Octavio Dutra - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo V

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Música Popular Brasileira
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Octavio Dutra, o violão de estimação da cidade

Octavio foi o cara da música do Rio Grande do Sul nos primeiros 30 anos do século XX. Quando morreu, em 1937, era um nome conhecido nacionalmente e uma figura tão central na música de Porto Alegre como possivelmente jamais houve outra. Seu pai era um rico magistrado e poeta, cultor do beletrismo, dono de muitas terras, chamado Miguel Antônio Dutra. Nascido o menino dia três de dezembro de 1884, a última coisa que passaria pela cabeça de Miguel é que o pequeno seria… músico! E pior: que teria de viver disso! Sim: antes do guri crescer, o magistrado perderia toda a fortuna na política (tempos bons aqueles em que o pessoalperdia dinheiro na política). E aí foi aquela reviravolta no seio de uma família tão tradicional quanto era possível ser numa cidade de pouco mais de 100 anos. Mas bem pior que isso foi o que o tempo e seus desvãos fizeram com o filho de Miguel: exceto por uma rua batizada Octavio Dutra (no

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bairro porto-alegrense de Santa Teresa), seu nome foi gradativamente esquecido. Nos 50 anos seguintes à sua morte, houve iniciativas como a da Orquestra Brasileira Octavio Dutra (mais tarde rebatizada de Orquestra Filarmônica Popular de Porto Alegre - OFIPPA). Fundada em 1961 por Voltaire Dutra Paes (Porto Alegre, 1926 - Porto Alegre, 1990) – o grupo reunia mais de 50 músicos, muitos deles parentes do mestre. Que tocavam novos arranjos escritos por Voltaire, mas num clima octaviano: aos tradicionais naipes de cordas, madeiras e metais se somavam saxofones, ritmistas, seis bandolins, sete violões e dois violões de sete cordas. Ninguém ganhava nada – e havia muitos músicos profissionais ali -, mas a música era tão boa que, mesmo assim, a OFIPPA durou mais de 10 anos. Já nas décadas de 1970 e 80 só um que outro chorão e professor, como Ayrton do Bandolim ou Luiz Machado, lembrava algum choro ou valsa de Octavio e a ensinava a seus alunos. Nada mais. No terceiro milênio é que o nome de Octavio voltou a ser comentado, e grande parte do mérito é de dois pesquisadores gaúchos: Márcio de Souza, também violonista, vem estudando, gravando e espalhando por aí peças de Octavio – além de ter feito sobre ele seu doutorado em História. E o músico e pesquisador Hardy Vedana, que editou no ano de 2000 uma biografia de Dutra baseada no álbum de recortes que a família guardou. *** Octavio foi um dos pioneiros na cidade a garantir seu sustento somente com a música. Isso significava – e, pra maioria dos músicos porto-alegrenses significa até hoje – conciliar uma imensa amplitude de interesses e necessidades: professor de canto, violão e bandolim, compositor, teatrólogo, poeta, ensaiador e diretor de blocos de carnaval e de estudantinas. Estudantinas? Sim: grupos de moços e moçoilas de bem, que dedicavam suas (muitas) horas vagas a montar pequenas orquestras de estudantes, daí o nome. Também era um virtuose em todos os instrumentos de cordas dedilhadas que lhe caíssem às mãos. Com eles, fazia música popular, mas embasado em formação erudita. E olha que ela foi bastante tardia: começou a estudar teoria só aos 24 anos, em 1908. Mas o fez com afinco: aprendeu não só a ler e escrever música. Aprofundou-se 2

em harmonia e contraponto no Conservatório de Porto Alegre, aluno do compositor gaúcho Murilo Furtado (esta mesma escola ensinaria Radamés Gnattali, e, décadas depois, se transformaria no Instituto de Belas-Artes – hoje Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Quem já leu o capítulo sobre a entrada do século XX sabe que o compositor estreou aos 15 anos, já com uma pequena pérola que revela algumas das idiossincrasias melódicas que seriam sua marca registrada. Se chama Valsa Número 1 e, se você procurar, a encontrará gravada por Nivaldo José e Itamar Jardim no CD Espia Só, do Duo Retrato Brasileiro. Pois cinco anos depois, Octavio ainda não sabia teoria, tinha rasas duas décadas de vida, mas já era um professor renomado. O mesmo professor que escreveria refinados exercícios técnicos específicos para violão, como o Estudo do Dedo Polegar – que parece muito pouco um estudo de técnica, de tão musical que é. Tudo isso e mais um pouco motivava loas como a do poeta Zacarias Santos, publicada à época em um jornal local: O Seu Geito (sic): Conheço nesta cidade Um janota musical Tem no cantar a meiguice E tocando é divinal Com sua voz maviosa Toda cheia de harmonias Conquista bellas meninas Vive alegre na folia Correcto no bandolim Batuta no violão Compõe músicas, revistas Até mimosa canção. Janota, ok, filho de boa família e tal. Já sabemos também que cantava, ainda que não profissionalmente. Usava a voz para outros fins, como denota o segundo verso. Correto no bandolim, ao que parece o poeta o preferia 3

ao violão. Compõe músicas, já se sabe. Aos montes. Inclusive o fox Mimosa, um sucesso. Mas olha só: revistas?!? Pois é.

Octavio e Levino, foto publicada na Folha da Tarde em janeiro de 1942

Dutra escreveu, entre 1907 e 1930, música para 11 revistas teatrais – só em 1916, foram três. Espetáculos com títulos deliciosos como Ai, Meu Cacete!, Nick Winter em Porto Alegre ou Jupe Culotte. Todas com algo como 20 ou 30 números musicais escritos por ele. E pelo menos uma em parceria com seu irmão Arnaldo: Typos e Typas. Pérolas esquecidas de uma época e um gênero sobre o qual se conhece muito do que foi feito no Rio de Janeiro e praticamente nada sobre sua face porto-alegrense. Partituras que, felizmente, seguem intactas, com a família, esperando serem tiradas das gavetas. Octavio publicou também alguns álbuns com suas músicas, além de ter sido o pioneiro gaúcho em compor reclames – os atuais jingles. Multimídia ou agitador cultural, como queira o amigo chamá-lo hoje, nos anos 1910, 20 e 30 era assunto constante de notas e entrevistas dos jornais porto-alegrenses. Um verdadeiro pop star local, e com tão bom conceito que conseguiu a façanha de moralizar os instrumentos que tocava. Foi graças a ele que as casas de família permitiram a reentré em suas salas do violão e do bandolim – que, como relatou o viajante francês Saint-Hilaire, já eram tocados em Porto Alegre 100 anos

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antes, mas haviam sido transformados em sinônimo de malandragem e enxotados dos lares a golpes de piano: O recital levado a effeito ontem no Cine-Theatro Carlos Gomes, pelo compositor Octávio Dutra, alcançou um successo imprevisto, pois desconhecíamos até certo ponto o interesse que a música popular despertaria no seio da alta sociedade, escreveu sobre o Recital Octavio Dutra a cronista Bertha Singerman no Estado do Rio Grande de 7 de abril de 1931. E segue, mostrando o quanto ainda era assustadoramente preconceituosa a Porto Alegre do começo dos anos 1930: Os nossos melhores vaticínios ficaram aquém do êxito da festa musical. A numerosa assistência, que se comprimia no recinto daquelle centro de diversões, era um demonstrativo claro do prestígio que ainda gosa no nosso escol social a música anônima das ruas. Música anônima das ruas?!?!? A cronista segue lamentando que os intérpretes não estivessem à altura do repertório, fazendo ressalva ao desempenho de Dante Santoro e, é claro, ao quarteto de violões dirigido por Octavio. E o violão era justamente o instrumento em que Dutra se superava. Um outro jornal da época explica que, ao dedilhar o pinho, ele põe a alma em delírios, pranto nos olhos da gente, acompanhando, em modulações novas, dolorosas, a vocalização gemedora e dolorida de uma canção. Te mete! Tudo isso e mais um pouco está nos recortes do seu álbum de recordações. Um sucessão de maravilhas das quais, infelizmente, muitas vezes Octavio não se deu ao trabalho de registrar a data ou o nome dos jornais que tomaram a tesourada. Está ali, em outra página, num artigo publicado por volta de 1907, a propósito de Pétalas, álbum de músicas suas para piano e bandolim: nesta coleção de músicas, o seu inteligente autor, que é bastante conhecido entre nós, revela o seu apurado gosto artístico. Vinte e seis anos de idade, ainda morando com a mãe viúva e os irmãos na rua da Concórdia (atual José do Patrocínio, coração do bairro da Cidade Baixa), já citado como o bastante conhecido… E há ainda o seu lado letrista e poeta de grande produção, um exemplo acabado da lírica parnasiana que dominava a canção popular 5

brasileira pré-Noel Rosa, como bem exemplifica o drama edipiano de Longe de Ti: Longe de ti, mãe querida, Sem teu amor, sem ventura, Não tenho prazer na vida, A vida é toda amargura Ou então, a rebuscada valsa lenta Seductora: Teu olhar É um iman de luz Oh, que atrahe e seduz!.. (…) Tens o doce beijar De inebriar De odor e amôr! (…) Mulher má… Oh, não sejas assim Odoroso jasmim! Adorada vem cá Vem minha flor Inerato amôr! A música brasileira deve muito à Noel Rosa e sua geração de letristas… *** Ainda não falamos o suficiente do carnavalesco Octavio Dutra. Ele começou dirigindo a estudantina do Bloco dos Tigres, cujo grande e afinado coro seria lembrado 30 anos depois, em uma matéria do Correio do Povo. De lá sairia em 1921, pra fundar o cordão Os Batutas – que fez história e no qual um Dante Santoro, de apenas 17 anos, arrasava na flauta. Nesse meio tempo, ainda foi maestro ensaiador d’Os Vampiros e do Passa-Fome e AndaGordo, blocos de fama e respeito. E, nos anos 1930, d’Os Turunas. De lambuja, ganhou mais de um concurso de músicas feitas para o

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reinado de Momo – gênero que, registre-se, à sua época ainda se sedimentava. A propósito, há uma longa entrevista num dos tantos recortes não identificados de seu álbum. Só o que se sabe é que é do jornal Última Hora. A linhas tantas, reproduz essa maravilha de diálogo: – Estiveram as festas de Momo á altura da expectativa? – Sim… e não. – A resposta é um pouco “melancia”… – Evidentemente. Mas entretanto a mais precisa… Sim. A mais cabível, porque não se fira tão directamente as susceptibilidades do Deus da Pândega. Não tivemos até agora um carnaval magnífico, tivemos um atrahente carnaval. (…) – Momo não perdeu o prestígio… – Não. Impera ainda sobre a alegria do povo. – Falemos sobre os blocos e cordões (…) – Quer a marcha leader deste anno? Eil-a: A MARCHA CAMPEÃ DESTE CARNAVAL “SONHO DE JOCOTÓ” SOLO Que noite doce, Celeste e linda, Se eterna fosse (noite sem par) Eu só queria Reso ao teu lado No meu pousado O teu olhar CORO E então viver Sempre a fruir Todo o prazer Do teu sorrir Por ti cantar 7

Canções de amor E te adorar Assim, ó flor (bis) – Realmente é admirável. Cite-nos o autor. – A letra e musica pertencemme, obrigado pelo elogio… – É sincero. – Acredito. Ficou famosa uma cena registrada justamente na sua estreia nos Batutas em 1921. O próprio autor anotou no seu caderno, ao lado da letra de Bota Fora Esse Negócio, parceria sua com o irmão Arnaldo Dutra (negritos meus, sublinhados dele): Este tango, cantado com successo nunca visto pel’Os Batutas, campeão, na Praça Garibaldi, na Caverna dos Paladinos, em uma festa que esta sociedade dedicou aos Cordões da Capital desmoralizou por completo o Bloco dos Tigres, até então tido como o Campeão do Carnaval. Logo após os Batutas haverem executado, com maestria, a valsa Palmyra, de Octavio Dutra, então ensaiador e compositor d’Os Batutas onde teve um sólo de flauta o applaudido “Canário” Dante Santoro, o povo que assistia com avidez o encontro Batutas-Tigres ovacionou com delírio a Estudantina Batuta e levantou em seus braços o glorioso flautista Dante.

Então os “Tigres” fortemente despeitados, responderam aos Batutas com o bonito tango “Vahe botá isto lá” da lavra de J. Penna, o 8

que teve immediata resposta pel’Os Batutas, que executaram o “Bota fóra este negócio” dando lugar, que o povo (3.000 pessoas) vaiasse os Tigres fazendo com que, estes, abatidos, se retirassem da arena, sendo acclamado campeão, “Os Batutas”. Sempre lembrando que o que se chama tango, na época, é o tanguinho brasileiro, pai do choro. E esse, em particular, soa hoje como um maxixe.

Falando em choro, há um pequeno quiprocó com relação a Dutra que possivelmente se esclareça em função dessas raízes choronas: o aqui muitas vezes citado Hardy Vedana afirma, em seu livro Octavio Dutra na História da Música de Porto Alegre, que nosso protagonista teria um emprego público, nos correios. Um dos argumentos está no próprio álbum de Octavio: um recorte de jornal com a relação dos aprovados no concurso para carteiro de 3ª Classe, onde ele está em segundo lugar, empatado com vários outros. O outro é uma furiosa carta publicada no jornal A Época: O sr. Ubaldo Porto foi demitido, já dissemos, por ter votado no dr. Fernando Abbott: e o seu substituto foi escolhido, com o maior desrespeito aos direitos adquiridos dos candidatos classificados, (…) simplesmente por ter votado abertamente no novo dictador do Rio Grande. Na vaga aberta com a demissão (…) foi nomeado Octavio Dutra, que não havia feito concurso.

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Grande parte dos chorões cariocas da virada do século XIX pro XX trabalhavam em empregos públicos. Isso pode ter ajudado a dar verossimilhança à estória. Mas a sobrinha-neta de Octavio, Sônia Paes Porto, principal depositária de seu acervo e ex-pianista da Orquestra Octavio Dutra, garante que o tio-avô sempre viveu só da música. Segundo ela, quem era carteiro na família era o irmão de Octavio, Dario. Outro dos recortes do álbum cita o irmão Arnaldo como praticante da administração dos Correios. Aí, das duas, uma: ou nosso personagem foi logo exonerado pelo escândalo; ou nunca assumiu. *** E nem foi citado ainda o grande motivo pelo qual o nome de Octavio vem sendo relembrado entre chorões e estudiosos do choro pelo Brasil: seu talento como band-leader. Infelizmente não existe nenhum registro fonográfico de seu quarteto de violões (pareciam harpas dedilhadas por mãos de mestres, diz uma crítica). Mas há muita coisa gravada com seu principal grupo, o lendário…

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…Terror dos Facões. O cavaquinista e pesquisador carioca Henrique Cazes é um dos que cita a importância do grupo, nascido por volta de 1911. Em seu livro O choro – do quintal ao Municipal, ele reconhece a superioridade artística dos Facões até mesmo em face do regional mais importante da década de 1920: os Oito Batutas de Pixinguinha. Os batutas eram realmente batutas, mas, como diria Radamés Gnattali (que os conheceu de perto) aquilo era uma esculhambação. Cada um tocava o que bem entendia, enquanto que os Facões tinham uma preocupação inovadora com um detalhe que, como já falamos no capítulo sobre os jazz, era pouco explorado na música popular desse momento: o arranjo. Arranjar uma música, escrever o que cada um dos instrumentistas vai executar, contrapontos e harmonias, era coisa inédita para grupos do gênero. O solista tocava a melodia escrita pelo compositor e o resto do pessoal improvisava o acompanhamento. Mas não era assim com o Terror. Cazes mesmo salienta que algumas das melhores gravações dessa época são do grupo gaúcho.(…) Dutra é autor de muitas valsas e pelo menos uma ótima polca (aliás, já quase um choro como forma), intitulada Olha o Poste! E, segue, ressaltando mais um aspecto de pioneirismo do grupo, ao colocar à frente um instrumento então pouco usado como solista: Em uma gravação de 1913, o Terror dos Facões troca a habitual flauta solista por um bandolinista virtuose, infelizmente não identificado. A gravação em questão é da mazurca Coração que Fala, e o bandolim certamente é do próprio Octavio. Oriundo do Trio do Choro – que tinha Dutra, seu irmão Arnaldo Dutra no cavaquinho e Honório da Silva no violão – o Terror dos Facões assim se chamava porque era um verdadeiro espanta-facão. Em gíria de músico, facão é um instrumentista ruim, e ninguém queria correr o risco de ser gentilmente convidado a tocar com eles, tendo de passar maus bocados graças às imprevistas mudanças harmônicas e melódicas das polcas, valsas e tangos octavianos. Como, além de tudo, muitos deles eram filhos das melhores famílias, vestidos na maior estica, o confronto só tendia a piorar as coisas. Enquanto durou, até o Carnaval de 1921, o Terror dos Facões foi padrão nacional de excelência.

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A formação clássica tinha ainda o diferencial de contar com dois flautistas: Creso de Barros e José Xavier Bastos, o Cazuza. A eles se juntava Dutra no violão e bandolim, Arnaldo no cavaquinho, mais Honório e Pedro Neves nos violões. Essa era a base – ainda que em grande parte das gravações deixadas pelo grupo haja apenas um cavaquinho e um violão acompanhando uma ou duas flautas. Uma das raras exceções são os dois solos de piston (trompete) de Ignácio Accioly, integrante da Banda do Décimo Regimento de Infantaria do Exército. Mas muitos outros músicos passaram pelo grupo, como o cantor Benjamin Borges ou o violinista e pianista carioca Augusto Vasseur – que, como já vimos, passou a infância e adolescência em Porto Alegre e depois faria sucesso no Rio. Conforme a situação e a escalação, o grupo aumentava e trocava o nome para Orquestra Terror dos Facões. A chinfra era tanta que, além de uma música-tema (um tango brasileiro chamado Terror dos Facões), ainda tinham sua famosa marcha de guerra, cantada em coro por todos – e gravada na década de 1940 pelo discípulo Dante Santoro e os Trigêmeos Vocalistas: Sempre nós Nós sempre os preferidos E da lira Somos bons chorões Afinados Fortes e Unidos, Eis aqui O Terror dos Facões!!! E ainda falta o Octavio Dutra compositor. De sua pena, conservaram-se as partituras de nada menos que 482 músicas, repletas de pequenas surpresas, pequenos sustos, pequenos “será que é isso mesmo?” de quem se propõe a tocá-las ou mesmo escutar suas gravações. Modulações raras, acordes por vezes desconcertantes para a música popular de então, saltos melódicos difíceis até hoje pra quem não é um terror dos facões. E numa amplitude de gêneros que, se por um lado, é bastante representativa de uma época em que ainda se construía a identidade da música brasileira, por outro é inusual mesmo para essa época. Praticamente 12

não há ritmo de então que não foi visitado por ele, dos americanos fox e one step até as infinitas variações da polca, polcachoro, polca-marcha etc. Canções regionalistas e sertanejas, serestas, quadrilhas. Tangos argentinos, choros, maxixes, valsas, sambas. Não é acaso que fosse muito gravado tanto na casa A Electrica quanto na Hartlieb, em Porto Alegre. E, também, na principal gravadora de então: a mítica Casa Edison do Rio de Janeiro. Pra fechar esse trecho, se você ainda não se convenceu, três provas irrefutáveis da qualidade e popularidade de Octavio e sua música na Porto Alegre dos anos 1910, 20 e 30: 1) Eram suas 28 das 101 músicas lançadas na primeira fornada dos discos Rio-grandense, frutos da parceria entre a Casa Hartlieb e a citada Edison (falamos disso no capítulo sobre a Casa A Electrica. Graças a esses discos, o porto-alegrense que nasceu e morreu na mesma Cidade Baixa foi o recordista nacional em gravações no ano de 1913. Em 1915 (sim, deveria ser 1914, mas é o que está lá), o jornal carioca A Noite publica a seguinte nota: Entre as duzentas composições registradas no último dia do anno findo, só elle tem cerca de trinta! A matéria se referia aos registros recentemente feitos por Octavio na seção de direitos autorais da Biblioteca Nacional, garantindo como suas as músicas que gravara para a Edison (e o texto segue com uma observação curiosa: com isso vão sendo suplantadas as músicas importadas, que para aqui eram trazidas nas peças theatraes. A música do theatro está sendo desbancada pela do phonógrapho). Ainda sobre esse tema: Celina, a mais famosa de suas valsas foi assunto do jornal local Correio do Povo. Esta lá: Mais uma bela composição musical acaba de publicar o talentoso moço Octavio Dutra, já muito conhecido pelas suas inspiradas producções. Celina era o nome da recém-finada filha de um capitão chamado Firmino Rodrigues, e fez sucesso nos pianos e fonógrafos de todo o país, sendo a grande estrela dessas gravações de 1913. Realmente original, tanto na sua composição quanto no arranjo que usa das mais variadas formas a combinação das duas flautas (nem sempre totalmente afinadas), a valsa de andamento rápido esbanja contrapontos nos bordões do violão enquanto um cavaquinho leva o ritmo que, não fosse a harmonia, lembraria uma rancheira. Tudo claramente escrito, arranjado, sem espaço para improvisos. Como são, aliás, todas as gravações do grupo. 13

Distribuída nacionalmente graças à parceria com a Odeon/Casa Edison, Celina vendeu a espantosa marca de 40 mil discos – um feito impressionante. Pra se ter uma ideia, a média de tiragem nacional por volta de 1906 era de 250 cópias. Transpondo à realidade de 90 anos depois, e considerando a tiragem média de um disco como três mil exemplares, o single comCelina teria vendido algo como meio milhão. Era a obra-prima do que um colunista da revista A Hora da Saudade classificava como valsa porto-alegrense, subgênero do qual Octavio seria nada menos que o criador. 2) Pixinguinha esteve algumas vezes com Octavio quando passou por Porto Alegre com seus Oito Batutas, em 1927. Como também o procuraram os lendários violonistas Agustín Barrios, Juan Rodriguez – que passou a tocar uma peça de Dutra escrita especialmente para ele: Don Juan – e Américo Jacomino, o Canhoto. Pixinguinha levou na bagagem de volta ao Rio partituras e autorizações pra gravar sete músicas de Octavio. Ok, não gravou nenhuma, mas pelo menos teve vontade. 3) No final da vida, mais um encontro. Fazendo uma temporada no Cassino Farroupilha, Garoto – o mais importante violonista brasileiro da primeira metade do século – foi mais um que fez questão de visitar Octavio. Do encontro resulta uma troca de gentilezas. Dutra dedica a ele a vertiginosa polca-choro Sahe da Frente! E recebe de volta uma valsa em sua homenagem. ***

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Não era só nos jingles que nosso Dutra se revelava um marqueteiro de marca maior. O cara dedicava a Valsa Republicana ao presidente da província Borges de Medeiros com a mesma desfaçatez com que agradava monarquistas saudosos escrevendo uma loa a Dom Pedro II. Sobre outras valsas, Corália e Independente, o melhor é reproduzir o que diz o jornal A Noite: foram pelo nosso intelligente patrício offerecidas à graciosa senhorita Corália de Oliveira, dilecta filha do nosso diretor, e a este jornal. Sim, essa era uma prática comum nessa época, uma forma de conseguir simpatia na imprensa ou entre os poderosos de plantão. Mas ele não perdia uma. Com essa projeção crescente, combinada à grande quantidade de alunos, era natural que Dutra virasse um aglutinador de gente interessante e talentosa. Com a honrosa exceção de Radamés Gnattali, quase todos os grandes músicos da geração seguinte à sua estudaram com ele – muitas vezes sem pagar um tostão, mas sempre tendo de dar o máximo de si, que ele não hesitava em fazer voar a varinha na mão do aluno desleixado. A grande estrela foi Dante Santoro, mas o time é da pesada. Gente que faria nome regional, como Dinarte Gomes de Mello, o Zé Bernardes da futura dupla Oswaldinho & Zé Bernardes, ou então Camilo Pena - que, além de bom compositor, era considerado o melhor tocador de bombardino do Rio Grande do Sul, no tempo em que isso daria orgulho a qualquer mãe (a se julgar pelo título de uma de suas peças mais célebres, Camilo também certamente era adepto de grandes noitadas: o choro Cocaína homenageava o pó branco então livremente vendido nas farmácias de plantão para os boêmios que não queriam que a noite acabasse nunca).

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Ovídio Chaves Outros alunos famosos: Piratini – flautista, líder de importante regional e futuro parceiro de Lupicínio Rodrigues –, o grande violonista Jessé Silva (possivelmente o maior violonista de 7 cordas que Porto Alegre já teve), o poeta e compositor Ovídio Chaves, autor do clássico Fiz a Cama na Varanda, e o ainda na ativa guitarrista Raul Lima, estrela do Conjunto Norberto Baldauf. Também teve muita gente que começou com Octavio e seguiu para o centro do país. Aí entra o violonista cego matogrossense Levino da Conceição, o bandolinista Pery Cunha e o violonista Ney Orestes – que integrou o prestigiado regional de Benedito Lacerda, no Rio. Além do também violonista Gustavo Ribeiro, que estudou com Octavio e Levino e, na década de 1920, era o professor de violão mais disputado da capital carioca.

Radamés Gnattali, garotão, ainda em Porto Alegre, tocando bem feliz com cavaquinho de 8 cordas (!). (Mesmo sobre Radamés Gnattali paira a dúvida. A gente sabe que o genial compositor e pianista tocava cavaquinho e violão – e com alguém deve ter estudado. Sabe-se também que Octavio tinha bronca 16

com o pai de Radamés, também músico: quando Dutra ainda não escrevia partituras, ele pediu a Alessandro Gnattali que pusesse nas pautas uma peça sua, para editá-la. Alessandro o fez, mas com alguns erros. Um historiador jamais daria um chute desses, mas é difícil resistir à tentação de pensar que Radamés também pode ter estudado com Octavio, e ambos fizeram questão de esquecer, em função da bronca dirigida por escrito por Dutra ao Gnattali pai, guardada até hoje no acervo de Sônia Dutra). *** E você acha que acabou? Nada! Quando, em 1927, a Rádio Gaúcha começou suas transmissões, nada foi mais natural do que chamar o músico mais popular da cidade: Octavio seria o diretor musical da emissora desta data até 1934, e deixaria saudade nos colegas, como o radioator Pery Borges, que redigiu e leu uma emocionada radio-chronica do dia do seu falecimento: 1910… altas horas… Junho friorento… Rua da Margem (atual João Alfredo, bairro da Cidade Baixa), iluminada ainda por lampeõezinhos de kerosene… silencio de repouso e de morte… de repente, junto ao humbral de uma janella modesta, os dedos mágicos do artista acordavam os sons apaixonados de uma canção de amor e a voz do Lauro ou do Zeca, dois trovadores do bando de Octavio, acordava o silencio somnolento da rua, num poema de ternura. (…) Octavio tinha o sangue azul do reinado bohemio nas veias musicaes. Na segunda metade dos anos 1920, sua bola estava tão cheia que ele peita uma pequena ousadia (que seria repetida em outras oportunidades e outros teatros, como o São Pedro): num Grandioso Festival do Clube Carnavalesco Os Batutas, dia 28 de julho de 1926 no Theatro Apollo, o encerramento de 10 números musicais escritos e ensaiados por Octavio era com uma adaptação sua da Protofonia do Guarany, de Carlos Gomes, para uma orquestra que incluía violões, bandolins e cavaquinhos. No programa que se iniciava com um deslumbrante film em sete longas partes, intitulado A Marca de Giz, a Phantasia d’O Guarany, pela primeira vez executada por 17

orchestra carnavalesca como a d’Os Batutas. E no anúncio do jornal: O Guarany nunca foi executado por orchestra desse gênero (violões e cavaquinhos etc). Mesmo Radamés Gnattali, considerado o pioneiro na fusão entre grupo regional e orquestra, só teria a mesma ideia de Octavio quando estava na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em 1943 – quase 20 anos depois. Homenagens não faltaram quando, com apenas 52 anos, Octavio Dutra, já doente não se sabe exatamente do quê – uma cruel enfermidade que há annos o atormentava - deixou incompleta sua última música. Era dia 9 de julho do mesmo 1937 que levava Noel Rosa e trazia o Estado Novo, e Octavio estava ensaiando com o Regional do Piratini uma nova versão de seu arranjo d’O Guarany. Morreu consagrado, incensado, mas, em termos monetários, no máximo remediado. Nunca teve dinheiro pra comprar uma casa para morar com sua mulher e sua única filha, Diotavina, a Dedê (o casal teve ainda uma outra menina, Octalita, que morreu com apenas dois anos de idade). Uma multidão acorreu a seu enterro. Esta lá, em seu necrológio na Folha da Tarde: duvidamos que exista em Porto Alegre pessoa que desconheça a vida do músico que acaba de desapparecer. Ao que outro jornal, não identificado, completava: O rádio está de luto. Acaba de desapparecer (…) um grande batalhador da Radio-Difusão, (…) guia amigo e realizador duma geração inteira de músicos e cantores do Rio Grande. (…) Calou-se o violão de estimação da cidade. A essas se somavam as palavras emocionadas do ex-aluno e então jornalista Ovídio Chaves, em sua coluna: A lembrança de Octavio Dutra é uma religião. Uma admirável religião em homenagem a Santo Octavio Dutra. *** No ano 2000, Hardy Vedana publicou, bancado pelo Fumproarte, da prefeitura da capital gaúcha, o livro Octavio Dutra na história da música de Porto Alegre, com uma pequena biografia, reproduções de partituras, um catálogo de obras e outras preciosidades.

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A fabulosa caixa "Memórias Musicais da Casa Edison" Dois anos depois, numa parceria entre a gravadora carioca Biscoito Fino, a produtora Sarapuí e o Instituto Moreira Salles, é lançada uma fabulosa caixa bancada pela Petrobrás com 15 CDs remasterizados que reúnem grande parte das primeiras gravações feitas no Brasil. E um disco inteiro é dedicado ao Terror dos Facões. São 16 músicas, 12 delas de Octavio (todas gravadas em 1913 para a Casa Edison). Só Pixinguinha (com três CDs) e Patápio Silva merecem a mesma distinção. Diz o texto do encarte: Embora pouquíssimo conhecido, as gravações restauradas neste CD ajudarão a tirar do esquecimento e comprovar a qualidade e a riqueza deste grupo que há quase cem anos era a fina flor da música instrumental gaúcha. No ano seguinte, o pesquisador e violonista Márcio de Souza, com seu Duo Retrato Brasileiro e várias participações especiais, lança um CD sobre a obra Octaviana, também bancado pelo Fumproarte. Em 2006, a Acari Records, do Rio, lança uma caixa de nove CDs chamada Choro Carioca – Música do Brasil, com gravações inéditas de choros escritos por compositores de fora do Rio de Janeiro, nascidos até 1905. Dois volumes são dedicados ao Sul. Neles, há oito músicas de Octavio, interpretadas por alguns dos maiores chorões da atualidade, como Maurício Carrilho, Luciana Rabello, Oscar Bolão, Proveta, Toninho Carrasqueira, Celsinho e Jorginho do Pandeiro, além do violonista gaúcho Maurício Marques. Pra completar, desde 2008 encontra-se em produção um documentário sobre a vida e obra de Octavio, dirigido pelo gaúcho Saturnino Rocha, com direção musical do autor destas linhas e

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estrelado por, entre muitos outros, o já citado Maurício, Yamandú Costa, Plauto Cruz,Arthur de Faria & Seu Conjunto, Daniel Wolff, Hique Gomez, Rogério Piva, Ângelo Primon, Giovanni Berti, o jovem prodígio Pedro Franco (que tinha em 2008 os mesmos 16 anos de Octavio quando este começou a compor) e a Escola de Choro de Porto Alegre,dirigida por Luiz Machado. Márcio de Souza, por sua vez, concluiu em 2010 sua tese de doutorado em História Cultural, pela PUCRS, cujo tema era justamente o comportamento multimídia de Octavio, sob o título deOctavio Dutra e a música popular: uma experiência de mediação cultural na Porto Alegre da Primeira República. Que tá inteirinha aqui: http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2947 . Ou seja: 60 anos depois, Octavio Dutra reaparece e volta a ser assunto, para alegria da família que carregou por tantas décadas quase toda a obra do compositor. O acervo só não é completo porque, depois de sua morte, sua esposa Diamantina tentou estabelecer-se em São Paulo com os filhos. Pensava que conseguiria sustentar os filhos divulgando a obra do marido falecido. Não teve sorte e precisou, pra pagar as contas, vender para outros compositores darem como suas as músicas de Octavio. Felizmente, trouxe de volta o grosso da papelada quando retornou a Porto Alegre. Figura lendária na família, Diamantina: sua mulher, sua musa, por quem ele nutria terríveis ciúmes e forte paixão, transformadas em partituras como Meu Ciúme ou Amor e Medo. Diamantina que, creiam, Octavio chaveava em casa quando ia tocar. Diamantina, que salvou do esquecimento a obra do Violão de Estimação da Cidade.

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