Odores da cidade: Pesquisa videográfica sobre o olfato e a memória

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Artigo do livro: FREITAS, Nilson Almino de; RAICK, Regina Celi Fonseca(Orgs.) . Outros sentidos e visualidades. 1. ed. Sobral: Edições UVA, 2015. v. 1000. 100p.

Odores da cidade: Pesquisa videográfica sobre o olfato e a memória. Nilson Almino de Freitas1 Considerações iniciais O objetivo deste texto é refletir sobre aspectos relacionados a uma experiência videográfica que propicia uma discussão sobre a relação entre o sentido do olfato, a cultura e a percepção espacial. O video referido tem como título “Cheiros, memórias e saberes” 2, produzido em 2014. A proposta do filme surge de uma lacuna existente no campo das ciências da sociedade e da cultura, área de formação e atuação profissional do articulista. O desafio de pensar um texto, refletindo sobre o olfato como instrumento de lembranças de um contexto social, cultural, espacial e histórico do corpo, é raro. Muito se discute sobre o corpo e a relação com o espaço, a cultura e a sociedade, a partir do “olhar”, do “ouvir” e do “escrever”, especialmente no campo da antropologia e na história, mas poucos são os trabalhos que abordam a inserção do corpo no mundo a partir do “cheiro”. Algumas questões surgem ao pensarmos este sentido pouco valorizado pelas ciências da sociedade e da cultura: Qual a relação entre o cheiro e a percepção espacial? Como os odores influenciam nas lembranças pessoais? Pensando estas questões iniciais, o filme as discute ouvindo diferentes saberes que variam entre as reflexões doutas e relatos de pessoas que vivenciam, em suas profissões, relações muito próximas com odores fortes, tanto considerados bons como aqueles entendidos como fétidos. A busca pelos narradores que aparecem no documentário aconteceu em Sobral, cidade de médio porte do estado brasileiro do Ceará. A escolha pela cidade aconteceu muito mais pela conveniência do que pela especificidade do local, já que a equipe de produção do filme mora nesta urbe. A seleção do cenário de gravação aconteceu de acordo com o ambiente de trabalho ou moradia dos narradores escolhidos. Duas questões orientaram as entrevistas: Qual a relação entre as profissões dos 1 Professor da área de Antropologia da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA/Sobral-CE; Coordenador do Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME; Coordenador do Programa de extensão Visualidades; Professor do Mestrado Acadêmico em Geografia da UVA – MAG; Pesquisador Associado do Pósdoutorado em Estudos Culturais do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2 O filme está disponível no site: https://vimeo.com/112743794

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entrevistados, os odores, as atividades cotidianas e suas memórias? Que lembranças estes odores trazem? O aterro sanitário da cidade foi o primeiro cenário escolhido para o documentário. No local foram entrevistados o gerente e o tratorista que enterra o lixo. Os demais personagens que aparecem são: uma cozinheira, um historiador, uma vendedora de perfumes, um otorrinolaringologista, uma pessoa que tem problemas relacionados ao olfato, uma geógrafa e um vendedor de peixes do mercado central da cidade. O vídeo não tinha a pretensão de esgotar a discussão ou mostrar repercussões de uma pesquisa já consolidada. Muito pelo contrário, ele serviu como instrumento de pesquisa exploratória que visa introduzir os pesquisadores no mundo do seu objeto de investigação. Foi a partir da produção do filme que se começou a pensar um pouco melhor sobre o tema. Os narradores selecionados, apesar de não terem sido escolhidos de forma aleatória, compartilharam experiências, lembranças e reflexões ainda inusitadas para os pesquisadores antes da produção do filme. Pode-se até afirmar que o documentário não é uma repercussão de uma pesquisa, mas que o filme é o início de uma investigação. Romper com uma concepção corrente no campo acadêmico de que a pesquisa pode ter pretensões universalistas de racionalização do mundo e de que ela pode ser inconclusiva em seus argumentos, não é um projeto novo, mas ainda faz parte da cultura acadêmica que não permite a demostração de “fragilidades” no processo de pesquisa. Dizer que um processo de conhecimento é inicial e ainda inusitado para os pesquisadores é um risco que se corre, pois o leitor pode avaliar que este trabalho não é merecedor de crédito por sua fragilidade. Em favor da pesquisa vale a pena questionar se é possível pensar a ciência também como uma experiência sensível, constante, contínua e sem conclusões definitivas. Viajar por caminhos ainda não trilhados não deveria ser demérito para nenhum projeto de conhecimento, já que o “perder-se” é condição fundamental para “encontrar-se”, mesmo reconhecendo que, em muitos casos, quando o pesquisador se “encontra”, é porque está perdido em enquadramentos rígidos que não permitem a fluidez de navegações fortuitas pelas trilhas sinuosas e confusas da existência corporal no mundo. Pensando a caminhada, sem ter segurança no que se vai encontrar, a hipótese inicial da equipe era de que o cheiro é um forte elemento de construção de vínculos com espacialidades e temporalidades vivenciadas pelos narradores. O marco de reflexão inicial foi a paisagem geográfica.

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Primeiramente é importante considerar que, como pensa Santos (2006), a paisagem é mais do que o domínio do visível. Ela é também formada por volumes, cores, movimentos, odores, sons, dentre outros aspectos presentes no mundo. Também em Santos (2006), sustentado pelas reflexões de Bruno Latour (2005), entende-se aqui que é importante resolver um equívoco epistemológico herdado pela ideia de “modernidade” de que é possível trabalhar com conceitos puros. A separação entre natureza e sociedade, ou uma ciência representativa das coisas e um poder político representativo de sujeitos com intenções e posições, não faz sentido quando observamos o mundo. Complementam-se as observações de Santos (2006), no que o próprio Latour (2005) sugere, como proposta epistemológica, não mais partir de conceitos puros, mas híbridos, que possam pensar em conjunto, dissolvendo fronteiras ou barreiras, natureza, sociedade, política, moral e ciência. Acrescenta-se então a possibilidade de pensar a lógica e a estética como um conjunto que permite pensar elementos da sociedade e da natureza que são indissociáveis no contexto empírico. A dimensão material e o mundo dos significados humanos não são construídos sem a reciprocidade de interferências, influências, processos, tensões e ligações com inúmeras instituições, objetos, técnicas e pensamentos, não nos permitindo perceber fronteiras claras, mas redes sociotécnicas com entende o autor francês (Latour, 2005). A paisagem geográfica é então o ponto de partida, pois, como define Santos (2006), ela se refere ao conjunto de elementos naturais e artificiais que constituem o espaço. O espaço seria então a paisagem, somado à vida que a anima. A paisagem tem relação com a visão, justamente porque é dada por uma distribuição de formas-objetos, como denomina Santos, constituídas por uma técnica específica. Não teria como a equipe prescindir da visão para trabalhar o tema do olfato. Entendeu-se a paisagem como tendo um caráter transtemporal, sendo transversal ao presente, passado e futuro. O espaço é uma situação, é contextual e presente. As formas-objetos da paisagem não mudam de lugar, mas mudam de função, justamente em decorrência da dimensão espacial que é constituída por um sistema de valores. O conjunto que constitui a relação entre paisagem e espaço define a sociedade. O cheiro é instrumento fundamental para constituição deste conjunto. Por isso, partiu-se do senso comum relacionado ao “cheiro”. Mesmo sabendo que o fétido é definido por preceitos morais, naturalizados pelas relações sociais, a equipe partiu do senso comum do presente que entende o lixo como sintomático do que é desagradável sentir.

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Pensar em híbridos não é uma questão só de vontade de refletir desta forma. O próprio cheiro é um sentido que não tem palavra própria para ser expresso quando se pensa em classificar odores diferentes, o que remete a ressignificação de termos. Geralmente se recorre a palavras do campo da música ou dos demais sentidos, pensando aromas “frutados”, “amargos”, “doces”, “ácidos”, dentre outros, refletindo “harmonias” e “fragrâncias”. Pensar em cheiro, portanto, é um ato que requer o entendimento de termos de outros campos, que acabam sendo adaptados para compreensão da sensação produzida pelo olfato. Outros híbridos acabam surgindo na reflexão aqui proposta. Para entender a sensação produzida pelos odores, mesmo que o recorte seja a dimensão cultural da produção da sensação, não podemos abrir mão de entendemos o corpo como ente biológico. Acontece que a sensação e a compreensão dela não são determinadas somente pelos costumes e aprendizados culturais. É a sinergia entre o corpo biológico e cultural que promove a interpretação dos odores. Aliás, o mais comum no campo das poucas pesquisas feitas sobre o olfato é se pensar mais na dimensão biológica do sentido. Mas, mesmo neste campo de pesquisa, acaba-se falando da dimensão cultural. O oftalmologista escolhido para o filme demonstra bem a necessidade de falar do biológico, sem deixar de mencionar o cultural como importante para compreensão do cheiro. Apesar de reconhecer-se aqui que os interlocutores têm definições diferentes do que eles entendem como cultura, parte-se do pressuposto de que este conceito não representa uma lista de padrões ou realizações materiais e simbólicas definidas coletivamente que representam um povo ou grupo, de forma a consolidar uma identidade sólida e consistente, sustentada em uma história linear. Cultura aqui é apresentada como uma agência, no presente, no contexto da sociabilidade própria dos diferentes agentes sociais envolvidos, que disputam e selecionam, a partir de uma correlação de forças muito pouco estáveis, de forma tensa e conflituosa, determinados bens simbólicos e materiais que os definem, sem evitar completamente as controvérsias constantes e contínuas que surgem no cotidiano das pessoas que se relacionam em um determinado território moral, espacial e temporal. A memória é uma ferramenta extremamente eficaz para a tentativa pouco eficaz de se consolidar uma cultura estável. Ela é seletiva, resultante exatamente da correlação de forças, é contextual e provisória. É construída para determinadas finalidades e se apresenta como móvel e depende de uma série de elementos que são colocados em relação para negociação. No caso das entrevistas do filme citado, deve-se supor que a pessoa que fala pensa o que

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deve selecionar para aquele contexto de interlocução, criando uma imagem de si para aquela situação. O local, o interlocutor, o instrumento de captação, as pessoas envolvidas na conversa, o clima, o ambiente, a paisagem, os humores, os interesses negociados na cena e fora dela, enfim, vários fatores contribuem para a construção de uma narrativa que é resultado de um jogo que oscila entre lembrar e esquecer. De fato, a cena produzida é uma construção compartilhada entre vários atores que incluem, além das pessoas, objetos, instituições, equipamentos, espaço, paisagem, e seleção de temporalidades significativas para aquela situação discursiva. Outro aspecto merecedor de lembrança nesta introdução é que a produção do filme foi o instrumento de pesquisa e o método adotado para pensar melhor a relação entre os “cheiros” e as lembranças pessoais. Entretanto, para entender melhor a escolha metodológica pela pesquisa videográfica, é necessário fazer algumas considerações.

Pesquisa videográfica: Desconstruindo argumentos e revendo métodos

Pensar o filme como método requer desconstruir alguns preconceitos no campo acadêmico. Um deles se refere à supremacia do texto em detrimento de outras linguagens. Ainda é comum no campo acadêmico pensar a imagem técnica, por exemplo, como forma de entretenimento, repercussão de trabalhos sustentados pela escrita, ou recurso didático adicional mais acessível para discutir algumas questões já pensadas por meio do texto. Pensar na imagem técnica como instrumento de produção do conhecimento ainda é motivo de polêmica. Entretanto, consoderando o olhar como metáfora predominante no campo acadêmico para designar o recurso usual para se fazer pesquisa, entende-se aqui que a imagem técnica tem a potência, suscita o desejo e revela um conceito que se expressa na produção audiovisual. Não se entende a imagem aqui como sinônimo de “reprodução”, ou mesmo “registro” da realidade. A imagem não é uma identificação fiel do acontecimento filmado, nem mesmo uma síntese de uma combinação sintática e semântica que junta pedaços de “realidade” e tem a pretensão de mostrá-la. Aliás, aqui nem o texto tem esta prerrogativa. No campo da antropologia, muito já se discute sobre a desconstrução da autoridade do pesquisador e do texto em expressar a realidade de um determinado contexto de pesquisa.

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Para Clifford (1998), a escrita etnográfica, aquela que tem a pretensão de descrever a experiência, de fato é uma tradução desta experiência para a forma textual, resultante de múltiplas subjetividades e, posso acrescentar, objetividades e constrangimentos políticos. Com a escrita, o pesquisador encena uma estratégia específica de autoridade e tenta transparecer um texto como provedor de verdade. O autor americano duvida da acentuada ênfase no poder de observação do pesquisador que supostamente tem uma postura quase que heroica na tentativa de “desvendar” a realidade. O atalho criado pelo pesquisador é o uso de “poderosas” ferramentas teóricas que pretendem relatar acontecimentos singulares, restritos à experiência do pesquisador com o contexto pesquisado, dando a entender que seu texto tem uma significação mais profunda ou supostamente mais geral. Será que o conhecimento tem profundidade? Ainda segundo Clifford (1998), a pesquisa transparece um caminho que começa pelo trabalho de campo centrado em um intelectual que domina uma determinada linguagem, sobre um tipo de iniciação que o leva a um retorno a um texto representacional escrito por pesquisador que participa ativamente do processo. Constata-se aqui que esta discussão é útil para pensar o documentário também. É comum entendermos que o documentário expressa a realidade das coisas que lhe servem como tema. De fato, assim como a escrita etnográfica, o filme é uma tradução da experiência na forma audiovisual, resultante de uma reflexibilidade promovida pela interação entre sujeitos diferentes, espacialidades, temporalidades e constrangimentos políticos e morais. O documentarista também encena uma estratégia específica de autoridade e tenta transparecer uma suposta verdade factual sobre o tema explorado. A ferramenta do audiovisual, dependendo da forma como é usada, possui um poder acentuado de relatar acontecimentos, dando a impressão de profundidade. Para Flusser (2002), existe uma diferença entre imagem tradicional, imaginação e a imagem técnica, esta última resultante, especialmente, da fotografia e, consequentemente do vídeo. Para o autor, a imagem é uma superfície que pretende representar algo. Com a imaginação, o ser humano codifica fenômenos, pensando altura, largura, comprimento e conceituação, sonho ou espírito, transformando-os em símbolos planos, sabendo decodificar o código, definindo a imagem. A imaginação, portanto, é fazer e decifrar imagens que se apresentam como superfície, mas que, ao serem escaneadas e analisadas pela imaginação, revelam suas dimensões abstraídas.

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Como argumenta Flusser (2002), a escrita, com o tempo, passou a ser foco de “textolatria”, dando a entender que ela pode ser fiel à realidade. Este movimento teve repercussões na imagem técnica, quando ela surge no século XIX, criando-se a “idolatria”. Para o autor, com esta “idolatria”, a imagem técnica, especialmente a da fotografia e do audiovisual, produz uma representação que se interpõe entre o mundo e o ser humano, criando o “mundo”. As pessoas passam a viver em função da imagem com o advento da fotografia e, logo após, o filme. O mundo passa a ser entendido como um conjunto de cenas, a partir da percepção de que a realidade reflete imagens e vice-versa. O ser humano esquece que a imagem técnica é um instrumento para orientá-lo no mundo, fazendo com que se perca a capacidade de decifrar as dimensões abstraídas dela própria. Esquece também que a imagem técnica é imagem de terceira ordem, pois abstrai uma das dimensões da imagem tradicional para resultar em textos. Depois, reconstitui a dimensão abstraída a fim de produzir imagens. Portanto, de fato, as imagens técnicas imaginam textos, concebem imagens que imaginam o mundo. O problema é quando o observador entende a imagem técnica como janela e não como imagem. Entendendo a imagem técnica como conceito a ser decifrado, pode-se crer que ela é um instrumento potente para produção científica, já que o processo de pesquisa se faz também como na produção textual: fruto da interação em rede com vários elementos que se envolvem na experiência do pesquisador que, por sua vez, usa de sua imaginação para produção do texto ou documento audiovisual ou fotográfico que não são a significação do mundo. Os textos são imagens expressas de forma linear, definindo conceitos e ideias. O deciframento do texto revela imagens que significam conceitos. A escrita, portanto, para o autor, é metacódigo da imagem. A imagem técnica, por sua vez, tem a capacidade de ilustrar o texto e remagicizá-lo, articulando imaginação e conceituação. A relação entre imagem técnica e texto promove a criatividade e a hierarquia na escrita, e a imagem técnica vai sendo redefinida. Como diz Flusser (2002): os textos podem ser metacódigos de imagens, mas determinadas imagens podem ser metacódigos de textos. Pensando nesta lógica é que a pesquisa videográfica se justifica como tendo o mesmo valor que qualquer outra forma de método e divulgação científica, resguardando sua especificidade e, ao mesmo tempo, contribuindo para reflexibilidade própria e necessária da atividade de pesquisa. É importante ressaltar que o excesso, a velocidade, a tecnociência fazem com que a imaginação seja canalizada para fins institucionalizados, padronizados, fabricados e expostos a variações e desejos

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efêmeros. A crença em algo sólido e estável, está diluída neste movimento. Ela também se torna efêmera, negociável e passível de trocas simbólicas “comercializadas” no cotidiano das relações. As sensações, as pulsões, os desejos passam a ser vítimas da aparência, do brilho da superfície e do fugaz. Logicamente, todo este movimento passa por mediações contextuais. Ele não é homogêneo. Porém, por sua causa, é cada vez mais difícil acreditar, com convicção, se determinada manifestação de indivíduos ou de grupos sociais é crença ou fantasia. Prefere-se aqui não tentar resolver este problema. Por isso, se faz a opção pela imagem técnica que estimula imagens, feita de influências também exteriores e múltiplas. A imaginação, por mais que se esforce, não consegue acompanhar de perto a proliferação exaustiva e excessiva de imagens, que, por sua vez, mostram novos horizontes todo tempo realimentando a imaginação. Neste caso, não é possível dizer que a imagem técnica dá conta de tudo, tornando-se muito mais uma concepção provisória. É esta orientação, muito pouco pretensiosa, mas passiva de revisões constantes, que a equipe pretendeu seguir ao produzir o filme “Cheiros, memórias e saberes”. Vale a pena, entretanto, explorarmos alguns conceitos básicos que orientaram o grupo, na relação entre a escrita sobre o tema e a imagem técnica.

Descrevendo o filme e alguns de seus conceitos Como já dito, é raro no campo acadêmico, exceto na área de otorrinolaringologia, trabalhos que abordem a relação entre odores e relações sociais ou culturais. Fora do contexto dos trabalhos deste campo citado, Tuan (1980), por exemplo, nos chama atenção sobre os sentidos dos seres humanos: como receptores sensoriais do ambiente, são igualmente transmissores de experiências emocionais. Isto permite aos seres humanos a produção de sentimentos pelo espaço vivido, espacializando o mundo por meio dos sentidos. O autor chama atenção de que a percepção do mundo e apreensão do espaço é promovida por todos os sentidos em conjunto, sendo multissensorial.

Isso quer dizer que não é possível pensar o mundo somente por um sentido

isolado. No caso do olfato, Tuan (1980) destaca que o homem moderno chega a negligenciar este sentido, dando a impressão de que o ambiente ideal seria aquele que elimina os cheiros. Para o autor, a palavra “odor” tende a ser entendida como mal cheiro. Ele também afirma que, apesar

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disso, este sentido tem um poder acentuado para evocar lembranças vividas, carregadas de emoção. Até mais do que a visão, já que esta, em alguns casos, remete à situação de espectador ou observador que não necessariamente faz parte da cena que se “vê”. Assim, o olfato se relaciona com mais ênfase à expressão corporal dos sentimentos. No filme “Cheiros, memórias e saberes” esta discussão é posta, com mais força do ponto de vista acadêmico do campo das humanidades, e das vivências cotidianas de determinados profissionais envolvidos com atividades que emanam fortes cheiros, mas também, com menos força, sem hierarquia, do ponto de vista da otorrinolaringologia, como já dito. A escolha do aterro controlado de Sobral pareceu ser óbvia para a equipe, pelos fortes odores. O lixo representa exatamente aquilo que se precisa descartar e sempre evoca a lembrança do mal cheiro. Entende-se aqui que a definição e distinção entre odores ruins e bons perpassam por um processo histórico que promove percepções morais e políticas de como lidar com os diferentes cheiros emanados no espaço vivido. Estas concepções têm consequências no uso do espaço público e privado. Portanto, se percebe que estas concepções, além de históricas, são espaciais. No Aterro, por exemplo, os depoentes contam que “se acostumaram” com o cheiro. Um deles, o gerente, por exemplo, chega a dizer que sente muito mais incomodo do lixo de sua casa do que o do seu local de trabalho. Na sequência feita no Aterro, percebe-se a necessidade de eliminar o cheiro que Tuan (1980) chama atenção, buscando-se o ambiente ideal. Isto quer dizer que esta necessidade de eliminação não está somente no espaço urbano ou privado da casa, está também no próprio ambiente destinado a depositar aquilo que incomoda por seus odores fortes, já que, segundo o que os entrevistados explicam, a proposta do Aterro é que as consequências do acondicionamento inadequado do lixo, dentre eles o cheiro compreendido como fétido, devem ser controladas, mesmo neste local longe da área urbana. Enterrar o lixo visa evitar os efeitos entendidos como danosos. Isto tem consequências nos sentidos dos que trabalham com a atividade que se “acostumam” com os odores fortes. Mesmo assim, acabam lembrando de outros espaços vividos em tempos passados ou no presente, em outros ambientes onde o lixo lhes fazia companhia. O tratorista, por exemplo, lembra de sua casa na infância onde brincava perto de um “monturo”3 de lixo. A cozinheira que aparece na sequência já apresenta uma relação diferente com o cheiro. Está 3 Termo que expressa local onde se aglomera lixo.

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lidando com um ambiente em que se exigem odores que estimulam o paladar. Aliás, estes dois sentidos parecem se aproximar mais em determinadas espacialidades do que em outras. O espaço ocupado pela cozinheira é exemplar para se pensar esta aproximação. O controle, mais uma vez, é sobre os odores que possam ser entendidos como fétidos, configurando comidas estragadas. Em determinados momentos, o paladar não é tão determinante para a cozinheira, já que, como ela mesma diz, envolvendo também um terceiro sentido que é o da visão, “o cheiro faz parte do apetite, uma comida cheirosa e bonita, nem que não seja gostosa, você acaba se agradando”. No caso, o paladar é que aparece como secundário no discurso dela, já que ele não é tão decisivo quando se pensa a relação entre os outros dois sentidos citados em determinadas situações. Na fala da cozinheira, mais uma vez as lembranças de infância são parâmetros para definição de suas práticas profissionais. As memórias do tempo em que chegava à casa de sua avó no sertão, sentindo o cheiro de sua comida, não são experiências distantes do que faz no presente, segundo ela. O personagem seguinte é um historiador que chama atenção da relação entre o corpo que se expande do ponto de vista espacial e temporal, construindo um processo de sensibilização a partir do século XVIII. Ele lembra Alain Corbin (1987) que discute este momento histórico do século XVIII e XIX quando acontece a “revolução olfativa”. É neste contexto histórico na França que se começa a perceber determinados odores como significativos de problemas que, a princípio, refletiam constrangimentos morais e, com o tempo, foram classificados como prejudiciais à saúde. Norbert Elias (1994) também é lembrado pelo historiador como outra referência para entender a questão dos problemas relacionados ao cheiro. O autor lembrado trata do mesmo período histórico. Para o autor, o sistema de classificação dos cheiros tem motivações especialmente morais, no período. O comportar-se na mesa, o cuidado com o corpo são os primórdios da ideia de higiene, transformando, posteriormente, concepções morais sobre os odores para o registro da saúde. A maneira de como lidar com o outro e se comportar no espaço público e privado são consequências, dentre outros aspectos, da forma como socialmente passou a se perceber e agir diante da classificação de certos odores como problemáticos. O personagem que surge na sequência é a vendedora de perfumes. Ela destaca o seu prazer em trabalhar com cheiros agradáveis e a sua satisfação em trabalhar com as pessoas. No caso dela, o perfume parece ser o mediador para lembranças de coisas boas do passado, especialmente do ponto

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de vista afetivo, como um amigo ou namorado. Lembra também de algumas fragrâncias que elevam a libido. O seu depoimento evidencia os argumentos teóricos lembrados pelo historiador, que nos fazem perceber que o cheiro promove a expansão do corpo no espaço e no tempo, envolvendo sentimentos e modos de comportamento corporal, assim como condutas morais. O que não podemos esquecer nesta discussão é a perspectiva biológica, a que se refere o otorrinolaringologista, próximo personagem a aparecer no filme. Para ele o cheiro é uma reação química. As moléculas promovem estímulo que vai para o sistema límbico, responsável pelo armazenamento das emoções e conhecimento das coisas do passado. Justamente por isso que as lembranças têm uma forte relação com o cheiro, somado com a gustação. As alterações do olfato, como a hiposmia ou anosmia, afetam diretamente as emoções. O médico reconhece a dimensão cultural deste processo biológico. Quando fala da escolha dos alimentos, por exemplo, lembra que os escolhemos muito mais pelo cheiro do que pelo sabor. Entretanto, esta escolha é culturalmente mediada. Há alimentos que podem ser bons para algumas pessoas, mas para outros não. O aluno de pós-graduação que aparece na peça foi escolhido exatamente para falar das implicações sociais de situações em que não se tem muita sensibilidade para classificar os odores, que é o caso dele. Na sua situação, já que não tem muita sensibilidade para classificar o cheiro, procura, pelo menos, entender o que os outros sentem, conformando-se com a sua dificuldade em sentir e tentando buscar uma alternativa, pressionado pelas implicações sociais decorrentes da carência de sentir odores. A distinção dos odores e o sistema de classificação criado para mostrar suas diferenças e especificidades são resultantes de um aprendizado em espacialidades e temporalidades diferentes. Mesmo que não consiga se adaptar ao sistema de classificações que fazem parte do meio em que vive, a pessoa é obrigada a criar uma forma de compensação que envolve outros sentidos e sentimentos. Uma geógrafa é a próxima personagem e fala das lembranças da infância que promovem a formação do caráter da pessoa. Até o momento da proposição de sua participação no filme, ela confessa que não tinha dimensão da importância do olfato para compreensão de como ele vai permeando a relação com o meio em que vivemos e a relação com os outros. Ela também confessa que a ênfase que como estudiosa dava às problemáticas urbanas acabou se detendo muito mais na visão e talvez na audição, pensando no barulho da cidade, dos carros e dos passos apressados. O convite para participar do filme a faz lembrar do cheiro de peixe, remetendo suas memórias para a

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infância, quando seu pai trabalhava como agricultor e pescador e trazia peixe para alimentar em casa os filhos e a esposa. Ela lembra que sempre era chamada para ajudar na limpeza dos peixes e sua preparação. Ao contrário das outras pessoas que entendem o odor do peixe como uma coisa ruim, ela acaba classificando agradável este mesmo odor em função de suas boas lembranças de infância. Intercalando o depoimento da geógrafa, o filme coloca imagens do mercado público de Sobral e entrevista um de seus vendedores, exatamente para mostrar o outro lado do odor de peixe. O vendedor se refere à falta de “zelo” pelo espaço, provocando cheiros fétidos. Ele justifica sua permanência no local pela necessidade de sobreviver, apesar de entender que está errado trabalhar em local que, na sua concepção, é insalubre. Ele acaba sendo “obrigado” a adaptar o seu corpo ao odor forte. Antes de o filme apresentar novamente a geógrafa como personagem, volta a mostrar o historiador que chama atenção de como o cheiro pode ser usado para entender a própria história da cidade. Os odores exalados por algumas fábricas são ponte para conhecermos mais a história local. O próprio corpo dos trabalhadores destas fábricas e seus cheiros são fonte de pesquisa sobre a história. Ele cita exemplo acontecido em sua rua, onde morava um trabalhador da Companhia Industrial de Algodão e Óleo – CIDAO4, que exalava cheiro de mamona, matéria-prima usada para produção de óleo na referida fábrica. Mesmo depois de muito tempo da saída dele da CIDAO, a impressão do cheiro estava presente em seu corpo. A Curtimasa5 é outra fábrica lembrada por ele, por ter provocado problemas de saúde em parte da população pelo cheiro exalado na curtição de couro, chegando a matar uma grande população de urubus da cidade. O entrevistado finaliza seu depoimento falando que o mau cheiro é controlado por um poder mais centralizado, mas também faz parte de uma relação do corpo com o espaço e o tempo, fazendo com que se adote certas posturas e práticas corporais. O enterramento dos corpos das pessoas que morreram é exemplo de mudanças na dinâmica dos espaços. Antes os corpos eram enterrados ao redor das igrejas, depois passaram a ser sepultados em locais diferentes e próprios para isso. Os cemitérios, com o tempo, 4 Fábrica inaugurada em 1921, que beneficiava algodão, mamona e oiticica e funcionou até 1980. Sobre isso, Cf.ARAGÃO, 1989.

5 Curtume Machado S.A. que funcionou a partir da década de 1960 e fechou suas portas na década de 1980. Sobre isso Cf. HOLANDA, 2007.

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passam a ter práticas diferentes de sepultamento, tendo como parâmetros questões relativas à higiene, aos miasmas exalados e aos malefícios causados por eles. O filme volta a mostrar a geógrafa que fala de sua escolha de moradia na serra da Meruoca, ambiente para ela próximo ao que se classifica como “natureza”. Trinta e três anos depois de sua vivência de infância, junto a uma situação social relacionada à agricultura e à pesca, a escolha de sua casa tem relação com estas lembranças. Sua casa aguça o cheiro que tinha na infância e faz perceber que gosta do cheiro do mato, do cheiro da chuva. Sua estada em São Paulo, extremo oposto das condições ambientais de sua casa, a fez ficar doente. Fala que sentia muita falta do Ceará, especialmente de seu cheiro. Logicamente que, ao chegar à sua casa, ainda não tinha uma relação de identidade com ela. O tempo foi criando esta relação. Como a natureza tem tudo a ver com a sua infância, isso ajudou a se relacionar melhor com o ambiente da casa. Comportamentos atuais têm relação com este tempo da infância, como o uso racional da água, por exemplo. Ela entende que esta consciência vem do tempo de criança. A emoção toma conta da interlocutora que volta a dizer que sua infância tinha cheiro de peixe. O filme finaliza com o poema “cheiro” de Francisco Dênis Melo, historiador e personagem do filme. A escolha do poema remete a relações bastante enfatizadas pelos diferentes personagens. São elas: as emoções, afetos e lembranças de vivências em espacialidades e temporalidades distintas. O poema diz: “Vem de longe este cheiro/que alcança ruas e quintais/e serve o passado como prato do dia/o cheiro de roupa limpa invade o teu corpo/que acena branco entre folhas e raízes/toda cidade é cheiro/toda cidade é som/alarido do pássaro/gosto do tempo que move na língua o gosto da lembrança/lembrança tem cheiro e sabor/desperta imagens na retina da memória/destila o tempo comovido entre frases e silêncios/de onde vem este cheiro/que passeia perto, longe/ ao mesmo tempo hoje/ao mesmo tempo ontem?/que cheiro é esse, movente ar pesado/massa corporal que fabrica o passado com o fogo das fornalhas?/mas o teu cheiro continua em mim/cheiro de cidade, lagoa, rio/fundo de um espelho intermitente em que nos desejamos/de onde vem este cheiro, metade ontem, metade hoje?/cheiro de coisa vivida/cheiro de coisa comovida/no princípio era o cheiro/e o seu cheiro se faz passado entre nós.”

O poema aparece como síntese do filme. É a forma escolhida pela equipe para dar ênfase aos afetos e à relação com o espaço e o tempo da produção do documentário que envolve os odores.

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A escolha de um dos interlocutores do filme foi providencial, já que ele sentiu no seu corpo a experiência de envolvimento com o tema, estimulado pela produção audiovisual e poderia expressar seus afetos no texto poético, pensando nesta experiência.

Considerações finais: Amarrando argumentos

A reflexão sobre o espaço, o tempo e a cultura só é possível quando pensamos, como ilumina Santos (2006), que o corpo é um instrumento de ação no mundo. Entretanto, o governo do corpo é limitado por condicionantes sociais, econômicos, morais e culturais que o afetam de alguma forma, gerando reações diversas no uso do espaço e na relação com as lembranças e esquecimentos. Compartilhar com os habitantes do lugar suas experiências do lugar/mundo, como diria Carlos (2007), permite uma revisão epistemológica que coloca em cheque a visão de ciência rígida que mostra muito mais o resultado de uma certa “vaidade” do pesquisador como supostamente dono de uma saber competente e verdadeiro, em detrimento de outros saberes. Os lugares expressos a partir dos corpos em movimento, seus sentidos e, especialmente, o olfato, e a relação com suas memórias, são aqui entendidos nesta pesquisa como expressões de experiências bastante complexas, fluidas, muito mais vinculadas a contextos e situações do que a invariantes generalistas. Todos estes saberes vão interagir na produção das diferentes formas de expressão dos resultados da pesquisa, pensandose aqui não só no documentário objeto de reflexão deste artigo, mas também em textos e outras obras a serem materializadas em função da experiência vivenciada pela produção do filme. O filme foi estímulo não só para a equipe de produção, mas também para seus personagens, que viram no tema uma forma pouco convencional de pensar a cidade, sua história e as trajetórias individuais de diferentes atores que compõem o espaço urbano. Pensar a cidade e o urbano não é só resultado da visão e da audição, mas também dos outros sentidos, como é o caso aqui do olfato. O paladar e o tato poderiam também ser objetos de reflexão, resguardando suas especificidades sensoriais e condicionantes mais amplos que os definem e distinguem dos demais sentidos corporais. O corpo e os sentidos não são resultantes exclusivos de condicionantes sociais, morais, culturais, políticos e econômicos mais amplos que os configuram como determinados de forma

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absoluta. A sua dimensão biológica nos faz crer que existem opções de escolha, mesmo que limitadas, de como podemos pensar e agir no mundo, em sinergia com as demais dimensões. Além disso, percebe-se aqui que as ações corporais estimuladas pelas afecções sentidas no ambiente vivido e experimentado são estruturadas por condicionantes mais ou menos locais e, ao mesmo tempo, gerais que não nos permitem construir barreiras sólidas e impenetráveis de determinantes absolutos e bem definidos. O corpo, especialmente no tempo presente, tem condições de viver experiências múltiplas que transgridem fronteiras, mesmo que a sensação seja a de que está inserido em um contexto cultural mais específico. Entretanto, como alerta Appadurai (2004), mesmo em situações em que o prazer e a liberdade corporal são entendidos como uma finalidade inerente ao corpo humano, tendo esse valor como ideologia, o corpo não prescinde de uma disciplina social para realização de suas metas. Existe uma tendência para que o corpo ganhe uniformidade por meio da habituação de suas técnicas e práticas, mesmo que se considere a inércia, a imitação pela moda, dentre outros aspectos que seguem tendências massificadas de uso do corpo, como algo negativo. Para o autor indiano é muito difícil pensar em uma situação na qual o corpo tem um comportamento absolutamente anárquico e livre. A ideia de liberdade, quando praticada, vira uma espécie de disciplina que regula hábitos livres de determinados artifícios selecionados de coerção, criando outras modalidades de coerção. Portanto, existem tantos métodos de disciplinas quantos reproduções, hábitos, costumes morais, técnicas e práticas, todas postas em tensão, disputando espaços e tempos, usando o olfato e os outros sentidos, sentimentos e afetos, como fonte, método, avaliação e repercussão do envolvimento do corpo no mundo. Referências bibliográficas APPADURAI, Arjun. Aqui e agora. In: Dimensões culturais da globalização. Editora Teorema: Lisboa, 2004. ARAGÃO, Elizabeth Fiúza. A trajetória da indústria têxtil no Ceará: Setor de fiação e tecelagem – 1880 – 1950. NUDOC. Fortaleza, 1989. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica”. in.: A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro, UFRJ, 1998

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CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras,1987. LATOUR, Bruno. Jamais formos modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: volume 1 - uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. HOLANDA, Virgínia C. C. de. Modernizações e Espaços seletivos no Nordeste Brasileiro. Sobral: conexão lugar/mundo. Tese (Doutorado em Geografia Humana) Departamento de Geografia da FFLCH da USP. São Paulo. 2007. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de Antropologia Simétrica. São Paulo: Editora 34, 2005. SANTOS, Milton, A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. TUAN, Yi-Fu. Topofilia – um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1980.

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