OcupaICH: uma análise à luz dos conceitos de liminaridade e “communitas” em Victor Turner

May 27, 2017 | Autor: Fabricio Barreto | Categoria: Movimentos sociais, Ocupação, Antropologia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS - UFPEL INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - ICH PROGRAMA de PÓS-GRADUAÇÃO em ANTROPOLOGIA e ARQUEOLOGIA - PPGAnt

Tópico Especial I em Antropologia e Arqueologia Professora: Louise Alfonso Aluno: Fabricio Barreto [email protected] http://lattes.cnpq.br/3082951793368318 out/2016

OcupaICH: uma análise à luz dos conceitos de liminaridade e “communitas” em Victor Turner1

RESUMO O objetivo deste artigo é realizar uma análise conceitual antropológica do movimento de ocupação que ocorreu no prédio do Campus de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) que ficou conhecido como OcupaICH. O movimento ocorreu entre os dias 09 de junho e 05 de julho de 2016 e causou certa estranhamento e perplexidade na comunidade acadêmica que não encontrou uma forma de categorizar o movimento, pois não se tratava de greve ou paralisação e não estava vinculado a alguma bandeira partidária ou entidade de classe. Foi um movimento de iniciativa dos estudantes de graduação de diferentes cursos sediados no CCHS que reivindicavam, inicialmente, a revogação da portaria 46/2016 da CAPES que previa cortes nas bolsas PIBID. Posteriormente esta pauta se estenderia para diretrizes que apontavam para maior protagonismo dos estudantes na construção do conhecimento.

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A primeira versão deste texto foi apresentada durante o Encontro da Pós-Graduação (ENPOS) da 2ª Semana Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPEL, em setembro de 2016. A presente versão, devidamente revista e ampliada, foi elaborada em formato de artigo para a avaliação final da disciplina Tópico Especial I em Antropologia e Arqueologia (2016/1).

PALAVRAS-CHAVE novos movimentos sociais, ocupação, communitas, liminaridade

INTRODUÇÃO A Revista Ilha2, edição de 2007, apresenta o Dossiê Políticas e Subjetividades dos “Novos Movimentos Culturais”. Na introdução da revista, Márcio Goldman (2007), um dos organizadores da edição, busca refletir sobre os novos movimentos sociais, os quais, para ele, “teriam desenvolvido uma concepção alternativa de cidadania, encarando as lutas democráticas como lutas pela redefinição global da sociedade em todas as suas esferas e para todos os seus segmentos” (pg.10), ressaltando ainda que os novos “movimentos sociais buscam uma nova sociabilidade - e não uma simples aquisição formal de direitos” (pg.11). Neste sentido, Goldman ressalta que devemos resistir a tentação do uso normativo ou impositivo das categorias, pois tratar com categorias bem estabelecidas processos efetivamente novos conduz a um anacronismo analítico pondo em risco a originalidade do movimento. Isso significa que as categorias utilizadas devem ser a do significado “nativo”, “apreendidas em “ato”, ou seja, no contexto em que aparecem e segundo as modalidades concretas de sua atualização e utilização” (pg.17). Não pretendo aqui apontar categorias para a ocupação do ICH, mas alertar para o risco de realizarmos uma análise do movimento sem o devido ferramental categórico necessário para tanto, e assim deslegitimá-lo. A motivação para desenvolvimento desta análise parte do estranhamento e certo desconforto demonstrado pela comunidade acadêmica com a ocupação do CCHS. As opiniões expressas por pessoas que não estavam participando da ocupação tratavam o movimento como uma atitude irresponsável dos estudantes. Entretanto minhas impressões sobre o que se passava nas dependências do prédio não correspondiam a estas opiniões. O meu estranhamento estava direcionado a oposição de opiniões entre aqueles que frequentavam e aqueles que não frequentavam o prédio. Logo na primeira vez que acesso o prédio ocupado e tenho noção do que estava acontecendo, minha adesão ao movimento foi imediata. Entretanto, minha experiência na OcupaICH passa a uma observação participante no momento em que percebo que as opiniões 2

ILHA – Revista de Antropologia, publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina.

das pessoas que não se engajaram efetivamente ao movimento, participando das atividades propostas e frequentando o prédio, estavam completamente desalinhadas com o que acontecia nas dependências do CCHS. Passo então a realizar anotações sistemáticas e diários de campo, assim como a captação e seleção de algumas fotografias que estavam sendo publicadas na página da ocupação no Facebook. Classifiquei minha participação durante a ocupação como um Ocupante Flutuante, um pouco por influência de Collete Pétonnet (2008) e a observação flutuante, na medida que me colocava presente no prédio para observar e conversar aleatoriamente com quem estava por lá, seguindo o percurso que me interessasse. De fato, fui um colaborador que participou de atividades, reuniões, decisões e por vezes mexeu panelas ou preparou café, o que me colocava em uma condição de observador participante. Neste artigo procuro compor uma narrativa entre fotografias e texto, aproximando esta análise aos propósitos de minha pesquisa em antropologia visual, ou seja, o pensar por imagens (SAMAIN, 2012).

RELATO DE CAMPO E ANÁLISE CONCEITUAL No dia 10 de junho de 2016, a nota que estampava a página da Coordenação de Comunicação Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) era a seguinte: Reitoria dialoga com estudantes que ocupam o ICH em defesa do PIBID

fonte: OcupaICH/Facebook

O movimento reivindicava a revogação da portaria 46/2016 da CAPES a qual previa cortes e alteração no funcionamento das bolsas PIBID. A nota também destacava o caráter autônomo e autogestionável declarado pelos participantes da ocupação. O prédio do Campus de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) havia sido ocupado por volta das 22h do dia 09 de junho, uma quinta-feira, logo após o final do 2º dia de votação do 1º turno das eleições para reitoria da UFPEL. Neste dia, eu estava em casa com alguns colegas e nos causava intriga um manifesto de ocupação com hora marcada para iniciar. O contexto político brasileiro vivia momentos de turbulência e tensão (e ainda vive!) frente a um processo de Impeachment da presidenta Dilma Roussef que se caracterizava, e posteriormente veio a se confirmar, como um golpe parlamentar. O país havia passado recentemente pelo movimento de ocupação dos secundaristas em São Paulo devido a intenção do governo de Geraldo Alckmin de fechar mais de uma centena de escolas estaduais. Naquela manhã de sexta-feira (10 de junho) iniciava o movimento que ficou conhecido como OcupaICH. A ocupação foi uma iniciativa dos estudantes de graduação dos diversos cursos instalados no CCHS. Novas diretrizes estavam sendo estabelecidas para o funcionamento de todas as atividades desenvolvidas no prédio. As aulas estavam paralisadas e nenhuma atividade administrativa poderia ser realizada. Neste momento passa a operar uma outra dinâmica de funcionamento do CCHS.

fonte: OcupaICH/Facebook

No dia 13 de junho, 3 dias após o início da ocupação, chego em Pelotas pela manhã vindo de Porto Alegre, local onde tenho residência, e vou até o prédio saber o que acontecia. Eu estava informado pela página da ocupação no Facebook das atividades recentes realizadas pelo movimento. Ao chegar em frente ao prédio encontro colegas que me relatam como foram os primeiros dias de ocupação e me convidam para entrar. Encontro no interior do prédio um

ambiente de trabalho onde um quadro apontava a agenda de atividades e as comissões de organização do movimento.

foto: Fabricio Barreto

Ocupar o CCHS significou reestabelecer novas relações com o prédio. A manutenção, limpeza e segurança passaram a fazer parte dos afazeres dos estudantes. Existia uma comissão para cada uma destas atribuições. Havia também uma comissão para tratar da comunicação externa e todos estavam responsabilizados por recepcionar quem quisesse chegar. Entre outras informações, o quadro não deixava de ressaltar que todas as decisões eram coletivas. Naquele mesmo momento passei a integrar o movimento. A princípio não havia nada de estranho em chegar naquele prédio que eu frequentava desde março deste ano, quando iniciei meu mestrado. Aderir a ocupação não exigiu esforço sobrenatural algum. Fui recebido por pessoas que eu conhecia do meu cotidiano na Universidade. A partir destas, fui conhecendo outras pessoas que simpatizavam com a causa e estavam engajadas no movimento. Não havia vivenciado até então tamanha carga de discussão dentro do CCHS. Os debates aconteciam a todo momento. Podia ser durante o

fonte: OcupaICH/Facebook

preparo do almoço ou mesmo no instante em que uma dificuldade se apresentava e necessitava definição imediata. Era uma efervescência de ideias em um ambiente primordialmente acolhedor e colaborativo. Busco em Victor Turner elementos para compreensão da OcupaICH. Os conceitos de liminaridade e “communitas” elaborados pelo autor nos oferecem um caminho plausível para entendimento do movimento que ocorreu na Universidade Federal de Pelotas. Entretanto, para entendermos os conceitos citados acima, é importante que entendamos a noção de drama social também apresentada por Turner. Turner entende os conceitos de sociedade e comunidade como não-estáticos, por isso processual (em processo), ou ainda “in becoming” (TURNER, 2008: 20). Em suas observações entre a comunidade africana Ndembu, lhe chama a atenção que uma das características da vida social desta comunidade era sua propensão ao conflito. O conflito era uma ocorrência comum entre grupos e se manifestava em episódios de irrupção pública o qual chamou de drama social. “Quando os interesses e atitudes de grupos encontravamse em óbvia oposição, os dramas sociais me pareceram constituir unidades do processo social isoláveis e passíveis de uma descrição pormenorizada” (TURNER, 2008).

Assim, o conflito, ou drama social, assume proporção de “unidade processual” anarmônica (ou desarmônica) de estruturação da sociedade. O autor está, neste sentido, chamando a atenção para o poder criativo do conflito. Para ele, a sociedade está em permanente processo de mudança e transformação que passa pelo drama social, o qual pode alcançar em seus desdobramentos um estágio de “communitas”. Entendida como a anulação das normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas, a “communitas” caracteriza-se pela transgressão e ausência de estrutura. Significa optar por fugir a ordem social. A “communitas” propicia a liminaridade, ou período liminar, cujo fenômeno espaço/ temporal em que, simbolicamente, todos os atributos que distiguem categorias e grupos na ordem social estruturada ficam temporariamente suspensos. Em liminaridade, o governante deve submeter-se a uma autoridade que nada mais é senão a da comunidade total, ou seja, quem está no alto deve experimentar o que significa estar em baixo.

fonte: OcupaICH/Facebook

O que ocorreu durante a ocupação não é diferente do que nos descreve Turner. Os estudantes, ao ocuparem o prédio do CCHS, destituíram diretores e professores de seus cargos de chefia. Não havia bandeiras nem entidades de classe envolvidas, caracterizando-se como algo que não podia, com clareza, ser classificado segundo os critérios tradicionais de classificação. Esta nova situação causou certo estranhamento e perplexidade a comunidade acadêmica, dado que a inexistência de fronteiras classificadoras quase em toda parte é considerado “contaminador” e “perigoso”. “Na perspectiva daqueles aos quais incumbe a manutenção da “estrutura”, todas as manifestações continuadas da “communitas” devem aparecer como perigosas e anárquicas, e precisam ser rodeadas por prescrições, proibições e condições” (TURNER, 1974: 133). Havia um engajamento coletivo independente de pré-definições de conduta e relacionamento. Para Turner, este é o momento em que os aspectos intuitivos do pensamento conectam os indivíduos interligados por uma consciência que está além das obrigações dos sistemas formais das relações sociais (competência da estrutura). Ele vai falar sobre esse

fotos: Fabricio Barreto

caráter intuitivo como o potencial conectivo entre os sujeitos que confere e instaura essa condição de antiestrutura (TURNER, 1974: 156). Outro atributo da antiestrutura, ou seja, do estado de “communitas” e fases liminares, é o potencial criativo exacerbado do sujeito. Está na liminaridade o trabalho de trazer à luz o desconhecido, o que proporciona uma experiência de poderio sem precedentes. Em liminaridade, o pensamento desprovido de conceitualização está mais propenso a imaginação criativa (TURNER, 2008: 45). E não foi diferente durante a OCUPA. Logo surgiram propostas de aulas abertas que aconteciam no hall de entrada do prédio. Outras atividades passaram a ser realizadas no que veio a se tornar o Espaço de Vivência. Houve adesão de diversos professores e professoras que ministraram aulas abertas nestes espaços, assim como estudantes que também propuseram atividades nestas áreas do prédio que, até então, eram destinadas a funções circulação de pessoas ou depósito de algum material de descarte, containers de lixo e estacionamento de bicicletas. A sala de aula não estava mais entre quatro paredes e de portas fechadas, mas em baixo das escadas e no pátio interno. Colocar o debate acadêmico em ambientes diferentes daqueles que estamos acostumados estabeleceu outras formas de nos relacionarmos com o prédio do CCHS, assim como outras dinâmicas de construção do conhecimento.

fonte: OcupaICH/Facebook

CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma das contribuições propostas pela OcupaICH foi demonstrar como espaços que estamos acostumados a frequentar podem ser pensados e usados de formas diferentes das que estamos habituados. Neste sentido, entendo que a resignificação dos espaços do CCHS foi um legado proporcionado pela ocupação, evidenciando uma reivindicação por maior protagonismo dos estudantes na construção do conhecimento. Podemos pensar que a transformação da relação ensino/aprendizagem precisa passar pela realização de debates em lugares diferentes dos que estamos acostumados, com dinâmicas diferentes das que realizamos em sala de aula que permita a participação de estudantes de diferentes cursos assim como demais interessados da comunidade em geral. Considerar a possibilidade de termos a participação de um público mais heterogêneo nos proporciona um debate com maior interdisciplinaridade e maior horizontalidade. Outra constatação foi a oposição entre as opiniões das pessoas que frequentavam o CCHS durante a ocupação e as opiniões daqueles se eximiram de participar do processo. O protesto daqueles que não participaram reivindicava que não haviam sido consultados para realização ou não da ocupação. Também não sabiam se tratava-se de uma greve ou paralisação. Em uma das assembléias convocadas pela direção do CCHS para negociar a desocupação do prédio, algumas pessoas queriam uma votação para definir o fim da ocupação, demonstrando uma total discrepância com o que demandava o momento. Talvez, como nos trás Goldman, por uma incapacidade de reconhecimento de categorias em seu significado “nativo”. O que reforça o fazer etnográfico sugerido por Magnani (2002), o qual ele denomina olhar de perto e de dentro e não de fora e de longe, para que, então, estas categorias possam ser apreendidas em “ato” e no contexto em que aparecem segundo as modalidades concretas de sua atualização e utilização (GOLDMAN, 2007).

BIBLIOGRAFIA GOLDMAN, Márcio. Introdução: políticas e subjetividades nos “Novos Movimentos Culturais”. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 9, n. 1 e 2, p. 8-22, 2007. MAGNANI, José G. Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 17, n. 49, junho/2002.

PÉTONNET, Colette. A observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense. Antropolítica, Niterói, n.25, p.99-111, 2008. SAMAIN, Etienne (org.). Como Pensam as Imagens. São Paulo: UNICAMP, 2012. TURNER, Victor. “Dramas sociais e metáforas rituais”. Dramas, campos e metáforas. Niterói: Editora UFF, 2008. TURNER, Victor. “Liminaridade e ‘Communitas’”. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.

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