, que se revestia de uma sensação de permanente angústia devido à incerteza de sua salvação.67

Não era para menos. A morte grassava na Freguesia de Santa Ana, em uma época onde as condições médico-sanitárias não eram desenvolvidas o bastante para salvar pessoas da morte causada por bexigas, fraturas ósseas, tuberculose, urinas doces (diabetes), tumores, moléstias venéreas, quedas, sarna, sarampo e maligna. A lista da doenças68 campeãs pela morte dos fregueses de Santa Ana era encabeçada pela maligna e seguida de hidropisia, estupor, etica, catarrão amalignado, feridas nas crianças, cãibras e tísica69. A mortalidade infantil era alta em relação ao restante da população, chegando a 32,17% o percentual de defuntos de até 1 ano de idade registrados de um total de 979 defunções no livro que vai de 1788 a 1811. Os que tinham de 1 a 10 anos quando faleceram somavam 15,62% da população inscrita no mesmo livro, e a média será de 5% para a faixa etária de 10 a 60 anos completos, por decênio, de acordo com o que mostra a Tabela 9:

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Tabela 09 Mortalidade na Freguesia de Santa Ana segundo a faixa etária (1788-1811) Faixa Etária* Quantidade % Inespecificada 153 15,62 Até 01 ano 315 32,17 01 a 5 anos 114 11,64 5 a 10 anos 39 3,98 10 a 20 anos 61 6,23 20 a 30 anos 51 5,20 30 a 40 anos 48 4,90 40 a 50 anos 51 5,20 50 a 60 anos 56 5,72 60 a 70 anos 37 3,77 70 a 80 anos 23 2,34 80 a 90 anos 22 2,24 Mais de 90 anos 09 0,91 fonte: FGSSAS, LE nº 01 (* o último número do intervalo corresponde à idade completa; a linha de “Até 01 ano” corresponde a indivíduos que tinham 01 ano completo quando morreram)

Os enterros dos fregueses de Santa Ana foram celebrados, como era de praxe, nos templos da região, locais onde, em vida, tinham assistido a missas, batizados, casamentos e outras cerimônias litúrgicas. Na opinião de João José Reis, “Ter uma cova dentro da igreja era também uma forma de os mortos manterem contato mais amiúde com os vivos, lembrandolhes que rezassem pelas almas do que se foram”, o que faciltava “(...) a permanência do morto na memória da comunidade de vizinhos e parentes”70. A maioria esmagadora dos defuntos sepultou-se na Matriz do Seridó (44,84%) e na Capela do Acari (34,52%), situadas nas duas manchas populacionais mais numerosas da freguesia. As Capelas do Jardim das Piranhas, de Santa Luzia, da Serra Negra, da Conceição, da Serra do Cuité, dos Currais Novos, da Pedra Lavrada e do Rosário da Vila do Príncipe receberam, em ordem de número de sepultamentos, os restos mortais do restante dos defuntos. Em 1791 a Matriz do Seridó teria mais um cadáver sepultado em seu chão, o da índia “Domingas de tal”, que faleceu na Vila do Príncipe quando contava com cerca de 20 anos71. Esse e mais 38 registros de índios, que vão de 1789 a 1843, preenchem as folhas dos três livros mais antigos de enterros da Freguesia de Santa Ana. Dentro dos templos religiosos o sepultamento das pessoas obedecia ao que João José Reis chama de “a geografia da morte”, variando a ordem de importância “(...) das covas no adro72, de menor prestígio, àquelas próximas do altar-mor, onde se acomodavam os mortos melhor situados na vida”73. Alguns preferiam ser enterrados perto da pia batismal, para que os respingos de água benta lhe servissem de alento espiritual no além e outros na porta da igreja, para que fossem lembrados pelos fiéis que entravam na capela. Discutindo essa geografia dos

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enterros na Freguesia de Santa Ana, Alcineia Rodrigues dos Santos corrobora o pensamento de João José Reis ao afirmar que A capela, assim como o local, dentro ou fora desta, para o enterramento se traduziu em uma escolha cuidadosa. Em todo caso, mesmo com essa concessão a todas as pessoas, qual fosse sua condição, percebemos uma constante hierarquia no tocante ao tipo e o local de sepultura, uma ordem que poderia ser percebida claramente pela divisão entre o corpo e o adro, dentro e fora dos templos. A igreja caracterizava-se por sua organização, demonstrando uma ordem espacial hierarquizada de acordo com a posição social do indivíduo. No adro, espaços que comumente poderiam ser possuídos gratuitamente eram enterrados os pobres e os escravos, ao passo que, no espaço interno da igreja, eram sepultadas as pessoas de posse, os administradores e o clero, uma organização que refletia a sistematização dada pelos vivos. Conforme observamos, esse modelo de estrutura sagrada possui um centro, destacado a partir do altar numa reprodução do centro cósmico, um lugar glorificado e transubstanciado e outra parte periférica ao centro, uma extremidade marginal secundária representada pelos demais locais74.

Assim sendo, dos 979 registros de óbito que vão de 1788 a 1811, excluídos 31,76% que não indicam o local da sepultura, 44,53% dos defuntos foram inumados no corpo da capela (hoje corresponde à nave), região destinada à grande massa da população. O arco cruzeiro separava o território dos mais abastados (o cruzeiro, ou capela mor) das pessoas de menos condições (o corpo). As expressões antagônicas “acima” e “abaixo” na geografia da morte demonstravam que quanto mais acima e próximo do altar se sepultava, mais influente era o defunto em vida. Continuando nossa análise dos óbitos registrados no corte temporal acima referido, observamos que 10,62% dos defuntos foram enterrados das grades para baixo e 8,17% das grades para cima. Cerca de 2% foram sepultados no cruzeiro e pouco mais de 1% em outras partes do templo, junto da pia batismal, por exemplo. Os enterros no adro atingiram esse mesmo percentual, sendo sepultados nessa região apenas negros e índios. Não chegou a 1% a cota de pessoas que foram sepultadas fora dos templos, como podemos verificar na Tabela 10: Tabela 10 Regiões de sepultamento na “geografia da morte” – Freguesia de Santa Ana (1788-1811) Região Nº de sepultamentos % Não especificado 310 31,76 Fora do templo 05 0,51 Adro 12 1,22 Corpo 436 44,53 Grades abaixo 104 10,62 Outras partes do templo 11 1,12 Grades acima 80 8,17 Cruzeiro ou capela mor 20 2,04 979 Total fonte: FGSSAS, LE nº 01

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Dos 39 índios sepultados na freguesia no mesmo período – afora dez assentos que não indicam o local de enterramento – 24 foram sepultados no corpo da capela, 02 no adro e uma, a índia Luísa, junto a uma das portas do templo75. Dois foram enterrados fora dos templos, sendo um na fazenda do Bonfim (o índio Luís)76 e outro, o índio Antonio Carlos, no sítio (alicerces) da Capela do Rosário77. Embora o padrão fosse o enterro dentro das capelas, Luís e Antonio Carlos fugiram a essa regra quando foram sepultados fora de templos religiosos. Seria uma recusa a esse procedimento cristão e um desejo inconsciente de retornar à natureza? É cedo para afirmarmos e ainda mais quando estamos discorrendo sobre apenas dois assentos78. Casado com a crioula Rosa Maria, o índio Antonio Carlos não deve ter tido maiores problemas quando de sua chegada ao além, já que, mesmo tendo morrido quase repentinamente, recebeu o sacramento da penitência e o terreno onde foi enterrado já estava delimitado para ser solo sagrado, dedicado à padroeira dos homens de cor, Nossa Senhora do Rosário. Um cristão fervoroso do início do século XIX, no entanto, provavelmente diria que o índio Luís estaria suscetível a se tornar uma alma penada e por ele rezaria muitos terços. O motivo: Luís foi sepultado no mato, fora da capela, vitimado por uma morte não menos terrível, proveniente de mordida de cobra venenosa. Pior: não recebeu os sacramento antes de expirar, por não chegarem a tempo. Estava fadado a vagar pelas brumas do além-mundo por tempo indeterminado, até que uma ou mais almas piedosas enviassem, da terra, missas e orações suficientes para sua salvação. Para Luís pode ser que não fosse tão urgente e necessário o recebimento dos sacramentos e tampouco o enterro numa capela, se aventarmos a hipótese de que ainda cultivava, em seu seio, antigas tradições nativas. O recebimento dos sacramentos – penitência, eucaristia e extrema unção – era um dos passaportes para o céu, mesmo que o morto tivesse que quarar por uns tempos no purgatório. João José Reis, contudo, afirma que “No Brasil rural a assistência paroquial era dificultada pelas distâncias, pela própria ausência de padres e sobretudo pela população a ser assistida”, enquanto no ambiente urbano, no século XIX, “as pessoas foram assistidas com alguma regularidade pelos padres na hora da morte”79. Mesmo assim, dos 25 assentos de índios que fizeram alusão ao recebimento dos sinais sagrados, 16 os receberam e 09 não. Desses 16 sacramentados chegou a 10 o número dos que morreram com todos os sacramentos, como podemos observar na Tabela 11:

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Tabela 11 Sacramentos recebidos pelos índios na Freguesia de Santa Ana (1789-1843) Sacramentos Índios Penitência 05 Penitência e Extrema Unção 01 Penitência, Eucaristia e Extrema Unção 10 Total 16 fonte: FGSSAS, LE nº 01, 02 e 03

Partindo do que afirmamos nos parágrafos anteriores, é provável que não tivesse importância crucial na vida dos 09 índios não sacramentados antes da morte o recebimento desses sinais como perdão divino. Se deduzirmos que ainda estavam de alguma forma apegados a tradições nativas, não faria distinção ser ungido (ou não) para que pudessem morrer. O Capitão Mateus, índio, não os recebeu “por morrer de repente”80. O índio Luís, citado ainda há pouco, “por não chegarem a tempo”. O caso da índia Damiana Maria, contudo,

enche-nos de indagações, pois morreu sem os sacramentos pelo fato de “não

chamarem sacerdote”81. É perigoso afirmarmos quando estamos tratando de somente um indivíduo. Entretanto, mais dois outros índios também não foram sacramentados pelo mesmo motivo, como podemos perceber na Tabela 12: Tabela 12 Fregueses que não receberam os sacramentos por não pedirem/não procurarem/não chamarem o padre na Freguesia de Santa Ana (1788-1838) Grupo social Quantidade Sem identificação 05 Negros* 09 Brancos 04 Índios 03 Pardos 05 Total 26 fonte: FGSSAS, LE nº 01 e 02 (* inclui-se, nesta categoria, crioulos, africanos do Gentio de Angola, pretos e pretos forros)

Essa recusa aos sacramentos pode significar, assim conjecturamos, uma forma de resistência à religião dominante. Em se tratando de Damiana, uma resistência muda, emanada do seu cadáver gélido e do cuidado de seu companheiro, o índio João dos Santos, em não chamar o capelão mais próximo para administrar os sinais sagrados. Se alguma tradição nativa, ou mesmo o desapego a algumas prescrições cristãs subsistia entre a população indígena da época, no caso de Damiana tudo concorria para isso, já que no seu registro de enterro é citada como “vagabunda e assistente”, pelo que supomos ainda viver em regime seminômade, percorrendo o sertão como errante. Para confirmar mais ainda a nossa hipótese

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ela foi enterrada no lugar destinado aos que estivessem mais longínquos do deus cristão, o adro da igreja. Assim aconteceu, também, com o índio Florentino, que não recebeu os sacramentos e foi sepultado no adro da Capela do Acari82. A mesma resistência que vislumbramos em Damiana iremos encontrar no índio João Rodrigues. Falecido em 1813, proveniente de uma “maligna”, na fazenda Bestas Bravas83, esse celibatário não recebeu os sacramentos “porque não os procuraram”. Teria seu lugar reservado no corpo da Matriz do Seridó, junto da grande massa populacional. Podemos pensar, também, que esses índios eram tão pobres – ou que seus parentes o fossem, ou que mesmo não tivessem tantos parentes próximos – que, dessa maneira, seria impossível o pagamento dos serviços ao pároco.84 Outro aspecto da cultura funerária existente no período colonial e mesmo depois diz respeito à forma como os defuntos eram sepultados. Mortalhas piedosas, panos e hábitos de santos vestiam os mortos. No pensamento cristão o seu uso “(...) sugere um apelo à proteção dos santos nelas invocados, e sublinha a importância do cuidado com o cadáver na passagem para o Além, atenção com a alma em sua peregrinação expiatória e com a ressurreição no dia do Juízo Final”85. A mortalha ou hábito branco estava entre as mais usadas, já que tinha importante expressão no simbolismo dos ritos da morte cristão por lembrar o Santo Sudário, no qual Cristo foi envolto após ter sido descido da cruz86. Os índios sepultados na Freguesia de Santa Ana entre 1789 e 1838 não fugiram a esse padrão. Apenas 03 assentos não indicam o material e a cor do hábito mortuário. Alguns assentos trazem apenas a espécie da roupa fúnebre (hábito, mortalha ou pano), outros o tecido ou a cor do mesmo e, ainda, as três informações juntas. Assim, 25 índios foram envoltos em branco, um em preto e um em carmesim, em hábitos, mortalhas e panos cujo tecido variava entre chita, droguete, seda, algodão, linho e bretanha (ou bertanha). Ora consentindo, ora tolerando que as práticas cristãs penetrassem em seu cotidiano, os índios que viveram no sertão apadroado por Santa Ana entre o final do século XVIII e início do século XIX conseguiram sobreviver num tempo e num espaço que não eram mais seus. Seus espasmos de vida e de morte que obtivemos pelos assentos analisados nas páginas que antecedem este parágrafo, nos dão, todavia, uma percepção mais generalizada de como se relacionavam com a cultura ocidental onde tiveram que mergulhar. Interessa-nos, também, cruzando as séries demográficas com outros tipos de fontes, acessar o cotidiano dessas populações, através de um olhar com filigranas.

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4.2. Itinerários micro-históricos A inspeção a que procedemos nos assentos da Freguesia de Santa Ana, com a finalidade de perceber como os índios presentes nesse território comportavam-se, nos ritos cristãos, na qualidade de fregueses, nos proporcionou apenas um lado da história. Mesmo comentando alguns dos casos que encontramos dentro das séries populacionais formadas a partir dos livros de assento – para que não caíssemos, apenas, na armadilha do quantitativo –, os resultados apresentados têm caráter genérico. Isto porque são os números, nesse caso, que nos permitem inferir determinados perfis dos fregueses de Santa Ana e, dentre eles, da população indígena que habitava no seu território. Sentimo-nos atraídos, porém, a conhecer mais do que apenas o que os algarismos nos mostram, mesmo quando olhamos para as pessoas por trás deles. Momento em que nos interrogamos acerca do que mudou na vida das populações autóctones que sofreram os impactos do fenômeno da ocidentalização e viveram, no pós-Guerras dos Bárbaros, nas ribeiras do Seridó e afluentes, imersas no mundo colonial que gradativamente ia se construindo a partir do século XVIII. Para responder a essas afirmações, é necessário que seja reduzida a escala de observação nesse amplo território que é o sertão da Capitania do Rio Grande, centrando as nossas atenções na estratégia que a administração eclesiástica utilizou para gerenciar as áreas que iriam ser evangelizadas: a criação das freguesias. Os contornos da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó ainda sobejam nosso propósito nesse instante, até mesmo porque a produção do seu território já foi objeto de discussão no terceiro capítulo deste trabalho. Razão pela qual decidimos por um afunilamento maior em função da disponibilidade documental que será posteriormente comentada. Para buscar respostas à nossa indagação, escolhemos, como fio condutor, as histórias dos tapuias Anastácio e Domingas, do capitão Mateus de Abreu Maciel, do índio Tomé Gonçalves da Silva e do mestiço Policarpo Carneiro Machado. Deixamos de observar, assim, as estruturas territoriais da Freguesia de Santa Ana e os perfis populacionais dos seus habitantes, partindo para esquadrinhar as tramas e tensões das vidas de seus fregueses índios. O procedimento que estamos usando ampara-se na microhistória, tendência historiográfica que se baseia na redução da escala de observação, na análise microscópica e na prospecção e estudo intensivo das fontes sobre o objeto em questão87. Não tem a tentativa, contudo, de isolar os casos dos índios citados acima ou de tomá-los como típicos da Freguesia de Santa Ana. Em outras palavras, interessa-nos observar

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o exemplo e não o exemplar88, além de relacionar o individual com o coletivo e perceber as transformações em macro-escala. Isto porque concordamos com a perspectiva de que a pesquisa em escala microscópica envolve a necessidade de questionamentos sobre questões de ordem macroestrutural, senão “seria apenas uma coleção empírico-positivista (ingênua) de fatos, os quais o historiador não teria condições de aprofundar e nem qualificar”89. Infiltrandose pelas entrelinhas de inventários post-mortem, justificações de dívida, autos de contas, assentos paroquiais e testamentos, observemos com minúcia as trajetórias de Anastácio, Domingas, Mateus, Tomé e Policarpo, iniciando com o casal de tapuias.

4.2.1 Anastácio, Domingas, tapuias e curibocas: sobre a escravidão indígena Tivemos conhecimento da existência desses dois índios durante a leitura dos inventários post-mortem da Comarca de Caicó90, onde nos deparamos com o arrolamento e partilha dos bens deixados pelo defunto Crispim de Andrade Bulhões, processado na Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó em 173791. O inventário é um instrumento jurídico prescrito nas Ordenações Filipinas92 e que era realizado quando da morte de uma pessoa que deixasse bens a partilhar entre filhos menores, sendo o processo feito por ordem do Juiz dos Órfãos93. A análise dos inventários da Comarca de Caicó que foram produzidos no século XVIII nos permite visualizar, de maneira geral, dois blocos em que se dividiam os processos94: o arrolamento propriamente dito e a partilha. A primeira parte principiava com a autuação do escrivão, contendo o nome do inventariado, do inventariante, a fazenda onde residia e a ribeira onde estava situada; a folha de rosto, onde eram declarados os nomes dos herdeiros, suas idades e condições, bem como nomes dos co-herdeiros e netos, no caso de filhos do cabeça do casal já serem falecidos; termo de declaração e juramento do inventariante; termo de juramento dos louvados (avaliadores dos bens); descrição dos bens, arrolados em títulos (dinheiro, ouro, prata, cobre, estanho, ferro, latão, móveis, roupas, vacum, cavalar, cabrum, ovelhum, escravos, bens de raiz); aposição das dívidas ativas e passivas e sentença do juiz de órfãos sobre o processo avaliativo. Podiam compor essa primeira parte, ainda, a relação dos dotes que cada herdeiro casado havia levado da fazenda na época do matrimônio (em alguns casos, esses dotes ou meio-dotes eram incorporados ao monte, para serem partilhados; em outros, os herdeiros desistiam da herança, ficando apenas com o dote matrimonial); o testamento do inventariado, contendo as disposições da terça; o rol das despesas do funeral do defunto, assinado pelo

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pároco ou coadjutor da freguesia; petições de justificação de habilitação de herdeiros, geralmente, filhos naturais ou ilegítimos que recorriam ao juiz de órfãos para disputar uma parte da herança. Esses itens não pretendem tornar exaustiva a descrição da primeira parte do processo, já que, dependendo da realidade objeto do arrolamento, os mais diferentes tipos de textos poderiam ser anexados para dar visibilidade e concretude ao trâmite. A segunda parte do processo era dedicada ao auto de partilha, que iniciava com o termo de juramento dos partidores e prosseguia com a avaliação em termos monetários da fazenda inventariada. A soma de todos os bens inventariados mais as dívidas passivas e os dotes (ou meio-dotes) geravam o monte maior, de onde eram abatidas as dívidas ativas e as despesas do funeral (em alguns casos, inclusas nas dívidas ativas), originando o monte líquido. Quando o defunto deixava testamento, o monte líquido era dividido em três partes iguais: uma, a chamada “terça”, era destinada a cobrir as despesas anunciadas no testamento, ainda em vida (doações a irmandades e capelas, legados a afilhados ou parentes, dívidas a saldar, alforrias de escravos, por exemplo); outra, a meação, era destinada ao cônjuge e a outra, dividida em partes iguais para tantos quantos fossem os herdeiros incluídos na folha de rosto do inventário. Caso não houvesse testamento, o monte líquido era repartido em duas partes iguais, uma indo para o cônjuge (meação) e outra retalhada em partes iguais pelos herdeiros. Havendo herdeiros menores ou no caso do cônjuge ser demente (incapaz), o juiz de órfãos designava um tutor (na maioria das vezes, um parente próximo ou irmão mais velho) para cuidar dos seus bens e da sua multiplicação. Era este mesmo tutor que deveria vir a juízo, periodicamente (a cada três anos, geralmente), para dar conta de como estavam os órfãos, seus bens, sua multiplicação e quanto tinham despendido com sua educação e sobrevivência. Daí encontrarmos, em alguns inventários, diversos autos de contas em anexo, que somente cessavam quando os órfãos casavam ou se emancipavam. Outra peça importante que costuma aparecer encartada após o auto de partilha é a justificação de dívida: petição em que um dos credores do defunto (arrolado nas dívidas ativas) requeria ao juiz de órfãos lhe fosse saldada a dívida, apresentando testemunhas para reafirmar a obrigação que lhe era devida. O inventário se traduz, assim, como fonte de grande valia para o entendimento do passado colonial, já que proporciona uma informação recorrente – o arrolamento dos bens e a partilha entre os herdeiros –, desvelando “as questões da vida em família, as divergências, as disputas, os contornos afetivos das ligações dentro do lar e as amizades, que além das determinantes econômicas e sociais, influenciaram as estratégias familiares”95. Trata-se de

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documentos que expõem a público as fortunas individuais de homens e mulheres e, utilizando-se da comparação de Sheila Faria, são como que uma fotografia em que se observa determinado momento da vida material e imaterial de pessoas que não existem mais, senão conservadas nas memórias familiares ou nas caligrafias esmaecidas dos arquivos. É nessas caligrafias que encontramos Anastácio e Domingas. Esses dois índios moravam no sítio Pedra Branca, onde serviam como escravos para a família de Crispim de Andrade Bulhões e de Antonia Ferreira Batista, composta, no ano de realização do inventário do primeiro (1737), dos filhos José Ferreira Batista, de 24 anos; Antonio Ferreira Batista, de 22 anos; Maria de Andrade, de 18 anos, casada com o capitão José da Maia Rocha; Maria da Assunção, de 17 anos e Ângela, de 13 anos, além das órfãs Francisca e Luzia, de 12 e 6 anos, respectivamente. O monte maior dos bens deixados por Crispim de Andrade foi orçado em 367$600, valor considerado alto se atentarmos que o valor de uma cabeça de gado, avaliada durante a partilha, era de 1$500. Com o monte maior, portanto, poderiam ser compradas, na época, cerca de 245 cabeças de gado vacum. Não nos assustemos, todavia, com esses dados. As folhas estilhaçadas da descrição dos bens somente mencionam 205$000 distribuídos em 50 cabeças de gado vacum (entre grandes e pequenos, machos e fêmeas), 16 bestas de toda sorte (entre grandes e pequenas) e poldros. Pouco mais de 150$000 representavam os quatro escravos do sítio: os dois tapuias Anastácio e Domingas, já mencionados (avaliados, respectivamente, em 60$000 e 40$000) e os negros Custódio e Maria, ambos do Gentio da Guiné (que, na avaliação dos partidores, foram orçados em 32$000 e 25$000). Afora os semoventes e os escravos, o rol dos bens de Crispim de Andrade listou apenas duas canastras usadas (no valor de 1$600) e outro objeto, cuja descrição é impossível de ser lida pelo suporte do inventário estar esburacado, mas, que foi avaliado em 4$000. E uma dívida passiva no valor de 32$000, sendo devedora Ana de Oliveira. A julgar pela descrição do inventário – sem contar que o processo, por se tratar do mais antigo da Comarca de Caicó, encontra-se bastante estragado e corroído –, que não arrolou bens de raiz, Crispim de Andrade deveria ser foreiro do real proprietário da terra, que, infelizmente, não foi mencionado no texto do processo96. Assim sendo, deveria pagar ao dono do sítio, periodicamente (em geral, uma vez por ano), o valor por estar arrendando suas terras, que poderia ser liquidado através de uma quantia em dinheiro, bens ou serviços. Os moradores, geralmente, eram pessoas com baixa condição de vida, que, para sobreviver, dependiam de colonos que tinham mais posses, sobretudo, territoriais.

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Os documentos posteriores à partilha dos bens e que fazem parte do processo de inventário confirmam essa posição da família de Crispim de Andrade. Logo em 1738 a filha Maria da Assunção contraiu casamento com Luís Ferreira Fernandes, que, como ela, já tinha sido morador no sítio Pedra Branca, sendo filho de Miguel Dias Fernandes e de Simoa Gonçalves de Oliveira. Após o casamento foram morar na Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, de onde o marido dirigiu petição ao juiz ordinário e de órfãos para que fosse concedida a herança de Maria da Assunção, já que “com ela está vivendo de suas portas adentro e a alimentando com os seus poucos bens”. Três anos depois (1741) seria a vez de Ângelo José Guedes97, morador na Ribeira das Espinharas, requerer do juiz ordinário e de órfãos que lhe fossem concedidos os bens que cabiam por legítima à Ângela Ferreira, com quem se casara e estava “fazendo vida marital de suas portas adentro, tendo-a e mantendo-a de sua fazenda”. Em ambos os casos a justiça atendeu os pedidos, expedindo o formal de partilha das duas filhas de Crispim de Andrade e ordenando a entrega dos bens. Os dois filhos mais velhos deste último, em 1743, também deixaram claro em suas petições direcionadas à justiça que passavam por dificuldades econômicas. Nesse ano, José Ferreira Batista e Antonio Ferreira Batista requereram a sua emancipação, para poderem desfrutar dos quase 30$000 que tiveram de legítima paterna, estando residindo, à época, no sítio Mãe d’Água. José Ferreira, no requerimento ao juiz ordinário do Piancó, alegou ser “bastantemente pobre” e não ter com que sustentar-se e seu irmão, tal qual, mencionou ser “sumariamente pobre”. Ambos os pedidos foram atendidos e o filho mais velho, José Ferreira, ainda voltaria à Povoação do Piancó em 1747 para relatar, na condição de tutor das irmãs Francisca e Luzia – em substituição ao seu cunhado José da Maia Rocha, que migrara para Pernambuco – o estado em que se encontravam os seus bens. No caso de Crispim de Andrade, a maior probabilidade que se coloca é que o mesmo fosse vaqueiro do sítio Pedra Branca, considerando que a maior parte dos seus bens era de cabeças de gado. Atividade que exercia, provavelmente, junto com o trabalho compulsório dos dois negros da Guiné, Custódio e Maria, mais os dois tapuias já aludidos. Anastácio e Domingas são, dessa maneira, verdadeira preciosidade98, pois confirmam uma assertiva comum na historiografia recente acerca do sertão da Capitania do Rio Grande: a da utilização de mão-de-obra indígena – ao lado de mestiços e brancos pobres – na faina do pastoreio99. Ainda mais, neste caso, onde a mão-de-obra era compulsória, já que os dois tapuias encontravam-se dispostos, no rol de bens do finado Crispim de Andrade, no “título de escravos”, junto com os dois negros da Guiné. Isto indica outra singularidade: a de que a

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escravidão indígena existiu, ao lado da escravidão negra, pelo menos nas primeiras décadas em que a Ribeira do Seridó foi povoada com brancos. Perguntamo-nos, no ensejo, quais seriam as condições em que Anastácio e Domingas tinham sido escravizados? Afinal de contas, a legislação indigenista colonial – oscilante, hipócrita e contraditória para Beatriz Perrone-Moisés –, se fez conhecer através de três dispositivos legais que decretaram a liberdade dos nativos em 1570, em 1609 e em 1680, isso para não mencionarmos a de 1757, no contexto das reformas pombalinas. Vejamos um exemplo. A lei de 1570, conquanto apregoasse a liberdade dos índios, aceitava a escravidão, desde que fosse decorrente das “guerras justas”100 e dos “resgates”101. Em 1609, para fazer cessar as escravizações ilícitas, nova lei declarou livres todos os índios do Brasil – instrumento que seria revogado parcialmente com uma lei em 1611, restaurando a escravidão dos nativos capturados em “guerra justa” confirmada por El-rei102. Todo esse vai-e-vem era fruto, em parte, de pressões políticas exercidas, a todo tempo, pelos jesuítas e pelos colonos, em razão de que a Coroa hesitava na maneira como elaborava sua legislação, ao tentar conciliar projetos incompatíveis, embora igualmente importantes para os seus interesses. Os gentios cuja conversão justificava a própria presença européia na América eram a mão-de-obra sem a qual não se podia cultivar a terra, defendê-la de ataques de inimigos tanto europeus quanto indígenas, enfim, sem a qual o projeto colonial era inviável103.

Em se tratando de Anastácio e Domingas, a proximidade cronológica do inventário de Crispim de Andrade (1737)104 com os últimos eventos da resistência indígena na Capitania do Rio Grande, datados da década de 20 do século XVIII, nos instiga a pensar que esses dois nativos teriam sido cativados durante as Guerras dos Bárbaros, considerada, desde os anos de 1680, “justa”105. Um primeiro indicativo dessa situação encontra-se na forma de nomear esses escravos como tapuias, ou seja, o genérico colonial utilizado para dar nome aos índios que habitassem o sertão e que falassem a língua travada, por vezes, dependendo do seu comportamento frente às tentativas de cristianização, chamados de bárbaros. Outro indicativo é o fato de que havia um certo incentivo para a escravatura, em larga escala, dos indígenas aprisionados nas pelejas ditas “justas”. Segundo a Carta régia de 25 de outubro de 1707, do montante obtido com a venda dos escravos adquiridos nos combates se deveria pagar “a despesa feita na guerra, os impostos ‘quintos’ que tocam à Coroa ‘e sobrando alguma coisa, se há de dar jóia ao governador e o mais repartido pelos cabos, oficiais e soldados’ ”106 (grifos nossos). Traço marcante dessa repartição é um inventário comentado

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por John Monteiro em seu estudo acerca da escravidão indígena em São Paulo. Trata-se do arrolamento de João Almeida Naves, de Parnaíba, feito em 1715, onde aparece, dentre os seus bens, “uma tal de Ana de Pernambuco, tomada evidentemente na Guerra dos Bárbaros, ‘a qual ainda que parda é escrava como tal custou 300 e tantas oitavas de ouro’ ”107. Embora seja mencionada como parda (provavelmente, mestiça com ascendência autóctone), o seu exemplo nos dá a medida de como os índios cativados nas guerras de despovoamento do sertão do Rio Grande foram parar em diversos pontos da América Portuguesa. Foge à nossa compreensão, devido às poucas referências que o texto do inventário nos fornece – nem mesmo as idades desses tapuias as traças nos deixaram saber – a forma pela qual Crispim de Andrade os adquiriu: através de compra em alguma praça ou como reparte de guerra, se ventilarmos a hipótese do defunto ter tomado parte, em vida, de algum dos terços que foram enviados pela Coroa para o combate aos bárbaros nas ribeiras do sertão. Um problema que nos avizinhou, nesse sentido, foi o fato de Crispim de Andrade, Anastácio e Domingas somente nos serem conhecidos através do processo de 1737. Cruzamos seus nomes nas outras fontes manuscritas analisadas, mas, nada encontramos. Presumimos, pelos indícios deixados no inventário, que a família tenha se mudado, após a morte do pai, para algum lugar nas proximidades da Povoação do Piancó108. Entretanto, a Freguesia de Santa Ana conheceu outros índios que, dada a posição que ocuparam, também devem ter se ocupado dos afazeres da pecuária109. É o caso de Agostinho, índio forro que era casado com a negra Paula, escrava de propriedade de João Garcia de Sá Barroso, que compareceram à Capela da Serra Negra, em 1804, para batizar a filha Inácia110. O fato de ser casado com uma escrava e de ter o apositivo forro no seu nome indica que Agostinho encontrava-se enredado pela teia das relações de trabalho no sertão, possivelmente trabalhando como vaqueiro da fazenda de João Garcia de Sá Barroso. Caso curioso, também, é o de José Pereira de Souza, que prestou depoimento, junto com os pardos Luís Teixeira de Melo e Antonio José de Azevêdo em uma justificação de dívida procedida a propósito do inventário de Manuel Marques do Nascimento, em 1789111. Na assentada das testemunhas, o escrivão do juízo grafou, após o nome de José Pereira de Souza, “com casta da terra”, expressão aplicada, no século XVIII, para designar índios112. Ele era, à época, septuagenário, e casado, morando na Ribeira das Espinharas, onde vivia “de ser vaqueiro”. Aqui, além da referência ao trabalho livre do índio José Pereira, o encontramos perante o aparelho judiciário colonial e jurando aos Santos Evangelhos ao dar seu testemunho sobre uma dívida – fato que, por si só, nos leva a inferir que a atividade de vaqueiro ou sua condição de ser “casta da terra”

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não lhe tirou a capacidade de agenciar sua própria vida, oferecendo seu conhecimento, junto com dois pardos certamente conhecidos, para a resolução de uma dívida em juízo. Se Agostinho e José Pereira gozavam das benesses do trabalho livre – o que não quer dizer que não fossem dependentes dos senhores de terra das ribeiras onde moravam – o mesmo não aconteceu com os escravos que lidavam com o gado ou no eito. Referimo-nos aos curibocas, vocábulo que, com diversas variações nos tempos coloniais113, designava o mestiço cuja parte da ascendência era indígena. Stuart Schwartz, ao discutir as hostilidades, interações e miscigenação ocorridas entre negros e índios durante os tempos coloniais, assegura que os termos tapamunhos (em tupi, para designar os primeiros africanos chegados ao Novo Mundo) e negros da terra (que se referia aos cativos indígenas) foram sendo suplantados, gradativamente, por novas terminologias. Assim, cafuzos, curibocas e caborés foram categorias usadas pelos colonos para remeterem aos descendentes mestiços fruto do contato afro-índio, evidência de que o “regime colonial apresenta uma tendência à criação de novas categorias sociais e espaciais em que o nascimento, status hereditário, cor, religião e concepções morais contribuíram para a criação de categorias étnicas ou pseudo-raciais com atributos definidos114”. Tomemos, como uso dessas categorias, o exemplo de uma descrição da capitania de São José do Piauí, datada de 1772, em que o ouvidor Antonio José de Morais Durão classificava os tipos sociais daquela capitania da seguinte maneira: Vermelho se chama na terra a todo índio de qualquer nação que seja; mameluco ao filho de branco e índia; caful ao filho de preto e índia; mestiço ao que participa de branco, preto e índio; mulato ao filho de branco e preta; cabra ao filho de preto e mulata; curiboca ao filho de mestiço e índia; quando se não podem bem distinguir pelas suas muitas misturas se explicam pela palavra mestiço o que eu faço, compreendendo nela os cabras e curibocas 115 (grifos nossos) .

Pelas palavras do ouvidor, percebemos que, além de dar nome aos escravos filhos de mestiços com índias, englobava toda a sorte de cativos cujo complexo grau de miscigenação impedia, no contato imediato, a sua distinção. Câmara Cascudo, em análise do perfil da população do Rio Grande do Norte, considerou curiboca como sendo sinônimo de caboclo, resultante da mistura entre negros e índios, enquanto que mameluco116 apontaria o resultado do cruzamento entre brancos e nativos. Os mamelucos teriam sido “a maior porcentagem de vaqueiros”, enquanto que, os caboclos ou curibocas teriam ficado conhecidos na figura do “pequeno plantador de roçaria”117. Opinião, todavia, superada pela historiografia recente, que

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aponta os mestiços com ascendência indígena, fosse com negros ou brancos, como trabalhadores, indistintamente, das lavouras e da pecuária118. Na Freguesia de Santa Ana a primeira referência a escravos curibocas que encontramos está encartada no inventário procedido na Cidade do Natal em 1772 em relação aos bens do defunto Manuel Ferreira Borges119. Este, que em vida fora casado com Juliana Vieira de Melo, morava com a família como arrendatário na propriedade de Antonio Garcia de Sá Barroso, como se depreende das dívidas do casal, onde constava a obrigação de 5$760 pela “renda do sítio em que mora”120. No monte maior do casal, orçado em 470$490, além de bens de ouro, cobre, cavalar, cabrum, ovelhum e móveis de casa figuravam sete cativos (três crioulos, uma crioula, uma mulata, uma cabra e uma preta do Gentio da Guiné). Entretanto, na relação dos dotes que o co-herdeiro José da Costa Lopes levara do defunto, na ocasião em que casou com Maria Borges (filha de Manuel Ferreira Borges), constava uma escrava curiboca chamada Florência. Escrava que certamente ajudava dona Maria na lida diária na Serra do Cuité, onde residia, pelo menos, até o ano de 1801, quando faleceu José da Costa121. Em 1819, a partilha amigável dos bens deixados por dona Josefa de Araújo Pereira (2ª)122, falecida em virtude de chagas lazarinas123, arrolou, dentre os cativos, o escravo Manuel, curiboca, de 14 anos, avaliado por 120$000. Dona Josefa, que era casada com o português José Ferreira dos Santos, residia no sítio Picos de Cima, Ribeira do Acauã. Mas era possuidora, também, de partes de terras nos sítios da Carnaúba e do Ermo, ambos de criar gados, situados nas plagas do rio Carnaúba, afluente do Acauã, além de duas glebas na Serra do Cuité, destinadas à plantação de lavouras de milho e de mandioca124 (que, juntas, valiam em dinheiro mais que o dobro dos três sítios de pastoreio). Provavelmente o curiboca Manuel e os demais escravos (uma crioula de 21 anos, prenha; uma cabra, de 13 anos e um crioulo de 12 anos) deveriam dedicar-se mais ao cultivo das roças, vez que o inventário apontou a presença de apenas quatro cabeças de gado vacum e três de cavalar nos Picos de Cima. Em outra ribeira da Freguesia de Santa Ana, a do Sabugi, foi realizado, em 1791, o inventário dos bens deixados por João Álvares de Oliveira, que foi casado com dona Antonia Corrêa de Barros125. Também aqui se repete a situação traçada no parágrafo anterior: o casal possuía propriedades territoriais de duas naturezas, uma destinada ao criatório (o sítio Olho d’Água, na Ribeira do Sabugi) e outra onde se plantavam lavouras, na Serra do Teixeira, avaliadas, respectivamente, em 700$000 e 50$000. Malgrado a supervalorização do Olho d’Água, somente habitavam nos seus campos quatro cabeças de gado vacum e sete de cavalar. A presença de aviamentos junto aos bens do casal (roda de moer mandioca com seu cobre e

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veio de ferro; prensa; banco; forno; cochos) indica que o sítio na chã da serra era bastante utilizado para o cultivo de lavouras. A maioria, senão a totalidade, dos vinte e um cativos listados no inventário deveria trabalhar nas roças do Teixeira: mulatos, cabras, angolas, crioulos e um curiboca, José, nascido em 1789. A escravidão indígena será retomada adiante, quando percorrermos os labirintos da história de Bibiana da Cruz e de Policarpo Carneiro. Antes disso, conheçamos dois índios com histórias bastante incomuns.

4.2.2 Mateus de Abreu e Tomé Gonçalves: vassalos de El-rei Matriz de Santa Ana do Seridó, 09 de janeiro de 1799, 8 horas da manhã. Se fosse possível voltarmos no tempo, além de nos encontrarmos no penúltimo ano do século XVIII, presenciaríamos a cerimônia do casamento do índio José Vidal de Brito, solteiro, com Joana Maria da Conceição, viúva que havia ficado pelo falecimento de Manuel Pereira da Silva126 e residente na Serra do Cuité. Detalhe: José Vidal era filho do índio Mateus de Abreu Maciel, capitão, à época falecido, e de Maria Dias. A primeira vez que examinamos esse registro ficamos estupefatos com a situação de um índio ter sido referido, no registro da freguesia, com o título de capitão. Pensamos, igualmente, que se tratasse de parente de Cosme de Abreu Maciel, proprietário, no século XVIII, da data de terra do Rossaurubu, dadas as aparências dos sobrenomes. Entretanto, até o momento, não encontramos evidências desse parentesco127. Mateus de Abreu Maciel morreu em 25 e foi enterrado em 26 de março de 1793, no corpo da Matriz do Seridó, proveniente de morte repentina, quando tinha 86 anos, pouco mais ou menos128. Sua esposa, a índia Maria Dias, lhe sobreviveu, estando presente no casamento do filho José Vidal, seis anos mais tarde. Quanto ao título de capitão, uma primeira hipótese que sugerimos é a de que o índio Mateus fizesse parte do Corpo de Ordenanças da Vila Nova do Príncipe, já que este existe, pelo menos, desde 1748129. Não é do nosso conhecimento que houvesse impedimento aos índios de entrar para as Ordenanças, tropas de 3ª linha cujo recrutamento se fazia no âmbito das freguesias junto à população masculina entre 18 e 60 anos, desde que ainda não tivesse sido requisitada pelos Regimentos das Capitanias (1ª linha) ou pelas Milícias (2ª linha). Esses corpos militares “Possuíam forte caráter local, diferentemente das milícias, não podendo ser afastados dos locais de moradia. (...) constituíam, na verdade, uma espécie de arrolamento automático de toda a população para as situações de necessidade militar”130. Situados no âmbito das vilas, subdividiam-se em distritos, os quais eram comandados por um

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capitão, que deveria prestar contas da ordem pública ao capitão-mor da vila. Provavelmente era nessa instância que o índio Mateus estava colocado. No entanto, ele tinha mais ou menos 86 anos quando morreu, o que o isentava de compor as Ordenanças. Não podemos descartar, também, a possibilidade do índio Mateus de Abreu ter migrado de uma das vilas do Rio Grande originadas de missões religiosas e chegado ao Príncipe conduzindo o título de capitão. Maria Regina Celestino de Almeida, discutindo o papel das lideranças indígenas no Rio de Janeiro, salientou que a política empreendida pela Coroa foi de valorizar os principais nativos, conservando-os em suas posições e atribuindolhes títulos e regalias, como o de capitão-mor da aldeia (no caso, das missões)131. No âmbito das vilas instituídas pelo Diretório Pombalino no Rio Grande do Norte, o trabalho de Fátima Lopes confirma esse aproveitamento dos líderes nativos, desta feita, como intermediadores entre o mundo colonial e o indígena, por meio da concessão de honrarias e de cargos militares, como o de capitão, e civis, como o de vereador – a serem exercidos nos antigos espaços das missões, a partir da década de 1760 alçados ao status de vilas132. Infelizmente as nossas investidas por diferentes tipos de documentação nos arquivos do Seridó apenas localizaram o registro do enterro do capitão Mateus e o de casamento do seu filho José Vidal. Não sabemos se José Vidal e Joana Maria tiveram filhos e onde os criaram, bem como onde terminaram suas vidas. Diferentemente do que aconteceu com o índio Tomé Gonçalves, sobre o qual existem bem mais informações encerradas na documentação colonial. Encontramos Tomé Gonçalves a primeira vez no ano de 2001, quando fazíamos a organização de parte dos documentos avulsos do 1º Cartório Judiciário da Comarca de Caicó133. Dentro de um códice reunindo folhas esparsas de inventários, acessamos o conteúdo de um auto de arrematação de duas escravas (a “mulatinha” Ana e a “cabrinha” Tereza) feito na Vila Nova do Príncipe em 1812. Nesse auto, figurou como porteiro do auditório a pessoa de Tomé Gonçalves da Silva, que assinou com uma cruz por não saber ler e nem escrever134. Posteriormente fizemos a leitura de um pregão de bens executado pelas ruas públicas da mesma Vila do Príncipe no mesmo ano, tendo como encarregado, também, o dito Tomé Gonçalves135. Até então, desconhecíamos o fato desse porteiro ser índio e talvez nunca soubéssemos, não fosse nosso contato com os assentos da Freguesia de Santa Ana. Esses, fornecidos pelos curas, foram os documentos onde a origem de Tomé Gonçalves veio à tona: era índio e natural da Vila de Mecejana, na Capitania do Ceará. Diferentemente dos demais índios que encontramos nos livros da Freguesia de Santa Ana, para quem não conseguimos encontrar mais que dois descendentes por casal, no caso de

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Tomé Gonçalves encontramos seis filhos do seu casamento com Maria Egipcíaca da Silva – que, em alguns dos assentos, aparece como Maria Ciriaca da Silva. Pouco sabemos a respeito dela, a não ser que era natural da Freguesia de Santa Ana e que, ainda no final do século XVIII, compareceu à Matriz do Seridó para dar sepultura aos seus párvulos José, em 1789 (tinha, então, pouco mais de um ano)136 e Teresa, em 1792137. Outro filho, Manuel Pereira Raimundo, contraiu casamento em 1806 com Simplícia Maria, também natural do Seridó e filha de Joaquim José de Santa Ana e de Vicência Pereira138, no mesmo ano em que Tomé Gonçalves e Maria Egipcíaca viram nascer a pequena Clara, batizada na Matriz de Santa Ana. Foi apadrinhada por Antonio Ferreira Barreto, solteiro, e por sua mãe, dona Antonia Maria Cortês, moradores na fazenda Pedra Branca139 – a mesma onde os trabalharam os tapuias Anastácio e Domingas no começo do século XVIII –, vizinha à Suçuarana. Era nesta fazenda, situada a pouca distância da Vila do Príncipe e de onde se divisava a belíssima visão da colossal Serra do Samanaú, que moraram Tomé Gonçalves e sua família. Não sabemos se Clara sobreviveu, já que, pelo menos nos livros da freguesia, não encontramos mais seu nome nas relações posteriores. Mais de dez anos após o seu nascimento outra filha de Tomé Gonçalves e Maria Egipcíaca, chamada Florência Maria da Conceição, veio a casar-se. Na cerimônia, oficiada na Matriz do Seridó numa manhã de fevereiro de 1819, Florência contraiu matrimônio com o pardo José Ferreira, escravo da viúva Luzia Fernandes, ato que foi testemunhado pelo pardo Caetano Soares Pereira de Santiago e por Manuel da Paixão140. Um ano depois seria a vez de Joaquina Maria da Conceição, irmã de Florência, abraçar a vida marital, recebendo as bênçãos da Igreja na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos do Jardim das Piranhas, onde aceitou como seu esposo Manuel José dos Santos, pardo, natural da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação da Cidade do Rio Grande. O irmão mais velho de Joaquina, Manuel Pereira Raimundo, testemunhou a cerimônia junto com Dionísio Corrêa Jardim141. Percebemos, através da análise dos casamentos acima, que Tomé Gonçalves conseguiu interagir com pessoas de diferentes origens, formando uma espécie de teia em que estavam conectados seus filhos índios, pardos e mesmo brancos – não é forçoso lembrar que ele e Maria Egipcíaca eram “compadres” de dona Antonia Maria Cortês, branca, senhora da fazenda Pedra Branca. Examinando os livros de assento de enterro da freguesia do período em que o casal viveu no Seridó – do final do século XVIII até a década de 1840 – encontramos outros fregueses que habitavam a Suçuarana142 e que, curiosamente, tinham sobrenomes assemelhados ao de Tomé: Inácio Gonçalves da Silva e Maria Gonçalves de Jesus. O

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primeiro, casado com Joana Maria, sepultou dois filhos – Manuel, com oito dias de nascido, e Ana, com um ano e dois meses – no corpo da Matriz do Seridó no mês de agosto de 1792143. Em se tratando de Maria Gonçalves, os documentos paroquiais não indicam se era casada ou se tinha filhos legítimos. Todavia, desde o ano de 1786, aproximadamente, criava uma índia, Teresa, que foi exposta em sua casa e que morreu em 1792, sendo enterrada no corpo da Matriz de Santa Ana144. Acreditamos não ser mera coincidência o fato dos únicos moradores do mesmo lugar que Tomé Gonçalves e Maria Egipcíaca, num largo espaço de tempo, terem os mesmos sobrenomes do primeiro e um deles – Maria Gonçalves – ter abrigado, em sua residência, uma índia abandonada por pais ignorados. Daí supormos que a teia de sociabilidade que Tomé Gonçalves traçara entre os filhos e seus cônjuges era mais complexa, conectando, também, esses outros moradores da Suçuarana, quiçá seus parentes próximos. Uma pergunta que nos fizemos, ao adentrar na história de vida de Tomé Gonçalves, diz respeito à sua procedência. O que teria feito ele migrar da Vila de Mecejana para o termo da Vila do Príncipe? Uma resposta poderia estar ligada ao primeiro surto exportador do algodão que se sucedeu na América Portuguesa, a partir dos anos 70 do século XVIII145. Momento em que os Estados Unidos, tradicionais fornecedores de algodão para o mercado inglês – cada vez mais ávido por matéria-prima para o provimento de suas fábricas têxteis, cuja preeminência consolidava-se com a Revolução Industrial –, encontravam-se atravancados com as suas guerras de independência. Na América Portuguesa, especialmente no Maranhão e depois nas outras capitanias do Norte, o algodão que era usado apenas “para a confecção dos tecidos de que se servia a massa da população colonial”146 foi requisitado para suprir o mercado internacional. O resultado é que o algodão da colônia lusitana passou a ser cultivado em larga escala, sendo exportado para a Inglaterra através de Portugal. No Rio Grande, segundo Denise Mattos Monteiro, a expansão do cultivo do algodoeiro trouxe desenvolvimento comercial para a capitania, além de haver diversificado a economia, até então quase que centrada principalmente na atividade pecuarística147. As exportações decorridas desse surto algodoeiro começaram a cessar, todavia, decorrido o fim das guerras de independência dos Estados Unidos, em 1783, quando a produção do algodão americano voltou a ter o seu papel de abastecedora do mercado interno. Tomé Gonçalves e também outros índios provenientes de lugares da Paraíba, do Ceará e do próprio Rio Grande, assim, teriam migrado para a Freguesia de Santa Ana com a finalidade de plantio e coleta do algodão, que podia ser desenvolvido em pequenas

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propriedades e através do trabalho livre, manifestado em diversas formas de arrendamento (o parceiro, o foreiro/arrendatário e o morador de condição)148. Os inventários post-mortem da Comarca de Caicó não mencionam expressamente as roças de algodão nos catálogos de bens, mas, indicam que havia, como afirmado anteriormente, o seu cultivo para atender a uma “agricultura de auto-abastecimento”149. Uma evidência disso, por exemplo, é a presença de um tear de fabricar tecidos de algodão na lista dos bens da fazenda da Acauã, de Vicência Lins de Vasconcelos, em 1786150, assim como a existência de um artefato dessa mesma natureza na fazenda Serra Negra, sita na Ribeira das Espinharas, em 1822151. Não podemos deixar, também, de mencionar referências a fregueses que tinham dívidas a saldar com algodão em arroba152 ou em pluma153, indicativo da importância do produto como moeda de troca no sertão e, acima disso, como gênero de exportação da freguesia154. Outro elemento que poderia ter influenciado a migração de Tomé Gonçalves seria a fuga do controle do Diretório dos Índios. Mecejana, de onde se originou, era o antigo aldeamento missionário de Paupina, erigido em vila em 1760, em decorrência do conjunto da legislação pombalina de liberdade dos índios155. No âmbito de vilas como Mecejana, a população indígena passava por um gradativo processo de condução até o estágio de “civilizada”, quando era obrigada a trabalhar compulsoriamente, de preferência para os colonos, com remuneração vil e a incorporarem a cultura ocidental, especialmente a língua portuguesa, a religião católica e a residência em um espaço planejado e monitorado pelos diretores. Ou seja, por trás da liberdade concedida aos índios através da legislação exarada pelo Marquês de Pombal estaria um conjunto de atitudes que cerceavam a maneira nativa de viver, sobretudo as práticas de deslocamentos para a caça em terrenos fora da vila e de cultos cuja origem estava assinalada antes da chegada dos missionários. Além disso, essas atitudes também tinham como meta incorporar os índios no estatuto de vassalos de El-rei, o que significava, em outras palavras, a obrigatoriedade de sua inserção no universo do trabalho – fosse para manter sua própria sobrevivência, fosse para executar serviços, nas vilas e fora delas, aos colonos, recebendo, por isso, miseráveis remunerações em relação ao que era pago aos brancos156. No Príncipe, erigido oficialmente em 1788, não existia a figura do diretor, característica dos núcleos urbanos nascidos sob a égide da legislação pombalina, mas, tão somente, as autoridades próprias de uma vila setecentista: o pároco, o capitão-mor, o juiz ordinário e de órfãos e os vereadores que compunham o Senado da Câmara. Não queremos afirmar, com isso, que, para as minorias sociais da época morar na Vila do Príncipe ou nas

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suas redondezas fosse ter acesso a uma vida pródiga. As condições eram semelhantes às que haviam em outras vilas coloniais, inclusive reguladas pelos mesmos dispositivos legais. A diferença é que os índios que moravam na Freguesia de Santa Ana não experimentaram a mesma coação que tinham que passar nas vilas do diretório, em especial no que concerne ao trabalho. Pelo contrário, tinham como alternativas trabalhar nas lides do criatório, na lavoura de subsistência (cultivada nas chãs das serras) ou de exportação (a do algodão, expandida no fim do século) e ainda em pequenos ofícios no tecido urbano, quando dispunham de habilidade para isso. Nem sempre, todavia, os índios – naturais da freguesia e imigrados de outras plagas – ajustavam o seu modo de vida ao ritmo acelerado do trabalho branco, recaindo em situações de pobreza, miserabilidade e errância, como discutimos anteriormente a partir dos registros paroquiais. Acreditamos que esta não foi a situação de Tomé Gonçalves, que constituiu família com uma freguesa de Santa Ana – provavelmente índia – e morou na fazenda da Suçuarana, considerando, ainda mais, que exerceu um ofício remunerado na Vila do Príncipe, o de porteiro do auditório do Senado da Câmara157. Na hierarquia dos cargos públicos coloniais, discutida por Arno Wehling e Maria José Wehling, o de porteiro ocupava o setor inferior, junto com escrivães de meirinhos, contínuos, guardas-menores, meirinhos das câmaras, patrões de escaler, guardas-marinhas, guarda-livros, médicos, barbeiros e procuradores de índios158. Eram pré-requisitos gerais, para a investidura de um cargo desses, ser “maior de vinte e cinco anos ou emancipado, ser mentalmente capaz, ser católico e pertencer ao sexo masculino”159, acrescidos de itens mais específicos dependendo da habilitação a que se desejava. No caso de Tomé Gonçalves, acreditamos que o mesmo deveria ter algum conhecimento, ainda que rudimentar, de aritmética – embora não soubesse ler e escrever, assinando com uma cruz nos documentos – já que, ao porteiro de auditório, no Príncipe, era imputada a função de cuidar dos pregões. Estes, determinados pelo juiz ordinário e de órfãos, aconteciam quando era premente a necessidade de leiloar, em público, bens – geralmente semoventes, incluindo escravos – para o pagamento de dívidas que vinham à tona por ocasião da abertura de processos judiciais, a exemplo de ações cíveis e inventários post-mortem. Dessa forma, é possível que Tomé Gonçalves soubesse o básico das quatro operações matemáticas. Revirando os papéis da Comarca de Caicó e os da Comarca de Acari encontramos Tomé Gonçalves exercendo o ofício de porteiro do auditório em inventários de 1795, 1798, 1805, 1809, 1810, 1813, 1814 e 1822160. Claro que não estamos diante de todos os pregões

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que o índio participou em vida, mas, de fragmentos que apareceram em anexo aos inventários post-mortem, dando conta das suas atividades no Príncipe. Um bom exemplo de como ele atuava podemos extrair do arrolamento dos bens que ficaram pelo falecimento do português José Ferreira dos Santos, da fazenda Picos de Cima, em 1805161. O inventário foi julgado por sentença de 08 de dezembro de 1805, do juiz Tomaz de Araújo Pereira, tendo ficado separados escravos e gado para o pagamento de uma dívida que o defunto tinha com um morador da Praça de Pernambuco. Em maio do ano posterior (1806), na Vila do Príncipe, compareceu o citado credor, Bernardo José Lopes de Morais, a fim de obter o pagamento do que lhe devia o defunto. Afirmou, em sua petição, que a dívida de José Ferreira dos Santos, no valor de 331$263, era decorrente de um ajuste que fizera com ele, em 1803, objetivando adquirir uma fazenda. O pernambucano apresentou à Justiça, como testemunhas da formalização da dívida, três homens brancos e casados: os capitães Manuel Antonio Dantas Corrêa (cunhado do defunto José Ferreira) e Francisco Gomes da Silva (concunhado do defunto e natural de Pernambuco) mais José Ferreira Barreto, esposo de dona Antonia Cortês – coincidentemente, natural do Recife e madrinha de uma das filhas de Tomé Gonçalves e Maria Egipcíaca no mesmo ano de 1806. Em função do requerimento de Bernardo Lopes, foi feito o pregão público dos bens que haviam sido separados pelo juiz para a quitação da dívida, objetivando sua venda para quem desse o maior lance. O pregão aconteceu na Praça Pública do Pelourinho da Vila Nova do Príncipe, onde, no período de 28 de maio a 07 de junho de 1806 o porteiro Tomé Gonçalves colocou os bens em hasta, de dia à noite, na presença do juiz de órfãos, capitão Miguel Pinheiro Teixeira, e do escrivão Manuel Pereira da Silva Castro. Nenhum interessado apareceu nesses onze dias para adquirir as sete cabeças de gado vacum, cinco de cavalar e os três escravos (Maria e Ana, crioulas, de 8 e 7 anos, respectivamente, além de Domingos, do Gentio de Angola, que tinha 25 anos) cujo equivalente em dinheiro deveria ser pago a Bernardo Lopes. Somente em 08 de junho ocorreu um lance – o primeiro e único – nos bens, curiosamente, por um dos partidores que cuidou da repartição dos bens deixados pelo defunto José Ferreira, o crioulo forro Caetano Soares Pereira de Santiago. Dado e arrematado o rol de bens, Caetano Soares depositou a quantia de 333$800 em juízo no dia 10 de outubro de mesmo ano, passando a ser possuidor, oficialmente, das reses, cavalos e cativos, ao passo que o juiz expediu o pagamento da dívida a Bernardo Lopes162. Tomé Gonçalves morreu em 1836, vitimado por “retenções de urinas”, sendo o seu corpo sepultado na Matriz do Seridó163. Maria Egipcíaca, sua mulher, deixou de existir seis

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anos depois (1842), com morte causada por moléstia de peito, sepultando-se, também, no mesmo templo164. A história desse índio, que deixou o Ceará para morar na Freguesia de Santa Ana, onde exerceu o ofício de porteiro, pode nos ajudar a compreender as possibilidades de sobrevivência dessa população em meio ao mundo colonial. No caso de Tomé Gonçalves, o exercício de cargo público provavelmente lhe deu um certo destaque em relação à comunidade onde vivia, aproximando ele e sua família do mundo dos brancos. Não sendo incomum, dessa maneira, o fato de que os registros paroquiais, a partir do início do século XIX, gradativamente deixassem de lhe chamar de índio, omissão que se estendia para os seus filhos, quando muito, tidos como pardos. É sobre outro pardo, o fazendeiro José Carneiro, que discorreremos de agora em diante.

4.2.3 José Carneiro, Bibiana da Cruz e Policarpo Machado: mestiçagem Da Vila do Príncipe passemos à Vila Nova de Pombal, da Capitania da Paraíba do Norte. Ali, em 1774, foi realizado o inventário dos bens de José Carneiro Machado165. Ocasião em que um filho natural do defunto veio à Justiça para reclamar sua herança. No calhamaço de 165 páginas, portanto, encontra-se narrada a trajetória dos seus herdeiros, incluindo o filho natural Policarpo Carneiro Machado, após a passagem de José Carneiro para outro mundo. Mais que isso: o processo mostra, com uma riqueza de detalhes, como era o cotidiano de uma família envolvida com a criação de gado no sertão das Capitanias do Rio Grande e Paraíba – isto porque, como veremos, as histórias de vida de José Carneiro e seus descendentes encontram-se assentadas na fronteira entre esses dois territórios. José Carneiro era um abastado fazendeiro, a julgar pelos bens deixados, que, somados chegavam ao montante de 3:453$640, quantia equivalente, na época, a mais de 2.300 cabeças de gado. Bens esses que iam desde dinheiro, ouro, prata, cobre, estanho, ferro, móveis (incluindo roupas), 10 escravos, 550 bovinos, 112 eqüinos, 80 caprinos, 40 ovinos e meia légua de terra na fazenda Santo Antonio, situada no riacho Quipauá. Deixou viúva – Leonor Álvares do Monte – e quatro filhos desse casamento: João Damasceno Carneiro Machado, Joaquim Carneiro Machado, Eufrásio Carneiro Machado e Antonia Maria do Monte. É nesse ponto que a história de Policarpo aflora: ele era filho natural de José Carneiro quando este ainda era solteiro e assistia no sertão, sendo fruto do seu relacionamento com uma índia, Bibiana da Cruz. Por ocasião da morte do seu pai e da feitura do inventário, Policarpo Carneiro Machado recorreu à Justiça Pública para pleitear os direitos de filho e, assim, ter o

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seu quinhão garantido na partilha da fazenda Santo Antonio. O aparecimento de um filho natural no processo de partilhamento dos bens de José Carneiro nos alerta para a importância do inventário post-morten enquanto fonte privilegiada para o estudo da mediação cultural, dos intercursos sexuais e mesmo da mobilidade espacial no Período Colonial. A história de vida desse mestiço é, no mínimo, intrigante e curiosa. Quando encaminhou petição a Gonçalo da Rocha de Carvalho, juiz de órfãos da Vila Nova de Pombal, deixou de lado seus medos e vergonhas – se é que os tinha –, expondo sua condição de fruto da mestiçagem perante a Lei. Em 22 de outubro de 1774 disse ao juiz que, para poder demonstrar ser filho do defunto José Carneiro Machado – de quem se procedia ao inventário naquela vila – e, assim, ter direito à herança junto com os filhos legítimos tidos do casamento do seu pai com Leonor Álvares do Monte, necessitava justificar perante a Justiça o que passava a expor em oito itens: 1 – (...) que elle he filho natural do dito defunto Joze carneiro Machado havido de sua Mai Bibiana da Cruz descendente de Mai de cabello corrido a qual era mulher solteira sendo o dito defunto Joze Carneiro tão bem solteiro (...) 2 – (...) que o dito Joze Carneiro defunto sendo mosso e solteiro tratava do commercio de cavalarias que comprava para as Minas e fazia assistencia continuada por varios annos em caza do defunto commissario Teodoro Alvares de Figueiredo em cuja caza tão bem assistia a titullo de captiva a Mãe do Justificante sendo forra 3 – (...) que o dito Pay do Justificante tratava por copulla carnal com a dita Mai do Justificante sem que nesse tempo se conhecesse a ditta outro homem hera lhe quem a mantia do vestuario necessario e nascendo o Justificante ella o deo ao ditto por seofilho e elle o aseitou por tal no que são he devido e he notório 4 – (...) que elle em caza do commissario Teodoro Alvares de Figueiredo como a titulo de captiveyro somente quanto a sugeição e não por verdadeiramente sella escrava antes promulgada a nova Ley de cincoenta e nove ficado de todo a Mãe do Justificante sem sugeição e conseguintemente liberto pella mesma Ley que (...) o Justificante sogeição do captiveyro e a ditta sua Mai certamente os forraria o dito defunto seu Pay 5 – (...) que o ditto defunto sempre tratou ao Justificante em publico e particular lançando lhe atenção como filho doutrinando-o e mandando-o ensinar a ler escrever e contra pagando Mestres e dando lhe todo o necessario para obter nella com assistencia (...) onde o Justificante assistia posto da mão do dito defunto dezde menino the que soube ler escrever que elle então o veyo buscar e levou para a sua para o seo escrever digo para sua caza onde sempre teve o Justificante em companhia da mesma sua mulher e filhos the que cazou o Justificante 6 – (...) que nesta familia andou o Justificante nasceo e se fez homem na [ freguesia ] do Cayco onde morou com o ditto seo Pay querendo cazar se mandou apreguar por filho natural do dito defunto sem que elle nada (...) que depois da casado sempre andava em sua companhia y todos debayxo de sua proteção tendo o Justificante caza parte tendo lhe o dito defunto entregue a sua fasenda para nella lucrar e ser com que se sustentar 7 – (...) que confere o direito por ser o dito Joze carneiro Machado homem pardo pião sem ter logro agum na Republica que lhe consiste no (...) do Justificante herdeiro de seos bens sendo com os maiz filhos do segundo matrimonio por ser havido de mulher solteyra em tempo que ambos podião hum com outro cazar

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8 – (...) que o ditto seu Pay falyceo sem testamento por não ter lugar de o fazer quando se determinou que a faze lo sem duvida declarara por ser filho que tal haveria no testamento166

Esse relato da justificação de Policarpo Carneiro, que tramitou no Cartório de Notas da Vila Nova de Pombal, nos permite inferir considerações sobre a sua trajetória de vida, porém, nos dá revelações sobre a maneira como o mundo colonial estava organizado no sertão. Provavelmente José Carneiro Machado não era natural da Capitania do Rio Grande ou da Paraíba, já que se encontrava “assistindo” na casa do comissário Teodoro Álvares por vários anos. Este morava na sua fazenda da Boa Vista, Ribeira das Piranhas, próxima a uma serra onde se plantavam lavouras, que ficou sendo conhecida por “Serra do Comissário” em honra de sua memória. Tivera importância decisiva nos começos da Povoação do Piancó, já que fizera parte do corpo de membros fundadores da Irmandade de Nossa Senhora do Bom Sucesso – criada na década de 10 do século XVIII – junto com seu pai, Bento Alves de Figueiredo, que comprara o Arraial das Piranhas em 1719 do primeiro presidente da agremiação religiosa, o capitão-mor José Diniz Maciel167. Percebemos que se tratava de um indivíduo fortemente ligado à Igreja, já que fizera doação, também, de uma fazenda com casa de morada, gado e escravos a Nossa Senhora das Missões, no Arraial da Formiga, sertão do Piancó, para ser administrada pelos padres da Companhia de Jesus168. Um dos filhos do “comissário”, Jacinto Álvares de Figueiredo, prestou depoimento a favor de Policarpo Carneiro na justificação para sua habilitação a herdeiro de José Carneiro Machado. Como já discutimos nas páginas antecedentes, o termo assistente, bem como morador, na América Portuguesa, remetiam a indivíduos sem muitas posses e que, na maioria das vezes, habitavam “em terras ou casas ‘de favor’ ou pagando certa quantia ou, ainda, prestando serviço aos proprietários”. Se José Carneiro era de condição inferior, não sabemos ao certo, porém, mantinha relacionamentos com pobres e pessoas de cor. Sua assistência continuada no sertão lhe rendeu altos lucros com o comércio de cavalaria. Estando arranchado em outra fazenda, a Pau-a-Pique, da Ribeira das Espinharas e destinado a viajar para as Minas, foi portador de quatro varas e meia de renda de frança que lhe entregara Perpétua de Oliveira, com o objetivo de serem vendidas “pelo melhor preço que pudesse”, com a advertência que tinham sido compradas por nove patacas. Voltando bem-sucedido das Minas, topou com a pessoa de Perpétua e deixou de entregar a renda obtida com a venda dos panos de luxo, não o fazendo mais por não haver encontro de ambos. A morte de José Carneiro e a confecção do seu inventário, na Vila de

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Pombal, ensejaram à Perpétua de Oliveira, ali moradora, tentar as vias legais para receber a quantia referente à venda das rendas: peticionou ao juiz de órfãos que lhe fosse destinado, do monte da fazenda, o valor de 2$880, equivalente às nove patacas pelas quais tinha adquirido as rendas. Com a anuência do curador dos órfãos, o licenciado Antonio Luís da Paz, o juiz ordenou o pagamento das dívidas (a de Perpétua e a das despesas funerárias) com três poldras e um calção de veludo. No fim das contas, o fascínio que as Minas e a economia aurífera exerciam sobre as populações menos abastadas da América Portuguesa culminou com um pagamento defasado pelas luxuosas rendas e só conseguido via juízo: para Perpétua de Oliveira, que se declarou, em sua petição, “pobre e mulher de verdade” e “inimiga do alheio”, lhe restou tão somente menos do valor de um calção de veludo (3$760), já que este mais as três poldras de negócio (15$000) pagavam, majoritariamente, as despesas do enterramento do defunto, orçadas em 15$880. O comércio de cavalaria que fez o pardo José Carneiro se tornar “bem-sucedido” certamente foi possibilitado pela articulação entre as diversas áreas distantes da colônia portuguesa na América possibilitada pelo florescimento da economia mineradora nas Minas e no Recôncavo. O afluxo de pessoas para as áreas de mineração, a partir do início do século XVIII, propiciou o surgimento, assim, de outro mercado – que não apenas os engenhos de açúcar – para os produtos da pecuária, possibilitando a venda de carne-seca e de gado em pé para as Minas. Mas, não somente os mantimentos advindos da economia pastoril embarcaram nas jornadas rumo aos setores de extração mineral. Também as montarias eram necessárias, conforme anuncia Douglas Araújo: A descoberta do ouro, na região central do Brasil, aumentou o espaço territorial economicamente ocupado. As grandes distâncias favoreceram a necessidade de animais para servir como meio de transporte. Cresceu, dessa forma, a demanda por tração animal. Além disso, o aumento da população nas minas fez crescer, também, a procura por alimentos, inclusive a carne169.

Esse comércio de cavalaria para as Minas e para a Bahia170, portanto, foi o meio de acumulação de pecúlio de José Carneiro, responsável pela avultada fazenda deixada para seus descendentes. Quando assistente no sertão das Piranhas171, mais precisamente, nos campos do Piancó, José Carneiro se arranchava na casa do comissário Teodoro Álvares de Figueiredo, onde também assistia, “a título de cativa”, Bibiana da Cruz, índia descendente de “cabelo corrido”. À primeira vista a existência de uma escrava índia no sertão poderia nos causar choque, mas, a referência à servidão de Bibiana não se situa cronologicamente no período do

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inventário de José Carneiro (1774), mas, entre as décadas de 40 e 50 do século XVIII, quando nasceu Policarpo Nessa época, em meio à já comentada legislação indigenista oscilante, estavam em vigor dois importantes instrumentos jurídicos metropolitanos que dão sustentação à prática do cativar indígenas. O primeiro é o Alvará de 28 de abril de 1688, que estabelece a escravidão para os índios infiéis tomados em guerra justa172, no tempo em que durar o conflito das guerras. O segundo é a Carta Régia de 25 de outubro de 1707, a qual confirma o alvará citado e autoriza os cativos indígenas a ficarem nas mãos dos vencedores ou serem vendidos, desde que com o montante obtido na comercialização se pagasse a despesa da guerra, os impostos da Coroa e, em havendo sobra, se desse jóia ao governador da capitania e o “mais repartido pelos cabos, oficiais e soldados”173. Existe grande probabilidade, assim, de Bibiana da Cruz ser descendente dos tapuias que resistiram contra as frentes de avanço pastoril do final do século XVII e início do século XVIII e foram cativados em guerra justa, após lutarem com tropas coloniais e com sertanistas baianos e paulistas no sertão das Capitanias da Paraíba e Rio Grande. A petição de Policarpo e os depoimentos das cinco testemunhas são unânimes em remeter ao fato dela ser descendente de uma índia “de cabelo corrido”174, sem dúvida, uma referência à aparência física dos Tarairiu, índios que habitavam as Ribeiras do Piranhas, Seridó e seus afluentes na época das Guerras dos Bárbaros. Policarpo Carneiro e a testemunha José Gomes são mais específicos ao afirmarem que Bibiana assistia na casa do comissário Teodoro a título de cativa apenas quanto à sujeição, “e não por verdadeiramente sella escrava”, nas palavras do primeiro e ainda “não que verdadeiramente fosse Escrava”, conforme afirmou o segundo. No momento não nos interessa levar à frente a discussão sobre o estatuto jurídico de Bibiana enquanto cativa, mas, adentrar no seu cotidiano a partir dos indícios deixados na justificação de habilitação de herdeiro de Policarpo. A petição deste e os depoimentos das cinco testemunhas confirmam que José Carneiro e Bibiana da Cruz mantiveram cópula carnal nas ocasiões em que, durante vários anos, o primeiro assistia na casa do comissário Teodoro. As testemunhas que confirmaram a ascendência de Policarpo foram unânimes – à exceção de uma, que não morava na região à época – em dizer que, nas ocasiões acima citadas, não havia notícia de que Bibiana “se tratasse com outro homem”, além do que José Carneiro a supria de todo o vestuário necessário. Nascendo o pequeno Policarpo – assim afirmam as testemunhas –, Bibiana o apresentou a José Carneiro como filho, que de pronto o reconheceu como vindo de suas

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entranhas. Todavia, assim como na escravidão negra, o estatuto do cativeiro indígena era transmitido pela linha de sucessão materna, ou seja, Policarpo também era escravo. Mas, a situação logo mudaria, pois, “promulgada a ley de cincoenta e nove ficara de toda forra a Mãe do ditto Justificante que então hera menino e que elle testimunha achava com animo ao ditto defunto que sendo o ditto Justificante seo filho captivo verdadeiramente deu forrar a custa de sua fazenda pelo muito amor que sempre o criou” (grifos nossos). A declaração de Pedro Corrêa, assim como as das demais testemunhas, coloca a passagem de Bibiana e de Policarpo do status de cativos ao de forros como sendo possibilitada pela lei de “cincoenta e nove”, referida, também, como a “nova Ley”. Trata-se, aqui, da “Direção com que interinamente se devem regular os Índios nas novas Villas e Lugares erectos nas Aldeias da Capitania de Pernambuco e suas Anexas”, de 18 de maio de 1759175, que detalhava e regulamentava o Diretório Pombalino para as áreas específicas das capitanias de Pernambuco, Ceará Grande, Paraíba e Rio Grande do Norte. Instrumento jurídico de escala maior, o Diretório dos Índios ou Diretório Pombalino, fruto das preocupações (sobretudo econômicas) do Marquês de Pombal, tinha, dentre os seus objetivos, a supressão do poder temporal dos jesuítas e a emancipação e integração dos índios à sociedade colonial. Inicialmente apregoado para o Estado do Grão-Pará e Maranhão (1757), foi homologado pelo rei D. José I num Alvará de 17 de agosto de 1758, que expandiu seus efeitos, também, para o Estado do Brasil. A “Direção” de 1759, portanto, foi um mecanismo de adaptação da nova lei para Pernambuco e suas anexas. Na prática, o Diretório Pombalino regulamentava três leis de 1755: a que tratava da legitimidade dos casamentos mistos (índios com não-índios), a que restituía aos indígenas a liberdade de suas pessoas, bens e comércio e outra que revogava o poder temporal dos missionários regulares sobre os aldeamentos missionários com população nativa176. A remissão à nova lei de 1759 nas declarações da justificação de herdeiro de Policarpo Carneiro indica que as determinações do Diretório Pombalino atingiram não apenas as vilas originadas de antigas missões, mas, todos os núcleos populacionais da América Portuguesa, sobretudo no sertão177. Atentemos, entretanto, para outra parte da declaração de Pedro Corrêa. Afirmou a testemunha, em relação ao ato de libertar o filho do cativeiro, que o fez “pelo muito amor que sempre o criou”. É difícil – e complicado – para nós, na contemporaneidade, tentar apreender que significado tinha a palavra amor em pleno século XVIII e mais em um recorte tão específico do sertão pecuarístico. Todavia, os depoimentos deixam patente uma série de

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cuidados que José Carneiro teve com Policarpo, o que nos leva a pensar em intensas relações afetivas entre pai e filho. Preocupando-se com o crescimento do seu rebento, desde menino lhe deu a bênção e o deixou na casa do capitão Vicente Carvalho de Azevedo, na Vila de Pombal, para ter acesso à doutrina cristã e à prática da leitura, escrita e aritmética com mestre-escola, onde também deixou pago todo o necessário para o seu sustento corporal e vestuário. Vencida essa etapa de aprendizagem do falar, escrever e contar, José Carneiro trouxe o jovem Policarpo para morar consigo na fazenda Santo Antonio, aí continuando mesmo depois do casamento do pai com Leonor Álvares e do nascimento dos seus meio-irmãos, com quem conviveu até o momento em que ele próprio decidiu se unir em matrimônio. Mas, a atenção de José Carneiro com seu primeiro filho não pararia por aí. Tendo “se feito homem” na Freguesia do Caicó – jurisdição eclesiástica à qual pertencia a propriedade Santo Antonio –, aí se casou, recebendo do pai a atribuição de ser vaqueiro de sua fazenda, com que poderia garantir seu sustento e ficar debaixo da proteção paterna até o fatídico ano de 1774. A morte de José Carneiro ensejou a realização do seu inventário post-morten, em que figurou como inventariante João de Souza Marques, já que a viúva era tida como demente e incapaz de administrar os bens da fazenda. João de Souza foi nomeado, após o inventário, como tutor da viúva demente Leonor Álvares e dos órfãos menores, chegando a apresentar auto de contas em 1777. Qual a razão de João de Souza Marques ter sido o inventariante e não Policarpo Carneiro, que era o filho mais velho e trabalhava como vaqueiro na fazenda? Em geral, quando não havia mais cônjuge sobrevivente (ou quando este era incapacitado, no caso de Leonor Álvares), cabia ao filho mais velho ser o cabeça do inventário, arrolando os bens da fazenda e fazendo-os serem eqüitativamente partilhados, de acordo com as disposições legais. Entretanto, foi João de Souza Marques que conduziu o processo do inventário e partilhas. Que relação ele teria com o defunto ou mesmo com a viúva demente é um assunto ainda nebuloso, devido, em parte, ao inventário de José Carneiro ter chegado até nós sem a folha de rosto, iniciando com as descrições dos bens. Não sabemos, assim, idades da viúva e dos herdeiros, bem como a data da morte do defunto. O que podemos afirmar, com base no primeiro auto de contas dos órfãos, é que João de Souza morava na fazenda dos Patos, da Ribeira das Espinharas, relativamente próxima da Santo Antonio e mesmo da Vila de Pombal. Não dispomos da folha de rosto do inventário, mas, outro dado a ser considerado é que Policarpo não foi incluído na relação dos herdeiros de José Carneiro, o que lhe deu espaço

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para peticionar ao juiz de órfãos da Vila Nova de Pombal seu direito à herança, após apresentar testemunhas que justificassem sua ascendência. Essa atitude de não-inclusão de Policarpo Carneiro no rol de herdeiros lembra a posição de Maria Beatriz Nizza da Silva, ao estudar as tipologias de famílias no período colonial, para quem os conflitos familiares, seja nos engenhos, seja nas fazendas de gado, costumavam aparecer nos momentos dos processos de partilha de bens, embora fossem raros178. Talvez nunca possamos responder, mas, indagamo-nos se não haveria algum tipo de rivalidade entre os filhos legítimos de José Carneiro, incomodados com a predileção dada pelo pai ao filho mestiço, a quem entregara a fazenda para tomar conta. Por outro lado, vislumbramos, a priori, duas hipóteses para a omissão de Policarpo no início do inventário, que deverão ser confirmadas com pesquisas posteriores, especialmente o cruzamento com fontes judiciais e eclesiásticas da Vila de Pombal: o peso da mestiçagem179 ou a carga do status de ser filho natural180. Embora ausente na folha de rosto, a justificação de Policarpo Carneiro, com as testemunhas arroladas, surtiu efeito: o curador da viúva demente e dos órfãos não fez vista grossa e a sentença do juiz de órfãos, datada de 22 de outubro de 1774 e passada na Vila Nova de Pombal, foi enfática ao declarar justificado o herdeiro e “habilitado para poder entrar no Inventario e Partilhas doz ditto digo e Partilhas dos benz do ditto seu Pay em igual parte com oz órfãos Irmãos do Justificante para o que se lhe de sua Sentença se declare por Herdeiro no rozto do Inventario181 o qual se juntará por assento” (grifos nossos). Conforme expressou a sentença, os bens do defunto José Carneiro foram repartidos com justeza: metade do monte líquido foi destinada à viúva demente, Leonor Álvares do Monte (1:717$440) e a outra metade separada entre os herdeiros, tocando a cada um a quantia de 343$488 em bens. Foi entregue a Policarpo Carneiro, de legítima paterna, uma parte da terra da fazenda Santo Antonio, no valor de 53$616; dezessete cabeças de gado, por 25$500; um escravo por nome Antonio, de nação Angola, com cerca de dezesseis anos e sem achaque algum, valendo 70$000; um timão de duas baetas, em bom uso, avaliado em 3$200; um escopro e uma goiva, que juntos valiam $360; $764 que levaram a mais os herdeiros Joaquim e Eufrásio, além das dívidas (a serem pagas) do padre Joaquim da Cunha Porto (no valor de 160$000) e partes das dívidas de Jerônimo Gomes Corrêa, Antonio de Oliveira Cortez e José de Pontes da Silva, que, juntas, somavam 22$040. Depois da partilha, perdemos Policarpo Carneiro de vista nas documentações que temos compulsado relativas à Freguesia do Seridó ou à Comarca de Caicó182, sendo possível que o encontremos em incursões futuras nos arquivos de Pombal, onde seus familiares deixaram indícios de passagem.

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Essa história, mesmo sem um fim conhecido, permite-nos caracterizar Policarpo Carneiro Machado enquanto um agente mediador183, ou seja, enquanto um personagem que transitou entre dois mundos – o nativo e o colonial –, contribuindo para a intensificação da fluidez entre suas fronteiras no século XVIII. Seu percurso condiz com o dos mestiços peruanos no distante século XVI, estudado por Berta Ares Queija e marcado por uma grande mobilidade espacial e étnica, trânsito entre culturas e intermediação. O mestiço, para a autora, é pensado como alguien que, situado en una posición intersticial, está acostumbrado a desenvolverse en ámbitos distintos con relativa fluidez, a manejarse habitualmente en dos lenguas, a ‘traducir’ de un universo simbólico al otro y, en definitiva, a traspasar uma y otra vez fronteras mentales y de todo tipo, en una permanente confrontación que, sin duda, le permite adquirir consciencia de lãs semejanzas y diferencias184.

A trajetória de vida de Policarpo Carneiro não foi tão diferente. Mestiço, filho de um homem pardo e de uma índia cativa, foi também revestido com o estigma da escravidão devido à linha de sucessão materna. Estatuto do qual se livrou, ainda na fazenda Boa Vista do termo da Povoação do Piancó, com as disposições do Diretório Pombalino de 1758 e a respectiva Direção da Capitania de Pernambuco de 1759, que mandava dar a liberdade aos índios, suas pessoas, bens e comércio. Policarpo teve a sorte, desde menino, de conviver com um pai afetuoso e dedicado, que não somente dava do vestuário a sua mãe, Bibiana da Cruz, como a ele, pagando-lhe, também, todo o necessário para o sustento corporal e aprendizado da leitura, escrita e aritmética com o auxílio de mestre-escola – algo raro, para a época. Instruído, foi conduzido por José Carneiro para a sua fazenda, na Ribeira do Quipauá, onde ficou debaixo de sua proteção mesmo depois do casamento do pai com Leonor Álvares e do nascimento de filhos legítimos. Não bastante toda essa afinidade para com o primogênito, José Carneiro dotou Policarpo do mais importante cargo na fazenda quando este decidiu casar-se na Freguesia de Santa Ana do Seridó: o de vaqueiro, gerente, portanto, das atividades econômicas de criação. Vitimado pela exclusão do rol de herdeiros do pai no momento do inventário, recorreu à Justiça Pública e, após comprovar sua ascendência, ganhou o direito de levar o quinhão da fazenda igualmente aos seus meio-irmãos. Por trás da descendência de um bem-sucedido comerciante de cavalos, está a revelação do Policarpo filho da índia Bibiana, descendente de outra índia, de cabelo corrido.

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Na mesma freguesia onde Policarpo casou viveram os índios Mateus de Abreu Maciel, que tinha o título de capitão, e Tomé Gonçalves da Silva, que prestava serviços a El-rei como porteiro do auditório. A imersão dessas personagens – e de outras, certamente, ainda encobertas pela poeira nos arquivos – no mundo colonial é uma evidência de que, como disse Serge Gruzinski, a ocidentalização não acarretou o total arrasamento das culturas autóctones. Por outro lado, produziu mestiçagens – do ponto de vista biológico e cultural –, entendidas como “um esforço de recomposição de um universo desagregado e como um arranjo local dos novos quadros impostos pelos conquistadores”185. Ou, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, um novo estilo de vida, mestiço, parte europeu, parte nativo186, do qual Policarpo Carneiro, Mateus de Abreu e Tomé Gonçalves faziam parte. Histórias como essas que analisamos, sobretudo se reconstruídas por meio do cruzamento de fontes de naturezas diversas (notas cartoriais, registros de paróquia, inventários post-mortem, sesmarias, apenas para citar exemplos), nos ajudam a compreender alguns dos efeitos da ocidentalização nos trópicos, com ênfase no sertão da América Portuguesa. Explicam, em grande medida, as transformações espaciais que esse fenômeno de expansão da cultura ocidental causou na América, construindo um território em sobreposição aos antigos territórios habitados pelos nativos, porém, em dados momentos, aproveitando os topônimos de origem indígena. Nesse território colonial, malgrado a desagregação das sociedades tribais, a circulação de pessoas de várias partes do mundo conhecido favoreceu o aparecimento de mestiçagens entre seus corpos e suas práticas culturais: os colonos luso-brasílicos, os marinheiros vindos do reino, os africanos forros e escravos, os mestiços, os índios remanescentes das guerras de conquista. A ocidentalização, pois, mesmo ao fraturar a organização pré-colonial das sociedades indígenas, ofereceu-lhes chance de sobrevivência por meio da mistura com outros grupos sociais, sem que deixassem de ser diferenciadas do restante da população, como aconteceu com Tomé Gonçalves, com Policarpo Carneiro ou com Mateus de Abreu – agentes mediadores entre o mundo nativo e o mundo ocidental.

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Notas 1

Estamos nos referindo, em especial, às obras de DANTAS, Manoel. Homens d’outrora; AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses; Id. Seridó; MONTEIRO, Eymard L’Eraistre. Caicó: subsidios para a historia completa do municipio; DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo; LAMARTINE, Juvenal. Velhos Costumes do meu Sertão; SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento; LAMARTINE, Oswaldo. Sertões do Seridó. 2

Essa marginalização dos índios na historiografia norte-rio-grandense já havia sido notada por Fátima Martins Lopes, em seu estudo sobre a instalação das vilas do Diretório Pombalino no âmbito da Capitania do Rio Grande (LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, p. 22-7). 3

Esse raciocínio está baseado na discussão efetuada por MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica. Diálogos latinoamericanos, n. 3, p. 87-113. 4

DANTAS, José Adelino. Op. cit., p. 10.

5

Id., p. 22-3.

6

Na mesma obra, ao comentar o assassinato de Ana Catarina da Anunciação (1843), na então Vila do Príncipe, o autor referiu-se a “José Francisco, acaboclado”, tido como um dos acusados em perpetrar, junto com o marido da citada Ana, o crime (Id., p. 128). 7

DANTAS, José Adelino. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? Tempo universitário, v. 2, n. 1, p. 129-36. 8

AUGUSTO, José. Famílias seridoenses; Id. Seridó; Id. A região do Seridó.

9

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó; Id. Velhos inventários do Seridó.

10

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, cujos assuntos estão situados, cronologicamente, entre a primeira metade do século XVII e pouco tempo depois do fim oficial das Guerras dos Bárbaros no Rio Grande.

11

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 161-2; 181-2.

12

Ver trecho de carta que Olavo de Medeiros Filho nos enviou desde 1995, que reproduzimos nas notas da Introdução.

13

COSTA, Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações.

14

MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). Demografia Histórica: orientações técnicas e metodológicas; CARDOSO, Ciro Flamarion ; BRIGNOLI, Héctor Perez. Os métodos da história, especialmente o capítulo “História demográfica”; FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Esta disciplina tem ocupado especial destaque nos principais centros de pós-graduação do país. Exemplos que poderíamos citar são o Núcleo de Estudos em História Demográfica (NEHD), da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e o Núcleo de História Econômica e Demográfica (NHED) da Universidade Federal de Ouro Preto (MG). 15

Dentre os diversos exemplos de pesquisas brasileiras em que seus autores se utilizaram da Demografia histórica podemos citar FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano

256

colonial e SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. 16

CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Perez. Os métodos da história, p. 162-203.

17

DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo, p. 9-42; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó, p. 6-8; COSTA, Sinval. Op. cit. , p. 11-8.

18

HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição de famílias. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). Demografia Histórica: orientações técnicas e metodológicas, p. 41-63; CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Perez. Os métodos da história, p. 187-9. A adaptação das fichas foi feita partindo da análise que DANTAS, José Adelino. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? Tempo universitário, v. 2, n. 1, p. 129-36, havia feito e do contato que mantivemos com a documentação.

19

Os bancos de dados foram construídos em formato MDB, no software Microsoft Access 2001®. Essa rotina de pesquisa inerente aos registros de paróquia foi utilizada em conjunto pelo coordenador e bolsistas do Projeto Contando o trabalho e os dias: Demografia histórica do Seridó (Colônia e Império). Participamos através de bolsa de iniciação científica do referido projeto e posteriormente com bolsa voluntária, no período de 2001 a 2003, sob a orientação do Prof. Muirakytan Macêdo, que coordenava a equipe de pesquisa.

20

Ora presente, ora ausente, podemos pensar que o termo índio não fosse imprescindível aos registros eclesiásticos da época, já que, desde as reformas do Marquês de Pombal e conseqüente expulsão dos jesuítas da América Portuguesa primou-se por trazer as populações nativas para o mundo dos brancos através de sua integração. O resultado é que as antigas aldeias missionárias extintas na década de 50 e 60 do século XVIII foram convertidas em vilas, unidades administrativas onde paulatinamente os poucos direitos facultados aos índios foram sendo suprimidos, seguindo-se processos de tomada e apropriação tanto de suas terras quanto de sua força de trabalho (MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 86-92). Para o Rio Grande do Norte, os efeitos desagregadores da política pombalina sobre as populações indígenas podem ser conferidos em LOPES, Fátima Martins. Op cit.

21

Partimos da problematização feita acerca dos pequenos ritos cotidianos do nascer, casar e morrer e de sua presença na vida colonial de acordo com PRIORE, Mary del. Ritos da vida privada. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil 1: cotidiano e vida privada na América Portuguesa, p. 275-330.

22

Segundo Mary del Priore, “A Igreja recomendava aos pais batizar seus filhos assim que possível. O batismo de crianças livres ou escravos era ministrado por párocos ou capelães, sem delongas, para garantir aos inocentes que morressem a chance de ir direto ao Céu sem passar pelo Purgatório” (Id., p. 311).

23

FARIA, Sheila de Castro. Op. cit., p. 304.

24

Baseamos essa dedução na nossa experiência de pesquisa genealógica, efetuada desde 1991/1992 sobre famílias da Ribeira do Acauã e, ainda, na descrição das famílias de origem portuguesa ou luso-brasílica descritas por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Nessa obra, o rosário de pessoas filhas de portugueses ou de luso-brasílicos que sabemos terem origens “brancas” se estende do início ao fim. Esporadicamente encontramos a designação de “branco” para alguma delas. Na maioria dos casos, embora fossem brancos, vinham sem o designativo de distinção social no assento de paróquia.

25

Também nas atas de casamentos e de óbitos a grande maioria dos registros é de pessoas cujo designativo de distinção social é inespecificado, o que nos obrigou a incluí-los na categoria de “brancos”, com base nas discussões que descrevemos com relação aos catecúmenos.

26

FGSSAS, LB nº 01, ficha 550.

27

A palavra “fâmulo” era um termo corrente no Período Colonial para designar criados ou servos de uma fazenda (geralmente índios ou mestiços) que não eram atingidos pelas malhas da escravidão.

28

FGSSAS, LC nº 01, p. 74v.

257

29

FGSSAS, LB nº 01, ficha 234.

30

FGSSAS, LB nº 01, ficha nº 671.

31

FGSSAS, LB nº 01, ficha nº 465.

32

VENÂNCIO, Ricardo Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX, p. 17-40; FARIA, Sheila de Castro. Op. cit., p. 68-87. 33

FGSSAS, LE nº 1, p.2.

34

FGSSAS, LE nº 1, p.32v.

35

FGSSAS, LE nº 1, p. 111.

36

Joana Dantas Corrêa era filha de Rosa Maria da Conceição e esta de Gregório José Dantas Corrêa e de Joana de Araújo Pereira. Antonio Dantas Corrêa, seu marido, filho de Caetano Dantas Corrêa e de Josefa de Araújo Pereira. Caetano e Gregório Dantas, assim como Josefa e Joana de Araújo, eram irmãos (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 184-5; 221).

37

Segundo Sheila de Castro Faria, “Variava muito o número de expostos, portanto, dependendo do período e da região, mas está bastante evidente que nos centros urbanos o abandono era especialmente maior do que em áreas tipicamente agrárias” (FARIA, Sheila de Castro. Op. cit., p. 69). 38

Foram aqui examinados os livros de enterros de 1788 a 1811 e de 1812 a 1838, bem como os de casamentos de 1788 a 1809 e de 1809 a 1821, mais o de batizados inerente ao período de 1803 a 1806, localizando-se os registros que continham participação indígena.

39

A noção de família nuclear (pai, mãe e filhos) está sendo tomada de empréstimo a FARIA, Sheila de Castro. Op. cit., p. 40. Na Freguesia de Santa Ana, todavia, algumas dessas famílias fugiam à regra e eram compostas apenas de mães solteiras e de seus filhos, como ocorreu no Acari, em 1797, onde moravam a índia Fabiana e seu filho natural, Félix.

40

Aqui excetuamos os casos de três índias que tiveram filhos naturais (ilegítimos) e de outra índia que criou uma exposta por curto período de tempo.

41

FGSSAS, LE nº 01, p. 11.

42

PRIORE, Mary Lucy Murray del. Brasil Colonial: um caso de famílias no feminino plural. Cadernos de Pesquisa, n. 91, p. 71.

43

PRIORE, Mary del. Religião e religiosidade no Brasil colonial, p. 34-5. Eni de Mesquita Samara, em seu estudo sobre a família brasileira, constatou que na sociedade colonial era avultado o número de relacionamentos, nas diversas classes sociais, que não precisavam do favor da Igreja para existir (SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira, p. 41-56). Mary del Priore confirma essa alocução quando diz que “A maioria da população [ colonial ] vivia em concubinato ou em relações consensuais, apesar de a Igreja punir os recalcitrantes com admoestações, censuras, excomunhões e prisões” (PRIORE, Mary del. Ritos da vida privada. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil 1: cotidiano e vida privada na América Portuguesa, p. 312).

44

FGSSAS, LE nº 01, p. 56v.

45

FGSSAS, LB nº 01, ficha 465; FGSSAS, LE nº 01, p. 62 e 72, respectivamente.

46

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó, p. 88 e 201.

258

47

FGSSAS, LC nº 02, p. 31v-32.

48

FGSSAS, LC nº 02, p. 49.

49

FGSSAS, LC nº 02, p. 61-61v. Os designativos de distinção social para as populações de cor são bastante problemáticos, já que, muitas vezes, se tratam da representação do sacerdote que fez o registro no livro da freguesia. Para Olavo de Medeiros Filho, utilizando os dados provenientes de antigos inventários post-mortem do Seridó, crioulos eram os negros já nascidos em território brasílico; mulatos, os filhos de brancos com negras e vice-versa; cabras, os filhos de mulatos com negras e vice-versa; Angolas, os negros africanos provenientes dessa região do continente (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó, p. 31).

50

PRIORE, Mary del. Religião e religiosidade no Brasil colonial, p. 36.

51

Os outros sete registros correspondem a índias sem designação de marido, mães solteiras e mãe de exposta.

52

À primeira vista poderiam ser brancos, os quais, por serem maioria populacional, nem sempre era necessário que aparecessem com essa designação no assento. É possível que se tratasse de negros, índios ou pardos cujo distintivo social, por razões que não sabemos, foi omitido.

53

Os naturais da Freguesia de Santa Ana eram 35,29% de homens e 60% de mulheres, enquanto que os naturais de outras freguesias ou vilas eram 64,70% de homens e 40% de mulheres.

54

FGSSAS, LE nº 01, p. 15v.

55

FGSSAS, LE nº 01, p. 112.

56

VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 409.

57

FGSSAS, LE nº 01, p. 13-13v.

58

FGSSAS, LE nº 02, p. 8.

59

FGSSAS, LE nº 01, p. 14v.

60

FGSSAS, LE nº 01, p. 112.

61

FGSSAS, LE nº 01, p. 115.

62

FGSSAS, LE nº 01, p. 115.

63

FGSSAS, LE nº 01, p. 119.

64

FGSSAS, LE nº 02, p. 19v.

65

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 01 – 1737/1774, Inventário de Manuel Gonçalves Rabelo – 1763.

66

REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, p. 96-141.

67

COÊLHO, Maria da Conceição Guilherme. Entre a terra e o céu: viver e morrer no Sertão do Seridó (séculos XVIII-XIX), p. 68-9. 68

Olavo de Medeiros Filho nos dá os significados de algumas dessas causas-mortis, iniciando pela maligna: também chamada de febre maligna, designando a febre tifóide ou malária; hidropisia: acumulação de líquidos nos tecidos ou no interior do corpo; estupor: acidente vascular cerebral, paralisia súbita, congestão ou “moléstia do ar”; etica: tísica, tuberculose pulmonar (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia seridoense, p. 169).

259

69

DANTAS, José Adelino. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? Tempo universitário, v. 2, n. 1, p. 129-36.

70

REIS, João José. Op. cit., p. 125.

71

FGSSAS, LE nº 01, p. 14v

72

Nome dado à base de alvenaria que circunda um templo religioso. Designa, também, o terreno em frente e/ou ao lado das capelas ou igrejas.

73

REIS, João José. Op. cit., p. 128.

74

SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. Temp(l)o da memória: o lugar da morte no Seridó (séculos XVIII e XIX), p. 98.

75

FGSSAS, LE nº 01, p. 119. Sepultada “junto à porta travessa do lado do Evangelho”.

76

FGSSAS, LE nº 01, p. 115v-116.

77

FGSSAS, LE nº 01, p. 68v. Trata-se do atual Santuário do Rosário, cuja construção estava sendo iniciada naquele ano de 1800.

78

Para o período de 1788 a 1811 encontramos, além dos dois índios sepultados fora dos templos, mais dois fregueses que também o foram. José Tavares das Neves, que foi sepultado no sítio do Riacho Fundo “por não haver quem pudesse carregar” em 1792 (FGSSAS, LE nº 01, p. 31v-32) e um recém-nascido, filho de José Barbosa de Medeiros e de Rita Maria, que foi enterrado em “casa própria” no ano de 1805 (FGSSAS, LE nº 01, p. 114v).

79

REIS, João José. Op. cit., p. 106.

80

FGSSAS, LE nº 01, p. 35.

81

FGSSAS, LE nº 01, p. 13-13v.

82

FGSSAS, LE nº 01, p. 52v.

83

FGSSAS, LE nº 02, p. 8.

84

Essa hipótese nos foi sugerida pela Profª Drª Fátima Martins Lopes e ratificada pelo Prof. Dr. Ricardo Medeiros, durante a defesa da dissertação.

85

REIS, João José. Op. cit., p. 114.

86

Id., p. 111.

87

LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas, p. 136; DIEHL, Astor. Apontamentos teórico-metodológicos em torno da microistória. In: Id. Cultura historiográfica, p. 162-5, aponta a micro-história como sendo a vertente da história social mais desenvolvida, não chegando a superar ou a ser um novo paradigma historiográfico, concentrando como características freqüentes o apego à narrativa e a tendência ao empirismo. Exemplar da prática da micro-história é o clássico O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição, de Carlo Ginzburg, que, a partir de um processo inquisitorial (cruzado com fontes de diversas naturezas), reconstitui a vida e as idéias de Menocchio, moleiro que viveu no norte da Itália no final do século XVI e que foi queimado na fogueira acusado de heresia. Conferir, ainda, VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da história.

260

88

A fonte de inspiração metodológica desse procedimento é tomada de FARIA, Sheila de Castro. Op. cit., onde a autora utiliza-se da prática da micro-história na análise de histórias individuais de diversos grupos sociais e de sua mobilidade espacial e cultural nos Campos dos Goitacases no Período Colonial.

89

DIEHL, Astor. Apontamentos teórico-metodológicos em torno da microistória. In: Id. Cultura historiográfica, p. 171.

90

Esses inventários, que formavam o acervo do 1º Cartório Judiciário, encontram-se custodiados pelo Laboratório de Documentação Histórica – LABORDOC, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó. Na primeira leitura que fizemos do inventário, face ao péssimo estado de conservação de algumas de suas folhas, não havíamos notado a presença do casal de tapuias. Esta nos foi alertada pelo graduando Sebastião Genicarlos dos Santos e pelo Prof. Muirakytan Macêdo, a quem agradecemos a indicação, após o que, em nova leitura, pudemos perceber que as partes do processo que estão carcomidas são justamente relativas ao título dos escravos. Os nomes de Anastácio e Domingas, todavia, apareceram na partilha.

91

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 01 – 1737-1774, Inventário de Crispim de Andrade – 1737.

92

ORDENAÇÕES Filipinas, Livro Primeiro, Título LXXXVIII, 4.

93

STANCZYK FILHO, Milton. Instrumentos de pesquisa: indicadores possíveis na exploração de testamentos e inventários post-morten, p. 9, define estes últimos como “processos judiciais para a legalização da transferência de bens. Precedendo às partilhas, tem por fim apurar o que constitui a herança, os haveres, tais como terras, casas, escravos, gado, produção agrícola, ferramentas, móveis, armas, tecidos, roupas, livros, jóias, objetos de uso pessoal e do doméstico, entre outros”. 94

A disposição das peças do inventário apresentada reflete o estado dos processos do século XVIII da Comarca de Caicó, não importando em um modelo geral e obrigatório. Dependendo de alguns casos a ordem das peças poderia ser invertida, além do que, nos dias de hoje, existem processos que tiveram perda de seus componentes graças ao cupim e às traças, ao extravio por água, fogo e borrões e, mesmo, ao despreparo de certos escrivãos. 95

STANCZYK FILHO, Milton. Op.cit., p. 10.

96

No inventário de Manuel de Souza Forte, processado na Vila Nova do Príncipe em 1793, consta o sítio Pedra Branca dentre os seus bens, com avaliação de 500$000. Segundo declaração da inventariante, dona Petronila Fernandes Jorge, seu falecido marido adquirira o sítio por compra feita ao capitão José Ferreira Barreto. Natural do Seridó, este capitão era casado com dona Antonia Maria Cortês, natural da Freguesia de Santo Antonio do Recife, como denunciam os assentos de batizado da Freguesia de Santa Ana. Seria este o proprietário do sítio Pedra Branca, também, na época de Crispim de Andrade? (CC, 1ºCJ, IPM, Inventário de Manuel de Souza Forte – 1793. Transcrição feita por Olavo de Medeiros Filho em 04 de março de 1993. Na época em que a Comarca de Caicó disponibilizou os inventários post-mortem do 1º Cartório Judiciário para o LABORDOC, esse inventário não encontrava-se mais dentro da Caixa 3, que vai de 1790 a 1797).

97

Ângelo Guedes era filho de Filipe Guedes e Custódia Maria de Holanda Cavalcanti, residentes na Vila de Igaraçu. 98

Do manancial de inventários post-mortem da Comarca de Caicó, custodiados pelo LABORDOC, trata-se do único processo que traz referência expressa a escravos índios. 99

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 79; Id. MONTEIRO, Denise Mattos. Terra e trabalho em perspectiva histórica: um exemplo do sertão nordestino (Portalegre-RN). Caderno de História, v. 6, n. 1, p. 14.

100

Guerras declaradas contra povos que iam contra o serviço de Deus e a propagação da fé, ou seja, contra infiéis. As causas efetivas que levavam a essas guerras, que deveriam ter autorização real, variavam ao longo do tempo, “adaptadas à evolução da ‘ideologia de expansão’ que se foi formando a partir dos primeiros contactos tidos entre povos ibéricos e africanos ou ameríndios” (DOMINGUES, Ângela. Os conceitos de guerra justa e os

261

ameríndios do norte do Brasil. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão, p. 27). 101

O resgate se constituía em prática onde eram comprados os “índios de corda”, ou seja, prisioneiros de guerra que estavam presos em cordas por outros índios e que se destinavam a rituais antropofágicos. O resgate, assim, tirava esses cativos de guerra do destino da morte certa para direcionarem-lhe ao trabalho escravo, desta vez, a serviço dos colonos (MEDEIROS, Ricardo Pinto de. A redescoberta dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial, p. 89). 102

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil, p. 126. 103

Id., p. 116. Na análise de Ângela Domingues esses diplomas legais oscilaram, do ponto de vista do estatuto indígena, “ainda que por curtos lapsos de tempo, entre a liberdade absoluta (alvará de 30 de julho de 1609) e lei de 1º de abril de 1680) e o cativeiro legal condicionado” (DOMINGUES, Ângela. Op. cit., p. 45). 104

Nos inventários de colonos de São Paulo referentes ao século XVII, analisados por Muriel Nazzari, é constante a presença de índios constituindo o rol dos bens dos inventariados, nominados de “forros” ou “administrados”. Até meados desse século os índios eram arrolados nos inventários como parte dos bens do defunto, porém, não lhes era atribuído um valor em dinheiro, em função da referida lei de 1609, que “proibia a captura dos índios e declarava que todos os índios eram livres, quer estivessem convertidos e civilizados quer fossem pagãos e selvagens, e não podiam ser obrigados a trabalhar para ninguém contra a sua vontade”. Isso mudou, segundo a autora, a partir do terceiro quartel do século XVII, quando os índios inventariados, além de serem avaliados monetariamente, passaram a ser publicamente leiloados para o pagamento de dívidas. Evidência que nos leva a acreditar, junto com Muriel Nazzari, que a própria Coroa, pelas brechas deixadas na legislação e pela vista grossa que fazia a determinados atos, até certo ponto tolerava a escravidão indígena (NAZZARI, Muriel. Da escravidão à liberdade: a transição de índio administrado para vassalo independente em São Paulo colonial. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão, p. 31-2). 105

Frente à complicação que os conflitos na Ribeira do Açu e seus afluentes estavam tomando a partir de 1687, o governador-geral do Brasil, Matias da Cunha, convocou um Conselho de Estado em que todos os teólogos, ministros, oficiais maiores e mais sujeitos de grau votaram para que os conflitos do sertão do Rio Grande fossem considerados como guerra “justa, devia ser ofensiva,e os prisioneiros cativos”. Ao ser sabedor da preparação do paulista Domingos Jorge Velho rumo a Palmares, para combater os negros aquilombados, o mesmo governador o pediu para atalhar a viagem e demorar-se no Rio Grande, para combater os índios sublevados. Disse Matias da Cunha ao paulista, em carta: “Espero que não só terão todas as glórias de degolarem os bárbaros, mas a utilidade dos que aprisionarem, porque por a guerra ser justa resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que fossem cativos todos os bárbaros que nela se aprisionassem” (citado por PUNTONI, Pedro A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720, p. 111). 106

Apud PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Op. cit., p. 127.

107

MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, p. 137.

108

Assim sendo, provavelmente a documentação do Cartório e Matriz de Pombal deve guardar algum registro da viúva Antonia Ferreira, de seus filhos ou dos escravos.

109

Lembremos, aqui, do índio Francisco Gomes, que era casado com a parda Joana, escrava de Maria Pais do Nascimento. Francisco Gomes, que adotara para si o sobrenome do esposo de Maria Pais, prestava seus serviços como fâmulo desta. 110

FGSSAS, LB nº 01, ficha 184.

111

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 02 – 1775-1789, Justificação de dívida em inventário de Manuel Marques do Nascimento – 1789.

262

112

Segundo Maria Leônia Chaves de Resende, tanto os assentos de paróquia quanto os relatórios das visitações das Minas Gerais, sobretudo do século XVIII, apontam a expressão “casta da terra” como rótulo aplicado aos índios, assim como “carijós”, “gentio da terra”, “partes do gentio”, “descendem do mato”, “tapuias dos sertões” (RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Brasis coloniales: o gentio da terra nas Minas Gerais setecentista (17301800), p. 7; Id. Devassa da vida privada dos índios coloniais nas vilas de El Rei. Estudos ibero-americanos, v. 30, n. 2, p.55. 113

As variações no que tange ao significado desses vocábulos (curiboca, caboclo, mameluco, pardo, por exemplo), segundo Jocélio Teles dos Santos, configura-se como um resultado do sistema lingüístico escravocrata, que, dependendo da situação, “permitira rearranjos conceituais e indicava uma flexibilidade do uso de categorias no Brasil colônia” (SANTOS, Josélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, n. 32, p. 118). De forma que o que era considerado caboclo para um colono poderia ser tido como curiboca para outro. 114

SCHWARTZ, Stuart. Tapanhuns, negros da terra e curibocas: causas comuns e confrontos entre negros e indígenas. Afro-Ásia, n. 29/30, p. 15.

115

DURÃO, Antonio José de Morais. Descrição da Capitania de São José do Piauí apud MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade, p. 22-3. 116

Examinando os livros de notas da Comarca de Caicó, encontramos um caso curioso: a alforria dada por uma senhora, Maria da Conceição, a uma escravinha parda e “meio mameluca”, filha de outra cativa que tinha em sua fazenda. A carta de alforria, datada de 1804, foi registrada no livro de notas da Vila Nova do Príncipe a pedido da própria escrava Mariana, alforriada, que tinha apenas dois anos de idade naquele ano (certamente, representada pela mãe ou um procurador branco). Vale a pena transcrevermos o trecho inicial da carta de alforria concedida por dona Maria da Conceição, que evidencia a ascendência autóctone da escrava: “Digo eu abaixo asinada que entre os mais bens que possuõ hé assim bem huma Escrava meio mamaluquia por nome Mariana idade de dois Annos a qual hé filha de huma Escrava minha que por muito minha vontade lhe faço esmola fasendo menção no que me toca a qual a hei por forra livre, e (...) que de hoje para sempre digo que de hoje para todo sempre fica sendo” (CC, LN nº 04 – 1802-1805, p. 84). 117

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 44.

118

Como exemplo, ver MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade, p. 125-42, onde discute a relação entre os índios e a pecuária. 119

CA, IPM, Maço 01, Processo nº 01, Inventário de Manuel Ferreira Borges – 1772.

120

Trata-se do sítio Acari, na Ribeira do Acauã, que foi demarcado oficialmente em 1769 (IHGRN, Documentos avulsos, Livro do Escrivão Freitas. Registro de hum auto de demarcação do Acari pertencente ao Cap. Antº Garcia de Sá Barroso e a Felipe de Moura, a requerimento dos mesmos, em 1769).

121

FGSSAS, LE nº 01, p. 69v.

122

CA, IPM, Maço 01, Processo nº 26, Partilhas amigáveis de Josefa de Araújo Pereira Júnior – 1819.

123

FGSSAS, LE nº 02, p. 42.

124

Dentre os bens deixados por dona Josefa de Araújo Pereira (2ª) – filha do coronel Caetano Dantas Corrêa e de Josefa de Araújo Pereira –, curiosamente no título de “simoventes” (em geral, destinado a animais e escravos), um cordão de roça de mandioca (16$000) e seis alqueires de farinha, por 12$000, evidência de que os dois sítios da Serra do Cuité destinavam-se não somente à lavoura de milho (como consta no “título de terras”), mas, também a de tubérculos.

125

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 03 – 1790-1797, Inventário de João Álvares de Oliveira – 1791.

263

126

FGSSAS, LC nº 01, p. 52-52v. No mesmo livro de casamentos encontramos o registro do matrimônio de uma filha de Manuel Pereira e Joana Maria, de nome Josefa Maria. Esta casou em 24 de novembro de 1797, na mesma Matriz do Seridó, com José Domingos da Costa, solteiro, filho legítimo de Domingos Ramos da Costa e de Teresa de Jesus dos Reis (FGSSAS, LC nº 01, p. 41). 127

Cosme de Abreu Maciel era morador da fazenda Rossaurubu, encravada na data de terra do mesmo nome. Testemunhou numa querela judicial a propósito da demarcação do sítio Totoró, que foi requerida em 1763 pelo coronel Cipriano Lopes Galvão e sua esposa, dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. Nas páginas do volumoso processo do Totoró, disse ser homem casado, morador na fazenda sobredita e viver de suas plantas de roças, além de declarar que tinha pouco mais ou menos 55 anos – o que nos deduz a pensar que nascera pelas eras de 1708 (IHGRN, Caixa Sesmarias – Demarcação de Terra (1615 a 1807). Demarcação do Totôro, Curraes Novos – 3 datas de terra requerida pelo Cel. Cipriano Lopes Galvão e sua mr Da Adriana de Holanda Vasconcelos, moradores na Ribeira do Seridó, desta capitania – 1763). O próprio Cosme de Abreu requereu, anos mais tarde, a demarcação de parte de sua data de terra (IHGRN, Documentos avulsos, Livro do Escrivão Freitas. Auto de medição do sitio da Passage, sobras do Rossaurubú da Ribeira do Seridó, a requerimento de Cosme de Abreu Maciel – 1768). Morreu em 1790, sepultando-se na Matriz do Seridó (FGSSAS, LE nº 01, p.12). 128

FGSSAS, LE nº 01, p. 35.

129

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó, p. 151. Segundo o mesmo autor, tratando de 1748, “Carta-patente desta data, refere-se ao fato de existir uma companhia de ordenanças, na ribeira do Seridó, cujo capitão era Tomás de Araújo Pereira (1º), A referida companhia de cavalaria pertencia ao regimento da Cidade do Natal, de que era comandante o coronel Manuel Teixeira Casado” (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia seridoense, p. 50). 130

VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 396.

131

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, p. 150-8.

132

LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, p. 117-21. 133

Trata-se de documentos do Fundo da Comarca de Caicó, disponibilizado pela Justiça Pública para custódia pelo LABORDOC. Especificamente, do subfundo do 1º Cartório Judiciário e série temática dos “Diversos”. Os códices encontrados dentro das caixas reúnem documentos soltos que foram costurados em volumes por antigos escrivãos do cartório. No ano de 2001, sob a orientação do Prof. Muirakytan Macêdo, organizávamos um pequeno repertório dos documentos do século XVIII e XIX presentes dentro desses códices. 134

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 1, Cód. Folhas esparsas de inventários, vol. 1º, diversas épocas. Auto de arrematação da mulatinha Ana e da cabrinha Teresa (1812). 135

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, DIV, Caixa 1, Cód. Folhas esparsas de inventários, vol. 1º, diversas épocas. Pregão de bens nas ruas públicas da Vila Nova do Príncipe, sem identificação (1812). 136

FGSSAS, LE nº 01, p. 3v.

137

FGSSAS, LE nº 01, p. 28v.

138

FGSSAS, LC nº 01, p. 128v.

139

FGSSAS, LB nº 01, ficha 625.

140

FGSSAS, LC nº 02, p. 145-145v.

141

FGSSAS, LC nº 02, p. 166-166v.

264

142

Estamos nos referindo à fazenda Suçuarana que ficava nas proximidades da Vila do Príncipe, a julgar pelos registros comentados acima localizarem as cerimônias na Matriz de Santa Ana. Existia outra fazenda de mesmo nome, desta feita, localizada na Ribeira do Seridó, onde hoje fica o município de Parelhas. Encontramos dois registros no livro mais antigo de enterros que são de moradores dessa outra fazenda Suçuarana: o de Manuel, com oito dias de nascido, filho de José Antonio dos Santos e Damiana Maria, sepultado em 1804 na Capela do Acari (FGSSAS, LE nº 01, p. 101v-102) e o de outro Manuel, de um ano, filho de José e Antonia, sepultado na Capela da Conceição em 1812 (FGSSAS, LE nº 02, p. 6). Esses dados confirmam nossa afirmação supra, vez que as capelas do Acari e da Conceição localizam-se geograficamente bem mais próximas da fazenda Suçuarana cujos contornos pertencem, na atualidade, a Parelhas. Os moradores da fazenda homônima, próxima da Serra do Samanaú – Tomé Gonçalves e sua família –, até mesmo pela distância, praticavam seus ritos na Matriz de Santa Ana do Seridó. 143

FGSSAS, LE nº 01, p. 28v.

144

FGSSAS, LE nº 01, p. 32v.

145

Esta hipótese nos foi sugerida pela Profª Drª Denise Mattos Monteiro durante as discussões do nosso projeto na disciplina Seminário de Linha de Pesquisa I, ministrada pela mesma. 146

TAKEYA, Denise Monteiro. Um outro Nordeste: o algodão na economia do Rio Grande do Norte (18801915), p. 25. 147

MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 102. A autora considera, a propósito, que a “pequena produção de açúcar dos engenhos litorâneos do Rio Grande, durante todo o período colonial e até meados do século XIX, destinou-se muito mais ao mercado interno do que à exportação para o exterior”. 148

Id., p. 103.

149

Id., p. 101.

150

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 02 – 1775-1789, Inventário de Vicência Lins de Vasconcelos – 1786.

151

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 08 – 1822, Inventário de Manuel Pereira Monteiro – 1822.

152

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 03A – 1798-1799, Inventário de João Ferreira Godinho – 1799.

153

CC, LN nº 02 – 1792-1799, p. 28. Escritura de hipoteca que fazem Manuel Lopes Roraima e sua mulher Verônica Lins de Vasconcelos, na Serra dos Canudos, de uma dívida de 33 sacas de algodão em pluma a João Machado da Costa. 154

LABORDOC, FJABM. GALVÃO, Cipriano Lopes. Mappa dos preços correntes na Parochia da Vila do Principe no mez de Janeiro e no ano de 1802. Esse mapa, que estabelece um perfil dos gêneros exportados, importados e consumidos na freguesia, indica que no ano de 1802 a arroba do algodão exportado variava de 4$000 a 5$500. Cifra que aumentou, em 1810, para o intervalo entre 5$500 e 6$000 (GALVÃO, Cipriano Lopes. Mappa dos preços correntes no termo da Villa do Principe em o anno de 1810 apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia seridoense, p. 175-6). 155

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino, p. 91-9. 156

A respeito da implantação do Diretório dos Índios no Brasil verificar MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria a minoria (1750-1850); DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Especificamente para a Capitania de Pernambuco e anexas consultar PIRES, Maria Idalina da Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial: legislação, conflito e negociação

265

nas vilas pombalinas (1757-1823); AZEVEDO, Anna Elizabeth Lago de. O Diretório Pombalino em Pernambuco; SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino; LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. 157

Trata-se de cargo que, embora vinculado ao Senado da Câmara, exercia atribuições da Justiça Pública, vez que, no Antigo Regime, eram tipicamente indiferenciadas as atribuições legislativas, judiciárias e executivas (VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), p. 17). As atribuições do cargo de porteiro estão previstas nas Ordenações Filipinas (ORDENAÇÕES Filipinas, Livro Primeiro, Título LXXXVII, 1). 158

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. O funcionário colonial entre a sociedade e o rei. In: PRIORE, Mary del. Revisão do paraíso: os brasileiros e o Estado em 500 anos de história, p. 149. 159

Id., p. 151.

160

Ver a descrição das fontes manuscritas, ao final da dissertação, para conhecer os titulares (defuntos) desses processos de arrolamento e partilha. 161

CA, IPM, Maço 01, Processo nº 14, Inventário de José Ferreira dos Santos – 1805.

162

Alguns elementos desse auto de arrematação nos fornecem a medida de como as relações entre índios, negros e brancos eram complexas na Freguesia do Seridó nos tempos coloniais. Observemos, assim, dois fatos infreqüentes para a região, até onde chega o nosso conhecimento. O primeiro deles: a pessoa que estava oficiando o pregão do gado e dos cativos, o índio Tomé Gonçalves, teria, treze anos mais tarde (1819) um escravo (o pardo José Ferreira) como genro. Outro: o crioulo forro Caetano Soares Pereira Santiago, que em outros documentos judiciais aparece como pardo e negro, sendo possuidor de escravos. Acreditamos que se tratasse de uma pessoa com certa visibilidade na Vila do Príncipe, já que a documentação o menciona, repetidas vezes, como sacristão e como pessoa que vive da arte de pintar. Reservemos essa problemática, todavia, para estudos futuros. 163

FGSSAS, LE nº 02, p. 145.

164

FGSSAS, LE nº 03, p. 25.

165

LABORDOC, FCC, 1ºCJ, IPM, Caixa 01 – 1737-1774, Inventário de José Carneiro Machado – 1774.

166

Para que esses itens conduzissem à habilitação da herança, Policarpo apresentou testemunhas que conheciam de sua trajetória de vida, as quais prestaram depoimento na justiça confirmando os itens apontados no requerimento inicial. Essas testemunhas eram José Gomes de Castro, morador na Serra do Comissário; Jacinto Álvares de Figueiredo, morador na Fazenda Boa Vista, Ribeira das Piranhas; João Álvares Feitosa, morador na mesma fazenda; Manuel de Chaves Moreira, morador na Vila Nova de Pombal e Pedro Corrêa de Oliveira, morador na mesma vila. 167

SEIXAS, Wilson. O Velho Arraial de Piranhas (Pombal) no centenário de sua elevação a cidade, p. 87-8.

168

PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a História da Paraíba, v. 1, p. 158, afirma que essa fazenda e os outros bens administrados pelos jesuítas, face às determinações legais da chamada Era Pombalina, foram confiscados em 1760 e arrematados de ordem régia.

169

ARAÚJO, Douglas. Surgimento e decadência das oficinas de carne seca do Rio Grande do Norte, p. 18.

170

A justificação de Policarpo indica que o seu pai comprava cavalos e os vendia tanto nas Minas, quanto na Bahia. Ele próprio, José Gomes de Castro e Jacinto Álvares de Figueiredo (e, além disso, o depoimento de Perpétua de Oliveira, externo ao processo de Policarpo) falam no comércio com as Minas, enquanto que João Álvares Feitosa, Manuel de Chaves Moreira e Pedro Corrêa de Oliveira aludem à Bahia.

266

171

Posteriormente José Carneiro adquiriu meia légua de terra na fazenda Santo Antonio, localizada na Ribeira do Quipauá – tributária da Ribeira do Seridó –, por 440$000, quantia que equivalia, na época de sua morte, a quase trezentas cabeças de gado. Ali foram criados seus filhos tidos com Leonor Álvares do Monte, junto com Policarpo Carneiro. 172

Segundo LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 57-8, o aprisionamento de um índio em guerra justa lhe conferia um status jurídico semelhante ao de um escravo negro: “sua pessoa era propriedade de outrem, que a poderia legar por herança, transmitir ou vender a outros; sua vontade estava subordinada à autoridade de seu dono; e seu trabalho era obtido mediante coação”.

173

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Op. cit., p. 127.

174

John Monteiro anota, a propósito, que alguns dos escravos legítimos apresados nessa guerra pelos paulistas, e que chegavam a São Paulo de Piratininga, eram cognominadas de “peças do gentio do cabelo corredio”. (MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, p. 95-6).

175

LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 84-5.

176

O Diretório Pombalino reflete, num plano mais amplo, as preocupações do Marquês de Pombal com a centralização político-administrativa em Portugal e nas suas colônias ultramarinas, fruto da influência do pensamento iluminista. A respeito das vilas erigidas sob o Diretório de 1757 e posteriores legislações complementares, bem como seus efeitos sobre a população indígena anteriormente missionada na Capitania do Rio Grande do Norte, consultar LOPES, Fátima Martins. Op. cit.. 177

Em 1759 Pombal ainda não era vila, nem mesmo existindo com esse nome. O núcleo populacional que se consolidara no início do século XVIII era chamado de Povoação das Piranhas (em alguns documentos, Povoação do Piancó), que foi elevada a vila com o título de Vila Nova de Pombal (coincidentemente, em homenagem ao Marquês de Pombal) através de Carta Régia de 22 de julho de 1766. Sua instalação somente se deu oficialmente em 04 de maio de 1772 (SEIXAS, Wilson. Op. cit., p. 92-3; PINTO, Irineu Ferreira. Op.cit., v. 1, p. 164). 178

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil Colonial, p. 82.

179

É ainda Maria Beatriz N. da Silva quem nos alerta que o acesso à herança de brancos por parte de indivíduos de cor era difícil, embora, em contrapartida, tenha registrado freqüentes legados ou doações a filhos de criação ou afilhados (SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit., p. 201). Não estamos tratando de um inventariado que era branco, já que a justificação de Policarpo qualifica José Carneiro como “homem pardo”, porém, nos referimos a um indivíduo detentor de uma abastada fazenda, com considerável número de escravos e de bens semoventes, dentre eles, mais de duas mil cabeças de gado bovino.

180

Tratando das desigualdades entre os filhos mestiços, Sheila Faria lembra que “Filhos naturais ou adulterinos estavam, visivelmente, numa ‘segunda categoria’ frente a filhos legítimos, principalmente se considerarmos que praticamente só homens e mulheres solteiros ou casados sem filhos reconheceram rebentos ilegítimos em seus testamentos” (FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, p. 90). 181

Infelizmente, como já afirmado, o inventário de José Carneiro Machado chegou até os nossos dias sem a folha de rosto, não sendo possível, portanto, examinar a averbação decorrente da sentença do juiz Gonçalo Carvalho. 182

Nem mesmo nos autos de contas dos órfãos, posteriores ao inventário – procedidos em 1777, 1779, 1783 e 1785 – encontramos referência a Policarpo Carneiro. Não descartamos, também, a possibilidade de ter-se evadido da região em função da seca de 1776 – onde grande parte da multiplicação do gado vacum de sua madrasta e irmãos foi extraviada – ou mesmo da seca grande de 1793.

183

Aqui entendido partindo-se da problematização levantada por ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (Coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales y agentes mediadores. 184

Id., p.37-8.

267

185

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço, p. 110.

186

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras.

268

CONSIDERAÇÕES FINAIS Um mineiro percorrendo uma caverna escura, gélida e espinhosa à busca de uma luz que se apagou há muito tempo, da qual não restam mais que microscópicos filetes. Esta foi a impressão que nos ficou quando iniciamos a pesquisa acerca dos índios no contexto da ocidentalização da Capitania do Rio Grande, especialmente após as guerras de conquista situadas cronologicamente entre as últimas décadas do século XVII e início do século XVIII no sertão. Impressão justificada, em parte, já que as ações dos índios frente a esse processo de escala global – o da ocidentalização – não tiveram registros de sua própria lavra, até onde temos conhecimento. Obteve triunfo, assim, o registro escrito dos conquistadores, que expôs, quase sempre, a sua superioridade cultural frente aos nativos encontrados no sertão do Rio Grande, nominados nesses mesmos registros apenas quando se fazia referência a seu modo de vida bárbaro, à sua gentilidade e, por fim, à sua incorporação iminente frente ao projeto colonial. Bebendo nessas fontes, os homens que escreveram a história do Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX reproduziram essa idéia de inferioridade dos índios e, ainda mais, apregoaram o seu desaparecimento depois que as estruturas do poder colonial foram instaladas nas povoações, freguesias e vilas. Da mesma maneira como fizeram alguns dos homens que se dedicaram a escrever a história da parcela centro-sul do sertão norte-riograndense, conhecida, na contemporaneidade, como região do Seridó. Esse estigma do desaparecimento, dada a circulação que essa historiografia teve, acabou tornando-se chavão e discurso recorrente até mesmo nos estabelecimentos de ensino – idéias que recebemos de nossas professoras ainda nos anos de 1980, quando freqüentamos o que se chamava, à época, de primário. Contudo, toda regra tem exceções: três homens dentre aqueles que produziram versões sobre a história da região do Seridó, nos forneceram importantes pistas para repensar o suposto desaparecimento dos índios após as derradeiras guerras de conquista1. Permitiram, com os indícios que nos apontaram, que penetrássemos na caverna mencionada e avançássemos até as brenhas onde poucos haviam estado, procurando a claridade há tanto tempo obscurecida pela vitória do registro escrito e por uma maneira ocidentalizante de escrever a história. Essa investida somente foi possível porque compartilhamos das idéias de que a ocidentalização não apenas desestruturou as sociedades ameríndias, mas, também,

realçou suas singularidades e ofereceu terreno para que, por meio das mestiçagens, elas sobrevivessem2; de que o desaparecimento, citado com recorrência nos relatórios dos presidentes das Províncias do Norte durante o século XIX e presente na historiografia clássica do Rio Grande do Norte, se trata de um discurso construído para justificar a expropriação dos territórios nativos em função dos interesses das elites agropecuaristas oriundas dos tempos coloniais3; de que, ao invés de pensarmos em desaparecimento, é mais salutar refletirmos sobre o encobrimento4 ou ocultamento5 das populações indígenas como um processo historicamente construído de tentativa de negação de sua identidade face à sanha colonial; de que alguns dos índios engolfados pelo fenômeno da ocidentalização conseguiram montar estratégias de sobrevivência nesse mundo novo que ia sendo construído no Novo Mundo, ao tornarem-se agentes mediadores entre a cultura nativa e a cultura ocidental6, demonstrando sua capacidade de agirem enquanto sujeitos históricos de seu próprio tempo e espaço7. Nesse percurso constatamos que os registros escritos, mesmo sendo oriundos daqueles que impulsionaram a ocidentalização nos trópicos e, portanto, contendo seus filtros e concepções de mundo, apresentavam certos pormenores capazes de nos ajudar nas reflexões a que nos propomos. Mapas, crônicas, cartas trocadas entre as autoridades coloniais e metropolitanas, petições de sesmaria, demarcações de terra, livros de notas cartoriais e de tombo, assentos paroquiais, inventários post-mortem, justificações de dívida: transpondo a estandardização dos documentos de origem judicial, administrativa, civil ou eclesiástica e cruzando as informações desses registros entre si, com amparo na bibliografia de apoio, pudemos penetrar nas suas entrelinhas em busca do que não estava evidente ou que parecia improvável. Esforço que teve como meta compreendermos transformações que o fenômeno da ocidentalização produziu no sertão do Rio Grande e nas populações nativas que aí habitavam durante a conquista, com ênfase para o período posterior às guerras de despovoamento. No que diz respeito ao espaço, a difusão da cultura ocidental trouxe como um dos resultados o enfrentamento entre a população que aí habitava, os tapuias, e as forças coloniais interessadas no domínio do seu habitat, considerado de extrema importância para o incremento do pastoreio – forças essas que não se compunham apenas de elementos lusobrasílicos, mas, também, de negros, mestiços e índios mansos que militavam ao lado dos conquistadores. Esse encontro belicoso, conhecido na historiografia como as Guerras dos Bárbaros, opôs brutalmente duas territorialidades, a do país dos tapuias – lembrando a expressão de uso corrente entre os holandeses para designar o sertão do Rio Grande – e a do Império colonial português em expansão constante na direção oeste. 270

Territorialidades que representavam, em última instância, a oposição entre o universo cultural tarairiu, marcado pela sua extrema diversidade étnica, e o ocidental. Combatendo corpo a corpo e com consideráveis perdas para ambos os lados desde o último quartel do século XVII, ao final das guerras de conquista o sertão do Rio Grande estava enodoado com o sangue de milhares de índios e capaz de ser controlado pelo Império português. A ocidentalização, por meio da justeza validada a essas bárbaras guerras, foi responsável pelo extermínio de parte considerável – mas, não toda – da população indígena que havia se revoltado contra o alastramento da pecuária e, por conseguinte, das pessoas encarregadas de gerenciá-la no interior; pela escravidão dos índios presos nos combates, como previa a complexa legislação indigenista do período; pela redução dos sobreviventes que juraram lealdade ao Papa e a El-rei em aldeamentos sob a tutela de missionários religiosos. E, ainda, pela fuga de muitos índios para as serras e lugares mais recônditos, até que a fronteira desse mundo colonial em construção, gradativamente, conseguisse atingi-los. Apreendidos pela malha jurídica do Império português, os antigos territórios nativos, habitados pelas diversas tribos ligadas aos Tarairiu, disputados nas Guerras dos Bárbaros foram transformados, gradativamente, em um único território colonial, que era, por extensão, propriedade de el-rei. Esse território, ainda no primeiro quartel do século XVIII, se viu pontilhado de inúmeras fazendas e currais de criar gado erguidos nos terraços fluviais das ribeiras, alguns dos seus proprietários mantendo, também, pequenas lavouras em cima das serras – para cujo trabalho foram empregados índios como mão-de-obra escrava, cativada nas Guerras dos Bárbaros, e livre, formada pelos remanescentes dos conflitos e que haviam ficado dispersos pelo sertão. Paralelamente, mas, de forma gradual, negros africanos e crioulos foram sendo incorporados nas lides da criação e do eito. Com o adensamento populacional, gradativamente foram sendo instaladas estruturas de poder destinadas ao controle e gerenciamento dos colonos que se situaram nas proximidades do rio Seridó: o Arraial do Queiquó (1700), o Regimento de Ordenanças da Ribeira do Seridó (1726), a Povoação do Caicó (1735), a Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (1748) e a Vila Nova do Príncipe (1788). Estruturas que davam a medida de como o fenômeno da ocidentalização estava enraizado nos trópicos, a ponto de, mesmo em manchas populacionais situadas nos mais afastados lugares da sede do governo-geral, haver uma representação civil, militar e eclesiástica do Império português. Conquistados os territórios nativos e os corpos que neles habitavam, a conquista das almas se fez por meio da construção de uma cartografia da fé, respaldada na hidrografia da região. Referimo-nos à Freguesia de Santa Ana, estrutura da 271

administração eclesiástica que tinha sede na Povoação do Caicó em 1748 e que reuniu, dentro de sua cartografia, uma grande quantidade de fazendas situadas na Ribeira do Seridó e de seus afluentes em áreas da Capitania da Paraíba e do Rio Grande. Fazendas que eram periodicamente visitadas pelos dizimeiros, a fim de recolher o dízimo em cumprimento às obrigações tributárias dos criadores de gado, bem como pelos sacerdotes da freguesia, em desobriga, realizando missas, casamentos e batizados. Essa territorialização, assim, constituiuse enquanto o primeiro esforço institucional de reconhecimento de uma determinada região, que ainda hoje guarda o nome do rio que banha suas paragens: o Seridó8. Os documentos produzidos no âmbito da Justiça e da Igreja durante o período posterior à criação da freguesia, na Ribeira do Seridó, mostram de maneira fragmentária a coexistência da população indígena junto aos brancos, negros e mestiços. Não devemos esquecer que essas populações passaram por terríveis processos de envolvimento nas guerras de conquista, de exposição a doenças, de escravização e de redução em aldeamentos missionários. Reduzidas a pedaços, portanto, pelos agentes da ocidentalização, não se torna difícil entender, dessa maneira, o fato dos registros escritos posteriores às guerras de conquista serem tão lacunosos, ora caracterizando um indivíduo como índio, ora como pardo e, em algumas vezes, simplesmente omitindo o designativo de sua origem étnica ou social. Os índios que sobreviveram às guerras e viveram na Freguesia de Santa Ana foram imersos, pela própria dinâmica impositiva da ocidentalização, no cristianismo. Encontramos seus nomes grafados nos documentos do século XVIII e do início do século XIX sempre com nomes portugueses, participando dos ritos de passagem da cristandade e recebendo seus sacramentos – ou negando-se a recebê-los, como aconteceu em alguns casos que encontramos. Mediante a análise e reflexão desses registros escritos podemos inferir que as populações indígenas que habitavam no território da freguesia tiveram suas histórias de vida intercruzadas com as dos brancos, as dos negros e, principalmente, as dos mestiços. Sendo impossível, portanto, de nossa parte, querer reconstituir uma pureza original ou encontrar índios isolados, totalmente avessos à construção – pela força violenta da cruz e da espada, diga-se de passagem – do mundo colonial sobre os territórios onde habitavam antes que pudessem ter escutado o mugido do gado e visto as árvores da caatinga serem derrubadas para servirem de mourão aos currais. Adotar uma posição como esta seria o mesmo que negar, veementemente, a idéia de que a cultura é dinâmica e que, mesmo em situações trágicas de opressão, os povos envolvidos estabelecem trocas ou misturam seus saberes e representações9. Dessa maneira, além do funesto processo depopulativo acarretado pelas guerras de conquista, um contingente das populações indígenas e seus descendentes – como os curibocas 272

– que habitavam a Freguesia de Santa Ana, sobretudo nas primeiras décadas do século XVIII, compunha parte da mão-de-obra escrava usada nas fazendas ou nas roças situadas nas chãs das serras, como os índios Anastácio, Domingas, Bibiana da Cruz e Florência, que tiveram seu estatuto de escravos possibilitado pelos dispositivos legais da guerra justa. Outros nativos, conquanto livres ou forros, mesmo não absorvidos oficialmente pela malha da escravidão, trabalharam como fâmulos, fábricas ou mesmo vaqueiros nessas mesmas fazendas, em regime de trabalho servil, na dependência dos senhores de terra para sobreviver, como exemplificam as histórias de Francisco Gomes, Agostinho e José Pereira de Souza. Afora os índios imersos no mundo do trabalho, outros viveram o resto dos seus dias perambulando pelas fazendas, povoações e vila da freguesia, sem lugar próprio para morar, dependendo dos favores dos fazendeiros ou da caridade dos que tinham assento no tecido urbano. Pela sua condição de errantes foram chamados de vagabundos e assistentes, caracterizadores da extrema penúria em que viviam, daí o fato dos registros de suas exéquias conterem a averbação de “grátis”, indicando a não existência de posses para o pagamento da espórtula ao cura. Essa foi a história de Damásia, Filipe, João dos Santos e Damiana Maria. Outros índios, no entanto, conseguiram resistir aos impactos da ocidentalização nutrindo-se da habilidade que tiveram em transitar pelos dois mundos que se chocaram durante as guerras de conquista, o ocidental e o nativo. Mateus de Abreu, Tomé Gonçalves e Policarpo Carneiro (este, filho da índia Bibiana) vivenciaram um novo estilo de vida, meio europeu, meio índio – mestiço, usando a formulação de Serge Gruzinski. Embora fossem diferenciados do restante da população como índios ou por terem ascendência autóctone, conseguiram sobressair-se pelo fato de ocuparem cargos militares (Mateus de Abreu, que tinha o título de capitão) ou civis (Tomé Gonçalves, que exercia o ofício de porteiro do auditório) e, ainda, tomando o exemplo de Policarpo Carneiro, por recorrerem aos mecanismos da Justiça a fim de requisitarem uma herança paterna que lhe havia sido negada. Esses índios, percorrendo os meandros do mundo colonial e mantendo conexões com sua origem autóctone, tornaram-se agentes mediadores entre esses dois mundos, contribuindo para permeabilizar as suas fronteiras e para demarcar seus próprios espaços de sociabilidade. Na empreitada que levou à desagregação das sociedades indígenas do sertão da Capitania do Rio Grande no decurso das guerras bárbaras, e, posteriormente, durante a efetiva implantação de estruturas de poder como a povoação, a freguesia e a vila, a ocidentalização cumpriu o seu propósito: o de conquistar os territórios, as almas e os corpos do Novo Mundo. Não sem fraturar a organização tribal e tampouco sem desconectar o sistema de alianças nativo, extinguindo, inclusive, grande parcela dessa população. Entretanto, o 273

mesmo fenômeno de proporções planetárias que se valeu dos meios de dominação historicamente utilizados na Europa Ocidental – a religião, a escrita, a guerra, por exemplo – para efetivar essa conquista não conseguiu reproduzir, fielmente, o Velho Mundo no Novo Mundo. Não conseguindo, pois, edificar uma réplica perfeita das instituições e do modus vivendi ibérico nas terras situadas a oeste do Atlântico, a ocidentalização acabou criando condições para o aparecimento de misturas entre diferentes tipos de pessoas que transitavam entre a Ásia, a Europa, a África e a própria América. Misturas de seus corpos – no caso da miscigenação – mas, também, de suas práticas culturais. As referências ao jesuíta Gaspar de Sampères, ao mameluco Jerônimo de Albuquerque, ao rei Janduí e a Roeloff Baro, que fizemos nos dois capítulos deste trabalho, são exemplos de pessoas que atuaram entre dois mundos, traduzindo um para o outro, estabelecendo conexões e, em alguns casos, valendo-se das debilidades do próprio sistema colonial para ditar a sua sobrevivência. No terceiro e quarto capítulos, todavia, dedicamos nossas atenções, com mais realce, ao sertão da Capitania do Rio Grande, celeiro de complexas mestiçagens e mediações culturais – certamente não de todo elucidadas neste estudo –, onde pudemos reconstruir alguns dos fragmentos das histórias das populações indígenas imersas no território da Freguesia de Santa Ana do Seridó. Vivências de escravidão, de servidão, de errância e de mediação, mas, também de resistência, de adaptação, de mestiçagem, que retiramos do fundo da caverna escura referida no início deste texto para lhes dar um lugar ao sol. Estaremos satisfeito se tivermos conseguido, ao fim deste estudo, dar-lhes um lugar na história.

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Notas 1

DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo; Id. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? Tempo universitário, v. 2, n. 1, p. 129-36; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Carta endereçada a Helder Macedo. Natal, 26 jan. 1995. Manuscrita; COSTA, Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações.

2

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço; Id.. A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol (séculos XVI-XVIII). 3

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos povos indígenas. Ethnos, n. 2, p. 21-44; Id. Cultura e História: sobre o desaparecimento dos povos indígenas. Revista de Ciências Sociais, v. 23/24, n. 1/2, p. 213-25. 4

MEDEIROS, Ricardo Pinto de. A redescoberta dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial. 5

LOPES, Fátima Martins. Missões Religiosas: Índios, Colonos e Missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte; Id. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. 6 ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales y agentes mediadores; PAIVA, Eduardo França & ANASTÁSIA, Carla M. J. (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX); PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. 7

MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo, especialmente a Introdução – Redescobrindo os índios da América portuguesa: incursões pela história indígena e do indigenismo, além do Capítulo 3 – Entre o etnocídio e a etnogênese: identidades indígenas coloniais. 8

MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense; MORAIS, Ione Rodrigues Diniz Morais. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência. 9

BOCCARA, Guillaume. Mundos Nuevos en las Fronteras del Nuevo Mundo: Relectura de los Procesos Coloniales de Etnogénesis, Etnificación y Mestizaje en Tiempos de Globalización. Mundo nuevo/Nuevos mundos, n. 1.

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FONTES A – MANUSCRITAS

1 Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó Casa Paroquial São Joaquim, Paróquia de Santa Ana, Caicó, RN Livro de registro de batizados nº 01 (1803-1806) Livro de registro de casamentos nº 01 (1788-1809) Livro de registro de casamentos nº 02 (1809-1821) Livro de registro de enterros nº 01 (1788-1811) Livro de registro de enterros nº 02 (1812-1838) Livro de registro de enterros nº 03 (1838-1857) Livro de Tombo nº 01 (1748-1906)

2 Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário, Caicó, RN Inventário de Manuel de Souza Forte (1793)∗ Livro de notas nº 02 (1792-1799) Livro de notas nº 03 (1799-1802) Livro de notas nº 04 (1802-1805)

3 Laboratório de Documentação Histórica Centro de Ensino Superior do Seridó, Campus de Caicó, Universidade Federal do Rio grande do Norte Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Inventários post-mortem Caixa 01 (1737-1774) Inventário de Crispim de Andrade (1737) Inventário de José Carneiro Machado (1774) Inventário de José Gomes Nobre (1764) Inventário de Manuel Gonçalves Rabelo (1763) ∗

Transcrição feita por Olavo de Medeiros Filho em 04 de março de 1993. Na época em que a Comarca de Caicó disponibilizou os inventários post-mortem do 1º Cartório Judiciário para o LABORDOC, esse inventário não se encontrava dentro da Caixa 3, que vai de 1790 a 1797.

Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Inventários post-mortem Caixa 02 (1775-1789) Inventário de Vicência Lins de Vasconcelos (1786) Justificação de dívida em inventário de Manuel Marques do Nascimento (1789) Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Inventários post-mortem Caixa 03 (1790-1797) Inventário de João Álvares de Oliveira (1791) Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Inventários post-mortem Caixa 03A (1798-1799) Inventário de João Ferreira Godinho (1799) Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Inventários post-mortem Caixa 08 (1822) Inventário de Manuel Pereira Monteiro (1822) Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Diversos Caixa 01 Cód. Folhas esparsas de inventários, vol. 1º, diversas épocas. Pregão de bens nas ruas públicas da Vila Nova do Príncipe, sem identificação (1812) Códice Folhas esparsas de inventários, vol. 1º, diversas épocas. Auto de arrematação da mulatinha Ana e da cabrinha Teresa (1812) Fundo da Comarca de Caicó 1º Cartório Judiciário Diversos Caixa 03 Demarcação requerida por Francisco do Rêgo Toscano em uma data limitando-se com a Inês (1855) Divisão do sítio Inês de Dentro. Requerente: Manuel Batista dos Santos (1830) Divisão dos sítios Arapuá e Conceição (1851)

271

Linha divisória entre o capitão Manuel Batista dos Santos Requerente: Manuel Batista e outros (1855)

e o sítio Caridade.

Fundo José Augusto Bezerra de Medeiros Mappa dos preços correntes na Parochia da Vila do Principe no mez de Janeiro e no ano de 1802, por Cipriano Lopes Galvão

3 Comarca de Acari 1º Cartório Judiciário, Acari, RN Inventários post-mortem Maço 01 Inventário de Manuel Ferreira Borges (1772) – Processo nº 01 Partilhas amigáveis de Josefa de Araújo Pereira Júnior (1819) – Processo nº 26 Inventário de Manuel Antonio das Neves (1787) – Processo nº 04 Inventário de Caetano Dantas Corrêa (1798) – Processo nº 11 Inventário de José Ferreira dos Santos (1805) – Processo nº 14

4 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte Natal, RN Caixa Sesmarias – Demarcação de Terra (1615-1807) (cota anterior: Caixa 46) Demarcação do Sitio da Passagem, Acari (1772) Demarcação do Sitio Ingá no Sertão do Seridó (1772) [ inclui Carta de data e Sesmaria concedida a Antonio de Albuquerque da Camara, Luiz de Souza Furna, Lopo de Albuquerque da Camara e Pedro de Albuquerque da Camara, de sobras no Rio Acauhã, de 1684 ] Demarcação do Totôro, Curraes Novos – 3 datas de terra requerida pelo Cel. Cipriano Lopes Galvão e sua mr Da Adriana de Holanda Vasconcelos, moradores na Ribeira do Seridó, desta capitania (1763) Registro do auto de demarcação de meia légua de comprido e uma de largo no Poço e Cacimba do Saco, da Ribeira do Seridó, de N. S. da Guia da Capela do Acarî (1769). Documentos Avulsos Livro do escrivão Freitas Auto de medição do sitio da Passage, sobras do Rossaurubú da Ribeira do Seridó, a requerimento de Cosme de Abreu Maciel (1768) Demarcação do Sítio da Passagem (1769) Registro de hum auto de demarcação do Acari pertencente ao Cap. Antº Garcia de Sá Barroso e a Felipe de Moura, a requerimento dos mesmos (1769)

272

Sesmarias doadas pela Capitania do Rio Grande Aluara sobre a repartição que Vossa Magestade manda fazer das terras da Capitania do Ryo Grande no Estado do Brazil para Vossa Magestade ver todo e vae por duas vias (1614) [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 1, p. 7 ] Sesmaria nº 30 (1676), concedida a Teodósia Leite de Oliveira, Teodora dos Prazeres e Manuel Gonçalves Diniz, na Ribeira do Acauã [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 1, p. 179 ]

Sesmaria nº 39 (1679), concedida a Luiz de Souza Furna, Antonio de Albuquerque Câmara, Pedro Albuquerque da Câmara e Lôpo Albuquerque da Câmara, na Ribeira do Acauã [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 1, p. 223 ] Sesmaria nº 44 (1680), concedida a Antonio Gonçalves Cabral, Antonio de Azevêdo Cabral, Pascoal Pereira Lima, Antonio Moreira e Antonio da Fonseca, na Ribeira do Acauã [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 1, p. 250 ] Sesmaria nº 479 (1767), concedida a Manuel Antonio das Neves, na Ribeira do Seridó [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 4, p. 34 ]

Sesmaria nº 483 (1767), concedida a Manuel Antonio das Neves, na Ribeira do Seridó [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 4, p. 47 ]

Sesmaria nº 49 (1689), concedida a Diogo Pereira Malheiro e Jerônimo César de Melo, na Ribeira do Sabugi [ Livro nº 1 do registro de datas e sesmarias da Capitania do Rio Grande – 1689-1706, p. 12, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 14 ]

Sesmaria nº 518 (1783), concedida a Manuel de Souza Forte e João Batista Ferreira, na Ribeira do Seridó [ FVR. IHGRN. Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 4, p. 147 ] Sesmaria nº 53 (1696), concedida a André Vieira de Melo e outros heréus, na Ribeira do Quinturaré [ Livro nº 1 do registro de datas e sesmarias da Capitania do Rio Grande – 1689-1706, p. 103v, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 18 ]

Sesmaria nº 65 (1686), concedida a Pascoal Rodrigues do Vale, Francisco Barbosa, José Barbosa Diniz e Antonio Martins do Vale, na Ribeira do Sabugi [ Livro nº 1 do registro de datas e sesmarias da Capitania do Rio Grande – 1689-1706, p. 12, apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense, p. 10 ]

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6 Acervo particular do Prof. Renato de Medeiros Rocha Caicó, RN Traslado da Data da ribeira das Espinharas aos Oliveiras em 1670 a qual não é comfirmada nem demarcada [ cópia manuscrita do original da sesmaria, doada pelo GovernoGeral do Brasil ]

6 Acervo particular do Sr. Neemias Gurgel Caicó/Natal, RN CAMBOIM, Clementino. Alguns ramos genealógicos que precederam ou se entroncaram em alguns famílias do Nordeste brasileiro. Caicó: s/d. 33p. Manuscrito datilografado. [ inclui a “Acta da installação da Povoação do Caicó”, transcrita pelo autor do Livro nº 02 da Prefeitura Municipal de Caicó – 1734-1804, atualmente desaparecido ]

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