Ocupando espaços e construindo a cidadania: uma reflexão sobre a greve na USP

June 8, 2017 | Autor: A. Soares da Silva | Categoria: USP, Psicologia Política, Universidade, Greve
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Ocupando espaços e construindo a cidadania: uma reflexão sobre a greve na USP

Alessandro Soares da Silva Universidade de São Paulo Associação Brasileira de Psicologia Política [email protected] Jefferson Agostini de Mello Universidade de São Paulo [email protected]

Resumo

Ocupar e invadir poderiam ser apenas modos diferentes e inofensivos de se referir a uma mesma ação não fosse o fato de essas duas palavras trazerem significados distintos e valores ideológicos que se antagonizam na cena política em que atores coletivos travam suas lutas. A palavra ocupar é a marca de movimentos sociais como o Movimento dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra – MST – que orientam suas lutas sob o mote ‘ocupar, resistir e produzir’. Como podemos verificar nos verbetes do dicionário Koogan/Houaiss, ocupar significa “Encher um espaço de lugar e de tempo / Habitar/ Tomar posse de / (...) trabalhar em, dedicar seu tempo com”. Assim, ocupar equivale a dar sentido, implica em construção social que permite com que um espaço passe a ser um lugar temporalmente marcado e no qual se pode trabalhar, produzir algo. Nesse sentido, parece-me que isso implica em reconhecer aquele/a que ocupa como sujeito que constrói sentidos, que fala e se faz ouvir. No caminho contrário encontramos a palavra invadir “Entrar violentamente em / Espalhar-se”. Nessa tradição, permanentemente se atribui ao outro a responsabilidade pela violência, se constrói a imagem de um outro que deve ser contido, domado, silenciado. Nunca se pára para refletir sobre as questões que leva o outro a ocupar um lugar e fazer sua voz ser ouvida. Assim, do lado de quem ocupa um espaço e faz dele um lugar e um tempo, temos uma ação de visibilizar a si próprio, de impor-se enquanto sujeito político da ação. Do outro, contudo, tenta-se silenciar, deslegitimar ao outro, atribuir-lhe características de desordem e de irracionalidade.

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Atitudes que busquem depreciar e deslegitimar as ações de sujeitos coletivos, que buscam impor uma estética irracional às ações coletivas de todas as ordens já são marcas bastante comuns e remontam ao surgimento das Ciências Sociais e da Psicologia Social como se pode verificar em obras como a de Gustave Le Bon. Parece-nos que o pensamento desse autor continua bastante atual, ainda que não seja citado, Garantir a irracionalidade alheia e nunca por em xeque a própria racionalidade é uma estratégia clássica de manutenção do poder, de perpetração da lógica dominante que busca garantir a permanência de uma estrutura que nomeia, constrói e consolida lugares marginais. No caso da greve das Universidades Paulistas, e de modo particular no caso da Universidade de São Paulo, não foi diferente. Desde que o governador Serra (PSDB) baixou o conjunto de decretos a partir de janeiro de 2007, instalou-se um vazio entre os acadêmicos e as acadêmicas da Universidade de São Paulo que, tomados por uma letargia, calaram-se, muitas vezes estupefatos, mas emudecidos. Frente ao ataque à autonomia universitária deflagrado pelo governo peessedebista, e que, em certa medida, segue os passos do governo petista em nível federal; frente à letargia de professores e professoras dessa universidade e graças a uma inabilidade política da reitora Suely Vilela, alunos tomaram a dianteira da defesa da escola pública de nível superior e ocuparam, encheram um espaço, a reitoria, de lugar e de tempo, habitaram o coração político e administrativo da USP com o fim de trabalhar em, dedicar seu tempo com a defesa da coisa pública e enfrentar a força de governos que se negam a construir políticas de Estado no campo da educação. A fragmentação do sistema de educação superior em São Paulo em duas secretarias, sendo que uma supostamente concentra o pólo tecnológico e de pesquisa e outra o ensino superior, como se ensino, pesquisa e extensão não devessem, mais do que pela força da lei, estar unidos de modo indissociável. Assim, enquanto certos setores da pesquisa em Ciências, sejam eles em humanas ou não, parecem servir apenas para dar lustre às áreas profissionalizantes, emprestando seus métodos, mas não necessariamente balizando teórica e/ou criticamente os resultados dos trabalhos nessas áreas, pois não poucas vezes se vestem com uma aura de neutralidade quase celestial. Disso decorre o escamoteamento de suas visões de mundo, isto

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é, ideologias, por parte de pesquisadores, em nome da absoluta, mas – esquecem-se de dizer – impossível neutralidade científica. Aparentemente, essa suposta postura neutra tornou-se regra, como se as metodologias teóricas ou práticas não tivessem relações com as lutas políticas e sociais, e com os espaços que os docentes, individualmente, e enquanto grupos e categoria, ocupam na academia e na sociedade. Assim, arvoram-se em arautos da racionalidade acadêmica e passam a deslegitimar quem esteja ocupando uma posição que colida com os espaços já marcados como lugares e tempos de poder. Esses elementos se relacionam, direta ou indiretamente, com o conteúdo de um dos recentes decretos do governador Serra, supostamente revisto por meio de um “decreto declaratório”, depois de protestos e greve de estudantes, professores e funcionários das três universidades paulistas. No decreto de n. 51.461, em seu segundo artigo, lia-se que constituiria o campo funcional da recémcriada Secretaria do Ensino Superior, “a promoção da realização de estudos para”, entre outras coisas, a “ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional”. Juntava-se a esse item o seguinte, que previa estudos para “busca de formas alternativas e adequadas ao atual estado tecnológico para oferecer formação nos níveis de ensino de terceiro e quarto graus, com vista (sic) a aumentar a quantidade de jovens que cursam a universidade” (grifos nossos). Como se percebe, estava se criando o cenário para que se sacramentasse, de vez, não só a ênfase em uma tal pesquisa operacional, como também uma mudança no sentido das universidades paulistas, agora entendidas como reprodutoras dos anseios do governo e das empresas privadas, já que se tratava de adequar a formação tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação às demandas tecnológicas e profissionalizantes. Mas por que essa mudança de ênfase seria um problema? Quais concessões os setores mais progressistas das Ciências Humanas – e, da mesma forma, aqueles setores que produzem pesquisa básica nos campos das Ciências Exatas e Biológicas – teriam que fazer para se adequar a tais imperativos? É curioso que um dos únicos intelectuais a se preocupar com esta parte dos decretos do governador tenha sido Maria Sylvia de Carvalho Franco que, em artigo recentíssimo, depois de

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discorrer, justamente, sobre o papel do conhecimento não profissional, que perde espaço cada vez mais para uma pesquisa interessada no mercado de trabalho e na imediatez prática, argumente que o que se conseguiu em menos de meio século “não merece ser destruído”. Embora não situe explicitamente o problema no âmbito da Universidade de São Paulo, referindo-se a ela a partir da menção “meio século”, mas advogando em prol de uma pesquisa que estivesse protegida tanto do mercado quanto do Estado, a autora retoma Francis Bacon, para quem o saber ligado à prática e as ciências básicas deveriam andar juntos, já que estas são as únicas capazes de nutrir, reforçar, e até mesmo balizar aquele saber. Em outras palavras, eles são “os meios capazes de enfrentar a violência com que os interesses lucrativos e a cobiça política estilhaçam a sociedade e a cultura”. Se invadir é um ato de “Entrar violentamente em / Espalhar-se”, não seria a ação de estudantes, funcionários e professores em greve uma reação a uma forma de invasão, de violência decretada pelo governo do estado?! Não seria um ato legítimo de resistência a essa entrada violenta, agressiva de um poder político sobre os rumos da universidade que não pode e nem deve servir a quaisquer governos, mas ao povo?! Não seria a ocupação da reitoria uma forma legítima de defesa do bem comum frente a esse espalhar-se no interior da universidade de forças que desejam servir-se da universidade que até aqui lutou por manter-se separada de intervencionismos politiqueiros?! Do ponto de vista da Psicologia Política, parece-nos que a ação da reitoria nasce como uma nova forma de expressão política dos estudantes; é o indicativo de um novo movimento estudantil diferente daquele que preconizou as manifestações dos caras pintadas. Parece-nos que temos diante de nós um novo movimento que deixa para trás velhas lideranças e velhos métodos do estilo centralismodemocrático que, por muito tempo, caracterizou o movimento estudantil e sindical. E em muitos sentidos, podemos dizer que nosso governador, ex-líder estudantil, traz esse estilo impregnado em suas práticas, visto que age segundo essa metodologia, age sem dar-se conta de que hoje, na sociedade contemporânea, como aponta Touraine (1994), o lugar do príncipe está vago e seu salão também. Emergem os perigosos estrategas, mas esse não é o caso do governo pessedebista. Os alunos deram-se conta disso e decidiram construir um novo movimento, uma nova cultura

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de greve, uma nova oportunidade de fazer com que sua cidadania não morra no papel, deflagrando um imenso e irreversível processo de conscientização política muito parecidos com aqueles que Inácio Martín-Baró já apontava quando nos falava do papel social do psicólogo. Assim, resistem os estudantes a uma invasão governista de um bem do Estado, resistem a instrumentalização ideológica do bem comum e nesse processo constroem suas identidades políticas, se reconhecem enquanto sujeitos políticos aptos

a construir a história da qual eles próprios são atores

privilegiados.

Eixo Temático: Política

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Ocupar e invadir poderiam ser apenas modos diferentes e inofensivos de se referir a uma mesma ação não fosse o fato de essas duas palavras trazerem significados distintos e valores ideológicos que se antagonizam na cena política em que atores coletivos travam suas lutas. A palavra ocupar é a marca de movimentos sociais como o MST que orientam suas lutas sob o mote ‘ocupar, resistir e produzir’. Como podemos verificar nos verbetes do dicionário Koogan/Houaiss, ocupar significa “Encher um espaço de lugar e de tempo / Habitar/ Tomar posse de / (...) trabalhar em, dedicar seu tempo com”. Assim, ocupar equivale a dar sentido, implica em construção social que permite com que um espaço passe a ser um lugar temporalmente marcado e no qual se pode trabalhar, produzir algo. Nesse sentido, parece-me que isso implica em reconhecer aquele/a que ocupa como sujeito que constrói sentidos, que fala e se faz ouvir. No caminho contrário, encontramos a palavra invadir “Entrar violentamente em / Espalhar-se”. Nessa tradição, permanentemente se atribui ao outro a responsabilidade pela violência, se constrói a imagem de um outro que deve ser contido, domado, silenciado. Nunca se pára para refletir sobre as questões que leva o outro a ocupar um lugar e fazer sua voz ser ouvida. Assim, do lado de quem ocupa um espaço e faz dele um lugar e um tempo, temos uma ação de visibilizar a si próprio, de impor-se enquanto sujeito político da ação. Do outro, contudo, tenta-se silenciar, deslegitimar ao outro, atribuir-lhe características de desordem e de irracionalidade. Atitudes que busquem depreciar e deslegitimar as ações de sujeitos coletivos, que buscam impor uma estética irracional às ações coletivas de todas as ordens já são marcas bastante comuns e remontam ao surgimento das Ciências Sociais e da Psicologia Social como se pode verificar em obras como a de Gustave Le Bon. Parece-nos que o pensamento desse autor continua bastante atual, ainda que não seja citado, Garantir a irracionalidade alheia e nunca por em xeque a própria racionalidade é uma estratégia clássica de manutenção do poder, de perpetração da lógica dominante que busca garantir a permanência de uma estrutura que nomeia, constrói e consolida lugares marginais. No caso da greve das Universidades Paulistas, e de modo particular no caso da Universidade de São Paulo, não foi diferente.

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Desde que o governador Serra (PSDB) baixou o conjunto de decretos a partir de janeiro de 2007, instalou-se um vazio entre os acadêmicos e as acadêmicas da Universidade de São Paulo que, tomados por uma letargia, calaram-se, muitas vezes estupefatos, mas emudecidos. Frente ao ataque à autonomia universitária deflagrado pelo governo peessedebista, e que, em certa medida, segue os passos do governo petista em nível federal; frente à letargia de professores e professoras dessa universidade e graças a uma inabilidade política da reitora Suely Vilela, alunos tomaram a dianteira da defesa da escola pública de nível superior e ocuparam, encheram um espaço, a reitoria, de lugar e de tempo, habitaram o coração político e administrativo da USP com o fim de trabalhar em, dedicar seu tempo com a defesa da coisa pública e enfrentar a força de governos que se negam a construir políticas de Estado no campo da educação. A fragmentação do sistema de educação superior em São Paulo em duas secretarias, sendo que uma supostamente concentra o pólo tecnológico e de pesquisa e outra o ensino superior, como se ensino, pesquisa e extensão não devessem, mais do que pela força da lei, estar unidos de modo indissociável. Assim, enquanto certos setores da pesquisa em Ciências, sejam eles em humanas ou não, parecem servir apenas para dar lustre às áreas profissionalizantes, emprestando seus métodos, mas não necessariamente balizando teórica e/ou criticamente os resultados dos trabalhos nessas áreas, pois não poucas vezes se vestem com uma aura de neutralidade quase celestial. Disso decorre o escamoteamento de suas visões de mundo, isto é, ideologias, por parte de pesquisadores, em nome da absoluta, mas – esquecem-se de dizer – impossível neutralidade científica. Aparentemente, essa suposta postura neutra se tornou regra, como se as metodologias teóricas ou práticas não tivessem relações com as lutas políticas e sociais, e com os espaços que os docentes – individualmente e enquanto grupos e categoria – ocupam na academia e na sociedade. Assim, como já apontamos em outro lugar (Mello, Silva e Mello, 2007), esses se arvoram em arautos da racionalidade acadêmica e passam a deslegitimar quem esteja ocupando uma posição que colida com os espaços já marcados como lugares e tempos de poder. Esses elementos se relacionam, direta ou indiretamente, com o conteúdo de um dos recentes decretos do governador Serra supostamente revisto por meio de um “decreto declaratório”, depois

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de protestos e greve de estudantes, professores e funcionários das três universidades paulistas. No decreto de n. 51.461, em seu segundo artigo, lia-se que constituiria o campo funcional da recémcriada Secretaria do Ensino Superior, “a promoção da realização de estudos para”, entre outras coisas, a “ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional”. Juntava-se a esse item o seguinte, que previa estudos para “busca de formas alternativas e adequadas ao atual estado tecnológico para oferecer formação nos níveis de ensino de terceiro e quarto graus, com vista (sic) a aumentar a quantidade de jovens que cursam a universidade” (grifos nossos). Como se percebe, estava se criando o cenário para que se sacramentasse, de vez, não só a ênfase em uma tal pesquisa operacional, mas também uma mudança no sentido das universidades paulistas, agora entendidas como reprodutoras dos anseios do governo e das empresas privadas, já que se tratava de adequar a formação tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação às demandas tecnológicas e profissionalizantes. Mas por que essa mudança de ênfase seria um problema? Quais concessões os setores mais progressistas das Ciências Humanas – e, da mesma forma, aqueles setores que produzem pesquisa básica nos campos das Ciências Exatas e Biológicas – teriam que fazer para se adequar a tais imperativos? É curioso que um dos únicos intelectuais a se preocupar com esta parte dos decretos do governador tenha sido Maria Sylvia de Carvalho Franco que, em artigo recentíssimo, depois de discorrer, justamente, sobre o papel do conhecimento não profissional, que perde espaço cada vez mais para uma pesquisa interessada no mercado de trabalho e na imediatez prática, argumente que o que se conseguiu em menos de meio século “não merece ser destruído”. Embora não situe explicitamente o problema no âmbito da Universidade de São Paulo, referindo-se a ela a partir da menção “meio século”, mas advogando em prol de uma pesquisa que estivesse protegida tanto do mercado quanto do Estado, a autora retoma Francis Bacon, para quem o saber ligado à prática e as ciências básicas deveriam andar juntos, já que estas são as únicas capazes de nutrir, reforçar, e até mesmo balizar aquele saber. Em outras palavras, eles são “os meios capazes de enfrentar a violência com que os interesses lucrativos e a cobiça política estilhaçam a sociedade e a cultura”.

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Se invadir é um ato de “Entrar violentamente em / Espalhar-se”, não seria a ação de estudantes, funcionários e professores em greve uma reação a uma forma de invasão, de violência decretada pelo governo do estado?! Não seria um ato legítimo de resistência a essa entrada violenta, agressiva de um poder político sobre os rumos da universidade que não pode e nem deve servir a quaisquer governos, mas ao povo?! Não seria a ocupação da reitoria uma forma legítima de defesa do bem comum frente a esse espalhar-se no interior da universidade de forças que desejam servir-se da universidade que até aqui lutou por manter-se separada de intervencionismos politiqueiros?! Do ponto de vista da Psicologia Política, parece-nos que a ação da reitoria nasce como uma nova forma de expressão política dos estudantes; é o indicativo de um novo movimento estudantil diferente daquele que preconizou as manifestações dos caras pintadas. Parece-nos que temos diante de nós um novo movimento que deixa para trás velhas lideranças e velhos métodos do estilo centralismodemocrático que por muito tempo caracterizou o movimento estudantil e sindical. E em muitos sentidos podemos dizer que nosso governador, ex-líder estudantil, traz esse estilo impregnado consigo, visto que age segundo essa metodologia, age sem dar-se conta que hoje, na sociedade contemporânea, como aponta Touraine (1994), o lugar do príncipe está vago e seu salão também. Emergem os perigosos estrategas, mas esse não é o caso do governo pessedebista. O senhor governador, crendo-se um príncipe maquiavélico (e não um maquiaveliano), reiterou que ele é que soube lutar a verdadeira luta. Como ele mesmo afirmou, “Fui o grande líder estudantil do meu período. No geral, estávamos baseados em posições políticas. Não estávamos baseados em miragens, mentiras e inverdades" (Serra) 1 . E completaríamos hipoteticamente por ele: como é o caso desses jovens manipulados (ou manipuladores), de nossos estudantes. Ao contrário de enganados, ou manipulados, esses/as alunos/as deram-se conta dos descalabros que se estava vivendo e decidiram construir um novo movimento, uma nova cultura de greve, uma nova oportunidade de fazer com que sua cidadania não morresse no papel, deflagrando um imenso e irreversível processo de conscientização política muito parecido com aqueles que 1

Em Galvão, V. Q. (19/05/2007)

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Inácio Martín-Baró (1996) já apontava quando nos falava do papel social do psicólogo. Assim, resistem os estudantes a uma invasão governista de um bem do Estado, resistem a instrumentalização ideológica do bem comum e nesse processo constroem suas identidades políticas, se reconhecem enquanto sujeitos políticos aptos a construir a história da qual eles próprios são atores privilegiados. Mas o contexto da greve nos remete também a Antonio Candido, intelectual brasileiro da mais alta consideração. Ele, numa palestra de 1988 cujo tema era o Centenário da Abolição da Escravatura, dirigindo-se aos estudantes dos cursos de graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, relembra os fundamentos daquela faculdade, desde a sua criação: fornecer os quadros do magistério secundário, unificar os cursos básicos da Universidade e cultivar o saber desinteressado. Ao lado do ensino profissionalizante, que já existia, as elites da época ansiavam por “um tipo de ensino superior desvinculado das injunções imediatas da formação profissional” e “ligado à pesquisa, que tivesse como finalidade maior a investigação, a descoberta, a inovação”. “Deste modo [conclui o autor], o país teria uma fonte nova de conhecimentos, inclusive como reforço para a aplicação profissional”. Note-se que a ênfase dos fundamentos era, então, no conhecimento desinteressado, que reforçava o profissional, ficando implícito que este aqui não se bastava. Mais adiante, depois de historiar o surgimento da Universidade de São Paulo, Antonio Candido acrescenta outro item, a saber, o da inclusão, no plano das pesquisas em Ciências Sociais, de temas que tratavam da realidade das camadas oprimidas. Procurava-se romper, ao menos no plano universitário paulista, com “o peso das ideologias conservadoras”, e se abandonavam seja os estudos sobre as camadas dominantes seja aqueles que liam os oprimidos pelo viés do pitoresco. No limite, a Universidade, surgida no seio da sociedade, mais especificamente das classes dominantes, estaria livre não só para as pôr em xeque, como também para contribuir, a seu modo, para a transformação efetiva de uma sociedade atrasada e injusta, uma vez que, para o autor, “todas as formas de estudo e pensamento que adotam perspectiva analítica adequada e optam pela

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investigação dos grupos oprimidos ou marginalizados são contribuições progressistas, que podem inclusive ser condições de eventuais atitudes revolucionárias”. Romper com um status quo que abre mão da gratuidade da pesquisa, do ato de pesquisar, e com uma estrutura piramidal que exclui parcela majoritária dos processos decisórios da vida universitária foi, certamente, o elemento ‘revolucionário’ da ação estudantil e que em certa medida resgata elementos fundamentais da conferência de Antônio Cândido. Essa “linha de radicalidade dos estudos sociais” que, segundo Antonio Candido, “foi um dos princípios tutelares” da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a partir da qual se forma a Universidade de São Paulo, teria seu aprofundamento nos anos de 1960. Surgiria, naquele contexto, um núcleo de pensamento de esquerda que, orientado por professores da geração anterior, produziria obras importantíssimas para a compreensão do processo social brasileiro. Chama a atenção, a busca pelo padrão contemporâneo – e internacional – de pesquisa, em que se juntam progressismo, isto é, não-conformismo, e o virar as costas seja ao mundo dos negócios, seja ao oficialismo. Seria a autonomia científica vivida quase na sua plenitude, mas sempre com o olhar na realidade brasileira e latino-americana. E se as pesquisas tinham certo corte ideológico, nominadamente marxista, este não só era declarado como se vinculava à seriedade científica e à leitura estrutural do texto, que só então começava a existir no país. Mais do que isso, a pesquisa, que não se limitava aos participantes do seminário de Marx, unia o aprendizado internacional às questões específicas do país, às quais as idéias importadas, isoladamente, não poderiam jamais responder. Igualmente, o conhecimento aprofundava, em termos metodológicos, os temas propostos na quadra anterior, com foco tanto nos oprimidos quanto também nos opressores. Criava-se, com isso, uma compreensão do nosso atraso enquanto parte de um sistema capitalista global, que dele se alimentava – e do qual necessitava - para existir. Não restam dúvidas que nos tempos atuais, as ações do atual governo, marcada pela violência simbólica que beira a violência física 2 , essa compreensão, essa gratuidade e esse espírito revolucionário, dão passagem ao conservadorismo 2

Eram 500 os homens da tropa de choque enviados para intimidar os cerca de 2000 participantes da manifestação que rumava até o palácio dos bandeirantes. Uns portavam armas de contenção e outros livros, cadernos e mochilas.

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interesseiro de corte liberal, no qual não há lugar nem dinheiro para a pesquisa pela pesquisa.Como escreve Schwarz “a sujeição violenta em que se encontra o escravo, bem como a relação de dependência à qual o homem livre e pobre na ordem escravista não pode fugir, ambas têm como antagonista, no pólo oposto, a camada de homens que a propriedade insere no mundo do cálculo econômico”. Nesse sentido, éramos capitalistas desde sempre, apesar de não vivê-lo em sua plenitude, daí o descalabro social em que o país vivia. Nesse sentido, parece-nos claro que a dialética de exclusão/inclusão produz espaços marginais e mantém o status quo que garante e legitima a desigualdade. Como bem recorda Konder (2000), dialética é “o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente contradição” (p. 8). Tal dialética da exclusão/inclusão pode, portanto, ser entendida como um processo, pois

“A exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão, como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário ele é produto do funcionamento do sistema” (SAWAIA, 1999: 9).

Desta feita, a emergência de uma pesquisa desinteressada e inclusiva, aberta a temas marginais indica um movimento efetivo dentro da universidade que buscava a superação dessa dialética perversa que mantém naturalizadas posições sociais e garante espaços estratégicos de poder. Afastar-se dos oficialismos e aproximar-se de espaços marginais e lugares minoritários como a população negra, era indicativo da construção, naquele então, de um real compromisso com a produção de uma memória política que abre portas ao empoderamento de indivíduos e sujeitos coletivos que eram sistematicamente silenciados, que tinha suas memórias coletivas negadas e eram marcados geneticamente com o selo nefasto da irracionalidade e da incontinência. A emergência desse espírito na faculdade que era (e ainda o é) o coração intelectual da Universidade de São Paulo significava um marco divisório entre as justificativas Le Bonianas (2000 [1895]) pseudo-científicas da irracionalidade das massas bastante populares entre o final do século XIX e princípios do século 12

XX e a emergência de um sujeito racional capaz de constituir-se politicamente (Prado, 2001). Nessa luta, vemos, de um lado, alunos/as tomando consciência de seu lugar político na história da universidade e numa posição reativa que defende direitos já adquiridos de modo a conservá-los sim, mas que desperta a comunidade universitária de sua apatia que lhe impedia de recordar daqueles fundamentos proclamados por Cândido. Por outro lado, víamos, e ainda vemos, discursos Le Bonianos de deslegitimação da ação política de alunas/os e professores/as que creditam ao autoritarismo de alguns elementos minoritários a decisão em prol da greve. Isso bem seria verdade, havia na assembléia de professores algo em torno de 300 docentes, não fosse o fato de que qualquer docente pode (e deve) comparecer a assembléia, debater e exercer seu direito de voto, mesmo não sendo ele sindicalizado. Desta feita, caso realmente a maioria da universidade não quisesse permitir ou mesmo permanecer em greve, bastaria apenas comparecer e votar sem que nenhum traço autoritário se tivesse sido imposto. Mas como é comum nas elites, não se participa de ações coletivas, apenas se as controla a seu favor ou se as deslegitima em benefício de si mesmos. Nessa greve, tal recurso foi utilizado a exaustão: invade-se ao invés de ocupar; as ações são manipuladas e não o resultado de um processo de tomada de consciência política; os atores são vândalos irracionais e não jovens corajosos que são capazes de expor-se para garantir a defesa de seus ideais e que, na realidade, também já foram os ideais de seus mais ferozes algozes. Se nos anos 60 a formação em Ciências Humanas, na Universidade de São Paulo, tinha como ponto de partida a ênfase na pesquisa e no ensino desinteressados, e no aprimoramento científico, acrescidos do debate com os oficialismos, sempre em vista de uma compreensão mais ampla do país e da superação das desigualdades decorrentes dessa dialética da exclusão/inclusão, assistimos, nos dias de hoje, a uma mudança radical no que tange aqueles fundamentos. Primeiramente, certos setores da pesquisa em Ciências Humanas servem apenas para dar legitimidade, uma espécie de lustre, às áreas profissionalizantes, emprestando seus métodos, mas não necessariamente balizando teórica e/ou eticamente (reforçando) os resultados. Em segundo lugar, o escamoteamento de suas visões de mundo por parte dos pesquisadores, em nome da absoluta, mas impossível, neutralidade

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científica, também se tornou regra, como se as metodologias teóricas ou práticas não tivessem relações com as lutas políticas e sociais, e com os espaços que a classe docente ocupa na academia e na sociedade. Em terceiro lugar, o desinteresse da pesquisa, no sentido de sua não aplicabilidade imediata, está em xeque, dando azo para, em quarto lugar, uma mudança radical no sentido da Universidade: não mais transformar, ou enfrentar, o status quo, mas simplesmente reproduzi-lo, aprofundando as suas contradições. Escamoteia-se a realidade perversa que organiza e estrutura o campo científico no sentido já tratado por Pierre Bourdieu (2003). Oculta-se (ou pensas-se ocultar) um campo de contradições e lutas em torno a uma economia política da ciência, produzindo novas (velhas) justificativas para um progressivo regresso a um lugar de distanciamento de sujeitos e espaços marcados com o selo da marginalidade. Esses quatro pontos estão inter-relacionados e, a nosso ver, formam a base de um dos recentes decretos do governador José Serra. No decreto de nº. 51.461, mais especificamente no 2º. artigo, lia-se que, constitui o campo funcional da recém criada Secretaria do Ensino Superior, “a promoção da realização de estudos para”, entre outras coisas, a “ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional” (grifo nosso). Junta-se a esse item o seguinte, que previa estudos para “busca de formas alternativas e adequadas ao atual estado tecnológico para oferecer formação nos níveis de ensino de terceiro e quarto graus, com vista a aumentar a quantidade de jovens que cursam a universidade”(grifo nosso). Além disso, tem-se a manutenção da FAPESP, a agência de fomento a pesquisa do Estado de São Paulo, na Secretaria de Desenvolvimento Social juntamente com o Centro Paula Souza vinculado a Unesp que, por sua vez, encontra-se alocado na recém criada, a partir da extinta SECRETARIA de TURISMO, Secretaria de Ensino Superior. Finalmente fragmenta-se não só o sistema universitário paulista, mas o princípio constitucional da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Portanto, estava criado o cenário que sacramentaria, de vez, não só a ênfase na tal pesquisa operacional, mas também o sentido da Universidade como reprodutora dos anseios do governo. Tratava de, parece-nos, adequar a formação tanto em nível de graduação quanto de pós-

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graduação às demandas tecnológicas e profissionalizantes, embora não fique claro o que se entende por “pesquisa operacional” (Estejamos atentos para o fato de que se convencionou no ambiente da pesquisa falar em pesquisa Acadêmica, Aplicada e básica e não em pesquisa operacional). Tudo isso estaria dado e sacramentado, não fossem esses vândalos, invasores, alienados, manipulados que nos recordaram algumas das coisas que Cândido nos ensinara: o valor de uma sociedade justa e inclusiva e a responsabilidade que temos enquanto pesquisadores e formadores comprometidos com uma sociedade nova, crentes de que um outro mundo é possível. Está mais do que na hora de ocuparmos, resistirmos e produzirmos na Universidade instrumentos de justiça social. Essa greve pode ter sido mais um corte na cerca que separa homens e mulheres e os fazem desiguais, pode ter sido mais um passo rumo à ocupação que dá sentido ao tempo e ao espaço que faz a universidade existir. Referências Bibliografia Bourdieu, P. (2003). Os usos sociais das ciências: Por uma sociologia clinica do campo científico. São Paulo: Unesp. Folha de São Paulo. (14/05/2007). “Nós não diminuímos a autonomia universitária”. Entrevista com José Aristodemo Pinotti. Caderno Cotidiano. Franco, M. S. C. (27/05/2007). Entre Quatro Paredes. Caderno Mais. Folha de São Paulo. Galvão, V. Q. (19/05/2007). Ocupação da USP é baseada em mentiras, afirma Serra. Educação.Folha de S.Paulo. Acessado em 20/05/2007 em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u19539.shtml Konder, L. (2000). O que é dialética. São Paulo: Brasiliense. Le Bon, G. (2000). Psicología de las masas. Madri: Alianza [1895]. Martín-Baró, I. (1996). O Papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia. 2(1) pp. 7-27. Mello, J. A.; Silva, A. S.; Mello, H. D. A. (25/06/2007). Memórias de um Passado Presente. Correio da Cidadania, São Paulo, 25 jun.. Acessado em: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/520/47/ Prado, M. A. M. (2000). Desrazão: Sujeitos da Consciência e Políticas de Identificação. Mapa teórico acerca do sujeito coletivo e do político na literatura sobre ações coletivas. Tese de Doutorado. São Paulo: PUCSP. Sawaia, B. (1999). As artimanhas da exclusão. Petrópolis: Vozes.

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